O ENSINO E A APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA POR MEIO DA MODELAGEM MATEMÁTICA: UMA JANELA PARA A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA André Gustavo Oliveira da Silva [email protected] Faculdade Adventista Paranaense. Meire dos Reis Oliveira [email protected] Faculdade Adventista Paranaense. Resumo Neste artigo, refletimos a respeito das contribuições que o ensino e a aprendizagem da Matemática podem dar ao processo de formação do indivíduo enquanto cidadão. A formação de cidadãos conscientes de seu papel social é um desafio permanente para a Educação. É possível romper a ‘invisível, porém espessa parede’ que mantém a Matemática como uma disciplina desconectada da realidade vivenciada pelos estudantes. Uma abordagem desafiadora que promova o comprometimento do aluno com o tema a pesquisar, na qual ele possa ser o agente de suas descobertas pode gerar ganhos ao seu aprendizado bem como promover o desenvolvimento de atitudes e comportamentos que favoreçam o processo de construção da cidadania. Apresentamos uma atividade desenvolvida, por meio de modelagem, para a investigação de um problema real vivenciado pelos estudantes e analisamos algumas contribuições que podem trazer ao processo de formação cidadã. Palavras-Chave: Matemática, Modelagem Matemática e Cidadania. O ensino e aprendizagem da Matemática e a cidadania no contexto escolar Em nossa sociedade, a matematização subjaz muitas de nossas atividades cotidianas. São as contas a pagar, as propostas de consórcios, os financiamentos, os empréstimos das financeiras a nos "bombardear" com suas aparentes vantagens, as obrigações com o fisco, as informações gráficas que cada vez mais ganham espaços nos jornais, etc.; por que, muitas vezes, não conseguimos estreitar o vínculo entre tais situações e o conteúdo escolar, trazendo essas questões para a sala de aula, promovendo uma aproximação entre as “matemáticas” escolar e a que é usada fora da escola? Segundo a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o objetivo principal da educação é a formação de cidadãos. Mas afinal o que é cidadania? Para Severino (1994), cidadania, de fato, envolve a igualdade de acesso e poder sobre os meios de produção, informação, quando se desenvolve o pensamento livre e participação nas decisões políticas. Cidadania, portanto, segundo Severino, envolve a socialização dessas esferas. Imenes & Lellis (1994,) citam três condições básicas para o exercício consciente da cidadania: “informação”, para a partir desta decidir; “educação”, que confere ao indivíduo subsídios para interpretar a informação e “autonomia”, que define como sendo a capacidade de pensar com a própria cabeça bem como decidir, conforme seus interesses, não sendo enganado pela propaganda. A questão indiscutível é: o saber oferece armas para o exercício da cidadania. É de suma importância o envolvimento dos estudantes com temas extraídos da realidade não somente para aumento da motivação para o estudo, nem tampouco somente para o aprimoramento das habilidades matemáticas, mas principalmente para que tenham oportunidade de investigarem detalhes diversos da forma como um modelo pode influenciar na realidade social. (SKOVSMOSE, 2001) O conhecimento matemático ajuda a dar à informação a devida dimensão, quando sabemos interpretá-la de forma crítica. Em nosso mundo os números exercem muito poder sobre as pessoas, pois a maioria não submete o que ouve ao crivo da reflexão sobre a informação, neste momento faz toda a diferença saber interpretar o fato noticiado à luz da informação matemática pertinente. Niss (1991) afirma que o conhecimento matemático dá aos indivíduos pré-requisitos que ele pode precisar para fazer face aos desafios da vida nas suas mais variadas esferas de ação. Na sociedade da informação em que vivemos, pessoas que não dominam o conhecimento matemático estarão em desvantagem cada vez maior à medida que a sociedade se torna mais complexa e informatizada. A fim de evitar que o uso incorreto da informação matemática, por meio das elites dominantes, traga prejuízos ao indivíduo; fazse necessário, segundo Frankenstein (2004) a inclusão de problemas matemáticos nos quais se possam trabalhar situações sociais como uma maneira de dar poder aos alunos, por meio de ferramentas matemáticas, a fim de que desenvolvam uma visão mais crítica do mundo. Para Freire (1983) a vocação ontológica do homem é a de “ser sujeito” e não objeto. Esta vocação pode ser desenvolvida