UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL - UNIJUÍ
DAIANE RAQUEL STEIERNAGEL
POR QUE A GENTE É ASSIM?
(Poesia, Subjetividade e Édipo na Produção Musical de Cazuza)
Ijuí
2006
UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL
CURSO DE PSICOLOGIA
A comissão examinadora, abaixo assinada, aprova a monografia, a qual obteve a nota cem (100)
POR QUE A GENTE É ASSIM?
(Poesia, Subjetividade e Édipo na Produção Musical de Cazuza)
Elaborada por
DAIANE RAQUEL STEIERNAGEL
Como requisito parcial para obtenção do grau de Psicólogo
COMISSÃO EXAMINADORA
________________________________________
Larry Wizniewsky: Mestre – Orientador
______________________________________
Angela Drugg, Mestre – Banca
_____________________________________
Alfeu Sparemberger, Dr. - Banca
TÍTULO: Por Que a Gente é Assim? (Poesia, Subjetividade e Édipo na Produção
Musical de Cazuza)
RESUMO: Os percursos subjetivos que o sujeito enfrenta ao longo da vida, trazidos
pela psicanálise, há muito tempo já eram a matéria-prima da criação artística. Pois o artista
consegue simbolizar – os significantes de sua história pessoal e de sua geração – em sua obra de
arte. Assim, psicanálise e arte possuem muitos aspectos em comum. Ambas irão lidar com a
linguagem e com as expressões dos “estados da alma”, com idéias, sentimentos e sofrimentos,
produzindo um sentido onde antes não existia e este é assimilado como “representação social”. A
psicanálise fará isto através da escuta do discurso do sujeito, enquanto a arte irá dar significados e
simbolizações àquilo que era sem sentido, para além da expressão individual.
O objetivo deste trabalho é justamente o de demonstrar que a arte é um espaço que
possibilita a representação das pulsões, de forma simbólica e, sendo assim, um lugar de
constituição da subjetividade.
PALAVRAS-CHAVE: Sublimação, Pulsão, Representação.
Venho por meio desta recomendar a monografia POR QUE A GENTE É ASSIM:?
(POESIA, SUBJETIVIDADE E ÉDIPO NA PRODUÇÃO MUSICAL DE CAZUZA)
desenvolvido pela aluna Daiane Steiernagel sob minha orientação. O referido texto desenvolve
uma análise de letras de composições do cantor Cazuza buscando estabelecer uma relação entre a
produção textual e suas produções de sentido, embasando-se nos estudos de Freud e Lacan.
A metodologia do trabalho foi desenvolvida em três etapas que envolveram, em primeiro
lugar, uma análise das fontes primárias do autor, através de depoimentos pessoais, comentários e
avaliações específicas realizadas pelo próprio Cazuza interpretando as razões de suas construções
poéticas. Juntamente com um cortejamento dos textos pessoais de Cazuza com as informações
fornecidas por sua mãe Lucinha Araújo em depoimentos e em seu livro auto-biográfico SÓ AS
MÃES SÃO FELIZES. Desse confronto de visões ficou claro que uma das bases da construção
literária de Cazuza era exatamente o questionamento sobre a função materna. A segunda etapa do
trabalho centrou-se nos conceitos psicanalíticos, especialmente sobre o conceito de pulsão. Por
fim, a autora debruçou-se sobre o conteúdo das letras das músicas selecionadas, relacionando-as
com as teorias de Freud sobre os escritores criativos e a sublimação inerente ao ato de produção
poética.
O resultado final deste trabalho foi um texto consistente em que o rigor das teorias
literárias e psicanalíticas se irmanam com a busca da produção de sentido estabelecida nos
elementos exteriores à criação literária. Desta forma, é um texto altamente recomendável para
publicação ou apresentação em seminários e eventos do gênero.
Larry Antonio Wizniewsky
Professor do DELAC da UNIJUÍ.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 6
1 A ARTE E O ARTISTA: O POSSÍVEL DO DESEJO E O SINTOMA DE PRODUÇÃO
...................................................................................................................................................... 10
1.1 O Sujeito Criador ao Vento da Linguagem; ........................................................................ 10
1.2 De Agenor à Cazuza: o Desejo de Transformar-se em Outro$ ........................................... 14
2 A LINGUAGEM E OS PERCURSOS DO SUJEITO ......................................................... 23
2.1. Sujeito, Psicanálise e Criação;............................................................................................ 23
2.2. O Reconhecimento dos Efeitos da Pulsão, Através de sua Representação; ....................... 33
2.3 Conceituando a Pulsão em Busca do “Autor”; ................................................................... 36
3 A PULSÃO: DA PONTA DO LÁPIS À PONTA DA LÍNGUA ......................................... 47
3.1Cobaias de Deus: O Retorno em Direção ao Próprio Eu do Indivíduo; ............................... 47
3.2 Codinome Beija – Flor: O que há por trás do(s) (S)teu(s) Nome(s) ?................................. 53
3.3 Exagerado e Ideologia: Ilustrando a Sublimação; .............................................................. 57
3.4 Só As Mães São Felizes e a Reversão ao seu Oposto; ....................................................... 67
3.5 O Tempo Não Pára: União da Pulsão de Vida e da Pulsão de Morte; ............................... 75
CONCLUSÃO............................................................................................................................. 80
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 84
INTRODUÇÃO: “– Quer tomar do meu copo?”
Toda a escritura começa com a morte, de alguém, de algo ou de ambos!
Maurice Blanchot nos diz que “só a obra importa, mas afinal ela está ali para levar à
busca da obra; a obra é movimento que nos encaminha para o ponto puro da inspiração, de onde
vem e que aparentemente só se pode atingir desaparecendo”. (BLANCHOT, 1984. p 210)
A literatura irá buscar o ponto de ausência da escritura. “Escrever é começar por destruir
o templo antes de o edificar; é, pelo menos, antes de transpormos o limiar, interrogarmo-nos
sobre as servidões desse lugar [...] Escrever é, finalmente, recusarmo-nos a passar do limiar,
recusarmo-nos a escrever”. (BLANCHOT, 1984. p 217-218)
A partir do que o autor nos aponta, podemos dizer que há uma relação intrínseca entre a
escritura e a morte, pois o resultado será sempre um significante, a parte inerente, morta, em
busca de sentido. Será a partir do escritor e do leitor que partirá a decisão, absoluta e imediata,
para constituir o significado da escritura.
É através da obra de arte (como forma de expressão) que muitos sujeitos irão demonstrar
seus sofrimentos, por meio do que Freud chamou de sublimação. O artista consegue apresentar
em sua criação (seu sofrimento e fantasias) de uma forma bela e admirável.
Através da arte o sujeito poderá construir os significantes que fizeram parte de sua
história, em seus textos, composições, etc. O objeto de nosso estudo, o músico Cazuza, é um
exemplo disto. Pois, através de suas composições, consideradas por muitos como verdadeiros
poemas, conseguiu não apenas marcar a sua geração, mas continuar após dezesseis anos de sua
morte, fazendo sucesso e emocionando muitas pessoas.
Foi no dia dezoito de fevereiro de 1989 que Cazuza resolveu contar ao mundo que havia
contraído o vírus HIV – e se tornar um marco na história, principalmente pela coragem que teve,
a qual sempre o caracterizou. O jornalista escolhido para a entrevista reveladora foi Zeca
Camargo, o qual trabalhava na folha de São Paulo. Vejamos o depoimento de Zeca, após 16 anos
deste inesquecível encontro:
Nunca o tinha encontrado antes. Nunca o vi depois da entrevista. Aliás, o que aconteceu
naquele 12 de fevereiro de 1989 não pode ser chamado apenas de uma entrevista. Ainda
estou procurando um nome para isto.
As pessoas geralmente se referem a esse encontro como “a entrevista na qual Cazuza
admitiu que estava com aids”. Prefiro lembrar dela como a experiência que me ensinou
que uma entrevista é bem mais que uma troca de perguntas e respostas em cima de uma
pauta bem feita. Naquela tarde – gelada, cortesia do inverno de Nova York, onde eu
trabalhava como correspondente para o jornal Folha de S. Paulo -, se eu tivesse me
prendido as perguntas que pensei em fazer, a conversa talvez tivesse sido outra. Mas,
antes de sacar meu bloquinho de anotações, resolvi aceitar um gole de vinho do copo de
Cazuza – e então as coisas começaram a ficar interessantes.
Cazuza notoriamente negava que estava com aids. Não sem motivo. Para quem tem
menos de vinte anos ter uma idéia das razões de Cazuza, calcule o estigma que a doença
tem hoje multiplique por qualquer número superior a mil. Claro que ele era o artista
máximo da rebeldia, ousadia, irreverência e qualquer outra transgressão. Mas, afinal dos
anos 80, até esse espírito tinha um limite – e esse limite era a aids.
Essa era a maior dificuldade da entrevista: falar de algo que ele não admitia
publicamente, mas cujo diagnóstico já era especulado pela mídia e temido pelos fãs.
Contrariando toda essa expectativa, Cazuza me recebeu com um bom humor de
desarmar. Pediu primeiro uma garrafa de vinho e, depois, para ficar a sós comigo. Diante
de uma figura tão conhecida (teria sido impossível acompanhar a cultura pop brasileira
daquela época e ignorar seu trabalho e sua imagem), pela primeira vez eu tentava
imaginar qual seria a melhor maneira de começar a conversa.
Obviamente, eu não estava ali para fazer um balanço da sua carreira. Era sabido que ele
estava em Nova York de passagem para o Brasil. Tinha acabado de chegar de Boston,
onde fora fazer mais alguns exames. E esse deveria ser nosso assunto principal. Mas
antes, como que para me ajudar a ganhar tempo, chega o vinho. Cazuza serve seu copo e
senta-se na poltrona do canto do quarto. Parece pronto para iniciar a conversa, quando,
sem aviso, me oferece um gole de vinho. “Quer tomar do meu copo?”, perguntou ele,
com o que parecia uma ponta de malícia. Na hora soou mais como um desafio.
“Será que ele bebe do copo de alguém que está com aids?”, ele parecia perguntar, como
se essa sutil provocação estivesse embutida em sua proposta. (Basta lembrar que, na
época, o preconceito e a ignorância em relação a doença eram tais que o simples contato
parecia perigoso). Aceitei o vinho sem hesitação. Terá sido este gesto um catalisador? É
fácil pensar que sim. Mas será que foi isso mesmo que abriu caminho para Cazuza me
declarar que estava com aids? Ou ele estava mesmo no limite de contar e considerou o
momento e (talvez) o emissário mais corretos? Impossível saber.
A conversa continuou dali, daquele gole de vinho, que me animou a perguntar sobre os
exames que ele tinha acabado de receber, segundo ele, todos com resultados muito
animadores. E quando insisti no tema, perguntando exatamente que exames ele tinha ido
fazer, ele disse que tinha ver com “a maldita”. Seguiu-se um rápido e desconfortável
silêncio, interrompido por ele mesmo: “Pode escrever aí que estou com a maldita, com
aids”. E, em seguida, acrescentou que estava com a saúde ótima, como se o vírus HIV
ainda não tivesse começado a agir.
Diante desse rumo inesperado da entrevista, fiquei por segundos sem saber como levar o
assunto adiante. E mais uma vez foi o próprio Cazuza que me ajudou, agora de maneira
ainda mais sutil, apenas sugerindo com o rosto – que a essa altura se mostrava
merecedor do adjetivo que a imprensa sempre adorou lhe atribuir: “maroto” – que eu
perguntasse o que quisesse.
Decidi entrar no tema com a mesma naturalidade. Perguntei sobre os remédios (apenas
AZT e calmantes), sobre dietas (tudo normal, menos bebidas destiladas e cocaína), sobre
morte (“Não penso em morte”), sobre sexo (reafirmou sua bissexualidade) e sobre os
planos para o futuro (“Vou viver pelo menos até uns setenta anos”).
Foi uma conversa tão normal que eu mesmo por vezes esquecia que era uma entrevista.
Depois de menos de meia hora, só me lembro de sair do lugar onde Cazuza estava
hospedado com os pais meio zonzo, com aquela sensação (um tanto cinematográfica) de
quem se pergunta se “aquilo tinha realmente acontecido”.
Fui a pé até meu apartamento, que ficava a uma quadra da ONU – de onde eu enviaria,
por telex (imagine! Uma geração inteira que nem sabe mais o que é isso!), a matéria que
seria publicada no dia seguinte. E fui pensando o que significava aquele furo. Não era,
claro, uma boa notícia. Mas talvez ela significasse não apenas a confirmação de um
diagnóstico, mas também uma afirmação da vida de Cazuza. Tive a certeza de que ele
sabia exatamente o peso do que tinha acabado de me contar – e, por isso mesmo, não o
fizera gratuitamente. Sabia das conseqüências que aquilo teria. Só não podia imaginar o
quanto a cabeça daquele repórter ficaria acelerada.
O entusiasmo com que a reportagem foi recebida no Brasil (ganhou destaque no alto da
primeira página da edição de 13 de fevereiro de 1989) de alguma maneira contrastava
com as questões que cruzavam meu pensamento – muitas delas sem respostas até hoje.
Como escrevi no início, nunca mais encontrei Cazuza. Pouco mais de um ano depois, dia
7 de julho de 1990, ele morria. Eu, já de volta ao Brasil, me esforcei para juntar algumas
anotações – fundamentais para relembrar esse episódio. Mas, mesmo lendo esse material
e a própria entrevista de 89, não consigo montar o quebra-cabeça que foi aquele
encontro.
Há pessoas, como Cazuza, que são grandes demais para caber em explicações.
(CAMARGO, 2006. p 91 à 94)
Desde o gesto de provocação com o copo de vinho, o jornalista Zeca Camargo, anos
após sua entrevista com Cazuza, permanece com questões sem respostas, especialmente de como
definir este encontro com Cazuza – de como definir Cazuza. Este trabalho também é uma
tentativa, 16 anos depois, de buscar uma resposta para os seguintes questionamentos: Por que ele
era assim? Por que a gente é assim? O que podemos fazer com isto?
1 A ARTE E O ARTISTA: O POSSÍVEL DO DESEJO E O SINTOMA DE
PRODUÇÃO
1.1 O Sujeito Criador ao Vento da Linguagem
Desde o início da teoria psicanalítica Freud deu um lugar privilegiado para o conceito de
sexual. Porém, longe do que muitos pensam e por isso criticam sua teoria, o sexual falado por
Freud está muito além do genital. Isso pode ser comprovado pelo interesse do autor em
compreender as manifestações eróticas das crianças, as quais ainda não tem nada a ver com o
genital, mas sim com sua simbolização.
Outro conceito de suma importância na sua teoria, é o conceito das pulsões. As pulsões
sempre estão em busca de uma satisfação total, porém a satisfação encontrada sempre será
parcial, sobrando assim um excedente de excitação. Esse excedente poderá seguir caminhos
distintos. Um deles é o recalque “que surge quando a satisfação do desejo é capaz de provocar
sofrimento ao sujeito”.1 Porém o recalque só é percebido quando não tem sucesso e aparece,
então, em forma de sintoma. Outro recurso seria uma “mudança” ou deslocamento do objeto
interdito para outro possível, ocorrendo assim uma gratificação ao desejo insatisfeito. O terceiro
destino deste excedente, e o que mais nos interessa, é a transformação dos desejos insatisfeitos
em algo aceito socialmente, que é a sublimação.
1
GIRON (et al.), 2002. p 12.
Essa forma de vicissitude traria ao sujeito uma satisfação semelhante a realização do
desejo inicial. Por isso, a sublimação pode ser descrita como uma forma de expressão da
sexualidade.
O termo sublimação, aplicado a esta transformação da pulsão, encontra sua origem em
três fenômenos observados, tanto nas Belas Artes, como na química e no próprio
psiquismo. Das Belas Artes, chega-nos o conceito de sublime, ou aquele que eleva o
espírito; da química, a transformação do estado sólido para o gasoso, que também se
denomina sublimação; do psiquismo o sublimar, ou seja, o mais-além da consciência.
(GIRON (et al.), 2002. p 12)
A sublimação, seria então, a expressão simbólica do desejo insatisfeito. O recalque,
neste sentido, apenas exclui o desejo do psiquismo, não permitindo nenhuma satisfação ao
sujeito.A sublimação, ao contrário, permitirá que parte do desejo seja satisfeito. Todavia, como
os autores de Arte como Expressão da Sexualidade apontam, existem algumas condições para
que a sublimação possa ocorrer. A primeira seria de que parte do desejo, a parte que condiz com
a realidade, tenha sido satisfeita. E a segunda é de que tenha ocorrido alguma renúncia do sujeito.
