21 mm
PAUL WEBSTER
(1937–2004),
jornalista conceituado, foi, durante mais de 30 anos,
o correspondente do jornal The Guardian em Paris..
Autor de várias biografias de personalidades de renome
— como é o caso de Mitterrand, L'autre histoire —, foi
a biografia do autor de O Principezinho que lhe valeu a
projeção internacional ao ser traduzida e publicada em
diversas línguas.
Poucas personalidades do século XX inspiraram tanto a investigação por
parte de historiadores e biógrafos. Esta biografia traz de volta à vida um
herói, um homem apaixonado que combinou a carreira perigosa de aviador
com a de autor de clássicos como O Principezinho.
ISBN 978-989-668-258-3
Veja o vídeo de
apresentação
deste livro.
www.vogais.pt
9 789896 682583
Biografias/Memórias
Vida e Morte do Principezinho
Em julho de 1944, durante a Segunda Guerra
Mundial, um avião de reconhecimento da Força Aérea
Francesa desapareceu no Mar Mediterrâneo. O corpo
do piloto nunca foi encontrado. A aeronave era um
dos aparelhos mais rápidos e modernos da aviação
aliada, um P-38 Lightning americano. Aos comandos
ia Antoine de Saint-Exupéry. A sua morte, aos 44
anos, ficou assim envolta para sempre em mistério e romantismo.
Todo o percurso de Saint-Exupéry é recheado de aventuras e episódios
fascinantes, até porque a sua vida abrange os mais controversos anos da história
francesa. E se por um lado era um aristocrata, com o título de Conde, que representava toda uma classe em extinção, por outro lado foi um corajoso pioneiro da
aviação e um aclamado romancista, que privou com as personalidades mais
importantes do século XX.
Baseada numa investigação meticulosa, esta biografia relata todos esses detalhes.
Com uma escrita empolgante, revela também novas informações que irão fascinar
quer os leitores mais aventureiros quer os mais apaixonados. E surpreender os fãs de
O Principezinho!
ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
Embora fosse um jornalista talentoso
e altamente reconhecido, ele era muito
mais do que isso. Por detrás de uma grandee
modéstia, a sua capacidade de desbravar novos
vos
caminhos, na última década da sua vida, fez dele
um autor de grande reputação, por trazer a lume uma
nova e importante visão sobre os conturbados tempos
da guerra em França, país que o acolheu desde 1974.
«Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós.
Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.»
Antoine de Saint-Exupéry, in O Principezinho
PAUL WEBSTER
A biografia que revela os acontecimentos que deram origem
às personagens e histórias de O Principezinho
A biografia definitiva e apaixonante do autor
de O Principezinho , o livro que inspira gerações
BIOGRAFIA
A
ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
«Esta é uma biografia que possui todas as qualidades:
uma investigação meticulosa, bem escrita e repleta
de revelações psicológicas perspicazes.
O livro é tão bom que nos deixa a ansiar por mais.»
Sunday Telegraph
Vida e Morte do Principezinho
PAUL WEBSTER
«Paul Webster escreveu uma biografia fascinante,
ao incluir uma nova investigação sobre a vida e uma
análise cuidada sobre os extraordinários livros que
com ela se enredaram.»
Literary Review
«A biografia de Webster está escrita de forma
encantadora e revela uma investigação impressionante.»
International Herald Tribune
«Esta biografia está recheada de revelações.»
Le Figaro
«Uma biografia enérgica, simpática e vigorosa.»
Scotsman
«Webster percorre habilmente toda a carreira
de Saint-Exupéry, mas mantendo sempre
os seus próprios pés bem assentes na terra.»
Financial Times
ÍNDICE
Agradecimentos
Prólogo
O último voo
9
PRIMEIRA PARTE
1900–1930
15
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Cinco crianças num jardim
Olhar a morte de frente
O céu é nosso
Uma batalha perdida
Uma namorada entre outras
Uma ideia precisa do nada
O navegador perdido
7
17
35
57
75
89
111
133
SEGUNDA PARTE
1931–1939
153
Capítulo VIII A viúva de Gomez Carrillo
Capítulo IX Felicidade, liberdade e dever
155
169
Capítulo X Wadi Natroun
Capítulo XI Terra dos Homens
195
213
TERCEIRA PARTE
1939–1944
233
Capítulo XII Voo para Arras
Capítulo XIII O homem que não acreditava
Capítulo XIV O Principezinho
Capítulo XV O peregrino do céu
235
257
283
295
Epílogo
As buscas
311
Bibliografia
315
PRÓLOGO
O último voo
P
or volta do meio-dia do último dia de julho de 1944, a Riviera
fervilhava em pleno verão com um céu sem nuvens que
se estendia sobre um mar também azul até às ravinas da
Córsega. Viviam-se os últimos dias de uma paz enganadora; as tropas aliadas preparavam-se para atravessar o Mediterrâneo e libertar a Provença da ocupação alemã. Este tempo magnífico era como
uma bênção antes do início da batalha, uma última prenda para
todos, exceto para um aviador solitário de regresso à Córsega após
um longínquo voo de reconhecimento ao longo do vale do Ródano.
Os meteorologistas da Força Aérea tinham previsto uma cobertura
nebulosa junto à costa suscetível de o ocultar dos caças alemães.
Ao contrário das previsões, o céu limpo prestava-se perfeitamente
a uma emboscada aérea.
O aviador solitário era Antoine de Saint-Exupéry, que, ao longo de
mais de 20 anos de voo, tinha sido vítima de vários acidentes, cujas
marcas podiam dar uma vantagem inesperada a um eventual atacante.