quanto mais for levado a refletir sobre a 617 realidade espaço-temporal da qual faz parte, fazendo-o emergir cada vez mais conscientizado, compromissado com a mudança e renunciando ao simples papel de espectador. Freire destaca a necessidade de um processo educativo que priorize a conscientização do indivíduo, ao referir-se a um trabalho de promoção e critização, isto é, gerar situações que provoquem a transição de uma consciência ingênua para uma consciência crítica. A fim de alcançarmos melhor compreensão deste processo de transição, contrastamos no quadro abaixo, construído a partir de informações do livro Educação e Mudança, p. 40 e 41. (Freire, 1983), as características dos dois tipos de consciência. Quadro 1 - Comparação entre os tipos de consciência. CONSCIÊNCIA INGÊNUA Satisfaz-se com conclusões apressadas e superficiais. Tende a considerar que o passado foi melhor. Subestima o potencial humano. É impermeável à investigação. Possui frágil argumentação, baseada em emoções. Possui uma compreensão “mágica “ da realidade. Aceita a realidade como estática e imutável. Tende a polemizar. CONSCIÊNCIA CRÍTICA Anseia por profundidade na análise de problemas. Não repele o velho por ser velho, nem adota o novo por modismo. Procura livrar-se de preconceitos. Procura verificar ou testar as descobertas. É indagadora e investigadora. Substitui explicações mágicas por princípios autênticos. Reconhece que a realidade é mutável. Prioriza o diálogo. Para Freire, o conteúdo de uma educação que promova uma consciência crítica deve ser desenvolvido mediante a busca com os estudantes de idéias e experiências que dêem significados a suas vidas. Destaca, ainda, a importância de que temas geradores sejam apresentados dialeticamente, considerando-se o contexto histórico, buscando o envolvimento com a comunidade e lançando constantes desafios como parte do processo de critização que trará motivação para intervirem e transformarem suas realidades. A fim de contribuirmos, por meio do ensino da Matemática, na formação de um indivíduo crítico e autônomo faz-se necessário expormos nossos alunos a temas que possam contribuir para uma melhor compreensão da realidade, dos fenômenos sociais, do desenvolvimento de um senso mais acurado de democracia e solidariedade. 618 Frankenstein (1983) afirma que ao aprender a recriar o conhecimento a partir de situações matemáticas extraídas da realidade além favorece o diálogo e a ação coletiva, pode desenvolver nos estudantes a capacidade para criticar as ideologias hegemônicas e fazer com que os alunos se tornem comprometidos furiosa e intelectualmente com a mudança social. Skosmose (2001) defende a idéia de que o ambiente escolar pode ser um laboratório no qual se pode trabalhar o conteúdo matemático de maneira a se trabalhar habilidades desejáveis para a formação de um indivíduo consciente de seu papel social. Ressalta a importância de que ações democráticas de nível macro (sociedade) podem ser antecipadas no nível micro (escola), para isto devemos primar por uma relação dialógica entre professor-aluno. Segundo o autor, em uma epistemologia dialógica, o diálogo e a discussão assumem um papel crucial. Na escolha dos temas a ser investigados levamos em conta o que Skovsmose (2001) chama de dois pontos-chave para o êxito da proposta: que o problema a ser tratado seja relevante para os alunos e que de fato tenha proximidade com problemas sociais existentes. Descrevemos, a seguir, uma atividade que foi desenvolvida por meio de modelagem matemática, por alunos de terceiro ano do Ensino Médio, no Instituto Adventista Paranaense, internato misto no estado do Paraná. Alguns alunos da turma trabalham um período do dia, no restaurante do colégio, local em que são oferecidas três refeições regulares diárias. Ao observarem o atropelo causado nos momentos finais da entrega dos pratos, após as refeições, resolveram investigar o porquê havia um acúmulo excessivo de pratos no lambe sempre ao final das refeições e se era possível minorar o problema trazendo menos transtornos para o pessoal que trabalhava diretamente no setor. A expressão ‘lambe’ é o termo usado pelos alunos para indicar o setor de recepção dos pratos que serão submetidos à lavagem. No restaurante do colégio são servidas cerca de seiscentas refeições, em média, três vezes ao dia – desjejum, almoço e jantar. As refeições têm duração de uma hora. Três sinais sonoros são disparados a fim de orientar os comensais com respeito ao horário, o