Ensaio sobre a Liberdade e Teoria Psicanalítica BREDER, Bárbara Este trabalho objetiva compreender se há possibilidade de liberdade no campo psicanalítico, tendo em vista o nascimento cativo do sujeito em relação ao lugar simbólico a ele ofertado. Ou ainda, se existe possibilidade de liberdade em uma sociedade formada às custas da abdicação da satisfação pulsional, da felicidade e da liberdade, já que esta, segundo Freud, não constitui um dom da civilização. Para tanto, iremos realizar um rápido percurso em Freud e em Lacan. A definição de liberdade que nos guiará em nosso estudo será a que extraímos do texto “Um ensaio sobre a consciência do mal” (1995) de Alain Badiou e que está intimamente vinculada ao conceito de homem imortal. Para Badiou, se o homem reconhece a si mesmo como vítima, “de besta sofredora”, assimila sua subestrutura animal, sua pura e simples identidade de ser vivo. Em contrapartida, se supera esta existência, e se configura como ser imortal, opondo-se ao simples ser-para-morte, se singulariza na vaga, multiforme e voraz vida. “A subjetivação é imortal e constitui o homem.” (Badiou, 1995, p. 24). Freud irá ocupar-se deste tema em “Mal Estar na Civilização” de 1929, no qual desenvolve as sendas da inserção do homem na sociedade, de início, vemos delinear os processos de formação do ego considerado sob o prisma da ilusão e do imaginário. Freud indica que o desejo pela liberdade dar-se-á sobre duas formas: a primeira coaduna com a civilização, se impõe como revolta a alguma injustiça e objetiva seu aprimoramento. A outra refere-se à personalidade original 1 e se confronta com o desenvolvimento da civilização e lança-se contra as formas de exigências específicas desta e está abstraída na constituição da civilização, na medida em que faz resistência a ela e alia-se aos esforços da Pulsão de morte que possui como seu maior representante a agressividade, e é sobre ela que recai a coibição de realização. A fim de inibi-la, esta força é reenviada, segundo Freud, para onde veio, isto é, para o próprio ego, originando o superego e o sentimento de culpa que o segue. A pungente necessidade de dominar a natureza e ter as relações mediadas e regulamentadas resulta na canalização da agressividade para o próprio ego, imbricando na formação de um superego algoz que passa a culpabilizar o ego, não apenas pelo seu ato, mas, também, por suas intenções. Desta forma, a renúncia instintiva não se faz suficiente, uma vez que, o desejo persiste e 1 Quando ego e mundo externo estão indiciados. não pode ser escondido do superego. Podemos, portanto, localizar a liberdade apartada no nível da realização pulsional e também na própria constituição do sujeito, uma vez que seu superego pressiona, não permitindo liberdade, nem ato e nem desejo, configurando-se como uma autoridade interna que agencia o sentimento de culpa. Que não é sentida como tal, parte permanece inconsciente, enquanto a outra aparece sob forma de mal-estar. Por fim, Freud ressalta que o preço que os homens pagam por seu avanço é a perda de felicidade, o sentimento de culpa e somando, a supressão da liberdade.2 Ou seja, se por um lado o processo que nos humaniza, nos aparta do mundo natural e nos permite a inserção na cultura, por outro, nos impõem certa fixidez e limitação da forma de estar no mundo. Se pensarmos a partir de Lacan, compreenderemos a constituição do sujeito lançando em cena os três registros forjados por ele, a saber, real, simbólico e imaginário; Tendo em vista seu caráter coeso, sua existência que só é possível de forma tridimensional - através do nó borbomeano. O texto Estádio do Espelho de 1936 nos mostra os efeitos formadores da Gestalt sobre o organismo, que em sua insuficiência orgânica em relação à realidade, experiência uma pré-maturação que marca o nascimento do homem. A partir deste fenômeno precipita-se da insuficiência a antecipação de uma forma de totalidade corporal. “(...) e para uma armadura enfim assumida de uma realidade alienante que marcará com estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental (...) quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu” (ibid., p. 100). Daí, depreendemos que há uma alienação determinante do