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Por que e qual fidelidade?
Considerações sobre as recentes experiências
coligacionistas dos partidos brasileiros
S I LVA N A K R AU S E
s vícios e a complexidade do
nosso sistema político-eleitoral
nutrem uma forma nebulosa e
confusa do uso do termo
“fidelidade”, raiz de concepções
raivosas sobre o “mundo da política”.
O desejo justiceiro imediatista do
eleitor comum não contempla
repetidamente a sua própria
sublimação, que é a de não
reconhecer que os partidos espelham
nada mais do que o desejo individual
frustrado. O problema das coligações
eleitorais está justamente nesta
compreensão, ou seja, em o cidadão
comum brasileiro não ter a
capacidade de reconhecer os limites
do alcance político e transferir para
os partidos o sentimento de
frustração que não tem a coragem ou
condições de assumir.
O
A concepção de fidelidade na
cultura e na engenharia política
brasileira carrega uma série de
tensões difíceis para os partidos e a
classe política superarem. Ao
partirmos do significado de “fiel”
como cumprir aquilo a que se
obriga e ser leal, o político
brasileiro entra no seu primeiro
dilema de ter que decidir a quem
deve ser fiel. Este problema já se
inicia quando o político toma a
decisão de concorrer numa eleição.
No atual sistema de votação de lista
aberta, onde o candidato às eleições
proporcionais (Câmaras de
Vereadores, Assembléias Legislativas
e Câmara dos Deputados) é
apresentado em uma lista livre, não
pré-ordenada, o eleitor vota na
pessoa de sua preferência ou na
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legenda do partido, estabelecendo
um pacto de fidelidade insólito.
Inicia-se assim uma relação de
confiança de alto custo, com alta
probabilidade de ser sustentada
somente no curto prazo. Há uma
relação de confiança direta e
informal entre eleitor e o eleito,
pela qual a garantia à observância
dos compromissos é
predominantemente pessoal. Não
há uma instância intermediária
entre o eleitor e o eleito que seja
capaz de “vigiar” e “punir” possíveis
“deslizes”. Se o pacto é rompido,
recorre-se a quem? Os partidos têm
poucas condições de fazer esse
controle, pois a legislação atual
diferencia mandato de cargo, e o
mandato pertence ao eleito e não
ao partido. Este problema é ainda
aprofundado quando um outro
partido acena com um “casamento”
mais afortunado com menos
sacrifícios. Isto não surpreende, pois
a expectativa é a de que uma boa
“aliança” é aquela, onde o
“provedor” seja capaz de nutrir a
“prole” da melhor maneira possível.
Isto é evidenciado quando, por
exemplo, é ofertado a um deputado
um cargo de maior expressão
política na Câmara dos Deputados
para trocar de legenda, ou um
melhor espaço para concorrer às
eleições. O cálculo do deputado
neste caso é, sem dúvida, baseado
na lei da oferta e da procura,
segundo a qual o instinto de
preservação política, ou seja,
potencializar bens e recursos, a fim
de distribuir benefícios e receber
votos é a lei máxima.
Se, por um lado, o político
eleito tem a necessidade de ser fiel
àquele que o elegeu, por outro,
estabelece também vínculos de
compromissos que não são feitos
diretamente com o eleitorado.
Conhecedor de sua votação, o eleito
sabe que a heterogeneidade e a
perspectiva imediatista do seu
eleitorado torna a sua tarefa de
“cumprir aquilo a que se obrigou”
um caminho tortuoso e gerador de
frustrações. Neste sentido, a ameaça
de rompimento do pacto de
fidelidade do eleito com seu
eleitorado está constantemente
presente. Para o eleito equacionar as
inúmeras e diversificadas demandas
do seu eleitorado e otimizar seus
recursos para satisfazer o desejo
insaciável do eleitor, abrem-se
diversas frentes de fidelidade. Desta
forma a “poligamia” exigiria um
tipo de fidelidade não exclusiva,
baseada no reconhecimento mútuo
entre o eleitor e o eleito, de que a
satisfação na relação não pode ser
permanente e completa, pois é
sustentada em uma natureza que
não tem condições de contemplar a
“monogamia”.
