KA Cad1_06 11.04 17.04.06 13:16 Page 155 EM FOCO Por que e qual fidelidade? Considerações sobre as recentes experiências coligacionistas dos partidos brasileiros S I LVA N A K R AU S E s vícios e a complexidade do nosso sistema político-eleitoral nutrem uma forma nebulosa e confusa do uso do termo “fidelidade”, raiz de concepções raivosas sobre o “mundo da política”. O desejo justiceiro imediatista do eleitor comum não contempla repetidamente a sua própria sublimação, que é a de não reconhecer que os partidos espelham nada mais do que o desejo individual frustrado. O problema das coligações eleitorais está justamente nesta compreensão, ou seja, em o cidadão comum brasileiro não ter a capacidade de reconhecer os limites do alcance político e transferir para os partidos o sentimento de frustração que não tem a coragem ou condições de assumir. O A concepção de fidelidade na cultura e na engenharia política brasileira carrega uma série de tensões difíceis para os partidos e a classe política superarem. Ao partirmos do significado de “fiel” como cumprir aquilo a que se obriga e ser leal, o político brasileiro entra no seu primeiro dilema de ter que decidir a quem deve ser fiel. Este problema já se inicia quando o político toma a decisão de concorrer numa eleição. No atual sistema de votação de lista aberta, onde o candidato às eleições proporcionais (Câmaras de Vereadores, Assembléias Legislativas e Câmara dos Deputados) é apresentado em uma lista livre, não pré-ordenada, o eleitor vota na pessoa de sua preferência ou na 155 KA Cad1_06 11.04 17.04.06 13:16 Page 156 EM FOCO C A DERNO S A DENAU ER VI (20 06 ) Nº1 156 legenda do partido, estabelecendo um pacto de fidelidade insólito. Inicia-se assim uma relação de confiança de alto custo, com alta probabilidade de ser sustentada somente no curto prazo. Há uma relação de confiança direta e informal entre eleitor e o eleito, pela qual a garantia à observância dos compromissos é predominantemente pessoal. Não há uma instância intermediária entre o eleitor e o eleito que seja capaz de “vigiar” e “punir” possíveis “deslizes”. Se o pacto é rompido, recorre-se a quem? Os partidos têm poucas condições de fazer esse controle, pois a legislação atual diferencia mandato de cargo, e o mandato pertence ao eleito e não ao partido. Este problema é ainda aprofundado quando um outro partido acena com um “casamento” mais afortunado com menos sacrifícios. Isto não surpreende, pois a expectativa é a de que uma boa “aliança” é aquela, onde o “provedor” seja capaz de nutrir a “prole” da melhor maneira possível. Isto é evidenciado quando, por exemplo, é ofertado a um deputado um cargo de maior expressão política na Câmara dos Deputados para trocar de legenda, ou um melhor espaço para concorrer às eleições. O cálculo do deputado neste caso é, sem dúvida, baseado na lei da oferta e da procura, segundo a qual o instinto de preservação política, ou seja, potencializar bens e recursos, a fim de distribuir benefícios e receber votos é a lei máxima. Se, por um lado, o político eleito tem a necessidade de ser fiel àquele que o elegeu, por outro, estabelece também vínculos de compromissos que não são feitos diretamente com o eleitorado. Conhecedor de sua votação, o eleito sabe que a heterogeneidade e a perspectiva imediatista do seu eleitorado torna a sua tarefa de “cumprir aquilo a que se obrigou” um caminho tortuoso e gerador de frustrações. Neste sentido, a ameaça de rompimento do pacto de fidelidade do eleito com seu eleitorado está constantemente presente. Para o eleito equacionar as inúmeras e diversificadas demandas do seu eleitorado e otimizar seus recursos para satisfazer o desejo insaciável do eleitor, abrem-se diversas frentes de fidelidade. Desta forma a “poligamia” exigiria um tipo de fidelidade não exclusiva, baseada no reconhecimento mútuo entre o eleitor e o eleito, de que a satisfação na relação não pode ser permanente e completa, pois é sustentada em uma natureza que não tem condições de contemplar a “monogamia”. O segundo pacto de fidelidade do eleito é estabelecido não 13:16 Page 157 diretamente com o seu eleitorado, mas com os financiadores da campanha eleitoral. A atual legislação eleitoral propicia as condições para que o financiamento das campanhas seja preponderantemente