“Nesse caso renúncia não deve ser confundida com negação do desejo, mas sim, expressa por um
contato com ele, para poder haver um reconhecimento da impossibilidade de sua realização
plena”.2
Dessa forma podemos dizer que há uma compatibilidade entre o narcisismo e a
sublimação, devido à renúncia do objeto total. Como os autores colocam ao citar Kehl (1987):
Daí a busca incessante de outros objetos e outras formas de expressão/satisfação dos
desejos pela vida afora. (GIRON (et al.), 2002. p 13)
2
GIRON (et al), 2002. p 13.
Assim, será a sublimação que originará as grandes realizações artísticas e científicas. A
diferença é que enquanto as realizações científicas surgem a partir do pensamento racional, as de
ordem artística são resultado de conhecimentos intuitivos. Devido a isso os poetas têm uma
facilidade maior em conhecer certas coisas, enquanto os cientistas precisam de anos de estudo
para tal feito. Isso devido ao fato de que os poetas possuem uma fala fértil “e criativa, porque
parte de algum contato com o desejo”.3
Vejamos alguns depoimentos de Cazuza, que demonstram isto:
Meu trabalho é totalmente intuitivo. Nunca estudei canto, dança, nada...eu sou rouco: eu
birito, não tenho nenhum cuidado com a voz. Não faço nenhum exercício, meu exercício
é no palco. (ARAUJO, 2004. p 359)
Para compor, não planejo absolutamente nada. Acho que sou a pessoa mais
desorganizada que você pode imaginar. Tudo me acontece de supetão, porque nunca sei
como a coisa vai sair. (ARAÚJO, 2004. p 370)
A arte e suas expressões podem ser realizadas no tempo e no espaço. A primeira
expressão artística seria a música, a dança e a poesia, enquanto que a arte realizada no espaço
seria a pintura, a escultura e a arquitetura. Já o cinema é uma arte que consegue ser realizada
concomitantemente no tempo e no espaço.
Podemos dizer que a arte é uma exteriorização do conhecimento imaginativo do sujeito,
que por meio de sua obra consegue expor seu conhecimento ao mundo externo. Já que a arte
nasce do inconsciente do criador.
A arte, da mesma forma que os sonhos e o brinquedo infantil, nasce do inconsciente de
seu criador. Por haver, no artista, certo grau de relaxamento da repressão, torna-se
3
GIRON (et al), 2002. p 13.
permitida a expressão da fantasia, que, ao se exteriorizar, dará origem à obra de arte,
satisfazendo, ao mesmo tempo, as necessidades inconscientes do artista. (GIRON (et.
al), 2002. p 13)
Segundo Freud o artista, diferentemente daquele que devaneia, consegue encontrar um
caminho de volta a realidade através de sua obra, ou seja, a criação artística permite a saída de
um mundo de fantasias e o retorno à realidade, deixando as fantasias na obra de arte. É uma
transição entre o consciente e o inconsciente.
Diversos autores têm como hipótese à idéia de que o artista tenha sofrido situações de
perdas na infância, muitas bem precoces. Isso devido à história de vida de grandes artistas que
passaram por situações de muito sofrimento, podemos citar Van Gogh, Dostoiéviski, Rimbaud e
Cazuza. As perdas vividas podem ser tanto reais, como um luto, como também poderão ser de
cunho simbólico, como por exemplo uma frustração vivida pela criança, especialmente em
relação às figuras parentais. Quando evocadas essas perdas trazem o retorno de um sofrimento,
pois lembram de algo que foi irremediavelmente perdido.
Algumas pesquisas apontam que lares tranqüilos, onde os pais são amorosos e
incentivadores, não são propícios para o desenvolvimento da criatividade. Assim, podese pensar que a criatividade surja, se possibilitada pelas condições egóicas, quando o
sujeito precise se deparar com profundas dores e sofrimento. (GIRON, (et al), 2002. p
13)
Podemos perceber que os criadores pagam um valor alto pela sua capacidade de criação,
já que a maioria teria passado por momentos difíceis em suas vidas. O artista consegue
exteriorizar esses sentimentos em sua obra, transformando o que era dor e desamparo em algo
belo e admirado. Conseguindo acima de tudo a obtenção de prazer, já que o caminho da obra
criativa se dá pela via da sexualidade, através da sublimação. Sem que esqueçamos as
características inatas e as circunstâncias histórico-sociais do criador. Vejamos uma fala de
Cazuza que demonstra a “tristeza” de um artista:
Eu era muito feliz pelo lado de fora, mas comigo mesmo não. Achava que não merecia
ser Feliz. (ARAUJO, 2004. p 386)
Eu choro muito sozinho, nunca consegui chorar na frente de ninguém. Às vezes, minha
mãe brigava comigo, me batia, e eu esperava ela sair para chorar. Sozinho, de noite, tem
vezes assim, que ao invés de rezar eu fico chorando. (ARAUJO, 2004. p 384)
Para compreendermos melhor esta relação do sujeito (artista) com a arte (sua criação),
descreveremos a história de vida de um poeta-compositor e cantor, que teve grande influência na
música brasileira dos anos oitenta e, mesmo após dezesseis anos de sua morte, sua obra de arte
permanece viva.
1.2 De Agenor à Cazuza: o Desejo de Transformar-se em Outro$
A história do sujeito Cazuza começa a ser contada em 4 de abril de 1958, uma sextafeira santa. O nome escolhido para o filho primogênito, do casal João e Lucinha Araújo, foi
Agenor de Miranda Araújo Neto, em homenagem ao pai de João. Porém, desde antes do seu
nascimento já era chamado de Cazuza4 e após era o único nome que reconhecia como seu.
4
Na década de 30 Viriato Corrêa, lançou um livro intitulado de Cazuza, este foi um dos maiores sucessos infantojuvenis da literatura brasileira. O livro é um romance autobiográfico em que o autor narra as amargas experiências
escolares de um garoto na década de trinta. Além de criar um belo romance sobre o processo de amadurecimento de
uma criança, Viriato Corrêa usou o livro como veículo para criticar e denunciar castigos físicos, impostos aos
estudantes e outras práticas abomináveis de disciplina adotadas por muitos estabelecimentos educacionais da década
de 30.
Apenas após algum tempo de ingressar na escola que se deu conta de que na verdade se chamava
Agenor e Cazuza era apenas seu apelido.
Antes de eu nascer, já era Cazuza. Minha mãe tinha vergonha de me chamar, tão
pequeno, de Agenor, nome do meu avô. Na escola, eu nunca respondia à chamada. Não
sabia que meu nome era Agenor. (ARAÚJO, 2004. p 352)
Isso se da, talvez, pelo fato de que esse nome, Cazuza, vinha representar o que foi
durante sua vida. Pois Cazuza no nordeste designa: moleque, já na definição do dicionário quer
dizer vespídeo solitário de ferroada dolorosa.
Na infância Cazuza era tímido, porém muito travesso. Sempre teve a mania de falar tudo
que lhe vinha à cabeça. Outra marca da infância eram as brincadeiras de risco. Porém suas
molequices foram se intensificando com o passar dos anos e se aprimoraram na adolescência.
O episódio mais marcante dessa fase aconteceu uma noite em que João e eu estávamos
saindo para uma festa, na companhia de amigos. Às onze horas tocou o telefone. Era
Cazuza, de uma delegacia. Havia batido o carro e pedia socorro. Saímos de casa vestidos
para a festa, à bordo da Mercedes de João. Quando entramos na delegacia, Cazuza estava
sentado num canto, pois já haviam dividido os garotos em duas filas, imagino que pela
aparência – a dos ricos e a dos pobres. João negociou com os policiais e, na hora em que
chamamos Cazuza para ir embora, ele disse:
Só saio daqui se todos saírem também. (ARAUJO, 2004. p 110-111)
A adolescência de Caju, como costumava ser chamado pelos amigos, ocorreu na
transição dos anos 70-80. Período marcado pela euforia onde tudo tinha que se dar ao máximo,
em seu extremo. Não é à toa que o que melhor representa este período é o trinômio sexo, drogas e
rock’ n’ roll. Justamente o lema do poeta.
Cazuza e os demais jovens desse período tinham muita pressa em gozar a vida, como se
o mudo fosse acabar a qualquer momento. Por isso os seus atos eram feitos sem limite algum,
mas, pelo contrário, com muitas extravagâncias.
Transo. Com homem, com mulher, não tem o melhor problema. (ARAÚJO, 2004. p
353)
Tudo na noite é mais interessante. Gosto de sair, de correr de carro em qualquer dessas
Freeways da zona sul, de estar com amigos, de dançar [...] (ARAÚJO, 2004. p 383)
Desde pequeno Cazuza já escrevia versos e poemas. A primeira pessoa a vê-los foi a sua
avó materna, dona Alice da Costa. Pois devido a profissão de seu pai (dono da Som Livre), eles
(João e Lucinha) acabavam saindo muito à noite (característica herdada depois pelo filho).
Nessas saídas de seus pais, Cazuza ficava com a avó e com ela discutia seus versos e rimas, já
que não tinha coragem de contar a seus pais sobre essa vocação poética, por medo que não
concordassem. Caju considerava que a avó tinha tido uma grande influência em sua infância e
adolescência, sofrendo muito quando esta faleceu. Já seu pai temia, que por ter uma grande
influência da avó, fosse virar “veado”.
Cazuza também sempre gostou muito de músicas da MPB. Essa influência veio devido à
profissão de seu pai, pois conviveu desde pequeno com cantores como Elis Regina, Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Gal Costa, entre outros. Também teve influência da Rita Lee, Jovem Guarda e
Raul Seixas. Começou a curtir o rock aproximadamente aos quatorze anos. Ouvia bandas como
Janis Joplin e Rolling Stones.
Essas influências musicais apareciam muito em suas composições, as quais
“misturavam” MPB e rock’ n’ roll. Vejamos como o poeta descreve essa característica:
Do menino passarinho com vontade de voar (Luis Vieira) a Janis Joplin. Mas com uma
diferença. A dor-de-cotovelo da MPB, dando a volta por cima. “Ah, você não gosta de
mim? Então, foda-se também, eu estou aqui e sou mais gostoso”. (ARAUJO, 2004. p
355)
Aos quatorze anos Cazuza foi para os EUA e lá conheceu a música de Janis Joplin.
Porém, o amor por este blues5 se intensificou quando passou uma temporada, aos vinte anos, em
São Francisco. Lá, além de descobrir outros estilos musicais, o poeta fez cursos de fotografia,
dança entre outras coisas.
Quando voltou de viagem decidiu virar ator. Foi nessa época que surgiu o Circo Voador.
Na primeira peça apresentada por Cazuza, ao invés de interpretar, cantava quase o tempo todo.
Foi ali que descobriu que tinha talento para a música.
A primeira pessoa a perceber esse talento foi Léo Jaime, e foi ele quem apresentou
Cazuza ao Barão Vermelho. Nessa época o Barão cantava músicas estilo Led Zeppelin e faltava
um vocalista. Cazuza se acertou de imediato com o grupo e passou a ser o vocalista do Barão
Vermelho.
Desde o início a relação de Cazuza com a música se dava de uma forma intrínseca e
talvez tenha sido essa paixão que o motivou a lutar com tanta força nos momentos mais difíceis
de sua vida. Pois, como ele sempre relatava, a música era praticamente um “lance sexual”.
Quando subia no palco se sentia um super-herói e quando estava longe deste era apenas um
menino tímido.
5
O blues, como se sabe, é uma música de origem negra.
É a minha criatividade que me mantém vivo. Meu médico diz que sou um milagre,
porque eu tenho tanta energia, tanta vontade de criar, e que é isso que me deixa vivo.
Minha cabeça está muito boa, ela comanda tudo. (ARAUJO, 2004. p 394)
O que diferencia Cazuza de muitos cantores é que ele mesmo compunha suas músicas,
que diga-se de passagem, são verdadeiros poemas.
Hoje sei que vendo meu bacalhau, mas meu lance mesmo é a poesia, que eu mastigo e
vomito no público. (ARAÚJO, 2004. p 359)
Ao cantar Cazuza fazia uma das coisas que mais o deixava feliz, e ao mesmo tempo era
o que levava de forma mais séria em sua vida. Esta trajetória será drasticamente alterada quando
descobre que está doente.
Podemos perceber que a partir do momento que nosso poeta exagerado descobriu que
estava com aids, houve um amadurecimento, percebido nas letras de suas composições. Neste
período não deixou de fazer suas estripulias, porém mudou sua forma de encarar o trabalho. No
início dizia trabalhar apenas para se divertir, conquistar um “broto”, depois passou a ver o
trabalho de outra maneira, começou a se preocupar em cantar melhor e em falar mais de coisas
abrangentes, como por exemplo, de sua geração.
Percebemos que desde pequeno Cazuza já tinha uma inclinação artística e que a sua
maior peculiaridade é de que não era apenas um cantor, mas acima de tudo, um escritor criativo.
Remetendo-nos ao texto de Freud: Escritores Criativos e devaneios. Para exemplificar isto,
podemos descrever um trecho de uma de suas composições.
Todo dia a insônia
Me convence que o céu
Faz tudo ficar infinito
E que a solidão
É pretensão de quem fica
Escondido, fazendo fita [...]. (Pro Dia Nascer Feliz – Frejat/Cazuza)
Segundo o autor os escritores criativos conseguem impressionar-nos com seu escrito,
pois nos despertam emoções das quais nem sabíamos ser capazes. Além disto conseguem
descrever o que sentimos e temos dificuldade de falar. Cazuza consegue descrever estes
sentimentos em um poema, transformado-o em música. Estes escritores ficam ainda mais
interessantes, pois ao serem interrogados sobre sua arte, não irão oferecer nenhuma explicação
satisfatória que contribua para nos “transformarmos” também em um escritor criativo. Vejamos
um depoimento de Cazuza diz:
O artista não é nenhum operário, que bate o ponto e tal. Eu não acredito que ninguém
possa ser operário da arte, porque a arte é contra a transformação do homem numa
máquina. (ARAUJO, 2004. p 381)
As crianças irão ocupar a maior parte de seu tempo com brinquedos ou jogos. A partir
deste brincar surgirá uma antítese entre a realidade e a fantasia, pois a criança gosta de imaginar
às coisas. Podemos dizer que quando a criança brinca, ela se comporta como um escritor criativo.
Pois, o escritor, em sua escrita criativa, irá criar um mundo de fantasia, que é levado por ele de
uma forma muito séria, ou seja, ele investe uma grande quantidade de emoção, mantendo uma
separação entre a fantasia e a realidade. O mesmo feito pela criança durante seu brincar.
O mundo imaginativo do escritor é capaz de criar uma irrealidade fantasiosa, que terá
conseqüências em sua arte, pois: “muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode
proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos,
podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na representação da obra de
um escritor”.6
A criança quando cresce irá abdicar dos jogos infantis, porém não irão renunciá-los, ou
seja, nunca renunciamos a nada, apenas substituímos uma coisa por outra. E é justamente o que a
criança faz, ela substitui os jogos infantis pela fantasia ou devaneios. A principal diferença é que
as fantasias são bem mais difíceis de observar do que o brincar infantil. Principalmente porque a
tendência é de que os adultos escondam suas fantasias das demais pessoas. Isso ocorre porque a
fantasia possui um caráter de intimidade, ela sempre vem com o intuito de realizar um desejo
inconsciente. As únicas pessoas que revelam estas fantasias são aquelas,descritas por Freud, de
“vítimas dos nervos”, e apenas por esperar tratamento. Porém a revelação destes pacientes é o
mesmo que será ouvido de pessoas saudáveis.
Freud trabalha sob a tese de que as forças motivadoras das fantasias são os desejos
insatisfeitos, onde toda a fantasia é a realização de um desejo insatisfeito. O autor dirá que é
como se a fantasia flutuasse em três tempos:
O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no
presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede
à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi
realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do
desejo. O que cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a
partir da ocasião que provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o
presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une. (FREUD, 1908
[1907]. p 136)
6
FREUD, 1908 [1907]. p 136.
A fantasia permite que o desejo se utilize, de ocasiões do presente para construir,
segundo moldes do passado, um quadro do futuro. No caso do escritor, uma experiência presente
irá despertar uma lembrança anterior, normalmente infantil, da qual se originará um desejo, que
vai ao encontro da realização da obra criativa. “A própria obra revela elementos da ocasião
motivadora do presente e da lembrança antiga”.7
O sonho, por exemplo, é uma espécie de fantasia. Tanto o sonho quanto a fantasia, irão
demonstrar uma realização de desejo. A diferença é que nos sonhos o desejo aparece mais
camuflado.