Devido à sua corpulência, apertado num fato volumoso, ele acomodava-se como podia no reduzido espaço da cabina de pilotagem. Era-lhe
impossível voltar-se para observar o aparecimento do inimigo sem suscitar a dor das suas feridas antigas. Pela mesma razão, era-lhe impossível utilizar o para-quedas numa emergência. Debaixo de ataque,
Saint-Exupéry não tinha outra alternativa senão tirar o máximo partido
191
ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
E
MORTE
DO
PRINCIPEZINHO
das excecionais capacidades de velocidade e elevada altitude do seu
P-38 Lightning, ou despenhar-se-ia com ele.
Alguns minutos após o meio-dia, a silhueta caraterística do Lightning
com a sua asa dupla surgiu rugindo a baixa altitude a oeste de Nice,
virou na direção do Mediterrâneo e desapareceu entre Nice e Toulon.
Na peugada do Lightning, os caças alemães abdicaram de um mergulho
no mar e regressaram à base para relatarem o sucedido.
Saint-Exupéry podia ter escapado à emboscada se não tivesse
cedido à sua nostalgia irresistível, um tema caraterístico dos seus
principais livros. A missão de reconhecimento fotográfico do vale do
Ródano tinha começado em Bastia, no Norte da Córsega, às 8h45 de
31 de julho, e levara-o para leste de Lyon, a somente 60 quilómetros
do castelo familiar de Saint-Maurice-des-Rémens, onde ele passara
o período mais feliz da sua infância. Tinha percorrido tantas vezes
esta região antes da guerra, de carro, comboio ou avião, que cada
palmo da linha costeira do Sul de França lhe era familiar. Após um
voo de observação idêntico efetuado a 29 de junho, Saint-Exupéry
foi chamado à ordem por se ter desviado da sua rota para sobrevoar
regiões que lhe recordavam os tempos de infância. Talvez a sua tentação em dar mais uma vista de olhos a locais que amava se tenha
revelado igualmente irresistível a 31 de julho.
Pouco antes de cair no mar, Saint-Exupéry encontrava-se ligeiramente desviado do plano de voo e abaixo da altitude de segurança
de 6 mil metros. Três lugares poderão tê-lo incitado a afastar-se do
seu itinerário de regresso um a dois minutos para oeste depois de
ter atingido a Provença, região que ele preferia a todas as outras em
França. A sua mãe residia em Cabris, depois de Grasse, e ele tinha-a visitado pela última vez em dezembro de 1940, antes de um exílio nos Estados Unidos que tinha durado mais de dois anos. Mais
a oeste, encontrava-se o castelo de La Môle, junto a Saint-Tropez,
para onde o pai havia sido levado na noite da sua morte, tinha
então Antoine apenas 3 anos. E, entre estes dois lugares, ficava a
igreja de Agay, onde em 1931 ele havia desposado a sul-americana
Consuelo Suncin.
12
10
O
ÚLTIMO VOO
Em termos da duração do voo, o desvio tinha pouca importância.
Além disso, com um pequeno gancho para leste, Saint-Exupéry teria
igualmente podido observar a moradia em que passou alguns dos
momentos mais idílicos da sua vida com Consuelo. Tinha sido na
época em que estava a escrever Voo Noturno, a narrativa dos seus
tempos como aviador pioneiro na Argentina. A 31 de julho de 1944,
o terraço da moradia, abrigado por uma latada, teria sido o posto ideal
de observação dos instantes finais da última missão de Saint-Exupéry.
***
ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY TINHA 44 anos quando o seu avião se despenhou no mar. A sua reputação de escritor estava perfeitamente
consolidada, apesar de não ter publicado mais do que cinco pequenas obras cujo texto total não excedia as mil páginas. Porém, a celebridade que conheceu enquanto vivo não teve nada de comparável
com a sua imensa popularidade a título póstumo. Nunca chegou a
saber que a sua história mais conhecida, O Principezinho, surgida um
ano antes da sua morte, iria tornar-se a obra francesa mais traduzida
(em mais de 80 línguas). Esta fábula para crianças figura ainda a par
de dois outros livros, Voo Noturno e Terra dos Homens, na lista das
dez obras francesas mais lidas do século XX. Todos os livros editados
em vida, entre eles Correio do Sul e Piloto de Guerra, inspiraram-se
na sua experiência de piloto, quer na aviação civil quer na Batalha de
França. Quando foi publicada uma antologia das suas obras, o êxito
de vendas ultrapassou todas as outras antologias similares de autores
franceses, clássicos ou contemporâneos.
O conjunto da sua obra testemunha uma versatilidade surpreendente. Somente as duas primeiras obras de Saint-Exupéry, Correio
do Sul e Voo Noturno, são romances, enquanto as três restantes não
se encaixam em nenhuma categoria identificável. É demasiado simplista qualificar Terra dos Homens como narrativa de viagens, Piloto de
Guerra como recordações de combate, ou considerar O Principezinho
um conto infantil. Todas estão repletas de temas filosóficos e morais
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ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
E
MORTE
DO
PRINCIPEZINHO
que ele tencionava desenvolver no seu último livro, Cidadela, uma
antologia inacabada de parábolas, publicada após a sua morte a partir de várias notas.
A vida aventurosa de Saint-Exupéry e as suas observações éticas ou
místicas assumem uma tal importância nos seus livros que uma das
principais qualidades da sua obra é muitas vezes minimizada ou considerada como um facto consumado. Muito simplesmente, ele era um
escritor de exceção, fascinado no plano profissional e estético pelo uso
e impacto da língua escrita. A concisão dos seus livros, exceção feita a
Cidadela, reflete uma precisão na escolha das palavras, realçando assim
a sua beleza e a emoção produzida. Na procura da perfeição, Saint-Exupéry utilizava um processo laborioso de revisão e de correção que
reduzia em dois terços os manuscritos originais.
Esta paciência de artesão na elaboração literária, comparável na
sua opinião à extração de uma pedra preciosa da sua ganga, pô-lo-ia
a par das maiores figuras da idade de ouro da literatura francesa.