feito de forma direta a indivíduos e não a uma organização partidária. Isto é sem dúvida alimentado pelo próprio sistema de lista aberta, que não incentiva campanhas partidárias, mas campanhas personalizadas. Não é apenas a forma direta de financiamento de campanhas, mas a maneira informal com que elas são financiadas, através do famoso “caixa dois”. Esta informalidade gera vários constrangimentos no “casamento” entre o eleito e seu financiador, pois não há um contrato formal e explícito de direitos e deveres entre os “parceiros”. Assim, a relação de fidelidade entre financiador e eleito é sustentada por um campo obscuro e desconhecido publicamente. Cabe ainda considerar que este pacto de fidelidade é normalmente construído em uma situação entre desiguais, na medida em que é feito em um momento em que o candidato é fragilizado por estar à procura de recursos, e o doador pode, assim, inflacionar a sua demanda. Sem dúvida, o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais inibiria campanhas caras e por sua vez o “caixa dois”, dado que seria mais explícito o contrato de financiamento. Se os recursos das campanhas são exclusivamente públicos, a “parceira” percebe mais facilmente o consumo fora do padrão habitual do “parceiro”, e a suspeita de traição fica também mais presente à comunidade. Ou seja, campanhas caras com shows, festas, distribuições de camisetas etc, ficam difíceis de serem justificadas com financiamento público exclusivo. Não bastasse a tarefa de serem fiéis aos eleitores e financiadores da campanha, os políticos também têm opções a fazer sobre os critérios que definirão sua “parceria” ao se candidatarem. Temos aqui um terceiro pacto de fidelidade. As coligações eleitorais são um sintoma claro para o diagnóstico de que a expectativa de fidelidade é conjuntural e não universal. Ou seja, elas demonstram “uniões” que se fundamentam nas “ocasiões” que são baseadas em uma concepção de que devem ser “fiéis enquanto durem” e “flexíveis” o suficiente para não serem uma camisa de força. Trata-se de uma compreensão semelhante ao adolescente que deseja “ficar” sem ter “ônus”, um cálculo emocional e circunstancial que procura descartar tudo aquilo que signifique sacrifício. O dilema 157 | por que e qual f idelidade? 17.04.06 EM FOCO KA Cad1_06 11.04 KA Cad1_06 11.04 17.04.06 13:16 Page 158 EM FOCO C A DERNO S A DENAU ER VI (20 06 ) Nº1 158 sobre a verticalização1 das coligações fica muito explícita em uma fala do presidente Lula a respeito do assunto: “a verticalização não é minha paixão [...] para mim, o casamento tem de ser por amor, não pode ser obrigatório...”.2 Sob o escudo da suposta paixão, admite-se a infidelidade? Decidimos aceitar a paixão como soberana nas decisões políticas? Do âmbito privado ao âmbito público, estamos nada mais que assumindo a volatividade das relações. O problema aqui não diz respeito meramente à dimensão moral, mas àquilo que predomina na fórmula de sobrevivência política para evitar situações propícias ao auto-aniquilamento. Desta maneira, os partidos brasileiros desejam ser livres para se associar, sem constrangimentos legais que possam gerar desgastes e perdas advindas especialmente da tradição federalista e localista da política brasileira. O argumento predominante é a necessidade de não encarceirar as associações, que são frutos das diversidades políticas regionais que não podem ser desconsideradas. O que está especialmente em jogo na reivindicação da “livre associação” dos partidos políticos é o cálculo da maximização dos ganhos eleitorais, possibilitando arranjos que ampliem as alianças para as eleições nacionais sem forçar situações em que adversários nos Estados da Federação sejam sacrificados ou impedidos de competir devido à união nacional. Com as eleições casadas3 a partir de 1994 observou-se que nem sempre a “livre associação” foi benéfica aos partidos. Situações embaraçosas nas campanhas eleitorais, e climas “canibalescos” nos bastidores sinalizaram que as “feridas” geradas com disputas de adversários regionais não superaram a aliança firmada na campanha nacional. Em vários estados brasileiros candidatos à Presidência tiveram que se distanciar das campanhas regionais, não podendo comparecer em palanques, pois seus aliados nacionais disputavam o Poder Executivo estadual. Se a curto prazo os “ganhos” eleitorais dos partidos são mais garantidos com a 1. A verticalização das coligações significa que as coligações eleitorais na disputa para presidente devem ser seguidas nas eleições estaduais, ou pelo menos não podem ser desrespeitadas. 