primeiro sinal quarenta minutos após o início das refeições, o segundo dez minutos após o primeiro e o terceiro e último cinco minutos a pós o segundo. Em geral os alunos agem despreocupadamente até o segundo sinal, só manifestando preocupação real de devolução dos pratos no terceiro sinal. Este 619 procedimento causa um acúmulo excessivo de pratos nos minutos finais das refeições gerando alguma dificuldade para os “lambistas” que se vêem em apuros para dar conta do serviço a fim evitar o ‘congestionamento’. Com o objetivo de compreender melhor o problema em questão e apresentar propostas plausíveis para minorar o problema o grupo resolver usar a matemática como ferramenta na investigação sobre o acúmulo de pratos no lambe. O grupo apresentou-nos as informações coletadas e já organizadas em dados em uma tabela que demonstrava os resultados médios obtidos da observação “in loco” feita pelos elementos do grupo durante três refeições no jantar. Essas informações estão na tabela 1, a seguir. Tabela 1 - Contém a informações reorganizadas em dados pelo grupo sobre o acúmulo de entrada dos pratos no lambe. Indice 1 2 3 4 5 6 Tempo (min) 10,0 20,0 30,0 40,0 50,0 60,0 Total de Pratos Acumulados 57 156 286 462 640 1175 Com os dados da tabela acima o grupo gerou a curva de tendência no CurveExpert 1.3 abaixo: Curva de Tendência Devolução de pratos 128 6 .8 0 3 .2 107 859 646 432 219 9 .77 .25 .73 .22 5 .7 0 5.0 15.0 25.0 35.0 45.0 55.0 65.0 Tempo (minutos) Figura 1 – Curva de tendência dos dados sobre o acúmulo de pratos no lambe. 620 Tão logo observaram a nova curva de tendência já faziam relação entre o que viam na realidade e o que os dados dispostos no gráfico revelavam, já formalizando algumas hipóteses: (1) A curva começou é...ela começou simples assim bem tranqüila e.. já perto do fim o movimento lá foi muito grande. (2) É uma função que..que, é uma função que trabalha com dados acumulativos [...] isso vai gerando uma curva e ela vai se acentuando conforme o acúmulo. (3) No primeiro sinal ali ele deixou bem claro que vêm poucos pratos, no segundo sinal eles entregavam um monte e no terceiro sinal explodia, por que eram muitos. A partir daí trabalhamos na dedução do modelo matemático, para isto manipulamos os dados que tínhamos. Apresentamos, a seguir, a dedução do modelo matemático em questão. A tabela a seguir revela o crescimento da variação do número de pratos em relação ao tempo. Tabela 2 - crescimento de ∆ p em relação a p pn Quantidade Crescimento de ∆ p em de pratos registrados a cada intervalo ∆ p = pn+1 - pn relação à p dado por de ∆p p dez minutos 57 156 286 462 640 1175 99 130 176 178 535 1,736842105 0,833333333 0,615384615 0,385281385 0,8359375 Observando os dados concluímos que o crescimento de ∆ p é aproximadamente proporcional a p. Com isto passamos à obtenção do modelo matemático desejado. Assumindo a hipótese de que ∆ p é proporcional a p, concluímos que podíamos representar esta proporcionalidade pela relação ∆ p = kp ou ainda pn+1 – pn = kpn. Temos, portanto, pn+1 =kpn + pn. Atribuindo valores inteiros a n, temos: Para n = 0, p1 = p0(k + 1) Para n = 1, p2 = p0(k + 1)² Para n = 2, p3 = p0(k + 1)³ 621 . . . Para n = t, temos: pn = p0(k + 1)n. Retomando os dados da realidade, descritos na tabela 4, e a partir de dois pares de valores (p, i) organizamos um sistema de duas variáveis: ⎧⎪286 = p(0)(1 + k ) 3 . ⎨ ⎪⎩1175 = p(0)(1 + k ) 6 A resolução do sistema forneceu k = 0,6 e p(0) = 69,9. O modelo procurado pode ser definido pela expressão: Pn = 69,9.(1,6) n A validação do modelo encontrado foi feita com auxílio da planilha de cálculos do Excel. O modelo obtido revelou uma margem de erro significativa para alguns resultados, pois consideramos apenas dois pontos da tabela e optamos por não fazer fazermos médias sucessivas entre os valores considerados, devido a alguma dificuldade com o tempo. Ao contrastarmos os gráficos I, obtido pelos dados da realidade e o gráfico II, obtido a partir do modelo, na figura 2, o grupo fez algumas ponderações interessantes, dentre elas apresentaram o último segmento da curva em destaque para representar o momento crítico – entre o segundo e o terceiro sinal – em que ocorre o acúmulo excessivo dos pratos no lambe. Pratos acumulados Comparação dos gráficos - acúmulo de pratos 1500 Obtida da realidade 1000 Obtida pelo modelo 500 0 1 2 3 4 5 6 Indice ( tempo a cada 10 minutos) Figura 2 – comparação dos gráficos de acúmulo no lambe: obtido pela realidade e o obtido pelo modelo. 