O segundo pacto de fidelidade
do eleito é estabelecido não
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diretamente com o seu eleitorado,
mas com os financiadores da
campanha eleitoral. A atual
legislação eleitoral propicia as
condições para que o financiamento
das campanhas seja
preponderantemente feito de forma
direta a indivíduos e não a uma
organização partidária. Isto é sem
dúvida alimentado pelo próprio
sistema de lista aberta, que não
incentiva campanhas partidárias,
mas campanhas personalizadas. Não
é apenas a forma direta de
financiamento de campanhas, mas a
maneira informal com que elas são
financiadas, através do famoso
“caixa dois”. Esta informalidade gera
vários constrangimentos no
“casamento” entre o eleito e seu
financiador, pois não há um
contrato formal e explícito de
direitos e deveres entre os
“parceiros”. Assim, a relação de
fidelidade entre financiador e eleito
é sustentada por um campo obscuro
e desconhecido publicamente. Cabe
ainda considerar que este pacto de
fidelidade é normalmente
construído em uma situação entre
desiguais, na medida em que é feito
em um momento em que o
candidato é fragilizado por estar à
procura de recursos, e o doador
pode, assim, inflacionar a sua
demanda. Sem dúvida, o
financiamento público exclusivo de
campanhas eleitorais inibiria
campanhas caras e por sua vez o
“caixa dois”, dado que seria mais
explícito o contrato de
financiamento. Se os recursos das
campanhas são exclusivamente
públicos, a “parceira” percebe mais
facilmente o consumo fora do
padrão habitual do “parceiro”, e a
suspeita de traição fica também
mais presente à comunidade. Ou
seja, campanhas caras com shows,
festas, distribuições de camisetas etc,
ficam difíceis de serem justificadas
com financiamento público
exclusivo.
Não bastasse a tarefa de serem
fiéis aos eleitores e financiadores da
campanha, os políticos também têm
opções a fazer sobre os critérios que
definirão sua “parceria” ao se
candidatarem. Temos aqui um
terceiro pacto de fidelidade. As
coligações eleitorais são um sintoma
claro para o diagnóstico de que a
expectativa de fidelidade é
conjuntural e não universal. Ou
seja, elas demonstram “uniões” que
se fundamentam nas “ocasiões” que
são baseadas em uma concepção de
que devem ser “fiéis enquanto
durem” e “flexíveis” o suficiente
para não serem uma camisa de
força. Trata-se de uma compreensão
semelhante ao adolescente que
deseja “ficar” sem ter “ônus”, um
cálculo emocional e circunstancial
que procura descartar tudo aquilo
que signifique sacrifício. O dilema
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sobre a verticalização1 das coligações
fica muito explícita em uma fala do
presidente Lula a respeito do
assunto: “a verticalização não é
minha paixão [...] para mim, o
casamento tem de ser por amor, não
pode ser obrigatório...”.2 Sob o
escudo da suposta paixão, admite-se
a infidelidade? Decidimos aceitar a
paixão como soberana nas decisões
políticas? Do âmbito privado ao
âmbito público, estamos nada mais
que assumindo a volatividade das
relações. O problema aqui não diz
respeito meramente à dimensão
moral, mas àquilo que predomina
na fórmula de sobrevivência política
para evitar situações propícias ao
auto-aniquilamento. Desta maneira,
os partidos brasileiros desejam ser
livres para se associar, sem
constrangimentos legais que possam
gerar desgastes e perdas advindas
especialmente da tradição federalista
e localista da política brasileira. O
argumento predominante é a
necessidade de não encarceirar as
associações, que são frutos das
diversidades políticas regionais que
não podem ser desconsideradas. O
que está especialmente em jogo na
reivindicação da “livre associação”
dos partidos políticos é o cálculo da
maximização dos ganhos eleitorais,
possibilitando arranjos que ampliem
as alianças para as eleições nacionais
sem forçar situações em que
adversários nos Estados da
Federação sejam sacrificados ou
impedidos de competir devido à
união nacional.
Com as eleições casadas3 a
partir de 1994 observou-se que nem
sempre a “livre associação” foi
benéfica aos partidos. Situações
embaraçosas nas campanhas
eleitorais, e climas “canibalescos”
nos bastidores sinalizaram que as
“feridas” geradas com disputas de
adversários regionais não superaram
a aliança firmada na campanha
nacional. Em vários estados
brasileiros candidatos à Presidência
tiveram que se distanciar das
campanhas regionais, não podendo
comparecer em palanques, pois seus
aliados nacionais disputavam o
Poder Executivo estadual. Se a curto
prazo os “ganhos” eleitorais dos
partidos são mais garantidos com a
1.