Mesmo os críticos incomodados com a ênfase dada por Saint-Exupéry
ao dever e ao sacrifício em Voo Noturno e Piloto de Guerra, ou ressentidos pelo doce idealismo d’O Principezinho, acabaram por se render
perante uma das prosas mais evocadoras em língua francesa.
Saint-Exupéry esforçava-se normalmente por ser discreto quanto
aos seus problemas pessoais, mas os que o conheciam na intimidade
conseguiam decifrar nas entrelinhas as mensagens mal disfarçadas
das suas deceções, alegrias e dúvidas morais. Será abordada a maioria
dos episódios enigmáticos da sua vida nesta biografia, na qual se tentará igualmente descodificar os temas d’O Principezinho, história em
que Saint-Exupéry se assume como modelo tanto da criança como do
piloto perdido, lastimando-se de que a idade o afastou das verdades
absolutas da sua infância passada no seio da aristocracia católica.
Nenhum livro revela melhor os dilemas interiores de Saint-Exupéry
do que O Principezinho, escrito num período de profunda melancolia
e autocrítica em que o autor duvidava das suas capacidades de conduzir a bom porto a empresa mais difícil da sua vida: o seu casamento.
Esta fábula mística sobre a perda da inocência era, em grande parte,
14
12
O
ÚLTIMO VOO
uma carta de amor à esposa, Consuelo, numa altura em que a união
de ambos quase colapsou devido a uma excessiva exigência afetiva
e infidelidade de parte a parte.
Não há nada de misterioso nas razões que levaram Saint-Exupéry
a descrever, sob a forma de conto para crianças, a sua relação com
Consuelo. Ela é a rosa d’O Principezinho, e o livro é uma confissão de que os seus destinos estavam irrevogavelmente ligados pelas
dores e alegrias partilhadas. Em todas as suas obras, Saint-Exupéry
inspira-se fortemente em sensações experimentadas na infância para
se proteger do seu próprio desespero e dos acontecimentos que não
conseguia explicar. N’O Principezinho, foi ainda mais longe e deixou
que a voz da inocência falasse por ele.
O livro foi publicado em 1942, no decurso de uma fase depressiva, quando do seu exílio nos Estados Unidos, entre dois períodos de
serviço na Força Aérea francesa. Nesse momento, sentia-se dividido
entre as obrigações para com a mulher e o desejo de regressar ao
combate, num espírito de sacrifício patriótico. As cartas escritas nos
meses que se seguiram atraiçoavam o seu fascínio por uma morte
purificadora, assim como um imenso desejo de renascimento espiritual. Mais tarde, o desaparecimento do principezinho e a fórmula
segundo a qual ele «parecerá morto, mas isso não será verdade» soariam como uma espécie de profecia cumprida, pois o corpo de Saint-Exupéry nunca seria encontrado.
Talvez esta morte mítica tenha sido o fim que ele ambicionava.
Não admitira ele, n’O Principezinho, que a desordem provocada pelo
desaparecimento das certezas da infância fora o preço a pagar para
entrar no mundo das pessoas crescidas, onde «tudo era um grande
mistério»?
Este tom desesperado de ressentimento e perplexidade lembra
a sua confissão, em Terra dos Homens, da incapacidade de reencontrar os seus sonhos de infância e as aventuras românticas dos dias
de verão passados em Saint-Maurice-de-Rémens, perto de Lyon,
não muito longe do campo de aviação onde recebeu aos 12 anos o
batismo aéreo. O castelo foi vendido quando Antoine tinha 32 anos,
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ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
E
MORTE
DO
PRINCIPEZINHO
e as «provisões de doçura» que tinham mimado a sua infância
escapavam-lhe assim para sempre.
Saint-Exupéry nunca escondeu a dor provocada por esta venda
e pela profanação do seu passado perdido. Pouco antes da guerra,
regressou a Saint-Maurice e caminhou ao longo do muro de pedra
cinzenta que delimitava o jardim do castelo, «cheio de sombras da
infância». E evocou esta tristeza em Terra dos Homens, num punhado
de palavras que revelam, melhor do que fariam vários volumes de filosofia, uma consciência profunda da solidão inerente à idade adulta.
Ferido por uma «forma de desespero», constatou, estupefacto, que
as perspetivas infinitas da infância se tinham reduzido. O seu pátio de
recreio paradisíaco tinha desaparecido, apagado pelo seu olhar adulto,
e entristecia-o nunca mais poder voltar a «entrar nesse infinito».
A idade não só o banira daquele jardim encantado com as suas alamedas de tílias e bosques de pinheiros como o excluíra para sempre dos
jogos inocentes.
«Não estou muito certo de ter vivido depois da minha infância»,
escreveu ele à mãe, muito tempo depois de ter descoberto a aparente
recompensa que sentia ao pilotar. Para Saint-Exupéry, tornar-se adulto
era o mais imperdoável dos pecados.
16
14
PRIMEIRA PARTE
1900–1930
CAPÍTULO I
Cinco crianças num jardim
O
quarto que Antoine partilhava com o irmão mais novo,
François, em Saint-Maurice-de-Rémens, virado a leste, dava
para o imenso jardim do castelo, e, da janela, distinguiam-se ao longe os cumes arborizados dos montes de Bugey a despontar
das faldas da cordilheira do Jura. É uma paisagem impregnada de
uma magia natural, em que as florestas densas se encontram sempre meio escondidas pelo nevoeiro do outono ou pelas neblinas do
verão, e por vezes cobertas de neve. Na pureza cristalina do início
da primavera, o vale granítico onde corre o estreito e tumultuoso rio
Albarine parece ao alcance da mão.