Freud irá comparar o escritor imaginativo ao “sonhador em plena luz do dia” e suas
criações com os devaneios. A diferença é que o artista consegue materializar, em sua obra de arte
essas fantasias, enquanto que o homem sem esse dom ficará com essas fantasias apenas no
pensamento. Além disto, o artista consegue descrever o que viu ao seu redor, o que todo mundo
vê, mas não consegue ilustrar de uma forma tão bela e aceita socialmente. Cazuza disse:
Não há coisa que me deixe mais feliz do que quando vão ao meu camarim, depois dos
shows, para falar que a história da música é exatamente o que aconteceu com elas. Isso é
muito bonito e gratificante. (ARAÚJO, 2004. p 369)
Outra diferença, destacada pelo autor, é de que se uma pessoa nos contar suas fantasias
sentiremos repulsa ou indiferenças, já no caso dos artistas, ao nos apresentar sua criação, fazem
com que sintamos um grande prazer. O segredo poético estaria na técnica de superação dessa
repulsa. Vejamos o que Freud diz:
7
FREUD, 1908 [1907] p 141.
O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e
disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece
na apresentação de suas fantasias. Denominamos de premio de estímulo ou de prazer
preliminar ao prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de
um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. (FREUD, 1908
[1907]. p 142)
Para Freud, esse prazer proporcionado pelo escritor é da mesma natureza do prazer
preliminar, e a satisfação que usufruímos, da obra literária seria procedente da libertação de
tensões de nossas mentes. Pois o escrito irá nos permitir, a partir da satisfação usufruída da obra
de arte, podermos nos deliciar sem as auto-acusações ou vergonha sentida anteriormente, devido
às nossas fantasias.
2 A LINGUAGEM E OS PERCURSOS DO SUJEITO
2.1 Sujeito, Psicanálise e Criação
Neste segundo momento torna-se necessário elaborar um texto que possibilite uma
compreensão acerca do conceito de linguagem para psicanálise, pois segundo esta teoria, será a
partir da linguagem que poderemos ter acesso ao inconsciente do sujeito. Para isto consideramos
importante elaborar uma breve definição sobre o conceito de sujeito para esta teoria.
Quando nos referimos ao sujeito da psicanálise estamos falando do sujeito do
inconsciente. E como para Lacan o inconsciente está estruturado pela linguagem, o sujeito do
inconsciente irá decorrer do significante. Assim, o sujeito é conseqüência do significante e estará
regido pelas leis do simbólico.
Pois, do ponto de vista psicanalítico o sujeito é constituído pela linguagem. A língua vai
se inscrevendo no corpo da pessoa, assim nosso corpo passa a estar inscrito como uma linguagem
e essa inscrição será sempre vinda do Outro. Então desde que nascemos a cultura vai sendo
inscrita em nosso corpo, primeiro através daquele que desempenha a função materna e
posteriormente pelos discursos componentes do social. Assim a língua será a possibilidade de
reconhecimento e acesso ao inconsciente, e a partir da qual irá se dar o encadeamento de
significantes que permitem ao sujeito falar do seu desejo.
Toda a língua terá, então, um lado individual e um lado social, sendo impossível
conceber um sem o outro. Pois a linguagem é a interação social em que o outro desempenha
papel fundamental na constituição do sujeito, onde os processos que a constituem são históricosociais.
Compreendendo, então, o sujeito como efeito da linguagem, a psicanálise procura suas
formas de constituição, não em um discurso homogêneo, mas na diversidade de um discurso
heterogêneo, que é a conseqüência de um sujeito dividido entre o consciente e o inconsciente. O
inconsciente vai ser a parte barrada da história do sujeito, e o lugar de seu desejo. No entanto,
este desejo pode ser recuperado a partir de traços deixados na linguagem em forma de palavra.
Contradizendo a premissa de que o sujeito, sem que tenha consciência, é levado a
acreditar que o que diz é seu, ou seja, que é dono de sua própria vontade, Freud nos diz: “O eu
não é senhor de sua própria casa”. Lacan, posteriormente, irá usar a frase originária de Rimbaud,
poeta simbolista Francês, que disse: “Eu é um outro”, porém acrescentando um O maiúsculo no
outro. Ficando assim: “O Eu é um Outro”. Que “Eu” é esse de que fala Rimbaud? Esse é o grande
mistério da literatura.
Sendo assim, pela ordem da linguagem o sujeito é levado a ocupar o seu lugar em um
dos grupos ou classes de uma determinada formação social. Isso por ser afetado por uma
determinada ideologia e também pelo inconsciente. Pois, como seres sociais precisamos nos
sociabilizar, ou seja, internalizar os significados da cultura, do nosso social. Isto é, justamente o
que será recalcado e provocará, assim, o sintoma do sujeito, aquilo a que ele deu um significado
diferente em relação aos significados que lhe foram dados pela sociedade.
Neste sentido Foucault afirmará com Lacan, que o sujeito se “assujeita” a uma
determinada ideologia, devido a formação discursiva com a qual se identifica. Pois para a
psicanálise o inconsciente é uma cadeia de significantes que se repete e insiste em interferir nas
fissuras que o discurso lhe oferece. Ou seja, é a partir do que o discurso social propõe que o
sujeito vai fazendo suas escolhas, formando assim suas opiniões e constituindo suas cadeias de
significante à deriva, em busca de significados.
A partir disto, podemos dizer que não existe sujeito sem sintoma e nem laço social que
se organize fora de uma posição sintomática. O sintoma para a psicanálise, não é visto como uma
condição que está ali para ser extirpada ou retirada do sujeito numa expectativa de que,
eliminando-o estaríamos resolvendo o que o produz, pois ele terá ainda uma conexão com a vida
do paciente e sendo assim, será o que irá sustentá-lo. Será justamente esta conexão com a vida do
paciente que irá interessar ao psicólogo.
Lacan irá nos dizer que ao contrário do cogito de Descartes “Penso, logo existo”, o
sujeito estará justamente aonde não pensa, ou seja, aonde deseja: “Desejo, logo existo”. O
inconsciente, sendo a parte censurada de cada sujeito e a morada do desejo, é o que irá
representá-lo realmente. Porém, no momento em que o que era inconsciente se torna consciente,
deixará de ser desejo. Pois o desejo é algo que foi recalcado e não pode ser pensado na
consciência, assim “o sujeito está no pensamento barrado. Lá onde penso, eu não sou” (LACAN,
1957-1958), onde justamente irá aparecer o ser de gozo.
A arte literária pode ser dita como o lugar onde o inconsciente pode se encenar. Ela se
constitui no cerne da linguagem e o texto literário possibilita com que o sujeito possa transcrever
as “imagens do impossível”, ou seja, do inconsciente em forma de palavras – letras, sem
reconhecê-las como parte de seu desejo, já que o texto literário permite que o sujeito, à priori,
conte uma história fictícia.
Assim, a arte literária permite que o escritor enuncie seu desejo em uma folha de papel,
a qual consegue minimizar uma falta com as inscrições realizadas na escrita, sua “materialidade
de texto”. As palavras serão sempre substitutas – travestidas de novas aparências, e nesse
percurso do discurso o desejo pode aflorar sem que alguém necessite reconhecê-lo como seu.
Podemos dizer que o sintoma do escritor é o seu desejo de escrever.
Enquanto palavra discursiva, a linguagem se teatraliza, nesse palco ficcional, duplo do
palco psíquico. Duplo, não idêntico, pois a relação do imaginário literário não é absoluta
identidade com o psíquico. Esse se forja com uma matéria linguageira que também se
torna fantasia, num jogo que se realiza num mundo de vozes que se repetem, se invertem
e se subvertem. (BRANDÃO, 2004. p 33)
O sintoma é dito como uma metáfora, onde estará sempre servindo de substituto para um
desejo que foi recalcado. Então, se o sintoma é uma representação inconsciente, onde ele
aparecerá estará o sujeito de fato. Através de Freud descobrimos que o sintoma diz a verdade do
paciente e que precisa ser ouvido e não observado, é a palavra em busca de outro que a escute.
Porém, é importante deixarmos claro, que o sintoma não irá dizer claramente o que se
passa no inconsciente do sujeito, irá, ao contrário, “falar” de uma forma ilegível. Ele possuirá um
significado e serve para representar simultaneamente diversos cursos inconscientes de
pensamento, ou fantasias inconscientes, ele terá também um saber e uma dimensão de gozo,
porém primeiramente parecerá estranho para o paciente e somente durante o tratamento poderá
ser denunciado o que ele está encobrindo. “O sintoma é aquilo que mais amamos, mas também o
que mais nos queixamos”. (Freud)
Lacan irá nos dizer que o sintoma está anexado ao clássico nó borromeu, que representa
o real, o simbólico e o imaginário. O sintoma seria então parte da estrutura do sujeito. Foi a partir
do conceito de real que Lacan criou sua tese do “inconsciente estruturado como uma linguagem”.
“Lacan forjou seu conceito de real, aí depositou o objeto e, principalmente, a noção freudiana de
pulsão de morte”.8
Definido como o impossível de representação, o real é o que ultrapassa os campos do
simbólico e imaginário, não podendo ser apreendido senão através de manifestações
intrusivas na vida do sujeito (alucinações, por exemplo) ou através do automatismo da
repetição presente nos sintomas (gozo). Esse lugar vazio, marca na cisão originária entre
natureza e linguagem, constitui-se como uma realidade que sustenta todo e qualquer
discurso, sendo a ele inerente. (PINTO, 2002. p 60)
Lacan em seu texto As Máscaras do Sintoma, dirá que Freud descobre no sintoma o
desejo, ou seja, por trás do sintoma haverá a realização de um desejo inconsciente. Assim o
desejo do ser humano não estaria implicado em uma relação simples e pura com o objeto que o
satisfaz, mas estaria ligado a uma posição assumida pelo sujeito diante desse objeto e a uma
posição que ele assume fora de sua relação com o objeto, de um modo que nada se esgotará nesta
relação com este objeto.
Essa relação de desejo é simbolicamente mais profunda do que a relação do sujeito com
a vida. Pois sempre há uma dimensão de gozo por trás do sintoma, que é o representante do
desejo. O conceito de gozo estará ligado ao objeto e ao corpo, enquanto que o sintoma estará
8
PINTO, 2002. p 60 .
ligado a relação do sujeito ao objeto. O gozo se demonstraria aonde há a repetição, ou seja,
naquilo que o sujeito repete, repete, e ao mesmo tempo reclama muito. É uma ligação entre o
sofrimento e a satisfação. Poderíamos dizer que o gozo está ligado a pulsão de morte, à qual pode
ser representada pela compulsão à repetição, que é a busca incessante por algo que já foi perdido.
O desejo humano, em suas relações internas com o desejo do Outro, foi vislumbrado
desde sempre.9 A partir desta afirmação podemos dizer que o desejo do Eu terá sempre uma
relação com o desejo do Outro, pois o desejo se apresenta como inconsciente, e como falávamos
anteriormente o inconsciente é formado pelos Outros.
Inicialmente Freud nos dirá que o desejo é um desejo que foi recalcado. Lacan irá
complementar esta afirmação dizendo que o desejo é um desejo que o sujeito exclui na medida
em que quer fazê-lo reconhecer. Assim, o desejo sempre será desconhecido até certo ponto, e
tentemos atribuir-lhe objetos na tentativa de satisfazê-lo, pois, “o desejo é o desejo daquela falta
que, no outro, designa um outro desejo”.10 Porém a satisfação nunca será de fato alcançada.
A partir do texto de Lacan Da Imagem ao Significante no Prazer e na Realidade
podemos dizer que a satisfação é produzida a nível alucinatório, onde se pode encarnar a tese da
satisfação alucinatória da necessidade primordial ao nível do processo primário. Um exemplo
típico da satisfação alucinatória, trazida por Freud, é o sonho, especialmente o sonho da criança,
onde, segundo o autor, é o caminho de encontro do desejo do sujeito. A arte pode ser tida como
outro espaço dessa satisfação.
9
LACAN, 1957-1958. p 332.
LACAN, 1957-1958. p 340.
10
Lacan diz também que não existe um estado de necessidade pura, essa “necessidade
pura” seria o desejo. Pois, “desde a origem, a necessidade tem uma motivação no plano do
desejo, isto é, de alguma coisa que se destina, no homem, a ter uma certa relação com o
significante”.11
A manifestação da necessidade virá através de um signo. Porém o signo não é capaz de
despertar a necessidade, nem capaz de satisfazê-la, mas ele possui uma relação com os
significantes, especialmente ao significante oposto e que expressa sua ausência.
Ele se situa num conjunto já organizado como significante, já estruturado na relação
simbólica, na medida em que aparece na conjunção de um jogo da presença com a
ausência, da ausência com a presença – um jogo, por sua vez, comumente ligado a uma
articulação vocal em que já aparecem elementos discretos, que são significantes.
(LACAN, 1957-1958. p 332)
A característica significante ultrapassa a necessidade. O caráter significante se encontra,
muitas vezes, naquilo que foi proibido para o sujeito e irá aparecer no sonho, ou texto. O sonho
não seria apenas a demonstração de uma necessidade, mas ultrapassaria a satisfação e
demonstraria o desejo, é claro, que encoberto ou deslocado.
Segundo Lacan, as alucinações estariam estruturadas a partir de significantes, ou seja,
elas constituiriam um fenômeno significante. Assim o que caracterizaria a satisfação alucinatória
de desejo (o sonho por exemplo) seria pelo fato dela implicar um lugar do Outro, a partir de que
“ele é exigido pela proposição da instância do significante”.
11
LACAN, 1957-1958. p 227.
Sendo assim, o desejo do sujeito se coloca para ele como a cadeia significante. Essa
cadeia significante somente será “dada” ao sujeito através da mãe (mãe como função), ou seja, a
mãe encarnada como um grande Outro que imprime, primeiramente, os significantes no sujeito.
Pois os ensinamentos provêm da fala do adulto. Lacan ao falar de Freud, diz que antes
da instalação da linguagem como aprendizado, já existia a simbolização. A simbolização se daria
desde a primeira relação da criança com o objeto primordial (a mãe).
Esse objeto, com efeito, já está introduzido como tal no processo de simbolização, e
desempenha um papel que introduz no mundo a existência do significante. E isso, num
estágio ultraprecoce. (LACAN, 1957-1958. p 231)
Seria a partir da relação da criança com a mãe que se constituiria a primeira relação de
realidade. Durante o estágio do espelho que a criança vai ao encontro daquilo que é propriamente
uma realidade que ao mesmo tempo, diz Lacan, não é, pois é uma imagem virtual que
desempenha um papel decisivo na constituição psíquica do sujeito.
A criança conquista aí o ponto de apoio dessa coisa no limite da realidade, que se
apresenta para ela de maneira perceptiva, mas que, por outro lado, podemos chamar de
uma imagem, no sentido de que a imagem tem a propriedade de ser um sinal cativante
que se isola na realidade, que atrai e captura uma certa libido do sujeito, um certo
instinto graças ao qual, com efeito, um certo número de referenciais, de pontos
psicanalíticos no mundo, permite ao ser vivo ir organizando mais ou menos suas
condutas. (LACAN, 1957-1958. p 233)
A partir do estágio do espelho que a criança vai constituir a sua imagem e também os
seus movimentos, que são vistos através do espelho nas pessoas que acompanham a criança. Essa
experiência, segundo o autor, seria de uma realidade virtual a ser conquistada. Toda realidade de
constituição do sujeito, passa pelo estágio do espelho. E acima de tudo, será nesse momento que a
criança realiza as primeiras identificações do eu, a partir de uma experiência da realidade.
A imagem virtual desempenharia um papel decisivo de cristalização do sujeito, qual
Lacan denominou de “Urbild”. Que seria a primeira conquista do eu realizado pela criança “a
partir do momento em que desdobra o pólo real em relação ao qual tem de se situar”.12Dessa
forma, na medida em que a criança se identifica por elementos significantes da realidade,
ocorreria uma ligação da experiência de realidade à identificação ou subjetivação do individuo.
Como sabemos, para que a criança não fique presa no campo materno é necessária a
entrada de um terceiro nessa relação (o pai). O pai que faz com que o objeto do desejo da mãe
passe de uma categoria imaginária para uma categoria simbólica, tornando-se assim proibido.