622 A atividade oportunizou algumas reflexões sobre o porquê do acúmulo excessivo de pratos buscando perceber se a interpretação matemática que fizemos da situação poderia ajudar na melhor compreensão do problema. Considerações Finais Destacamos alguns aspectos relevantes ao processo de Ensino e Aprendizagem da Matemática e indicativos de sua contribuição ao processo de construção da cidadania. Tecemos alguns comentários a seguir e incluímos, também, algumas falas dos alunos que reforçam nossas considerações. Destacamos o potencial que existe no desenvolvimento de uma atividade de matemática em provocar o envolvimento do estudante na busca das informações e interpretação dos dados, em favorecer o seu comprometimento com o problema em questão, transformando o conhecimento matemático em algo dinâmico, que pode ser construído, no sentido de que o estudante vai em busca de caminhos ou métodos próprios para compreensão e investigação do problema em questão. A fala do grupo revela uma motivação para investigarem a questão: “a gente queria encontrar uma solução desse horário de pico acabar.” D’AMBROSIO (1986) ressalta a importância de se mudar ênfase do “conteúdo e da quantidade” e desviá-la para uma metodologia que desenvolva atitude, capacidade de matematizar situações reais, criar teorias adequadas para situações diversas, que permita o recolhimento de informações onde elas estão, a fim de promover a formação cidadã. A modelagem matemática, como alternativa para o ensino da Matemática, pode ajudar a desenvolver no estudante o espírito criativo e investigador, pois o conduz a constante pesquisa, contribuindo para a atualização e aperfeiçoamento. Também promove um vínculo de parceria e desenvolvimento mútuo entre professor e estudante, uma vez que se tornam companheiros na investigação do problema. Verificamos, portanto, que a modelagem matemática pode conferir um aspecto especial à formação cidadã, pois tende a fomentar a participação ativa, oportunizando a vivência de cidadania no ambiente escolar à medida que se envolve com problemas reais, busca compreendê-los e não raras vezes, compromete-se em transformar sua realidade. Quando perguntamos a um componente do grupo que investigou o problema do acúmulo de pratos se adotou a sugestão que 623 apresentou no trabalho para solucionar o problema, respondeu: “pelo menos o que senta na minha mesa e eu adotamos a idéia.” Há consenso entre diversos educadores matemáticos de que as aprendizagens colaterais, como de formação de atitudes permanentes, o gosto pela pesquisa, o despertamento do interesse em assuntos sociais, a reflexão sobre o problema e o compartilhamento de idéias, podem ser, muitas vezes, mais importantes do que o próprio conteúdo em si. Estas são atitudes que irão contar fundamentalmente no futuro. A mais importante atitude a ser formada é a do desejo de continuar a aprender. Esta modelagem possibilitou alguma reflexão sobre possíveis soluções para o problema conforme a fala de um componente do grupo: “A gente pensou em varias possibilidades...” Verificamos, enfim, que o ensino da Matemática, por meio da modelagem matemática, pode gerar outros benefícios para o indivíduo que transcendem aos muros escolares, contribuindo para que se torne mais consciente de seu papel social e amplie sua visão de mundo promovendo a transição gradual de uma consciência ingênua para uma consciência crítica na medida em que se envolve com questões pertinentes à sua realidade. Percebemos isso, principalmente, por meio da melhora da argumentação as causas e as possíveis soluções aventadas para o problema. Referências Bibliográficas: BRASIL. Lei nº 9394 – 20 dez. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Ministério da Educação, 1996. D’AMBROSIO, U. Da Realidade à Ação: Reflexões sobre Educação e Matemática, Ed. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1986. FRANKENSTEIN, M. Educação Matemática Crítica: Uma aplicação da epistemologia de Paulo Freire. Publicado em Educação Matemática , ed Moraes, SP, pp. 101 – 137. 1983 FREIRE, P. Educação e Mudança. Rio de janeiro: Paz e Terra 1983 IMENES, L.M.P., LELLIS M.; O Ensino de Matemática e a Formação do Cidadão. Temas e Debates, Blumenau, n. 5, pp.9-13, out. 1994 SEVERINO, A, J. Filosofia da Educação: Construindo a Cidadania. São Paulo, FTD, 1994. SKOVSMOSE, O. & VALERO, P. Quebrando a neutralidade política: o compromisso crítico entre a educação e a democracia. Quadrante, vol.11, 1, pp.7-28. 2001. 624