Aos olhos de uma criança, as colinas escuras eram uma terra
estranha com os seus próprios mistérios e segredos. Da sua janela,
Antoine observava, mais além das vinhas e das pastagens suaves que
principiavam nos limites do jardim do castelo da família, os distantes
cerros escarpados onde o Homem, desde há dois mil anos, se tinha
entregado a combater a natureza ou as invasões inimigas. Quase
em frente do castelo, Antoine podia contemplar a imponente torre
de Saint-Denis, erguida como sentinela à entrada do estreito vale,
e a antiga estrada romana que ia de Lyon a Genebra. Mais oculta dos
olhares, mas mais impressionante, erguia-se uma enorme fortaleza
quadrangular conhecida como Les Allymes, cuja silhueta amarelada
se destacava na floresta circundante.
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ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
E
MORTE
DO
PRINCIPEZINHO
A partir desta praça-forte, os senhores da Idade Média tinham outrora
controlado o acesso ao curso do Ain, o mais pitoresco dos rios deste
recanto do Sul de França. Impuseram em seu redor a ordem e códigos
cerimoniais e religiosos que se desmoronaram muito antes de as muralhas começarem a ficar em ruínas. As imagens deste mundo cavalheiresco, cuja força resultava tanto da sabedoria como das armas, iriam
acompanhar Saint-Exupéry ao longo de toda a vida — a ponto de lhe
inspirar o último livro, Cidadela, publicado após a sua morte. Nesta narrativa de aventuras bíblicas, onde os ideais muçulmano e cristão coabitam num palácio mítico nos confins do deserto, ele medita sobre os
ensinamentos da longa viagem que, muito além dos limites do seu jardim de Saint-Maurice, o levou a descobrir um mundo desconcertante.
Saint-Exupéry chamou ao jardim do castelo «o país da minha
infância». Entrou ali pela primeira vez pelo largo portão de ferro e
ao longo da alameda bordejada por quatro fileiras de tílias no dia do
seu batismo na capela familiar, com 6 semanas de idade. Tinha nascido a 29 de junho de 1900 no apartamento dos seus pais em Lyon,
no n.º 8 da rue Alphonse-Fochier, próxima da place de Bellecour e que
na altura se chamava rue Dr. Peyrat.
Tendo em conta as profundas convicções religiosas da família,
o arcebispo de Lyon acedeu em adiar o batismo, de modo a terem tempo
de convidar os familiares para uma cerimónia solene em honra do herdeiro do título nobiliárquico de Saint-Exupéry, cuja origem remontava
ao século XIII. Os parentes do lado paterno teriam de fazer uma viagem
de um dia inteiro desde Le Mans, a oeste, e a família da mãe viria da
Provença; era preciso tempo para preparar a receção dada nos jardins,
onde as três centenas de aldeãos estariam na sua maioria presentes como
convidados ou criados. É a 15 de agosto de 1900, no Dia da Assunção,
que o padre da paróquia, François Montessuy, dá ao recém-nascido os
cinco nomes Antoine Jean-Baptiste Marie Roger Pierre. O certificado
de nascimento foi assinado por vários amigos e parentes, entre eles o
seu tio e padrinho Roger de Saint-Exupéry, então capitão de infantaria.
A madrinha, Alice Boyer de Fonscolombe, que era também avó
materna de Antoine, não pôde deixar o seu castelo de La Môle, perto de
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CINCO
CRIANÇAS NUM JARDIM
Saint-Tropez, e foi representada pela tia solteira de Antoine, Madeleine
de Fonscolombe, irmã mais nova da sua mãe. A primeira assinatura
é do pai, Jean, visconde de Saint-Exupéry, que faleceu menos de quatro anos depois, deixando a cargo da viúva, Marie, cinco crianças com
menos de 8 anos. Os dois mais velhos, Marie-Madeleine e Simone,
então com 3 e 2 anos, estiveram presentes no batismo. François nasceu
dois anos mais tarde, e Gabrielle, a mais nova, em 1904. Com Antoine,
eram as Cinco Crianças Num Jardim, título do livro inédito de memórias de Simone, a mais autêntica fonte de dados sobre a infância de
Saint-Exupéry.
***
AS PRIMEIRAS NOTAS DESTA biografia foram tomadas na mesa oval de
madeira maciça da grande sala de jantar do castelo do século XVIII
de Saint-Maurice-de-Rémens, a única sala ainda mobilada tal como
na época do batismo de Antoine. Apesar de o castelo ter sido vendido em 1932 ao município de Lyon e transformado numa colónia de
férias para as crianças, a sala de jantar ficou para sempre como uma
marca do mundo aristocrata, muito ciente dos seus privilégios. Sobre
um chão de lajes de mármore preto e branco, mantêm-se uma imponente cómoda de inspiração italiana, com cachos de uvas e medas de
trigo esculpidos, e as cadeiras originais, forradas a couro vermelho.
Um candeeiro de teto de linhas sóbrias reflete-se no enorme espelho
que ornamenta a lareira de mármore.
Não abunda muita elegância nesta sala, mas subsiste um sentimento
de permanência neste templo de tradição onde a castelã Gabrielle,
condessa viúva de Tricaud, filha de Lestrange, presidia na hierarquia
tacitamente estabelecida de uma família nobre, assim como dos seus
convidados e criados.
Durante os primeiros anos, esta era uma área interdita às crianças,
que eram mantidas sob a vigilância de uma governanta e tomavam as
refeições perto da cozinha. Saint-Exupéry deixou a impressão de que
grande parte do piso térreo do castelo era uma área proibida, povoada
1219
ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
E
MORTE
DO
PRINCIPEZINHO
por uma raça pouco indulgente de adultos que possuía toda a autoridade sobre os mais pequenos para os admoestarem, julgarem e punirem. Em Piloto de Guerra, no qual evoca as recordações deste período no
decurso de uma missão na frente em 1940, Saint-Exupéry volta a referir este medo dos adultos, descrevendo como aos 5 anos, escondido no
corredor à porta da sala de jantar, ouvira trechos de uma conversa entre
dois dos tios. Um deles, Hubert de Fonscolombe, «a própria imagem
da severidade», ameaçara-o de mandar vir dos Estados Unidos uma
máquina de chicotear.