É na medida em que, para desempenhar essa função, o pai intervém como personagem
real, como [Eu], que esse [Eu] vem a se tornar um elemento eminentemente significante,
constituindo o núcleo da identificação máxima, resultado supremo do complexo de
Édipo. É por isso que é ao pai que se refere a formação chamada de ideal do eu.
(LACAN, 1957-1958. p 235)
Podemos dizer que o Eu irá se compor a partir de uma série de identificações com um
objeto que está para além da mãe, o pai.
O objeto é articulado à função do significante. Porém, haveria uma significação que se
deslizaria, o que faria com que a relação do homem com a significação se dá em virtude de um
objeto especial chamado de “objeto metonímico”. O sujeito se relacionaria com esse objeto de
uma forma que ele seja o ponto central de sua estruturação ou subjetivação. Esse objeto seria o
falo.
12
LACAN, 1957-1958. p 234.
Podemos dizer que será através da demanda que poderemos nos aproximar do desejo,
pois eles estão interligados. A demanda se inicia em nossos primeiros anos de vida e será
construída pela linguagem. A mãe irá instaurá-la pela suposição, ou seja, no momento em que a
mãe não responde ao bebê (na ausência da mãe), o que ele queria ela demonstra assim um não
saber sobre o filho, ela demonstra sua castração. É a partir da evocação da presença - ausência da
mãe, que a falta vai se instaurando no filho. Será aquilo que a demanda da mãe não cobriu, da
necessidade do filho, que terá uma sobra, e esta sobra constituirá o desejo do pequeno rebento.
Essa situação bizarra confronta o sujeito com o campo da necessidade, com o momento
mítico de sua fundação, emfim, com aquilo que foi preciso perder para tornar-se
humano, desejante. O que, por inteiro, jamais se inscreve simbolicamente no
inconsciente mas que cobra aos pedaços sua inscrição, via satisfação, é o que Freud
denominou de libido. (PINTO, 2002. p 62)
Lacan dirá que o riso do bebê demonstra algo para além da demanda, enquanto o desejo
estará ligado ao significante da presença, para além da presença, seria o sujeito por trás dessa
presença que se dariam os primeiros risos. No caso da literatura o processo é semelhante. Às
vezes o texto ri e às vezes mostra-se carrancudo, em casos extremos pode até querer matar o
leitor (bebê). Quando não se ri mais, o rosto fica impassível, onde as necessidades não terão que
ser satisfeitas. A máscara do sintoma se constituiria “na insatisfação e por intermédio da demanda
recusada” haveria então, “tantas máscaras quantas são as formas de insatisfação”.13 Pois, como
sabemos, o sintoma estará representando diversos cursos inconscientes, sendo assim, poderá ter
diversos significados e estará ligado a diversos significantes. Representará também uma
ambigüidade, que é a do sofrimento e da satisfação (gozo).
13
LACAN, 1957-1958. p 345.
Provisoriamente pode-se afirmar que o inconsciente é a instância onde o desejo se
encontra. As suas formas de manifestações são o sintoma, os sonhos, os lapsos, os atos falhos e a
arte literária, onde a linguagem conseguiu “transformar” esse desejo em significante, fazendo
com que o sujeito não reconheça essas produções como sendo suas. Assim, podemos dizer que
para a psicanálise a questão não será de excluir o sintoma do paciente, se não de ao máximo
reduzí-lo. O principal será fazer com que o sujeito o reconheça e se reconheça nele, isto é
possível através da transferência, a qual inclui a demanda de tratamento, tornando assim o que era
questão em uma pergunta, em que o sujeito não está alheio, mas implicado nela. Pois, como
Lacan nos diz: “o sintoma é o modo como cada um goza do inconsciente, enquanto que o
inconsciente o determina”. Assim, a análise permite que o sujeito não precise sofrer tanto para
gozar, mas que possa sofrer menos e gozar da mesma forma, obtendo o mesmo prazer que era
obtido anteriormente.
2.2 O Reconhecimento dos Efeitos da Pulsão, Através de sua Representação
Freud, como sabemos, ao criar a análise propôs o método da associação livre, ou seja,
pedia ao seu paciente que falasse tudo que lhe viesse à cabeça. Nessa fala, do sujeito, haverá
interrupções (do próprio paciente, através dos lapsos e atos falhos) e também os intermináveis
silêncios.
O assunto principal destacado por Freud era as questões sexuais. E, como falávamos
anteriormente, o significado será relativo para cada sujeito, porque no inconsciente não existe
uma regra que diga qual é a representação imaginária que a pessoa faz das coisas. Pois, “na lógica
do imaginário, alho realmente significa bugalho (e foi sempre alguém que o disse). Alho ser
bugalho, esse é o equívoco do imaginário. E é sobre esse equívoco imaginário primordial que o
processo analítico pretende intervir”.14 Já a literatura institui o equivoco como modo de ex-istir,
isto é, falar de si e “virar” texto.
Será através desses equívocos - pistas deixados na fala do paciente que seu inconsciente
poderá ser “desmascarado”, pois o método terapêutico permite que assim o sujeito “fale” de sua
intimidade. Através dessa fala poderá ocorrer a realização de um desejo. Porém, ao se deparar
com o silêncio do analista, o desejo permanecerá insatisfeito. Ao deparar-se com o “silêncio” do
leitor o mesmo ocorrerá com o texto literário. Neste caso, a leitura será a quebra deste silêncio
com a interposição do sujeito-leitor.
Todavia, como já falávamos anteriormente, o silêncio na análise não parte apenas do
analista, pelo contrário, inúmeras são as vezes que o paciente irá se deparar com a
impossibilidade de falar. Talvez a única forma de suportar esses silêncios seja através da
imaginação, ou melhor, do imaginário. Pois a origem desses silêncios é proveniente da
impossibilidade de representação, ou seja, da “falha” do simbólico, onde fica um buraco. “E é
dessa zona de vazio intrusivo, chamada por Freud de mais-além do princípio do prazer, que
emana a pulsão de morte”.15
Dessa forma, apesar de ser pura ausência de representação, esse vazio não é estático; ao
contrário, é dinâmico, revelando-se de um lado no impasse entre o ser e o dizer,
manifesto pelo silêncio que irrompe na fala do neurótico, marcando sua descontinuidade
14
15
PINTO, 2002. p 58.
PINTO, 2002. p 59.
e escancarando seu desamparo e, de outro, na exuberância silenciosa do ser em
detrimento do dizer, presente nos fenômenos clínicos não-simbólicos (isto é, do real),
sob o impacto da percepção e da caída no ato. (PINTO, 2002. p 58)
A pulsão de morte se demonstra ali onde não há possibilidade de representação, ela se
manifesta no real. Porém o sujeito não irá reconhecer essas produções como suas. E será
justamente nesse escape do simbólico e do imaginário que o paciente poderá saber mais sobre
suas questões sexuais, sobre “o ser do objeto pulsional”. Por exemplo, na estaticidade da palavra
no papel, que é o “real” da literatura e, literalmente, letras mortas. Assim podemos dizer que para
a psicanálise os silêncios ocorridos na análise, especialmente àqueles posteriores a uma fala, onde
faltam respostas (a) e questões, podem dizer muito ao paciente.
O objeto de nosso estudo, o músico Cazuza, relaciona-se diretamente a este conceito de
pulsão de morte.
Eu vi a cara da morte e ela estava viva[...]
Eu não posso causar mal nenhum a não ser
a mim mesmo[...]. (Cazuza)
Juntamente ao conceito de pulsão de morte, Freud elaborou o conceito de pulsão de vida.
Assim percebemos uma relação entre sexualidade (vida) e morte ou “ainda, entre linguagem
(como vínculo do desejo sustentado pelo inacabamento das pulsões parciais) e silêncio (como
porta-voz do trágico, sempre atualizado pela insistência da pulsão de morte)”.16
16
PINTO, 2002. p 61.
2.3 Conceituando a Pulsão em Busca do “Autor”
Tentaremos, neste momento, descrever brevemente, o que Freud elaborou sobre este
conceito tão importante que é o conceito das pulsões, considerando a possibilidade de sua
representação na obra de arte.
A força pulsional é resultado de um desenvolvimento desinibido da fantasia e do
recalcamento ocasionado pela satisfação frustrada. O conceito de recalque está diretamente
relacionado ao conceito de pulsão, já que será a partir dele que ocorre a tentativa de impossibilitar
a entrada do representante psíquico na consciência , ocorrendo uma fixação da pulsão, que fica a
nível inconsciente. Será o recalque que irá trabalhar para formar substitutos, na tentativa de inibir
a pulsão que fora fixada num primeiro momento do recalque, o qual Freud denominou de
recalque primário. O recalque não impede que a pulsão continue no inconsciente, pelo contrário,
faz com que esta se organize ainda mais.
A psicanálise irá nos revelar algo importante para a compreensão do recalque. Mostranos, por exemplo, que o representando pulsional desenvolverá com menos interferência e mais
profusamente, se for retirado da influência consciente pela repressão. “Ele prolifera no escuro,
por assim dizer, e assume formas extremas de expressão, que uma vez traduzidas e apresentadas
ao neurótico irão não só lhe parecer estranhas. Mas também assustá-lo”.17
17
FREUD, 1915. p 172.
Porém, neste momento não temos a pretensão de escrever sobre o conceito de recalque,
apenas fizemos uma breve menção a este conceito, para podermos falar sobre o que nos interessa
de fato, que é o conceito de pulsão.
Um bom termo para caracterizar a pulsão é “necessidade”. Pois o que elimina uma
necessidade é a satisfação.A pulsão possui quatro termos auxiliares para delimitar seu conceito,
são os seguintes:
Pressão (Drang): É a intensidade de força que a pulsão exerce sobre o fator motor.
Finalidade (Ziel): A finalidade de uma pulsão será sempre de satisfação. Porém essa
satisfação nunca será total, mas sempre parcial Essa satisfação parcial será dirigida a outro
objeto.
Fonte (Quelle): A fonte pode ser considerada por estímulos corporais, cujo esses
estímulos serão representados na vida mental por uma pulsão.
Objeto (Objekt): É “coisa” através da qual a pulsão é capaz de atingir seu objetivo,
sendo extremamente variável.
[...] a de que todas as pulsões são qualitativamente semelhantes e devem o efeito que
causam somente à quantidade de excitação que trazem em si, ou talvez, além disso,
distingue uns dos outros efeitos mentais produzidos pelas várias pulsões, pode ser
encontrada a partir da diferença em suas fontes [...] (FREUD, 1915. p 144)
Freud propôs a existência de dois grupos pulsionais: as pulsões do ego, e as pulsões
sexuais. As pulsões sexuais são numerosas e emanam de uma grande variedade de fontes
orgânicas. Atuam independentemente uma da outra e tem como finalidade a obtenção de prazer
do órgão (prazer ligado a um órgão corpóreo específico). Desde seu surgimento as pulsões
sexuais já estão ligadas às pulsões do ego, dos quais só se separam na escolha objetal, cujo
seguem os caminhos indicados pelas pulsões do ego. Parte das pulsões sexuais permanecem
ligadas as pulsões do ego pela vida inteira, fornecendo-lhes dessa maneira componentes
libidinais. Posteriormente, Freud mudou isso para pulsões de vida e pulsões de morte, que
veremos à diante.
Esses dois grupos de pulsões (sexuais e do ego) distinguem-se, porque as pulsões
sexuais possuem a capacidade de mudar de objeto, capacidade esta ausente nas pulsões do ego.
Segundo Freud, uma pulsão poderá passar por quatro destinos: a “Reversão a seu
oposto”, “Retorno em direção ao próprio eu (self) do indivíduo”, “Recalque” e “Sublimação”.
Na reversão de uma pulsão a seu oposto, ocorrem dois processos distintos: um é a
mudança da atividade para a passividade e o outro é a reversão de seu conteúdo. Para o primeiro
processo, Freud usa os exemplos dos dois pares de opostos: sadismo - masoquismo e escopofilia exibicionismo. Segundo este autor a reversão afetaria a finalidade da pulsão, ou seja, a finalidade
ativa de torturar é substituída pela finalidade passiva de ser torturado, ser olhado.
O que ocorre é que uma vez que sentir dor se transforme numa finalidade masoquista, a
finalidade sádica de causar dor também pode surgir. Pois, quando essas dores estão sendo
infligidas a outras pessoas, são fruídas masoquistamente, aonde o sujeito irá se identificar com o
objeto sofredor. Em ambos os casos o que é desfrutado não é a dor, mas a excitação sexual. A
fruição da dor é uma finalidade masoquista que só pode se tornar pulsional em uma pessoa que
era sádica, a qual irá experimentar de boa vontade o desprazer da dor.
O retorno de uma pulsão ao próprio eu (Self) do indivíduo é observado quando se
percebe que o masoquismo é, na realidade, o sadismo que retorna em direção ao próprio ego do
individuo, e de que o exibicionismo abrange o olhar para seu próprio corpo.
A observação analítica não nos deixa duvidar de que o masoquista partilha da fruição do
assalto a que é submetido, e que o exibicionista partilha da fruição (a visão de) sua
exibição. A essência do processo é assim, a mudança do objeto, ao passo que a
finalidade permanece inalterada. Não podemos deixar de observar contudo, que nesses
exemplos, o retorno em direção ao eu do indivíduo e a transformação da atividade em
passividade convergem ou coincidem. (FREUD, 1915. p 148)
O outro par de opostos (escopofilia - exibicionismo) também proporciona um bom
entendimento. Nesse caso a finalidade da pulsão é olhar e exibir-se. Segundo Freud, é possível
ser postulado três fases, que são basicamente as mesmas do exemplo anterior (exibicionismomasoquismo).
Primeiro: Olhar como uma atividade dirigida para um objeto estranho;
Segundo: O desistir do objeto e dirigir a pulsão para o próprio corpo do sujeito. Dessa
forma, a transformação da atividade em passividade e o estabelecimento de uma nova finalidade,
a de ser olhado;
Terceiro: Introdução de um novo sujeito diante do atual. A pessoa se exibe a fim de ser
olhada por ele.
Da mesma forma que no exemplo anterior, é difícil saber se a finalidade ativa surge
antes da passiva, de que o olhar precede o ser olhado. Porém, a primeira fase se dirige ao
primeiro exemplo, pois o início da atividade da pulsão, escopofílico é auto-erótico, ele possui um
objeto, que em realidade é parte do próprio corpo do indivíduo. Essa fase é ausente no sadismo,
pois desde o começo a pulsão é dirigida para um objeto estranho.
O segundo processo, da reversão do conteúdo da pulsão encontra-se no exemplo da
transformação do amor em ódio. Freud irá empregar o termo ambivalência para explicar a
oscilação entre o amor e ódio.
O amor admite três opostos: “amar-odiar”, “amar-ser amado”, “o amor e o ódio”. Onde a
segunda dessas antíteses que é o “amar-ser amado” é a atração característica do narcisismo.
Sendo que a situação é de “amar a si próprio”. No início da vida mental, o ego é catexizado com
as pulsões. O sujeito, dessa maneira, se torna capaz de satisfazer essas pulsões em si mesmo, em
uma forma de obtenção de prazer, auto-erótica. Essa forma de satisfação é o narcisismo.
Resta-nos agora reunir o que sabemos da gênese do amor e do ódio. O amor deriva da
capacidade do ego de satisfazer auto - eroticamente alguns dos seus impulsos pulsionais
pela obtenção do prazer do órgão. É originalmente narcisista, passando então para
objetos, que foram incorporados ao ego ampliado, expressando os esforços motores do
ego em direção a esses objetos como fontes de prazer. Torna-se intimamente vinculado à
atividade das pulsões sexuais ulteriores e, quando estes são internamente sintetizados,
coincide com o conjunto sexual como um todo [...] (FREUD, 1915. p 160)
Em 1925-1926, Freud vem falar das pulsões de vida e pulsões de morte,
complementando a teoria escrita anteriormente das pulsões sexuais e do ego. Segundo ele
(Freud) as pulsões do ego exercem pressão no sentido da morte, enquanto as pulsões sexuais
exercem um prolongamento da vida.
[...] O objetivo de toda vida é a morte[...]
