Estudo sobre ações judiciais para fornecimento de medicamentos (29/01/2008 12:10:00) Entrevista - Dr. Luís Roberto Barroso (elaborou estudo a convite da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro) As decisões judiciais que obrigam o Poder Público a fornecer medicamentos e tratamentos que não estão provisionados têm comprometido o orçamento da Saúde e, em conseqüência, o andamento de programas de combate e prevenção de doenças, afirma o advogado constitucionalista e professor Luís Roberto Barroso, que, a convite da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, elaborou estudo sobre o tema. De acordo com o especialista, o governo fluminense se vê obrigado a destinar quase 20% dos recursos do setor para atender as demandas individuais asseguradas por essas determinações. Na opinião dele, chegou a hora de o Judiciário racionalizar sua atuação. Apesar de ser a favor da intervenção da Justiça para garantir o fornecimento de remédios que a própria administração se propôs a fornecer, Luís Roberto Barroso afirma: em relação aos remédios não previstos, as ações têm que visar ao interesse coletivo. ``Se o medicamento não consta na lista, o que se deve postular é a inclusão dele mediante ação coletiva. Todos serão favorecidos``, argumenta o constitucionalista, destacando a necessidade de a própria sociedade estar atenta à elaboração do orçamento para a área. ``É preciso que a sociedade, democraticamente, defina alguns critérios para alocação desses recursos``, afirma. Ação do Judiciário na Saúde JORNAL DO COMMERCIO - Em seu estudo o senhor fala que há, no Judiciário, decisões extravagantes que condenam a administração a custear tratamentos não razoáveis. Por que o senhor chegou a essa conclusão? LUÍS ROBERTO BARROSO - Não é que todas as decisões sejam extravagantes. Até há algumas, como, por exemplo, as que visam ao custeio de terapias fora do Brasil, às vezes experimentais ou extremamente onerosas. No entanto, o grande problema não é propriamente esse, mas administrar o setor de Saúde, que envolve alocação de recursos escassos. É preciso que a sociedade, democraticamente, defina alguns critérios para alocação desses recursos. Em um mundo ideal, toda e qualquer pessoa deveria ter direito a todo e qualquer tipo de tratamento de que necessite. Isso, evidentemente, é uma utopia. As utopias nos ajudam a caminhar, mas não resolvem os problemas reais. O que temos que fazer é partir da seguinte premissa: os recursos são escassos e temos que estabelecer critérios para a sua aplicação. Um dos argumentos dessas ações é o de que o cidadão tem direito à saúde. Em seu estudo, o senhor destaca, porém, que esse direito depende de políticas sociais e não das decisões judiciais. O senhor não acha, então, que essas ações deveriam focar a falta de investimentos? - Não acho que haja erro no foco das ações. As ações são compreensíveis e legítimas. As pessoas que precisam, mas não têm recursos para adquirir o medicamento, procuram a satisfação de suas necessidades. Por isso, no meu estudo não há qualquer crítica a quem postula. Apenas estou discutindo os limites e possibilidades da atuação do Estado. Em relação às políticas públicas, existem recursos mínimos previstos na Constituição e na legislação a serem aplicados. Se não houver uma política pública, ou se ela for manifestamente deficiente, o Judiciário deve intervir. Agora, se o legislador e a administração pública estão, por exemplo, enfrentando a questão do vírus HIV mediante a compra de coquetéis e a distribuição de preservativos, acho que não cabe ao Judiciário dizer ``ao invés dessas políticas o que precisamos é de uma campanha educativa e da construção de um novo hospital``. No que a decisão do legislador e do administrador for razoável, ela deve ser respeitada. De um modo geral, o senhor acha que realmente há interferência do Judiciário em relação às questões da Saúde? - Acho que há interferência do Judiciário, e isso não é um problema em si. Acho que em certas situações o Judiciário pode e deve intervir. Se não houver política pública em relação a um determinado problema, acho que o Judiciário pode intervir. Se o Estado ou o município não estiver fornecendo algum dos medicamentos da lista do SUS, o Judiciário deve determinar o fornecimento. O que estamos discutindo é a situação em que o Judiciário determina tratamentos ou