Nesse mesmo corredor forrado a lambris, onde os brinquedos
eram guardados em quatro longas caixas de madeira, as cinco crianças ouviam por vezes as conversas que se travavam à mesa de jantar,
enquanto iam imaginando intrigas entre sussurros. Nas recordações
de Antoine, esta atmosfera era ainda sobrecarregada ao cair da noite
pela fraca luz dos candeeiros a petróleo, que projetavam sombras
inquietantes na direção de uma passagem secreta para a capela e até
à longa escada que dava para os quartos.
Esta incompreensão entre miúdos e graúdos tornar-se-ia uma fonte
de impaciência futura para Saint-Exupéry perante a falta de clarividência dos adultos. As crianças criavam refúgios à sua medida, que embelezavam com uma imaginação desenfreada e uma atmosfera de alegria
conspiradora. No seu primeiro romance, Correio do Sul, Saint-Exupéry
recorda como observavam as estrelas entre os intervalos das telhas dos
sótãos do castelo, ouvindo o barulho abafado das conversas nas profundezas da casa. Os sótãos eram o terreno ideal para os jogos povoados de sonhos e pesadelos. As crianças estavam convencidas de que
tinha sido ali escondido um tesouro entre as relíquias da família, mas
a mais extraordinária das riquezas era um armário cheio de fatos e uniformes militares que tinham pertencido ao pai. Foi provavelmente nele
que Antoine, com apenas 4 anos, encontrou o primeiro livro que leu
de uma ponta à outra. Tratava-se de um manual de fabrico de vinho que
ele descobrira numa velha mala cheia de revistas. Quarenta anos mais
tarde, recordava-se de ter decifrado cada uma das palavras, sem compreender, todavia, o seu sentido.
2202
CINCO
CRIANÇAS NUM JARDIM
Enquanto as vastas salas excessivamente mobiladas eram sobretudo domínio dos mais crescidos, o reino das crianças era o jardim.
Saint-Maurice só era habitado da primavera ao início do outono, pelo
que as lembranças de Antoine evocam uma infância antes da Primeira
Guerra Mundial que parece perpetuamente banhada de sol. Os três
mais velhos, Marie-Madeleine, Simone e Antoine, descrevem minuciosamente esse seu reino: uma extensão tão vasta de relvados, hortas
e pinhais que abrigavam inúmeros esconderijos que eles nunca chegavam a explorá-lo por completo.
Para Antoine, este imenso território tornou-se o seu primeiro laboratório de experiências mecânicas, no qual tentou construir um avião
e inventar um sistema de irrigação com uma bomba motorizada para
as hortas. Era também um terreno propício a aventuras heroicas inspiradas em livros de histórias. Em Piloto de Guerra, Saint-Exupéry
compara a sensação de se desviar do fogo das antiaéreas alemãs a um
dos seus primeiros jogos, que consistia em esquivarem-se às gotas da
chuva das trovoadas de verão; quem o conseguisse, era distinguido
com o título de Cavaleiro Aklin até à próxima chuvada.
Este jardim paradisíaco era povoado por animais de estimação,
pertencentes na sua maioria à irmã mais velha de Antoine, Marie-Madeleine, conhecida pela alcunha Biche (Corça). Ela era tão sensível
que se recusava a colher flores com receio de as magoar. Simone, bastante mais fria e determinada, recorda-se das longas horas passadas a
bordar ao ar livre, perfumado das ervilhas-de-cheiro, dos loureiros em
flor e dos gerânios. Era frequente a mãe ler para eles ou assistir aos
seus jogos enquanto pintava aguarelas. As flores das tílias, que entretanto foram cortadas pela raiz, provocavam a Antoine alergia dos fenos,
obrigando-o a fechar-se em casa e a ler na biblioteca.
O prazer de reencontrar este imenso país das maravilhas onde se
podia fugir à autoridade dos adultos começava por uma viagem de
50 quilómetros num pequeno comboio a vapor que partia de Lyon
até à gare de Leyment, a 3 quilómetros do castelo. Era aí que uma
tipoia esperava a família para a conduzir, por um estreito e sinuoso
caminho pedregoso através de vinhedos e vacarias, até ao grande
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ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
E
MORTE
DO
PRINCIPEZINHO
portão de ferro forjado que se abria para a alameda bordejada de tílias.
Entrava-se no jardim pela grande alameda que conduzia diretamente
às habitações principais, evitando assim a aldeia e criando a ilusão
de se estar a penetrar num enclave isolado do resto do mundo.
As janelas da sala de jantar davam para um pátio nas traseiras, onde
a presença de um poço recorda que só houve água corrente ou casa de
banho já o século ia adiantado. Hoje em dia, este pátio constitui o acesso
principal ao castelo e à sua capela do século XIX. Um portão de ferro dá
para as ruas de Saint-Maurice-de-Rémens, aldeia que mudou apenas
superficialmente nestes últimos cem anos.
Uma das novidades mais evidentes é o monumento aos mortos
na guerra, no qual figura o nome de Saint-Exupéry. A cruz de pedra
domina a praça principal rebatizada como place de Saint-Exupéry em
1991, onde vários plátanos proporcionam uma sombra hospitaleira à
esplanada de um café. As estreitas e poeirentas ruelas em redor foram
entretanto asfaltadas, mas muitas das casas são ainda as habitações
caraterísticas de telhados inclinados cinzento-escuros do vale do Jura,
onde a neve pode ser abundante e contínua.
As verdadeiras alterações em Saint-Maurice são invisíveis. O pequeno
burgo já não vive ao ritmo dos antigos castelões, e o sentimento de
comunidade testemunhado por Saint-Exupéry desapareceu com o
êxodo rural e a chegada dos citadinos que aí adquiriram uma segunda
habitação.