[...] As coisas inanimadas existiram antes
das vivas [...] (FREUD, 1920. p 49)
Para explicar o princípio das pulsões de vida e pulsões de morte, Freud fala do início da
matéria viva, dizendo que:
A tensão que surgiu na matéria que até então era uma matéria inanimada se esforçou por
neutralizar-se, dessa maneira surge a primeira pulsão, que é a pulsão que deseja retornar
ao estado inanimado, ou de morte. Dessa maneira por longo tempo a substância viva
esteve sendo constantemente criada e morrendo facilmente; (devido às pulsões de
morte). Até o momento em que forças externas se alteraram de maneira a obrigar a
substância, ainda sobrevivente a divergir mais amplamente seu original curso de vida e a
efetuar mais complicados antes de atingir seu objetivo de morte. Surgindo dessa maneira
as pulsões de autoconservação, ou pulsões de vida. (FREUD, 1920. p 47)
Esses dois grupos de pulsões (de vida e de morte), são como dois grupos lutando, um
para atingir rapidamente o objetivo final da vida, que é a morte e a outro lutando para prolongar
esse término. É originalmente isto que ocorre diariamente em nossa vida, onde certas forças
pulsionais lutam para obter uma satisfação total, que seria a nossa morte, e forças pulsionais que
lutam para que esse término seja prolongado.
Junto com este conceito das pulsões Freud formulou outro conceito de muita
importância, que é o conceito da repetição.
As manifestações de uma compulsão à repetição (que descrevemos como ocorrendo nas
primeiras atividades da vida mental infantil, bem como entre os eventos do tratamento
psicanalítico) apresentam em outro grau um caráter pulsional e, quando atuam em
oposição ao princípio de prazer, dão a aparência de uma força “demoníaca” em ação [...]
(FREUD, 1920. p 46)
Percebemos diariamente nas brincadeiras infantis, como as crianças tendem a repetí-las,
onde cada repetição fortalece a satisfação que buscam. Pois a repetição ou a reesperiência de algo
ocorre devido à busca de prazer. Porém, a satisfação encontrada nunca será total, mas sempre
parcial. Devido a isso que ocorre a repetição, ou seja, a busca de uma satisfação total. Essa
satisfação total se ocorresse, seria a morte do sujeito. Esta é a ligação da pulsão com a compulsão
pela repetição, onde o sujeito tentará restaurar o primeiro estágio da pulsão, onde a matéria era
inanimada.
Essa repetição que ocorre na fase infantil do sujeito irá ocorrer posteriormente na vida
adulta. Como Freud diz: “Parece, então que uma pulsão é um impulso inerente a vida orgânica, a
restaurar um estado anterior de coisas”.18
Garcia-Roza em seu livro O Mal Radical em Freud irá referir-se à dualidade do
indivíduo que a psicanálise trás à tona. Está dualidade estaria entre o que é ordenado e aquilo que
é exterior à ordem, ou seja, o que é ordenado incluiria a linguagem como também a representação
do corpo. Já o que é exterior à ordem, se encontrariam às pulsões, em seu estado bruto.
“Teríamos assim, de um lado, o corpo-linguagem, e de outro as pulsões, pura potência
indeterminada”.19
18
19
FREUD, 1920. p 47.
ROZA, 1990. p 53.
Esta seria apenas uma das dualidades que a psicanálise apresenta, porém no momento a
que mais nos interessa e que pretendemos nos deter é em relação ao dualismo que as pulsões nos
deparam, presente tanto em relação às pulsões de vida e pulsões de morte, como também em
relação às pulsões e suas representações.
Para Freud as pulsões de vida e de morte não estão separadas, mas pelo contrário, estão
“misturadas”. O que as difere são as formas de manifestações, pois enquanto as pulsões de vida
se manifestam de forma numerosa e ruidosa, as pulsões de morte são invisíveis e silenciosas.
Segundo Roza, a representação da pulsão e o corpo pulsional são coisas distintas. O
corpo pulsional estaria situado para além da representação, e seria o fator-causa da atividade
psíquica. A partir disto, podemos dizer que o corpo pulsional não é representável, não é
atravessado pela linguagem, pois ele não se produz na ordem do acontecimento. “O corpo
pulsional distingui-se tanto do corpo simbólico como do corpo biológico”.20 Porém, a pulsão é
falada a partir do simbólico para se distinguir de algo biológico ou instintual.
A pulsão não pode ser tida como algo instintual, já que não possui um objeto próprio,
pelo contrário, qualquer objeto poderá ser objeto da pulsão. O oposto do que ocorre com o
instinto, que tem seu objeto específico. A escolha do objeto para a pulsão está na relação que este
objeto terá com o desejo, ou seja, entre a pulsão e o objeto encontra-se o desejo e a fantasia.
“Dessa forma, um objeto só se constitui como objeto da pulsão se ele se fizer objeto para o
desejo. Como é pela fantasia que o objeto se articula com o desejo, ela é a mediação necessária
20
ROZA, 1990. p 60.
entre pulsão e objeto”.21 Lacan irá denominar este objeto, de objeto a. Ou seja, o objeto causa de
desejo. Assim, a pulsão que possibilita a relação que o sujeito mantém com o objeto pela fantasia.
Afirmar que entre o corpo pulsional e o objeto interpõem-se o desejo e suas fantasias é o
mesmo que dizer que entre ambos interpõem-se a rede significante. Esta, ao mesmo
tempo que funda o corpo pulsional (não natural), institui o objeto como objeto a. O
objeto a é ao mesmo tempo resíduo e índice da coisa, ele é o que permanece por efeito
da perda do objeto; e o que permanece é um furo, uma falta central em torno da qual
organizam-se os significantes. Esse furo, Lacan afirma, é da ordem do real. (ROZA,
1990. p 66)
Então, o objeto a não é um objeto específico, mas um furo em torno do qual permeiam
os significantes. É a falta central do sujeito. Garcia afirma, que nenhum objeto é o objeto a em si,
e ao mesmo tempo, todos os objeto se apresentam como pretendentes ao seu lugar.
Podemos dizer que as pulsões estariam localizadas em uma região para além do
princípio de prazer, lugar este que está para além da ordem e da lei. Roza fala deste lugar como o
lugar do acaso. Assim, a pulsão de morte deve ser entendida como: “uma vontade de destruição
direta, o que não significa tampouco agressividade (esta seria um efeito), mas sim vontade de
destruição, vontade de recomeçar com novos custos”.22 Isto pode ser explicado pelo fato de a
pulsão estar diretamente relacionada ao conceito de repetição, o qual implica algo novo.
A partir da pulsão o natural precisa ser recriado, ou seja, ela coloca em causa o natural,
por isso a identificação com a vontade de destruição é legítima.
21
22
ROZA, 1990. p 65.
ROZA, 1990. p 131.
Como falávamos anteriormente, a pulsão sexual e a pulsão de morte são antagônicas,
isto é, enquanto a primeira prima por manter ou constituir uniões, as pulsões de morte possuem
uma tendência destrutiva, sendo altamente renovadoras e primando pela disjunção dessas uniões.
Assim, “ao colocar em causa tudo o que existe, ela é potência criadora”.23
Lacan irá definir a pulsão de morte como “Vontade de Destruição”, pois ela coloca em
causa tanto a natureza como a cultura, recusando um mesmerismo e provocando a emergência de
novas formas.
Se a pulsão coloca em causa o natural, se por ela e a partir dela o natural tem que ser
recriado, sua identificação com a vontade de destruição é legítima. (ROZA, 1990. p 135)
Garcia refere-se a pulsão como algo que é externo ao aparato psíquico e se situa para
além da linguagem estando, como falávamos anteriormente, no lugar do acaso. Por isso ela é
marcada pela a-historicidade, ficando a historicidade referida à representação. Será pelo fato de
“se dá uma presença da pulsão no psiquismo humano, que a historização (o memorável ou
memorizado) é possível. Considerada em si, a pulsão permaneceria no lugar do não-histórico”.24
Podemos dizer que a pulsão só é pulsão devido ao simbólico e, por isto, a historicidade da pulsão
é a sua não-naturalidade. Sendo assim, a rememoração da pulsão é possível a partir da cadeia
significante, e é justamente ao ser capturada pela cadeia significante, que a pulsão adquire seu
caráter histórico.
A única maneira de conhecermos os efeitos da pulsão será através de sua representação.
E a satisfação da pulsão também só é possível via representação. Pois, a pulsão não tendo objeto
próprio e seu objeto sendo oferecido pela fantasia, isto implica a submissão da pulsão a
23
24
ROZA, 1990. p 134.
ROZA, 1990. p 135.
articulação significante. Assim, será a partir da rede significante que se ordena o caos da pulsão, e
se possibilita que o sexual se constitua como diferença.
3 A PULSÃO: DA PONTA DO LÁPIS À PONTA DA LÍNGUA
Neste momento do trabalho já temos a possibilidade de demonstrar a representação da
pulsão na obra de arte, especialmente na arte musical. Através das composições de Cazuza é
possível ilustrar a representação dos quatro destinos da pulsão. Para tanto, seis composições
foram selecionadas. A primeira é Cobaias de Deus que vai representar o que Freud definia como
Retorno em Direção ao Próprio eu do Indivíduo. Codinome Beija-Flor representa
especificamente o recalque. Já Exagerado e Ideologia representam a Sublimação e Só As Mães
São felizes a Reversão ao seu Oposto. Por fim O Tempo Não Pára enuncia a união da pulsão de
vida e da pulsão de morte, numa união simultânea de todos os destinos da pulsão e do desejo.
3.1Cobaias de Deus: O Retorno em Direção ao Próprio Eu do Indivíduo
Essa parceria com Ângela Rorô foi gravada em 1989, pouco tempo antes da morte do
poeta. Cazuza se encontrava em idas e vindas cada vez mais freqüentes nos hospitais, os quais
necessitava freqüentar. Ela vem como uma descrição do que estava sentindo, ou melhor, de como
estava se sentindo. Vejamos a letra na íntegra:
Se você quer saber como eu me sinto
Vá a um laboratório ou labirinto
Seja atropelado por esse trem da morte
Vá ver as Cobaias de Deus
Andando na rua pedindo perdão
Vá a uma igreja qualquer pois lá se desfazem em sermão
Me sinto uma cobaia, um rato enorme
Nas mãos de Deus mulher
De um Deus de saia
Cagando e andando
Vou ver o ET
Ouvir um cantor blues
Em outra encarnação
Nós, as cobaias de deus
Nós somos cobaias de Deus
Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco
Desse hospital maquiavélico
Meu pai e minha mãe, eu estou com medo
Porque eles vão deixar a sorte me levar
Você vai me ajudar, traga a garrafa
Estou desmilingüido, cara de boi lavado
Traga uma corda, irmão (irmão, acorda!)
Nós, as cobaias, vivemos muito sós
Por isso, Deus, tem pena, e nos põe na cadeia
E nos faz cantar, dentro de uma cadeia
E nos põe numa clínica, e nos faz voar
Nós, as cobaias de deus
Nós somos as cobaias de Deus
Nós somos as cobaias de deus
Nós... (Ângela RoRô/Cazuza)
Os termos cobaia e laboratório representam magníficas metáforas do que o autor estava
enfrentando. Como sabemos, Cazuza contraiu o HIV num período onde a doença era nova,
desconhecida e rodeada de mitos, e foi uma das primeiras celebridades a assumir publicamente
que estava infectado pela Aids. Por isso, era como se o poeta realmente estivesse em um
laboratório, sendo tratado como um rato, testando inúmeros medicamentos à procura de um que
fosse mais eficaz e efetivasse uma melhora em seu estado.
Como a Aids era uma doença desconhecida, tinha-se a (des) vantagem de crer que a
doença não fosse tão séria e que um medicamento milagroso fosse encontrado. Hoje ainda existe
a esperança de uma possível cura, porém as informações são maiores e se sabe a necessidade de
muitos estudos e pesquisas antes desta descoberta.
A frase “Andando na rua pedindo perdão” demonstra o que Freud já nos falava, de
quando o sujeito se encontra em um estado de desespero, desamparado sem conseguir se
sustentar sozinho e recorre à fé em Deus. Não temos claro qual a posição de Cazuza em relação à
religião e à Deus. Ora parece crer ora parece questionar, porém percebemos que em várias
composições exalta o nome de Deus, e isso se intensifica após descobrir que estava doente. A
prova é as inúmeras composições que ilustram isto, entre elas podemos citar: Blues da Piedade,
Que o Deus venha, Ajudai Senhor, entre outras. Inegavelmente, aqui, refere-se a um Deus
impiedoso ao modo do antigo testamento, cuja punição sentia-se através de pragas e castigos.
“Cagando e Andando”. Uma das interpretações que podem ser feitas é de que a diarréia
é um dos sintomas que a Aids apresenta. Por outro lado, essa expressão é a que melhor traduz o
que Cazuza tentava fazer enquanto estava doente, em relação à realidade da doença que
enfrentava. Não deixou de ouvir um blues, de fumar, fazer festas, beber demasiadamente, enfim
fazer tudo que fazia anteriormente. E isto ocorria até mesmo enquanto estava internado ou
quando ia para casa continuar o tratamento. Vejamos um depoimento de sua mãe que demonstra
isto:
Nos quatro meses em que viveu no apartamento no Leblon, Cazuza continuou provendo
suas famosas festas. Pessoas entravam e saíam o tempo todo. Gente que chegava para
almoçar, jantar, cheirar pó, fumar maconha em animadas noitadas madrugada adentro.
Cercado de todo conforto possível ele se esmerava na arte de bem receber. Sua casa era
uma farra. (ARAÚJO, 2004. p 275)
O Deus de saia (a mãe punitiva, a mãe divina) cagava e andava para ele, assim como ele
cagava e andava para sua condição. Mas em termos do “retorno ao próprio Eu” a condição é
clara: em qualquer atitude tomada é de uma cobaia, como cobaia age e como cobaia é punido,
com Deus e o mundo cagando e andando.
Em depoimento sobre esta música, Ângela Rorô diz que não era amiga íntima de
Cazuza, mas sempre ligava para saber como ele estava, como estava se sentindo e considera que
esta letra veio como uma resposta a estes questionamentos.
[...] recebi uma carta com a letra na minha casa de Araras, Petrópolis (RJ). Chegou uma
cartinha com um selo normal. Cazuza me mandou a letra escrita à mão e eu peguei um
violão vagabundo e fiz uma espécie de réquiem25. Costurei a letra na métrica da
canção e tenho muito orgulho disso, pois Cobaias de Deus é uma das grandes letras do
Cazuza. (ARAUJO, 2001. p 222)
Cazuza conseguiu traduzir nesta composição não apenas o que sentia, mas o que
inúmeras pessoas sentem quando estão à beira da morte, especialmente aqueles que estão
enfrentando uma doença nova, sem informações que possam tranqüilizar ou preocupar ainda
mais. Doenças que fazem com que se peça – Piedade. Além disto, muitos doentes graves pensam
em terminar com tanto sofrimento, antecipando a morte. Isto pode ser demonstrado na frase:
“Traga uma corda irmão, irmão acorda”. Enfim, todo o desespero de não se saber qual a cura para
a doença: “Porque eles vão deixar a sorte me levar”. No retorno ao Eu o sujeito entrega-se à
própria condição de objeto.
Falaremos brevemente do que a aids representa, especialmente de como era encarada
pelas pessoas no início da década de oitenta, com o propósito de tentarmos compreender como
25
Grifo da autora.
foi para Cazuza enfrentá-la, pois se hoje ainda existe preconceito, naquela época este preconceito
era milhares de vezes maior.
A maioria das pessoas que contraem a aids, passam a ter um sentimento de vergonha
associado à atribuição de culpa. São poucas as pessoas que se questionam “Por que eu?”, como
quem tem câncer ou outra doença grave que traz riscos de vida. Pois fora a África (país onde
grande parte da população está infectado pelo HIV, e muitos já nascem com Aids contraindo o
vírus dos pais), a maioria das pessoas sabem ou imaginam de que modo foram infectadas. Após a
descoberta de que se está com Aids, a maioria omite dos familiares. Um exemplo conhecido é
Renato Russo (ex-vocalista do Legião Urbana), cuja mãe só soube que o filho era HIV positivo
após sua morte, através de um meio de comunicação. Uma característica que marcou a história de
Cazuza foi justamente a coragem que teve ao se expor, ele se diferenciou fazendo o oposto do
que a maioria fazia na época, e ainda faz nos dias de hoje.
O comportamento dito de “risco”, que produz a Aids é encarado como uma
irresponsabilidade, delinqüência, considerando a sexualidade do sujeito como algo divergente,
como se a Aids fosse causada pelos excessos sexuais, por uma perversão sexual, vindo como um
“castigo” dirigido à atividade sexual, pois após a descoberta de que se está com Aids o “certo”perante a sociedade – é se abster do sexo. Este é o principal ponto em que a culpabilidade
aparece, pois se contrai a doença através da prática sexual e isso parece depender da vontade,
implicando a culpa.