2. www.uol.com.br. “Últimas Notícias”, 8.12 .2005. 3. Eleições casadas são eleições que ocorrem conjuntamente (mesmo calendário eleitoral). No Brasil, a partir das eleições de 1994, as eleições nacionais (Presidência, Câmara dos Deputados, Senado) são feitas junto com as eleições estaduais (Governadores e Assembléias Legislativas). 13:16 Page 159 “livre associação”, a médio e longo prazos as organizações partidárias perdem em sua capacidade e qualidade de ação política, especialmente na arena nacional. A dificuldade se agrava no período pós-eleitoral, quando os partidos sentem os entraves para alcançarem uma atuação coesa de seus parlamentares e aliados, que costuraram compromissos regionais nem sempre conciliáveis com a direção nacional dos partidos. A experiência da eleição de 2002, com a introdução da “verticalização das coligações eleitorais”, também nos mostrou que a “jaula de ferro” da tradição localista, a informalidade e a criatividade da política brasileira falaram mais alto. O fio da fidelidade, que se bifurca várias vezes, conduziu os inocentes ao sacrifício enquanto saciou os minotauros. Presumiu-se que convergir os “fios de Ariadne” pela verticalização das coligações nos levaria à saída desse “labirinto de fidelidades”, mas as “coligações brancas” e as “candidaturas laranjas” criaram novos túneis. Por um lado, a lei eleitoral não impediu que em alguns Estados as “coligações brancas”, na informalidade, apoiassem candidaturas não coadunadas com as estabelecidas para a Presidência da República. Por outro, as “candidaturas laranjas” em alguns Estados garantiram a tarefa de aumentar o tempo de propaganda na TV e dar um espaço mais afortunado aos candidatos a deputado. Recentes estudos sobre o perfil e os efeitos das coligações eleitorais no Brasil têm indicado a fragilidade e a inconsistência identitáriaideológica das coligações. Além disso, elas têm sido responsabilizadas como contribuintes do índice de fragmentação do sistema partidário brasileiro e fomentadoras de distorções de representação política no país. Muitos cientistas políticos brasileiros são favoráveis à proibição das coligações eleitorais para as eleições proporcionais. O projeto elaborado pela comissão especial de reforma política da Câmara dos Deputados não prevê a proibição das coligações eleitorais, mas estabelece a criação de uma “federação de partidos”. Os partidos poderiam assim fazer suas uniões livremente, no entanto elas devem permanecer em funcionamento de forma obrigatória por três anos, funcionando como uma “federação de partidos”. Isto impediria o trocatroca de legendas durante um período significativo e a federação funcionaria como um bloco parlamentar. No caso de dissolução da federação partidária neste período os partidos perderiam o 159 | por que e qual f idelidade? 17.04.06 EM FOCO KA Cad1_06 11.04 KA Cad1_06 11.04 17.04.06 13:16 Page 160 EM FOCO C A DERNO S A DENAU ER VI (20 06 ) Nº1 160 direito de funcionar no parlamento. Ou seja, o “divórcio” pode ser feito e é previsto, mas o sacrifício e a perda devem ser incorporados no cálculo. Fica ainda a pergunta a respeito da verticalização das coligações. Se partirmos da constituição brasileira que estabelece o “caráter nacional” dos partidos (art.17) e que um prérequisito de uma organização partidária é ter o desejo explícito de governar a nação, o desafio é não somente garantir a presença no território nacional, mas superar a ordem localista e regional, grande impedidora de projetos nacionalmente coesos dos partidos. A principal lição da verticalização das coligações é que a coesão nos “casamentos” pode ser estimulada por uma interpretação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas também não podemos ter a ilusão de que a ordem centrífuga seja eliminada apenas por uma decisão jurídica. SILVANA KRAUSE é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, doutora em Ciência Política pela Katholische Universität Eichstätt/ Alemanha e ex-bolsista da Fundação Konrad Adenauer.