Durante a infância de Antoine, a raridade dos meios de transporte
transformava qualquer visita a Ambérieu-en-Bugey, a vila mercantil mais próxima, numa verdadeira expedição. Os aldeões viviam do
mesmo modo século após século, fechados em si mesmos. Castelões
e jornaleiros agrícolas partilhavam recordações comuns que remontavam a gerações passadas, e cada um assumia o papel que Deus lhe
tinha destinado. As referências de Antoine à infância parecem-nos
ainda mais pungentes, porque sabemos agora que este mundo imutável já estava condenado ao desaparecimento e que os privilégios de uma
aristocracia confiante na sua perenidade se encontravam prestes a ser
abolidos pela Primeira Guerra Mundial.
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CINCO
CRIANÇAS NUM JARDIM
A sua irmã Simone mantinha nessa época um diário, do qual extraiu
os principais incidentes para escrever Cinco Crianças Num Jardim.
A sua narrativa era dominada por uma das personalidades mais marcantes da infância de Antoine, a condessa de Tricaud, conhecida por
Tante (Tia). A castelã, viúva há já 15 anos, tinha 67 anos quando do
batismo de Antoine. A sua vida matrimonial ficara marcada pelo falecimento da filha única, vítima de difteria com 3 anos, o que lhe deixara como única missão reinar sobre uma complicada rede de parentes
depois de ter herdado do marido, um diplomata, o castelo e o apartamento de Lyon.
O eixo da sua família de adoção era a mãe de Antoine, Marie, sua
sobrinha-neta, tendo sido Gabrielle de Tricaud quem presidiu aos
planos que aceleraram o casamento de Marie com o pai de Antoine
em 1896.
O meio aristocrático proporcionava mais do que uma ascensão social.
Trazia por acréscimo uma rede benevolente de benfeitorias assentes na
lealdade e na propriedade, e toda a família de Saint-Exupéry foi adotada
pela tia Gabrielle após a morte do pai de Antoine, em 1904. Viviam
principalmente dos proventos das suas quintas, incluindo os 250 hectares em redor do castelo. A família aceitou a condessa como autoridade
incontestada de toda a casa, dominada por mulheres e criadas.
Gabrielle de Tricaud possuía a dimensão de uma personagem de
romance. Vestida de negro e caminhando com a ajuda de uma bengala, tanto se mostrava generosa como tirânica. Nascida numa época
em que as filhas de boas famílias eram auxiliadas por uma criada até
para escovar o cabelo, tinha uma criada de quarto, também ela viúva.
Os convidados eram recebidos em Saint-Maurice em dias certos para
as suas partidas de dominó ou de bridge à luz de candeeiros a petróleo,
ou para assistirem a concertos musicais que ela dava às quartas-feiras
no apartamento de Lyon quando a família passava ali o inverno.
O pároco de Saint-Maurice, o padre Montessuy, era tratado como seu
confessor pessoal, chamado frequentemente para abençoar o método
perentório que ela tinha de conduzir as orações em latim na capela privada, depois do jantar. Era obrigado a ouvir os seus sermões acerca da
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maneira como devia tratar os aldeões, uma comunidade que ela regia
por direito divino, conhecendo todas as pessoas pelo nome.
Embora adorasse Marie-Madeleine, a irmã mais velha de Antoine,
Gabrielle de Tricaud não perdia tempo com os rapazes ou com os animais. Antoine e François tinham o direito de estarem presentes mas
não de serem ouvidos, e os inúmeros animais de companhia não eram
tolerados em casa, com a exceção das aves domesticadas de Madeleine.
Quando Simone fala desta tia dominadora, fá-lo com bastante afeto
pela sua originalidade, que por vezes escondia um grande coração.
Admirava também a sua capacidade de escolha dos criados tão excêntricos como ela. Nunca tinha menos de oito criadas permanentemente
ao seu serviço em Saint-Maurice. Muitas vezes tratadas como crianças,
as criadas desempenhavam o papel de intermediárias entre irmãos e
irmãs e os adultos mais condescendentes. Por vezes, eram as crianças
quem tinham de consolar as criadas, nomeadamente quando a cozinheira era repreendida em público pela tia Gabrielle, sob o pretexto de que
a refeição tinha sido servida com alguns minutos de atraso ou que não
possuía a qualidade requerida para o vaivém constante de convidados.
De todas as estranhas personagens que povoavam as sombras do
castelo, a mais comovente era, sem dúvida, o mordomo, Cyprien, um
suíço de ar lúgubre, vestido com um uniforme preto. As suas investidas casamenteiras tinham sido repelidas pela criada de quarto da tia,
Noémi, e acabara por procurar consolo no álcool. Era tão sensível que,
por vezes, servia à mesa com a face banhada de lágrimas devido ao desgosto de amor.
Mas foi sobre Marguerite Chapays, mais conhecida como Moisy,
diminutivo de mademoiselle, que Antoine e Simone mais escreveram.
Ela surge «saltitante como um rato» nas memórias de Saint-Exupéry em
Terra dos Homens. «Oh, meu Deus, que desgraça!», exclama ela, desesperada, ao observar a roupa branca da família já muito usada. Ao fim
de muitos anos, fora promovida de criada a governanta. Os quatro
armários de roupa a que ela passava revista com um olhar meticuloso, reajustando a disposição dos lençóis e das toalhas de mesa para
se assegurar do seu uso harmonioso, eram para ela o seu reino dos
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segredos, tal como para Antoine eram os locais de brincadeiras que
ele descobria nos jardins e no celeiro. O conteúdo destes quatro armários tornou-se um tema recorrente na obra literária de Saint-Exupéry.
A partir de Correio do Sul, são abundantes as referências às virtudes
calmantes dos lençóis brancos e as evocações metafóricas das toalhas
de mesa.
Moisy era a aliada dos rapazes na sua luta contra os incompreensíveis adultos, escondendo por vezes Antoine na sua cama para o salvar
de uma tareia. No fundo, era mais ama das crianças do que governanta.