Logo que foi descoberta (e mesmo vinte anos depois muitas pessoas ainda pensam
assim) por estar associada a culpa sexual, o medo do contágio fácil e as fantasias absurdas sobre a
transmissão por meios não venéreos em lugares públicos, era praticamente uma crença.
Susan Sontag nos diz que a “peste” é a principal metáfora através da qual a epidemia de
Aids é compreendida. “Peste” é uma determinação usada, como metáfora, para o que há de pior
em termos de males coletivos, sendo encarada como uma condenação da sociedade – termo (im)
perfeito para descrever a Aids. Com efeito, tinha-se a idéia de que a Aids poderia causar as piores
catástrofes imagináveis, uma epidemia pior que a Peste Negra26.
Outras fantasias eram de que era uma peste Africana, ou de que brancos e heterossexuais
estariam fora do grupo de risco. A Aids tem o poder de alimentar fantasias sinistras a respeito de
uma doença que assinala vulnerabilidades individuais tanto quanto sociais – onde o medo da
doença invade toda a sociedade.
Com efeito, epistemologicamente paciente quer dizer: sofredor, e o indivíduo infectado
pela Aids, no momento que sabe disto, passa a ser considerado um sofredor degradante. Essa
degradação é outro ponto que apavora e causa uma desumanização, por medo de também contraíla, pois os sintomas que ela traz são inúmeros. Todavia muitas pessoas levam anos para
apresentá-los, outras em pouco tempo já os demonstram. Mesmo antes das pessoas infectadas
adoecerem já são consideradas doentes terminais, e isto leva muitos, a uma espécie de morte
social que precede a morte física.
26
A Peste Negra foi a maior epidemia de que se têm notícias, eliminou entre um terço e metade da população da
Europa.
A Aids rapidamente se tornou um acontecimento global e passou a ser discutida nas
maiores e principais cidades de inúmeros países, e por milhões de pessoas. Hoje existem
inúmeras campanhas para prevenção e esclarecimento sobre esta doença, muitos estudos já foram
realizados, os quais conseguiram desenvolver medicamentos que não acabam com a doença, mas
que conseguem controlá-la, porém mesmo assim, inúmeras pessoas a contraem e outras inúmeras
pessoas ainda alimentam o preconceito e os mitos que giram em torno dela. Neste retorno “final”
do próprio Eu, a condição de cobaia ilustra o estágio pós-humano a que o artista foi reduzido e do
qual demonstra ter consciência existencial e estética.
3.2 Codinome Beija – Flor: O que há por trás do(s) (S)Teu(s) Nome(s)?
Freud considerava o seu conceito de Recalque como a pedra angular da teoria
psicanalítica. Para o autor o recalque é a conseqüência do conflito entre uma moção pulsional que
força seu acesso à consciência e uma contracarga mobilizada pela censura para interditar esse
movimento. O sintoma seria decorrente do recalcamento de uma idéia inconciliável à
consciência, e do deslocamento do afeto correspondente a esta para uma outra idéia que lhe fosse
próxima, empreendendo assim, uma falsa associação. Consideramos que na composição de
Cazuza intitulada de Codinome Beija-flor, há uma representação poética do recalque. Vejamos a
música na íntegra:
Pra que mentir
Fingir que perdoou
Tentar ficar amigos sem rancor
A emoção acabou
Que coincidência é o amor
A nossa música nunca mais tocou
Pra que usar de tanta educação
Pra destilar terceiras intenções
Desperdiçando o meu mel
Devagarinho, flor em flor
Entre os meus inimigos, Beija-flor
Eu protegi o teu nome por amor
Em um codinome Beija-flor
Não responda nunca, meu amor (nunca)
Pra qualquer um na rua, Beija-flor
Que só eu que podia
Dentro da tua orelha fria
Dizer segredos de liquidificador
Você que sonhava acordada
Um jeito de não sentir dor
Prendia o choro e aguava o bom do amor
Prendia o choro e aguava o bom do amor (Reinaldo Arias/Cazuza/Ezequiel Neves)
Codinome Beija-Flor foi composta em 1985 quando Cazuza fora internado pela primeira
vez (havia uma leve suspeita de ter contraído a Aids), estava com febre e convulsões, porém
neste momento o teste de HIV dera negativo.
O que inspirou o poeta foram os beija-flores que rodeavam a janela do quarto do
hospital. Cazuza pedia que colocassem água e açúcar para que os beija-flores viessem cantar para
ele. Essa é uma das músicas mais belas e a mais lírica do repertório de Caju. Ela nos traz alguns
questionamentos, especialmente em relação ao pronome teu que é usado em algumas frases da
música. Será que não poderíamos dizer que na verdade Cazuza estava referindo-se a si-próprio? E
ao invés de ser tEU, era sEU o nome que protegia? O que importa é o nome, porém não se sabe
de quem.
A vida amorosa de Cazuza apesar de escancarada é também algo nebuloso, pois
aparentemente não teve uma pessoa (mas várias) que fizeram diferença em sua vida. É claro que
encontrou muitas pessoas que lhe foram especiais, tendo vários relacionamentos, mas parece que
apenas um fez a diferença a ponto de ser “recalcado”. Será que “não apreendera a amar” ou
amava tão intensamente que acabava rápido demais? Uma característica marcante em suas
composições é, justamente, de eliminar o amor e considerar apenas o sexo. A letra é quase
“careta” em relação ao conteúdo de outras letras, exatamente pelo caráter de recalcamento do
nome do “amado”, duplo sofrimento para o “exagerado” que fazia questão de expor a si e aos
outros em todas as ocasiões.
Esta composição é uma tentativa de recalcar o sentimento, o nome/proteção e a emoção,
marcando uma guinada estética muito significante.
A composição Nunca Sofri por Amor,feita em parceria coma cantora Joana (ícone do
brega romântico) traz frases muito interessantes, entre elas está:
É duro dizer
Mas nunca sofri mais de dez minutos por amor
Ninguém nunca mereceu o meu choro
Nem a falta de apetite
Vivo de músicas românticas
E não sou romântico
Traz também um questionamento:
Será que eu nunca amei de verdade?
Ou o verdadeiro amor
É assim?
Cazuza era uma pessoa tão sensível quanto escancarada, e procurava viver intensamente
cada momento de sua vida. O que ocorre é que talvez, os amores que tenha vivido para uma
pessoa comum fosse o suficiente, mas para ele era pouco, superficial e passageiro, fazendo com
que ficasse na eterna procura de um “amor verdadeiro”, sentindo-se assim, “Incapaz de Amar”.
Outra hipótese que podemos sugerir é de que pelo fato de ser tão sensível era capaz de perceber a
“realidade da pessoa”, ou seja, como sabemos amamos a idéia que temos do sujeito e não a
pessoa de fato.Assim, Cazuza conseguia (v) ler a “alma” das pessoas e isto poderia fazer com que
amasse todas, ou talvez, que não conseguisse se “iludir” e amar ninguém de fato.
Outra característica de seus relacionamentos era em relação à sua escolha sexual, pois
não tinha definido o seu objeto amoroso, ou seja, gostava tanto de homens como de mulheres,
mantendo assim, relacionamentos com ambos os sexos. Diversas composições demonstram isto:
[...] Quero ele, menino triste
Quero ele trás dele
Por cima da mesa [...]
Quero tê-las, seus bagos, suas orelhas [...] (Quero Ele – Cazuza/Lobão)
[...] Todo fim de tarde será rapaz
Toda lua será moça [...] (Como já Dizia Djavan (Dois Homens Apaixonados) –
Cazuza/Frejat)
Este “nome” recalcado é o grande mistério da obra de Cazuza, pois muito
provavelmente, ninguém sabe e nem irá saber de quem é.
3.3 Exagerado e Ideologia: Ilustrando a Sublimação
Freud ao definir a Sublimação, afirma que esta é a capacidade do sujeito de investir em
atividades artísticas, intelectuais, ideológicas, cientificas, atividades denominadas pelo autor
como: “Atividades Superiores”. Compreendemos este processo como a possibilidade da pulsão se
lançar a uma meta outra, distante da satisfação sexual propriamente dita. A ênfase recai, então,
sobre o desvio em relação ao sexual, ou seja, pressupõem-se a manutenção do objeto da pulsão,
havendo, no entanto, a transformação do alvo. A sublimação seria o que permitiria a constituição
de uma dialética da alteridade por meio da inscrição da pulsão no campo da cultura, mais
especificamente a “cultura de massa”. A arte seria, assim, uma modalidade de sublimação às
pulsões, na qual o sujeito manteria o objeto de investimento transformando seu alvo. Usaremos
duas composições de Cazuza que podem ilustrar o que Freud fala sobre a sublimação. São elas:
Exagerado e Ideologia.Começaremos por Exagerado.
Amor da minha vida
Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados
Na maternidade
Paixão cruel, desenfreada
Te trago mil rosas roubadas
Pra desculpar minhas mentiras
Minhas mancadas
Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
Adoro um amor inventado
Eu nunca mais vou respirar
Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome
Se você não me amar
Por você eu largo tudo
Vou mendigar, roubar, matar
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais
Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
Adoro um amor inventado
Que por você eu largo tudo
Carreira, dinheiro, canudo
Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais (Leoni/Cazuza/Ezequiel Neves)
O próprio Cazuza e as pessoas que o conheciam diziam, e dizem, que Exagerado é uma
das composições mais autobiográficas que escreveu. Porém, quando Cazuza a escreveu estava
pensando (conscientemente) em seu amigo e parceiro Ezequiel Neves – o Zeca.
Zeca, como sempre foi chamado pelos amigos, trabalhava com João Araújo (pai de
Cazuza), e eram amigos, porém a amizade maior sempre foi com o filho-Cazuza. Parece que
Zeca era como um espelho para o poeta, além de ser seu amigo e produtor dos seus discos.Ele
representava um pai idealizado, pois tinha a idade cronológica de seu pai e as atitudes de um
adolescente, acompanhava Cazuza nas festas e muitas vezes fazia mais bagunça que ele próprio.
Já Lucinha Araújo muitas vezes teve que discutir com o amigo do filho, principalmente quando
Cazuza estava doente e, aparentemente, Zeca não estava nem aí para os cuidados que precisava
tomar, pelo contrário promovia noitadas de festa. Lucinha sempre admitiu, porém, que nos
momentos mais difíceis que Cazuza enfrentou, Ezequiel sempre esteve do seu lado, não lhe
abandonou em nenhum momento, até mesmo nas constantes viagens para Boston ele ia junto.
Vejamos o que Lucinha dizia da relação de seu filho com Ezequiel Neves:
A relação de Ezequiel Neves e meu filho não se limitava as loucuras e bebedeiras. Zeca
o estimulava culturalmente, lhe apresentando livros e autores que ele ainda não
conhecia, músicas que lhe passaram despercebidas e, mais do que tudo, os dois se
afinavam por ter uma antena plugada no mundo e em seus movimentos, que vibrava no
mesmo tom. (ARAÚJO, .2004. p 189)
Como se vê, Zeca vem a representar um pai idealizado-exagerado, enquanto João é o pai
de Vida Fácil:
Tim-Tim !
A tua corte agradece
Um brinde!
O nosso astro merece
Ao teu fã-clube fiel
Dá autógrafo em talão de cheques [...]
João trabalhou em muitas produtoras, passando por todos os cargos da indústria do
disco, até que em 1969 fundou a Som Livre. Sempre foi um executivo e Cazuza nunca gostou
desta posição e nunca se imaginou nela. Isto pode ser percebido quando trabalhara na Som Livre
e dera um jeito de fugir da possibilidade de se tornar um executivo, igual ao seu pai.
Quando trabalhava na Som Livre e o Guto Graça Mello disse que queria me dar um
novo cargo, não acreditei. Afinal, filho de diretor tem que subir na vida, disse ele. Foi
meu primeiro parafuso. Me vi fechado num escritório para o resto da vida, feito meu pai.
Disse que preferia até ser um mendigo de rua, mas nunca um executivo. Pedi uma
passagem para os Estados Unidos, uma mesada e me mandei. Senão, me jogaria pela
janela. (ARAÚJO, 2004. p 117)
Por isso, a sua identificação sempre fora maior com o “exagerado” do Zeca que
curiosamente “conhecera na Som Livre”, sendo que a composição mais autobiográfica de sua
carreira foi feita ao lembrar do amigo. Já o título nos remete a uma pessoa espontânea em
demasia, e lembra automaticamente, Cazuza. Outra característica exposta na composição é o que
foi referido, anteriormente, sobre seus relacionamentos (tanto de amizades como amorosos), onde
o excesso era o que prevalecia. Em contrapartida, a frase “adoro um amor inventado” faz com
que nos questionemos sobre a realidade de seus relacionamentos, porém como poder-se-ia amar
alguém sem inventá-lo? Sem imaginá-lo, idealizá-lo? A palavra “adoro” por si só demonstra isto,
idolatria falsa para indicar a verdade do sentimento.
Pelas declarações de Cazuza e seus amigos, este, quando estava apaixonado (nem que
fosse por um breve momento) era capaz de largar tudo, ir mendigar, roubar, matar...
Já Lucinha Araujo, logo que ouviu a composição acreditou que ele estava se referindo a
ela quando dizia:
Amor da minha vida
Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados
Na maternidade
Também afirmou que muitos dos seus amigos e amigos de seu filho diziam que a
verdadeira exagerada era ela. Nesta composição ocorre o oposto do que acontecera quando ouviu
Só As Mães São Felizes. Nesta, levou um choque na primeira vez em que a ouviu. Ambas
composições estão no mesmo disco.
Você nunca sonhou
Ser currada por animais
Nem transou com cadáveres?
Nunca traiu teu melhor amigo
Nem quis comer tua mãe?
Só as mães são felizes...
Essas recepções subjetivas vão ao encontro do que Contardo Calligaris diz sobre seguir
o desejo dos pais, ou seja, fazer aquilo que eles gostariam de ter feito, mas não fizeram. Assim,
Cazuza é o reflexo do desejo de seus pais (especialmente de sua mãe). Ele realiza o desejo, que
em seus pais, estava reprimido (Lucinha chegou a gravar um disco, e como cantora era a
referência melódica do filho). Por isso, da infância até o início da adolescência Lucinha tenta
reprimir tanto as atitudes de Cazuza, até que percebeu que seu menino era incontrolável, porém
mesmo assim, nunca deixou de ser extremamente presente na vida do filho. Desta maneira seus
pais não conseguiam mais impor autoridade sobre ele, pois ao mesmo tempo em que pediam para
que não fizesse, por traz deste pedido existia um desejo que dizia “faça, não repita a minha vida,
se revolte”. A fala diz não, mas o desejo diz sim. Relatos de Cazuza e sua mãe, demonstram isto:
- Minha mãe é a maior cantora do Brasil!
- E eu advertia: - mas você não disse que a maior cantora do Brasil é a Dalva de
Oliveira?
- Você é a maior cantora vive da MPB, não estava falando das mortas. (ARAÚJO, 2004.
p 113)
Assim, para poder fazer parte da “comunidade adulta”, o “exagerado” precisa
transgredir, conseguindo ser amado e acima de tudo admirado como artista. Com efeito, para
conseguir preencher as expectativas dos adultos (pais) é necessário não se conformar ao que os
próprios adultos pedem e fazem. Surgindo diversas transgressões, pois na realidade
desobedecendo ele está obedecendo.
As condutas transgressivas de Cazuza eram tão variadas quanto o sonho e o desejo
reprimido de seus pais, a sua patologia, se assim podemos chamar, é o reflexo do desejo
reprimido dos seus pais-adultos, por isso precisa ser exagerado e transformar em arte (lucro na
visão da indústria fonográfica) a sublimação musical desse exagero.