o fornecimento de medicamentos diferentes dos previstos. Quais são as conseqüências dessas decisões? - A conseqüência é ter que destinar parte do orçamento da saúde para atender essas decisões. Como os recursos são escassos, acaba-se tirando parcela destinada a outro programa. No Rio de Janeiro, por exemplo, as decisões judiciais já interferem de 15% a 20% do orçamento destinado à compra de medicamentos. Ou seja, você retira de 15% a 20% do programa geral para atender demandas individuais. Esse é o maior problema. Na sua avaliação, qual deve ser então a postura dos magistrados ao analisar esses casos? - Concordo que a situação do juiz é muito difícil. Ele lida com um caso específico, que envolve pessoas, com sentimentos e aflições. É muito difícil o juiz ficar indiferente a isso. Portanto, o meu estudo não é uma crítica ao Judiciário nem às suas intervenções. O meu estudo é uma tentativa de deflagrar um debate que permita ao Judiciário estabelecer determinados parâmetros para a sua própria atuação. A situação do juiz diante do caso concreto é muito difícil, embora em certas situações ele precise levar em conta que salvar a pessoa que ele está vendo pode ser o mesmo que matar outras duas ou três que ele não está vendo. Portanto, não há uma solução moralmente fácil nesse debate. São verdadeiramente escolhas trágicas. Quais as suas propostas? - Basicamente duas. A primeira é a de que todo medicamento que o Poder Público se obrigou a fornecer ,seja considerado estratégico, excepcional ou de atenção básica, tem que se fornecido. Se não for, a pessoa que precisar deve ingressar com uma ação individual para receber o remédio. O Poder Público tem o dever jurídico de oferecer uma gama de medicamentos e, se não o fizer, o Judiciário deve determinar. A segunda proposta é mais complexa: é a de que o Judiciário não deve determinar, por meio de ações individuais, o fornecimento do medicamento que não consta na lista, ou por omissão ou porque o Poder Público entendeu que não deveria constar. Se o remédio não consta na lista, o que se deve postular é a inclusão dele na lista mediante ação coletiva, a ser proposta pelo Ministério Público, entidade de classe ou uma organização não governamental que congregue portadores de uma de uma determinada doença e que não estão sendo atendidos. Qual é a vantagem disso? Ao se obter a inclusão do medicamento na listagem, todas as outras pessoas que se encontram na mesma situação serão aproveitadas. Se o medicamento for incluído na lista, todos serão favorecidos. Portanto, o que se faz é acabar com situações individualizadas e de privilégio. O senhor concorda que a solução deveria partir do próprio Poder Público, uma vez que a judicialização da Saúde ocorre justamente porque o Estado não está cumprindo o seu papel? - Certamente acho que as políticas de saúde, infelizmente, não atendem as demandas da sociedade. Porém, isso também é verdade em relação às políticas de educação, habitação e a muitos outros setores. E talvez isso seja verdade também em outros países do mundo. Fazer política e administrar é, em última análise, fazer escolhas de investimento e alocação de recursos. Acho que a saúde é um seguimento muito importante, mas evidentemente o Estado tem outras necessidades. Nem o país mais rico é capaz de fornecer medicamentos e tratamentos adequados e altamente sofisticados para todas as pessoas. Portanto, as soluções ideais ficam no plano ideal, pois quem tem o dever de administrar as situações concretas precisa fazer escolhas. A discussão sobre o quanto de recurso deve ser alocado para a saúde e como deve ser investido é importantíssima. Aliás, o grande espaço democrático negligenciado no Brasil é precisamente a confecção do orçamento. Não tratamos o orçamento, nem antes quando da sua discussão nem depois quando da sua execução, com a dignidade que ele merece. A que conclusões o senhor chegou em seu estudo? - A minha posição é a de que o Judiciário pode e deve intervir e participar desse debate. O que estamos discutindo são os parâmetros que devem ser adotados para que as decisões judiciais favoreçam o maior número de pessoas. Acho que deveria haver padrões para que o Judiciário possa fazer mais do que justiça individual, mas para que possa ajudar a fazer uma justiça que aproveite a todos. GISELLE SOUZA Fonte:JORNAL DO COMMERCIO - DIREITO & JUSTIÇA