À noite, Antoine costumava entrar sorrateiramente no quarto dela para
um canard, um torrão de açúcar embebido em vinho; quando as outras
crianças descobriram isto, ela aumentou a reserva de açúcar para agradar a todos, mas a reserva de álcool teve de ser muitas vezes reforçada
com o vinho de missa do padre Montessuy.
Era uma eterna filha do campo, de faces rosadas como maçãs, que
tinha procurado refúgio em Saint-Maurice como criada após a experiência desgastante de um trabalho diário de dez horas numa fiação
em Lyon. Enquanto os tios e as tias não falavam senão em finanças,
propriedades e religião, Moisy ensinava às crianças o nome das flores
campestres e levava-as a colher fruta para fazer compotas.
Com o passar dos anos, foi promovida de criada a governanta.
Os armários da roupa branca que ela vigiava possessivamente, arrumando e voltando a arrumar os lençóis e toalhas de mesa para que
não ficassem vincados, eram o seu reino secreto, tal como o jardim e
os sótãos o eram para as crianças. Era uma mulher frágil e atarracada,
e Antoine depressa ficou mais alto do que ela, levantando-a facilmente
do chão, balançando-a nos braços e mimando-a para a convencer a
preparar-lhe os seus pratos favoritos. Foi ele que, já adulto, se tornou o
seu anjo da guarda quando ela conseguiu finalmente realizar o sonho
da sua vida, a aquisição de uma pequena habitação na sua aldeia natal,
no département de Drôme. Enviou-lhe dinheiro para os arranjos da casa
e visitava-a sempre que possível, até à sua mobilização em 1939, partilhando com ela a nostalgia despertada por uma pequena caixa de fotografias de Saint-Maurice que ela guardava no quarto.
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As relações que Gabrielle de Tricaud estabelecia com naturalidade entre
patrões e criados denotavam inegavelmente a segurança de uma aristocrata, mas ela estava a tornar-se a caricatura de um passado morto. Apesar
de a Revolução ter ocorrido um século antes, ela considerava a República
mais como uma moda passageira do que como uma mudança radical.
Os casamentos de conveniência, com a proteção implícita de bens
e títulos, tinham reforçado as famílias nobres quase arruinadas pelo
período do Terror. As suas fortunas foram restauradas graças aos novos-ricos da burguesia industrial que dispunham de dinheiro suficiente
para uma aliança com a aristocracia. A seguir à Revolução, a França
viveu períodos como o regresso da realeza dos Bourbons e dos Orleães
ou o império bonapartista, cada um contribuindo com a sua quota-parte
de famílias recentemente feitas nobres.
Quando o pretendente ao trono, o conde de Chambord, pôs fim ao
vazio criado entre as fações legitimista e orleanista, para a nobreza da
província, o regresso da monarquia era apenas uma questão de tempo.
Na altura do nascimento de Antoine, a República autodestruía-se no
seguimento da polémica aparentemente irrelevante que envolveu um
capitão judeu chamado Alfred Dreyfus. Sustentada pela Igreja Católica,
a aristocracia, cuja autoridade hereditária fora abalada, viu neste escândalo a prova de que uma assembleia popular não podia senão destruir-se a si própria, considerando também que a emancipação dos judeus
em 1791 fazia já parte do lento veneno do liberalismo. Já tinham passado bastantes anos para que os excessos do Antigo Regime tivessem
sido esquecidos e só as suas glórias fossem recordadas.
A castelã de Saint-Maurice era reacionária por instinto, orgulhosa da
sua ligação à casa real deposta, rodeando-se de amigos com as mesmas
opiniões. Recusava-se a ler o jornal local, Le Progrès de Lyon, que considerava demasiado vanguardista, preferindo Le Nouvelliste, jornal pró-monárquico, suscitando assim indiretamente, entre os seus sobrinhos
e sobrinhas em segundo grau, um gosto pela monarquia que Simone e
Gabrielle guardaram durante toda a vida.
Estava completamente convencida de que detinha o direito hereditário de comandar, opinião partilhada pela maioria dos aldeões que
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dependia do castelo para os seus trabalhos jornaleiros, pelos empregados domésticos e pelos rendeiros. Poucos se recusavam a tirar o
chapéu ou a fazer uma vénia quando a castelã percorria os seus domínios. Ela considerava como seguro o apoio da Igreja Católica, confortada pelo padre Montessuy, tornado membro honorário da família.
Os ideais conjuntos da fé católica e da monarquia entrelaçavam-se na
sua capela pessoal, cujas lajes de mármore ostentavam a flor de lis,
o emblema da realeza.
Se Antoine teve poucas razões para voltar costas à religião até às
vicissitudes por que passou na idade adulta, isso deve-se sobretudo
a François Montessuy, o primeiro dos sacerdotes que influenciaram as
suas escolhas. O padre pode ser tomado erradamente por um servidor
da família, tal era o tempo que passava no castelo, mas, na realidade,
era o responsável pela igreja paroquial de Saint-Maurice, onde os bancos da primeira fila estavam reservados à família Saint-Exupéry e onde
a mãe de Antoine tocava órgão e dirigia o coro das meninas da aldeia.
Como a família mantinha relações de amizade com o bispo de Belley,
teve muito possivelmente uma palavra a dizer sobre a nomeação do
padre Montessuy, que pouco se parecia com o habitual curé rústico.
Tinha sido professor de matemática numa família burguesa, antes
de ser obrigado a abandonar a maior cidade do distrito de Ain, Bourg-en-Bresse, por razões de saúde. Possuía uma cultura vasta, adquirida
durante os anos em que estudara em Paris, onde foi apanhado pelos distúrbios de 1870, e entendia-se às mil maravilhas com as crianças, desempenhando o papel de um tio indulgente. Tal como Antoine e François,
sofria por vezes com a autoridade despótica da tia e certa vez ficou
terrivelmente ofendido quando a castelã insinuou que ele só frequentava o castelo por causa da abundante comida caseira ou para beber
a sua aguardente especial. Ele recusou-se a lá regressar, até que a tia
teve de enviar um emissário ao presbitério.