Como sabemos, na década de 60-70 quem transgredia era quem estava em um partido
político e a ditadura militar era a responsável por barrar isto. Já na década de 80 se transgredia
através do uso de drogas, sexo, e do rock’n’roll. Quem bloqueia isto é a Aids, fazendo o
“Exagerado parar”. Vejamos depoimentos de Cazuza que ilustram o que pensava sobre a aids:
Esse negócio de aids foi um freio. O prazer passou a ser um risco de vida. Tem pessoas
que sabem transar bem com isso, outras não. Tenho amigos que quando vão transar
vomitam. (ARAÚJO, 2004. p 384)
A aids caiu como uma luva, modelinho perfeito da direita e da igreja. A aids caiu assim
como um tailleur para eles, que nunca estiveram tão elegantes...e deselegantes
principalmente. (ARAÚJO, 2004. p 384)
Por isso, podemos dizer que esta composição reflete o período em que Cazuza se
encontrava, o fim de uma década eufórica, onde tudo era o máximo, era supersensacional, era
exagerado, e o preço a pagar era apenas “mais prazer” para fazer mais arte. Anteriormente, na
década de 60-70, Caetano Veloso ao invés de cantar “exagerado” cantava “Superbacana”:
Toda essa gente se engana
Ou então finge que não vê que eu nasci
Pra ser o superbacana
Eu nasci pra ser o superbacana [...] (Caetano Veloso)
Em Ideologia, obra-prima de Cazuza, o poeta consegue em uma única composição
“falar” ao mesmo tempo de sua vida particular e de toda sua geração, descrevendo o que sente e o
que o país sente e enfrenta, um momento de desilusões e desesperança.
Na verdade a letra ideologia fala sobre a minha geração, sobre o que eu acreditava
quando tinha 16, 17 anos. E sobre como estou hoje. Eu achava que tinha mudado o
mundo e que, dali para frente, as coisas avançariam mais ainda. Não sabia que iria
acontecer esse freio. É como se agora a gente tivesse que pagar a conta da festa.
(ARAÚJO, 2001. p 166)
O disco intitulado Ideologia foi todo elaborado após sua doença e apresenta uma maior
maturidade nas letras. É uma verdadeira “psicanálise”, um réquiem para o fim do sonho dos
exagerados. “Todos os meus heróis morreram de overdose” é uma sentença de morte por analogia
a “todos os meus heróis eram exagerados”. Um exemplo disto, é a música também intitulada de
Ideologia, a qual Cazuza se baseia em um poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado A
Rosa do Povo (1943) para compô-la. Vejamos que poema é este (a sua primeira parte) e a
composição de Cazuza, podendo assim, compará-los:
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te oculta, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me a cidade dos homens
completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, energéticas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir. (Carlos
Drummond de Andrade)
Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Freqüenta agora as festas do grand mond
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver
O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock’n’roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Agora assiste a tudo em cima do muro
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver (Frejat/Cazuza)
A partir desta comparação, do poema de Drummond e da composição de Cazuza,
podemos dizer que Cazuza estabelece um diálogo amadurecido com Drummond para escrever
sua composição.
A referência ao analista é mais explícita de suas anteriores recusas à análise, por medo
de “perder a inspiração”. Cazuza foi criado em plena ditadura militar, onde tudo era reprimido e
como ele próprio diz: “uma geração desunida”. Algo de extrema importância que ele nos aponta
como falta é que nos anos sessenta as pessoas ainda se uniam por ideologias, partidos em comum
por exemplo. Já em sua geração os jovens não tinham mais essa ideologia e se uniam pelas
drogas, pelo sexo e pelo rock’n’roll.
Ideologia é comunidade, o contrario de solidão, união de pessoas, ser humano, luta pela
sobrevivência, é uma grande maneira de todos se unirem. O contrário da solidão. Quem
inventa idéias, partidos políticos ou coisas assim. São formas de não se ficar só.
(ARAÚJO, 2001. p 166)
Cazuza tinha razão, o adolescente tem dois caminhos possíveis e compatíveis para obter
algum reconhecimento: fazer grupo e fazer estardalhaço, besteiras, exagerar. O melhor é fazer
grupo e com o grupo fazer besteiras, se associar para transgredir. Com efeito, sua transgressão
vira negócio na indústria do disco.É através da sua transgressão que consegue fazer sucesso, na
identificação dos demais jovens com ele, pois suas letras carregam a transgressão, e depois,
analisam o preço a pagar. Por isso Agenor de Miranda Araujo e Cazuza se “irmanam” para fazer
de “ideologia” uma reflexão impiedosa e sincera sobre sua condição e de sua geração.
Como o grupo não é reconhecido pelo social, eles se reconhecem entre eles, assim
transgredindo as leis que são impostas por aqueles que não o reconheceram, é na verdade uma
busca por atenção, por ser escutado.
Paradoxo e dificuldade de relação entre gerações: os adolescentes transgridem – até
gravemente – não para burlar a lei, não na esperança de escapar das conseqüências de
seus atos, mas, ao contrário, para excitá-la, para que a repressão corra atrás deles e assim
os reconheça como pares dos adultos, ou melhor, como as partes escuras e esquecidas
dos adultos. Eles imaginam que, como delinqüentes, serão amados por serem portadores
de sonhos recalcados. (CALLIGARIS, 2000. p 41-42)
O reconhecimento buscado simbolicamente é negado e efetuado assim no real – no uso
de drogas, na transgressão. Que era a “inspiração”, que por sua vez transformava-se, de forma
sublimada e sublimadora, na arte de Cazuza. A geração dos anos 70-80 ligou o uso das drogas à
seus sonhos e idéias de liberação e revolução, tanto pessoal, sexual, como social – uma mostra de
rebeldia, cujos efeitos começaram a ser sentidos no início dos anos 80, a década do excesso, da
cocaína, dos yuppies27.
A droga vem como um auxílio ao desafio, ou seja, no momento em que se usam drogas
se sentem como desafiantes da vida e de todos os riscos que esta traz, mais do que isso, é um
objeto que imaginariamente traz consigo uma pretensão de preencher a sua falta, o seu vazio. E
como falávamos anteriormente, a drogadição traz o risco que antes a política oferecia.
Meus heróis morreram de overdose [...]
O meu prazer
Agora é risco de vida [...]
27
“Yuppie” é uma redução da expressão inglesa "Young Urban Professional", ou seja, Jovem profissional Urbano. O
termo “Yuppie” descreve um conjunto de atributos e traços de comportamento que vieram a constituir um
estereótipo que se acredita ser comum nos EUA. Surgiu na década de 80.
A droga propicia uma conquista de serenidade, ou seja, para o sujeito que dela usufrui, a
realidade das coisas se transforma em uma aventura, onde a harmonia aparece como elemento
essencial. É a partir do delírio que o maior sonho pode se expressar, parecendo realidade. A droga
confere um sentido novo à vida, cuja fugacidade já é por demais conhecida.
Muitos artistas conseguem transformar esse “passeio” alucinado em conhecimento e em
uma via de acesso às trevas, ou como Maria José nos diz: “ao labirinto do imperscrutável”.
COMO EXPRIMIR O QUE o tóxico patenteia? Diante da empresa impossível – a
expressão do estatuto do inconsciente, compete ao iniciado a elaboração de um novo e
também ignorado estatuto da linguagem. Para isso, os artistas levam aos limites da
lógica o transfert, isto é, “a atualização da realidade do inconsciente”. Aqueles aos quais
nada interessa além da experiência do inefável, parece inútil toda retórica. Bastam-lhes a
euforia, o entusiasmo, a vertigem do mergulho no inconsciente. Esse tipo de fruição, ou
deleitação gozosa, encerra na experiência todas as metáforas do desejo. Tudo se resolve
ali, no ato. (QUEIROZ, 1990. p 34)
Aquele que experimente a “vertigem alucinante” entrega-se, encontrando na própria
experiência o “significado soberano”, ou seja, como aquele que sente toda essência de uma
ordem inédita. “O corpo, apto a articulações do significante e do significado: a ordem da paixão
(no sentido primitivo do termo – passio, passionis)”.28 A ordem que consegue transformar o uso
de drogas em meio de conhecimento, gera a própria história do sujeito e a demonstra na obra de
arte. Essa é a maior singularidade do artista. Essa é a grandeza do caminho que vai do Exagerado
até Ideologia.
28
QUIEROZ, 1990. p 36.
3.4 Só As Mães São Felizes e a Reversão ao seu Oposto
Após sair do grupo onde se consagrara, Cazuza ficou cada vez mais ousado, com
atitudes aparentemente desconcertantes e descontroladas. O disco intitulado de Exagerado é uma
prova disto. Ele é o primeiro solo de Cazuza. Neste álbum percebemos uma mudança no seu
estilo musical, pois deixa um pouco de lado a “dor de cotovelo” típica de suas músicas anteriores
e torna o disco mais alegre. Mas o mais significativo é a amplitude dos horizontes, ou seja, o
“poeta exagerado” deixa de compor apenas para um mundinho a dois e passa a compor para o
universo de seus iguais. Começa a considerar aspectos importantes de sua geração,
conseqüentemente, começa a falar mais de coisas abrangentes, demonstrando isso nas letras de
suas músicas. Um exemplo disto é a música intitulada de Só as Mães São Felizes, certamente a
mais barra-pesada de um disco vendido ao mercado fonográfico “normal”.
Você nunca varou
A Duvivier às 5
Nem levou um susto saindo do Val Improviso
Era quase meio-dia
No lado escuro da vida
Nunca viu Lou Reed
“Walking on the Wild Side”
Nem Melodia transvirado
Rezando pelo Estácio
Nunca viu Allen Ginsberg
Pagando michê na Alaska
Nem Rimbaud pelas tantas
Negociando escravas brancas
Você nunca ouviu falar em maldição
Nunca viu um milagre
Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
Nem nunca quis ver a face de Deus
Já freqüentei grandes festas
Nos endereços mais quentes
Tomei champanhe e cicuta
Com comentários inteligentes
Mais tristes que de uma puta
No Barbarella às 15 pras 7
Reparou como os velhos
Vão perdendo a esperança
Com seus bichinhos de estimação e plantas?
Já viveram tudo
E sabem que a vida é bela
Reparou na inocência
Cruel das criancinhas
Com seus comentários
desconcertantes?
Adivinham tudo
E sabem que a vida é bela
Você nunca sonhou
Ser currada por animais
Nem transou com Cadáveres?
Nunca traiu teu melhor amigo
Nem quis comer tua mãe?
Só as mães são felizes (Cazuza/Frejat)
Nesta composição Cazuza “olha” ao seu redor e transcreve o que vê em um poemaverdade. Nas linhas e entre – linhas do poema Cazuza escreve o que muitos gostariam de
esconder. Um exemplo claro é quando fala de uma das ruas de Copacabana, a Duvivier.
Copacabana é um dos bairros mais freqüentado por turistas nacionais e internacionais, a sua praia
é conhecida por seu charme e pelo enorme calçadão que o rodeia, feito de pedras portuguesas
brancas e pretas, compondo um lindo mosaico no formato de ondas. As garotas que a freqüentam
possuem até uma música em sua homenagem, composta por Tom Jobim. A música é intitulada de
“Garota de Ipanema”, mas neste bairro nobre existe um bordel chamado de Barbarella, citado na
música por Cazuza. E neste belo calçadão, onde as “princesinhas de Ipanema” que “no balanço
do mar” desfilam, dividem o mesmo espaço com as “putas do barbarella”, com as quais
obviamente, Cazuza, se identificava.
Neste mesmo bairro existia também o bar chamado de Val Improviso, um bar muito
chique que as pessoas mais ricas da cidade freqüentavam e encontravam os marginais em sua
calçada, lugar onde segundo Cazuza “todo mundo vira irmão” em meio a uma bebedeira. Só que
a bebedeira acaba e a realidade retorna, e daí os ricos da cidade não lembram de nada que
aconteceu, e se encontrarem um marginal, aquele que no dia anterior era seu irmão, é claro não o
reconhecerão. Cazuza não negava sua origem “burguesa”, indo ao Val Improviso, mas buscava
insistentemente as putas do Barbarella.
Essa composição além de apresentar o que é escondido por muitos, sobre um dos bairros
mais importantes e conhecidos do Rio de Janeiro, como ocorre em todo o país, faz uma
homenagem aos poetas e as “pessoas diferentes”. Cazuza cita alguns poetas e compositores
como: Lou Reed (cantor e compositor norte – americano, de rock), Luis Melodia, Allen Ginsberg
(poeta), Rimbaud (escritor) e até o fundador da cidade do Rio de Janeiro recebe uma homenagem,
o Sr. Estácio de Sá. Cazuza irá falar também, só que de uma forma indireta, de Sócrates ao falar
do veneno cicuta causador da morte do filosofo.
Mas, acima de tudo, a composição mostra o lado obscuro da vida. De certa forma
ironizado na frase: “E sabem que a vida é bela”, repetida por duas vezes:
Reparou como os velhos
Vão perdendo a esperança
Com seus bichinhos de estimação e plantas?
Já viveram tudo
E sabem que a vida é bela
Reparou na inocência
Cruel das criancinhas
Com seus comentários
Desconcertantes?
Adivinham tudo
E sabem que a vida é bela
Cazuza usará de frases fortes que, ao serem lidas, ainda desconcertam muitos:
Você nunca sonhou
Ser currada por animais
Nem transou com cadáveres?
Nunca traiu teu melhor amigo
Nem quis comer tua mãe?
Só as mães são felizes...
O título da música só é usado na última estrofe. Só as Mães São Felizes foi inspirada no
verso de Jack Kerouac (tirado do livro Scattered Poems), onde havia esta frase: “Só as mães são
felizes”, que deixou o poeta intrigado. Mas o uso do poema foi apenas para esta frase. Há aí uma
clara identificação de Cazuza com Jack Kerouac. Por quê?
Jack Kerouac, chamado por muitos de “profeta da geração beat”,29 rompeu nos anos
quarenta com os valores da sociedade norte – americana, adotando um estilo de vida pouco
convencional, viajou pelos Estados Unidos, vivendo as experiências que depois relatara em seus
romances autobiográficos. Kerouac escrevia de forma espontânea. Podemos dizer que sua
literatura representa todos os anseios daqueles que buscam uma verdadeira liberdade e não
conformam-se com o sistema que oprime mentalmente. Jack marcou o final dos anos cinqüenta e
preparou a contracultura da década seguinte.
29
O termo beat, originalmente significa “pobre, por baixo, aloprado, doidão, na pior, aquele que dorme no metro (...)
Beat Generation tornou-se o slogan ou rótulo da revolução de costumes na América”. (Queiroz, 1990. p 13-14)
O próprio Cazuza dizia que a letra desta música era “uma coisa moralista pós - Nelson
Rodrigues”, considerava que às mães não era permitido “encarar barras” que os jovens, nesta
transgressão, encaravam.
Pensando nas questões trazidas pela psicanálise poderíamos pensar nesta frase “Só as
Mães São Felizes” como uma interpretação poética ao que ocorre na completude mãe –bebê, ou
seja, as mães serão as únicas a se “completarem – ficarem sem falta” por dois momentos (ou mais
dependendo da quantidade de filhos) na hora em que elas próprias são bebês e na hora que são
mães. Por outro lado podemos pensar na frase “Nem quis comer tua mãe” , como a vivência dos
primeiros anos de vida, que é o Complexo de Édipo, onde o filho terá como primeiro objeto de
amor a mãe. Será que era disto que Cazuza falava? Não sabemos, e essa é a mágia da poesia,
onde nas linhas e entre – linhas podemos fazer as interpretações que nos cabem, mas sem saber
de fato o que o poeta quis dizer. Podemos dizer que “as mães tem que parir duas vezes, quando o
filho nasce e quando este, sai de casa”. Por isso, a referência à maternidade como o oposto à barra
pesada que vivia.
Esta composição é uma das mais polêmicas da carreira de Cazuza, justamente pelos
versos desnudados e também pelo título sendo que, na época que foi composta não passou pela
censura. Podemos dizer que a ordem do significante estaria relacionada à mãe (onde você é igual
à mãe), já o significado é da ordem simbólica do “filho-Cazuza” (“Eu vivi”). Quando Cazuza se
refere “a tua mãe”, é como se inventasse a sua mãe (uma mãe que não “deseja” o pai, mas sim a
própria progenitora, complexo não previsto nem por Freud), ou seja, se refere às outras mães,
mas não a mãe dele, pois sua mãe é intocável.
A primeira vez que Lucinha ouviu a música levou um susto imenso. Pelo nome da
música pensara que ouviria uma homenagem a todas as mães, inclusive a ela. Vejamos seu relato:
Cada verso era como uma bofetada. Com os olhos arregalados, eu olhava para o Ney,
apertava a sua mão e lhe mostrava em meu semblante não estar entendendo nada [...]
Parecia que todo os olhos do Canecão estavam voltados para mim. Ney Matogrosso
disse para eu não ficar nervosa, que a letra era uma imagem, que nada tinha a ver
comigo. (ARAÚJO, 2004. p 203)
Cazuza dizia que quis fazer uma homenagem aos poetas, aos cantores, aos loucos da
vida “gente que barbariza que é santo e demônio ao mesmo tempo”. Isto é, não é “mãe”.