indivíduo, de tal forma rígida que irá reduzir as possibilidades do devir do sujeito. Porém, este processo de identificação perpassa por uma mediatização cultural que é realizada pelo campo simbólico. Lacan ressalta que se for definir o momento em que o indivíduo se torna humano é justamente no momento em que entra na relação simbólica, que é eterna. E que a característica do sujeito do inconsciente é a estruturação simbólica. Porém, não é o sujeito que fomenta o jogo do símbolo, ele se organiza independente do suporte humano. Cabe ao sujeito tomar um lugar e desempenhar o seu papel. Ele próprio é um elemento desta cadeia 3 que se organiza em diversas leis. “Assim, o sujeito está sempre, em diversos planos, preso em redes que se entrecruzam”. (Lacan, 1954, p.243) Podemos ressaltar, portanto, a posição cativa do sujeito em relação à rede simbólica, destacando que qualquer coisa de real sempre pode sair, porém, uma vez 2 3 Adeno nosso. A função simbólica constitui um universo no interior do qual tudo o que é humano se ordena. instaurado o campo simbólico, o que escapa não pode ser qualquer coisa. Assim como o sujeito é cativo em relação a sua posição na cadeia significante, também o é em relação a seu desejo. Uma vez que o desejo surge no momento em que é encarnado em uma palavra e o sujeito é alienado em relação ao campo simbólico, o é também em relação a seu desejo, na medida em que desconhece sua origem. O sujeito não pode desejar senão em dissonância com si próprio, sem ver o objeto lhe escapar em um deslocamento infinito. É justamente por um sujeito “desafinado” e despedaçado por este ego, que os objetos são desejados. Em síntese, o sujeito se produz a partir de sua fala, no momento que adquire uma posição ativa em relação a sua enunciação, em detrimento à alienação passiva que apresentara em relação a sua história. Esta virada de perspectiva é acionada pelo campo real que excede as redes simbólicas, não estando regido por elas, comportando, assim, a dimensão da indeterminação, sendo abonado do domínio da lei. Desta forma, o Homem Imortal é incauculável e está imbricado na ordem do acontecimento, de ruptura e é capaz de habitar, mesmo que por um instante, o furo da significação na medida em que não pode ser completamente delimitado, previsto, cartografado pela linguagem, - puro ato. Assim, o homem livre é o homem que sustenta sua imortalidade, que suporta trabalhar pelo advento das possibilidades insuspeitas, de pensar que pode ser em ruptura com o que é - ruptura das crenças, das identificações imaginárias. As possibilidades de ser, através da retração do imaginário, permitem lançar um novo olhar sobre o sintoma, permitindo um giro de posição em relação à posição de vítima, de ser-para-a-morte, e da retificação do mito. É neste ponto que devemos situar a dimensão da liberdade, na medida em que, apesar de haver certa determinação simbólica estabelecida, é na dimensão do ato que o sujeito emerge, toma a palavra e trás à cena a dimensão do real, que este sim, não é determinado. “Não nos apressemos, antes de saber, e notem isso que um ato, um verdadeiro ato, tem sempre uma parte de estrutura, por dizer respeito a um real que não é evidente.” (Lacan, 1964,p.52). A liberdade existe na psicanálise, na medida em que concebe o sujeito como efeito da articulação de três registros. Logo, apesar de o sujeito ser cativo em relação à postura de seu nascimento, à cadeia simbólica que lhe precede e às identificações imaginárias vinculadas a este lugar na linguagem, possui certa parcela de liberdade quando o sujeito responde a este lugar pré-determinado, em ato, nascido no campo real. Por isso, a possibilidade de liberdade evidencia a articulação daquilo que é da ordem do ato, mas que não se concretiza sem uma passagem pelo Outro. Ou seja, não se trata de determinismo nem de voluntarismo. Na psicanálise não se trata de um sujeito completamente livre, tampouco determinado para sempre, na medida em que a própria clínica promove a retomada de posição do sujeito em relação ao seu sintoma. A própria teoria psicanalítica se constitui em liberdade, uma vez que “Freud avança sustentado por certa relação a seu desejo e pelo que é seu ato.”. (Lacan, 1964,p.50).