A verticalização das coligações significa que as coligações eleitorais na disputa para
presidente devem ser seguidas nas eleições estaduais, ou pelo menos não podem ser
desrespeitadas.
2.
www.uol.com.br. “Últimas Notícias”, 8.12 .2005.
3.
Eleições casadas são eleições que ocorrem conjuntamente (mesmo calendário eleitoral).
No Brasil, a partir das eleições de 1994, as eleições nacionais (Presidência, Câmara dos
Deputados, Senado) são feitas junto com as eleições estaduais (Governadores e
Assembléias Legislativas).
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“livre associação”, a médio e longo
prazos as organizações partidárias
perdem em sua capacidade e
qualidade de ação política,
especialmente na arena nacional. A
dificuldade se agrava no período
pós-eleitoral, quando os partidos
sentem os entraves para alcançarem
uma atuação coesa de seus
parlamentares e aliados, que
costuraram compromissos regionais
nem sempre conciliáveis com a
direção nacional dos partidos.
A experiência da eleição de
2002, com a introdução da
“verticalização das coligações
eleitorais”, também nos mostrou
que a “jaula de ferro” da tradição
localista, a informalidade e a
criatividade da política brasileira
falaram mais alto. O fio da
fidelidade, que se bifurca várias
vezes, conduziu os inocentes ao
sacrifício enquanto saciou os
minotauros. Presumiu-se que
convergir os “fios de Ariadne” pela
verticalização das coligações nos
levaria à saída desse “labirinto de
fidelidades”, mas as “coligações
brancas” e as “candidaturas laranjas”
criaram novos túneis. Por um lado,
a lei eleitoral não impediu que em
alguns Estados as “coligações
brancas”, na informalidade,
apoiassem candidaturas não
coadunadas com as estabelecidas
para a Presidência da República. Por
outro, as “candidaturas laranjas” em
alguns Estados garantiram a tarefa
de aumentar o tempo de
propaganda na TV e dar um espaço
mais afortunado aos candidatos a
deputado.
Recentes estudos sobre o perfil
e os efeitos das coligações eleitorais
no Brasil têm indicado a fragilidade
e a inconsistência identitáriaideológica das coligações. Além
disso, elas têm sido
responsabilizadas como
contribuintes do índice de
fragmentação do sistema partidário
brasileiro e fomentadoras de
distorções de representação política
no país. Muitos cientistas políticos
brasileiros são favoráveis à proibição
das coligações eleitorais para as
eleições proporcionais. O projeto
elaborado pela comissão especial de
reforma política da Câmara dos
Deputados não prevê a proibição
das coligações eleitorais, mas
estabelece a criação de uma
“federação de partidos”. Os partidos
poderiam assim fazer suas uniões
livremente, no entanto elas devem
permanecer em funcionamento de
forma obrigatória por três anos,
funcionando como uma “federação
de partidos”. Isto impediria o trocatroca de legendas durante um
período significativo e a federação
funcionaria como um bloco
parlamentar. No caso de dissolução
da federação partidária neste
período os partidos perderiam o
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direito de funcionar no parlamento.
Ou seja, o “divórcio” pode ser feito
e é previsto, mas o sacrifício e a
perda devem ser incorporados no
cálculo.
Fica ainda a pergunta a
respeito da verticalização das
coligações. Se partirmos da
constituição brasileira que
estabelece o “caráter nacional” dos
partidos (art.17) e que um prérequisito de uma organização
partidária é ter o desejo explícito de
governar a nação, o desafio é não
somente garantir a presença no
território nacional, mas superar a
ordem localista e regional, grande
impedidora de projetos
nacionalmente coesos dos partidos.
A principal lição da verticalização
das coligações é que a coesão nos
“casamentos” pode ser estimulada
por uma interpretação do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), mas
também não podemos ter a ilusão
de que a ordem centrífuga seja
eliminada apenas por uma decisão
jurídica.
SILVANA KRAUSE é professora do Departamento de Ciências Sociais
da Universidade Federal de Goiás, doutora em Ciência Política pela
Katholische Universität Eichstätt/ Alemanha e ex-bolsista da Fundação
Konrad Adenauer.
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13- Por que e qual fidelidade? - Konrad-Adenauer