Com efeito, o discurso de Cazuza se demonstraria em sua composição, já o discurso de
Lucinha aparece em seu livro intitulado de Só As Mães São Felizes. Na biografia de Cazuza
percebemos que sua mãe tem um lugar de privilégio, como a maioria das mães possui na vida
dos filhos. Por isso, pretendemos falar brevemente o por que deste lugar de primazia.
Freud já falava da importância da mãe, não apenas nos cuidados básicos do filho, mas
principalmente na importância do amor materno, todavia, a importância também, de alguém que
barre este imenso e muitas vezes devorante amor.
A mãe, como ser da fala, que mostrará o mundo para o filho. É a partir desta fala que
deixará sua marca no filho. É a mãe, ou seu substituto, que apresenta o corpo do bebê , que torna
esse corpo primeiramente só carne, em um corpo simbólico – corpo significante.
Os poderes do verbo vão longe, chegando até a regular o gozo, e desses poderes, a mãe é
a primeira representante, uma vez que é ela quem introduz o filho na demanda articulada
ao impor a oferta em que ela se aliena: a dupla oferta da língua em que demandar, bem
como da resposta que vem do Outro. (SOLER, 2006. p 92)
Como qualquer amor, o amor materno é estruturado na fantasia. Com efeito, a
constância do sujeito-mãe não exclui as conjunturas variáveis da vida e o impacto que estas
podem causar, e também dá margem a leitura que o pequeno sujeito–filho fará delas. “Não nos
esqueçamos de que, para a mãe, tal como para qualquer outro, o desejo sustentado pela fantasia e
o gozo que se apóia nela participam do impossível de dizer, e portanto, só se aproximam por
intermédio da interpretação que o pequeno sujeito faz do discurso que o envolve”.30
Podemos dizer que a mãe é a mediadora do discurso, no qual a sua marca, os seus
hábitos ficaram impressos na vida do filho. Segundo Colette Soler, o sujeito neurótico terá duas
escolhas: “Assumir o mandato materno, fazendo daquilo a que foi prometido no desejo dela, uma
vocação, ou rejeitá-lo e se inscrever sob uma marca de exclusão, só afirmando o que lhe resta de
liberdade, portanto, sob a forma do negativo”.31 A partir disto, podemos nos fazer uma questão, a
qual não tem a pretensão de ser respondida, mas fica para refletirmos: Qual a escolha de Cazuza?
Descrevendo o mundo “vedado” à sua mãe, faz por ele o percurso “barra-pesada” de
Copacabana, revertendo-se no seu oposto: “Eu o filho transgressor vou até onde minha mãe
jamais poderá ir”.
Através do discurso materno, como falávamos, que o indivíduo – só corpo – se estrutura
como sujeito e como ser de discurso, o qual estará moldado pelos significantes maternos “fadado
30
31
SOLER, 2006. p 94.
SOLER, 2006. p 97.
a assumir as quimeras e sonhos da mãe, e até as prescrições secretas do discurso materno”.32
Pode resultar disto, grandes vocações, sobretudo no campo da sublimação. Pois, o sujeito – filho
estará menos a serviço do erotismo da mãe que do narcisismo dela.
Como se sabe, Lucinha quis ser cantora. Tendo em mente o sofrimento pessoal da barra
pesada, das putas, dos traficantes e dos banheiros sujos, Cazuza assume o seu lugar de filho
onipotente (artista/louco/marginal) para que ela não sofra com esta condição. É uma canção de
amor filial na extensão suprema do termo, o filho assume o risco do talento abafado da mãe.
Podemos concluir que a mãe tem um valor incalculável para o filho, pois sem ela muito
provavelmente não se sobreviveria como sujeito. Porém para isto também é necessário que a mãe
e seu amor de mulher esteja referindo a um nome. “Só há amor por um nome, dizia Lacan: no
caso, o nome de um homem, que pode ser qualquer um, mas que, pelo simples fato de ser
nomeável, cria um limite para a metonímia do falo, assim como poderá ser inscrita num desejo
particularizado”.33Daí só “as mães” serem felizes. Permite-se assim, que o filho constitua um
desejo próprio, o qual engloba o desejo dos pais – especialmente o da mãe – mas que não seja o
desejo puro da mãe, pois se isto ocorresse o filho estaria fadado a uma morte subjetiva. Esta
situação é encenada pelo filho que vai a todos os lugares “condenados” pela mãe, para que ela
nunca tenha de ir lá, nem buscá-lo, é um retorno ao útero da mãe, transformando-se no que ela
“não –é nem nunca poderá ser”.
32
33
SOLER, 2006. p 103.
SOLER, 2006. p 103.
3.5 O Tempo Não Pára: União da Pulsão de Vida e da Pulsão de Morte
Disparo contra o sol
Sou forte sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou o cara
Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara
Mas se você achar
Que eu to derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não pára
Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta
A tua piscina ta cheia de ratos
Tuas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não pára
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
Não pára, não, não pára
Eu não tenho data pra comemorar
À vezes os meus dias são de par em par
Procurando agulha no palheiro
Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro
A tua piscina ta cheia de ratos
Tuas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não pára
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
Não pára, não, não pára (Arnaldo Brandão/Cazuza)
Essa composição nasceu em 1987. Caju já estava doente, e em poucos dias iria mais uma
vez para o hospital em Boston tentar prolongar o seu tempo de vida. Cazuza e os demais jovens
de sua geração vinham de um período marcado pela ditadura militar.Logo após o término desta a
esperança brotava, porém, com os passar do tempo e a visão de que nada que melhorasse a nação
acontecia, fazia com que a desesperança, em relação a um futuro melhor reinasse. Isto pode ser
percebido especialmente em dois gestos de Cazuza: o primeiro ocorreu no Rock’n’ Rio, onde se
abraçou na bandeira para cantar; O segundo momento foi quando cuspiu na bandeira brasileira
em quanto cantava sua música Brasil em um de seus shows da fase “assumida”. Vejamos o que
disse sobre este seu ato:
Está havendo uma polêmica, um escândalo, como diz o JB de terça-feira, 18 de outubro,
com o fato de eu ter cuspido na bandeira brasileira durante a música Brasil, no meu show
domingo no Canecão. Eu realmente cuspi na bandeira, e duas vezes. Não me arrependo.
Sabia muito bem o que estava fazendo, depois que um ufanista me jogou a bandeira da
platéia.
O senhor Humberto Saad declarou que eu não entendo o que é a bandeira brasileira, que
ela não simboliza o poder, mas a nossa história. Tudo bem, eu cuspo nesta história triste
e patética.
[...]
Será que as pessoas não têm consciência de que o Vietnã é logo ali, na Amazônia, que as
crianças índias são bombardeadas e assassinadas com os mesmos olhos puxados? Que a
África do sul é aqui, nesse apartheid disfarçado em democracia, onde mais de cinqüenta
milhões de pessoas vivem à margem da Ordem e Progresso, analfabetos e famintos?
Eu sei muito bem o que é a bandeira do Brasil, me enrolei nela mo Rock’n’Rio junto
com uma multidão que acreditava que esse país podia realmente mudar.
A bandeira de um país é o símbolo da nacionalidade para um povo.
Vamos amá-la e respeitá-la no dia em que o que está escrito nela for uma realidade. Por
enquanto, estamos esperando. (ARAÚJO, 2004. Pg 247-248)
Percebemos neste depoimento que não há muita esperança em um futuro melhor, onde
os projetos para o futuro se tornam quase ausentes. Por isso, os jovens dos anos oitenta investiam
no presente, viver o dia-a-dia da forma mais intensa possível, era a regra.
Parece que para “esquecer” ou encobrir o lado obscuro da vida, os jovens passaram a
valorizar o risco e a diversão, aproveitando o momento sem grandes preocupações com o futuro,
pois o que vale é o agora. Segundo José Machado Pais, o risco funcionaria como um filtro
hermenêutico dos atos a que se relacionam, ou seja:
Correr um risco é também fazer correr a capacidade de correr esse risco porque o risco é
portador de um poder que valoriza o jovem que se confronta com ele. A transgressão
marca ainda uma vontade de escapar à conformidade, e, neste sentido, a propensão ao
risco é também efeito de comportamentos socializados que produzem uma resistência
rebelde à adversidade. (PAIS, 2006. p 12)
O Tempo Não Pára vem de acordo ao que era vivido, ao mesmo tempo em que se queria
parar o tempo e viver o momento, este não dava trégua, e não parava, a doença progrediria até o
fim do seu curso.
Por outro lado, esta é a composição que mais reflete a ambivalência de sentimentos que
Cazuza vivia, como fora composta em um dos momentos mais difíceis de sua vida, demonstra
uma ambivalência de sentimentos, pois ao mesmo tempo em que representa uma luta um
otimismo pela vida, demonstra também uma mágoa, uma descrença, uma tristeza, pois o tempo
agravava os sintomas inexoráveis da aids. É uma união da pulsão de Vida e da pulsão de morte
que aflorava em Cazuza, no momento em que paradoxalmente a morte se aproximava e a vontade
de viver aumentava. Ver o futuro, repetir o passado e não poder mudar nada instaura a visão do
“cara cansado de correr na direção contrária”.
O tempo na poesia é singular. Quando o poeta fala de tempo, do seu tempo, da sua
experiência no “hoje”, ele faz de forma especial, que não é a mesma do senso comum –
ideologizado –, mas é feito de forma que fica na memória, infinitamente rica da linguagem.
Parece que o poeta – podemos expandir e nos referir ao artista em geral – tira do passado e da
memória o direito a existência, “não de um passado cronológico, mas de um passado presente
cujas dimensões míticas se atualizam no modo de ser da infância e do inconsciente”.34
Em O Tempo Não Pára a poesia tem um caráter de passado e uma imagem do futuro.
Muitas vezes, parece que o poeta consegue “prever” o que está por vir, e traduz isso em seu
poema (ou em sua obra de arte). Porém, não é premunição o que ocorre, mas a sensibilidade e a
capacidade de perceber coisas, momentos, sentimentos, que pessoas “comuns” não percebem ou
percebem de forma superficial. Por isso, muitos artistas estão aquém do seu tempo e não são
reconhecidos no momento em que produzem sua obra de arte. O sucesso, ou reconhecimento,
ocorre anos ou décadas mais tarde, após a morte do artista. Após este momento de “descoberta” o
reconhecimento desta obra de arte é eterno, já que aquele que a produziu conseguiu eternizar um
momento, ou até mesmo uma geração. Curiosamente a música “o tempo não pára” pára o tempo
cada vez que é repetida, pois eterniza o instante em que o poeta se afasta do “Carpe Diem”
(aproveite o momento). Nesta música o tempo derrota o homem–Cazuza para tornar viva sua
poesia, sua música, sua arte.
A apreensão da vida real ocorre mediante a imagem e o discurso. Alfredo Bosi nos diz
que a imagem vem transposta para a clave do signo lingüístico, o qual se constitui de um ou mais
significados e de um significante sonoro, que imerge no fluxo do tempo vocal.
Logo, há entre o poeta e o campo da experiência não só a mediação imagística como
também as várias mediações do discurso: o tempo, o modo, a pessoa, o aspecto, faces
todas que a predicação verbal configura. (BOSI, 1983. p 115)
34
BOSI, 1983. p 112.
Podemos dizer que o poeta, ou o artista, é o pioneiro a dar, através de sua obra de arte,
um significado histórico às suas representações e expressões. Nosso objetivo, neste trabalho, não
é o de saber até que ponto ele (artista) tem consciência deste processo. A nossa pretensão é de
poder colher o significado que a obra de arte deixa – a obra de arte de Cazuza, lugar onde o corpo
derrotado pela pulsão de morte sobrevive na arte que sublimou este desejo e, que, incorpórea no
imaginário de cada ouvinte a vida e a pulsão que a gerou.
CONCLUSÃO: “– Vou viver pelo menos até uns 70 anos...”
O segundo que passou é tão passado como o início do mundo. Está congelado. O
passado serve como referência, mas não posso melhorá-lo. Isto é terrível, porque não
posso resgatá-lo. É intocável. Entrou no infinito. Essas coisas chegam até nossa
consciência como a luz das estrelas que não existe mais. Tudo que nós fazemos é para
reter o tempo, para dominá-lo. O homem quer dominar o tempo, mas somos sempre
consumidos pelo tempo. (Iberê Camargo)
Lacan, baseando-se na teoria freudiana, construiu sua teoria sobre a origem da atividade
de produção de sentido, de ligação, colocando a questão da constituição do Eu a partir da relação
com o Outro. Assim, os sofrimentos que o sujeito enfrenta, devido a vários fatores – nesta relação
com o Outro –, nos aponta que as questões relativas à intensidade e excesso pulsionais são
fundamentais para a superação deste sofrimento. Ao sujeito resta realizar um trabalho de ligação,
constituindo destinos possíveis para as forças pulsionais. Acreditamos que a obra de arte é o lugar
que consegue, de uma melhor maneira, isto. Ela possibilita a ordenação de circuitos pulsionais,
que assim, conseguem inscrever a pulsão no registro da simbolização e de sua circulação como
objeto estético e de prazer.
É neste contexto que o conceito de sublimação apresentado por Freud, tem importância
fundamental. O autor compreende a obra de arte como um substituto ao que foi o brincar infantil.
Será a partir da sublimação que as grandes obras de arte se originaram. Podemos pensar a arte
como uma exteriorização do conhecimento imaginativo do sujeito, que por meio de sua obra
consegue expor seu conhecimento ao mundo externo, já que a arte nasce do inconsciente do
criador.
Posteriormente ao conceito de sublimação Freud elaborou o conceito das pulsões de vida
e pulsões de morte. Será a partir deste conceito que passamos a considerar a mudança de objeto
da pulsão o atributo fundamental na reordenação do circuito pulsional. Com efeito, será a pulsão
de morte, uma vez não articulada no registro da linguagem, que imporá ao sujeito a necessidade
de inscrição no campo simbólico.
Freud se refere à pulsão como sendo uma força que necessita ser submetida a um
trabalho de ligação e simbolização para que possa se inscrever no psiquismo. É a partir disto que
vem a relevância da experiência artística. Onde, ao mesmo tempo em que as coisas são
inalcançáveis pela arte, institui-se um lugar onde não só intensidade e excesso pulsionais têm a
possibilidade de se fazer presente, como há também a possibilidade de, por meio da criação
artística, estruturar a realidade de modo pessoal e estilizado, constituindo destinos possíveis para
as forças pulsionais, ordenando circuitos e inscrevendo a pulsão no registro da simbolização.
Podemos assim, pensar o ato de criação, como criação de um sujeito. Pois a arte
encontra-se na inscrição da pulsão – no registro da simbolização. É apartir da crença de que a arte
é um lugar que possibilita a representação da pulsão, que este trabalho foi construído. E sendo
assim, a arte torna-se também um lugar psíquico de constituição da subjetividade. Para
demonstramos isto, descrevemos, brevemente, a vida de um artista e sua obra de arte, da qual
tentamos exemplificar esta possibilidade. Foi em sua obra de arte que Cazuza possibilitou uma
“materialização” do tempo, ou de uma geração – conseguindo assim, a perpetuação das suas
composições.
A última composição que Cazuza gravou, fazendo parte do seu último disco intitulado
de Burguesia, é: Quando Estiver Cantando:
Tem gente que recebe Deus quando canta
Tem gente que canta procurando Deus
Eu sou assim com minha voz desafinada
Peço a Deus que me perdoe no camarim
Eu sou assim
Canto pra me mostrar
De besta
Ah, de besta
Quando eu estiver cantando
Não se aproxime
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio
Quando eu estiver cantando
Não cante comigo
Porque eu só canto só
E o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação
Porque o meu canto redime o meu lado mau
Porque o meu canto é pra quem me ama
Me ama, me ama
Quando eu estiver cantando
Não se aproxime
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio
Quando eu estiver cantando
Não cante comigo
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio
Porque o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação
Porque o meu canto é o que me mantém vivo
É o que me mantém vivo (Cazuza/João Rebouças).
Nesta “última música, do último lado, do último disco de Cazuza” ficam explícitas as
razões sobre porquê 16 anos após sua morte sua obra ainda exerce tanto fascínio sobre as novas
gerações, servindo como um espelho de uma época cujos efeitos de sentido a psicologia atual
jamais poderá se afastar, para entender o que nos mantêm vivos em pleno século XXI.
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Poesia, Subjetividade e Édipo na Produção Musical de Cazuza