O padre Montessuy sabia conquistar a amizade dos rapazes graças
aos seus talentos inesgotáveis no bilhar, de que fazia demonstrações
sobre a grande mesa da biblioteca, frente às grandes estantes envidraçadas repletas de livros. Acompanhava-os igualmente nos seus passeios
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a cavalo, ou em tipoia, até aos lagos dos Dombes ou a qualquer sítio
pitoresco. Suportava com bom humor as suas brincadeiras e partidas,
chegando ao ponto de um dia comer um corvo assado que Antoine quis
fazer passar por uma galinha, ignorando sem pestanejar os risos desabridos das crianças.
Em 1911, no decurso de uma seca que viria a marcar o início de
uma série de verões tórridos que precederam a Primeira Guerra
Mundial, o padre serviu de modelo à imaginação fértil de Antoine.
As crianças tinham ido até às margens lamacentas do Ain acompanhadas por duas criadas, usando a lama para recriar a cara de vários
convidados que desfilavam por Saint-Maurice durante os três meses
de férias de verão. Simone recorda-se de que, na sua maioria, as caras
eram identificáveis, à exceção da do cura, moldada por Antoine e disfarçada com uma barba fictícia.
Ele explicou à irmã que não se tratava de um erro de observação:
a boca do padre Montessuy possuía uma forma demasiado difícil de
reproduzir.
Ouço cantar a minha árvore
SE OS SERMÕES DO padre Montessuy, normalmente intermináveis e num
estilo floreado, constituíam uma espécie de tortura dominical para as
crianças Saint-Exupéry, eram, por outro lado, a substância vital para a
sua mãe viúva, para quem a fé católica foi uma fonte constante de inspiração até à sua morte em 1972, com 97 anos. A profunda devoção de
Marie tornava-a aos olhos do padre uma espécie de monja laica, e existia
entre eles uma cumplicidade de casal votado ao celibato; por escolha no
caso do cura, por força das circunstâncias no caso de Marie.
A tia Gabrielle, convencida de que o curé tinha mais influência do
que ela sobre a sobrinha-neta, confessou um dia ao padre a sua inquietude em vê-la pôr a saúde em perigo devido à sua infatigável abnegação.
As crianças da aldeia eram convidadas pelo menos uma vez por semana
para ir ao castelo, para uma merenda acompanhada de jogos, mas a tia
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considerava que Marie ia longe de mais ao convidar para o piquenique
as meninas do coro. O que faltava na propriedade era um homem, disse
ela ao padre Montessuy.
O interesse que Marie manifestava em relação à música e à pintura contemporâneas funcionava junto do padre como uma atração
suplementar, ele que, tendo sido instruído num meio citadino culto,
se via exposto às superstições, preconceitos e rivalidades mesquinhas
de uma remota comunidade aldeã. Era através do conforto espiritual a
uma viúva corajosa, determinada em transmitir aos filhos as suas convicções religiosas, que ele dava um sentido à sua missão sacerdotal,
pelo menos de abril a outubro, quando o castelo estava ocupado.
O marido de Marie de Saint-Exupéry morreu apenas oito anos após
o casamento. Ela esperava na altura o quinto filho, e o desaparecimento do marido foi para ela uma das primeiras provas pessoais de
toda uma série que só reforçaram a sua fé católica, fundamentada na
aceitação total da autoridade espiritual do Novo Testamento e numa
convicção enraizada no amor a Deus. Exercendo uma influência determinante na vida de Antoine, Marie deve ter sofrido ainda mais ao vê-lo
abandonar a religião do que sabê-lo exposto aos perigos da sua profissão de piloto.
É impossível compreender as hesitações de Saint-Exupéry ou as
suas escolhas, por vezes desastradas, sem ter em conta as influências
da mãe, que ele se esforçava por contornar sem, contudo, nunca romper com elas. Reconhecia nelas, sem dúvida, as qualidades humanas
que ele não possuía e uma capacidade de contacto com uma divindade
benevolente que ele nunca conseguiu atingir.
Se bem que nunca se tivesse preocupado com a compreensível
oposição à sua perigosa carreira, rejeitasse os projetos de casamento
que ela tentava criar-lhe e lhe pedisse constantemente dinheiro,
mesmo quando a fortuna dela começou a definhar, a afeição entre
mãe e filho nunca sofreu com isso. A única censura que se pode fazer
a Marie foi a de, involuntariamente, ter sido para o filho um modelo
de perfeição feminina, de compaixão e devoção que ele nunca encontraria noutra mulher.
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Até o seu caráter tendencialmente autocrático e o seu sarcasmo
esporádico eram apreciados. Nem ela nem Antoine se reviam nas famílias mais preocupadas com gerar dinheiro e juntar uma fortuna para os
seus descendentes do que com satisfazer os anseios presentes. Sempre
que tinha algum dinheiro extra, gastava-o em vestidos novos, preferindo a admiração dos filhos à expressão de desaprovação dos parentes
mais avaros.
O amor maternal era complementado pelo orgulho que sentia pelo
filho. Antoine levou a vida independente que lhe havia sido negada
enquanto mulher nobre nascida no século XIX, numa época em que os
interesses da família se sobrepunham a tudo o resto. O destino de uma
mulher era o inevitável casamento por conveniência em nome da propriedade, do prestígio e da posteridade.
As cartas publicadas que Antoine escreveu à mãe testemunham claramente a sua sede constante de afeição e encorajamento até ao dia
da sua morte, particularmente por causa das recordações de férias em
Saint-Maurice e das visitas ao castelo de La Môle, nas colinas perfumadas por trás de Saint-Tropez, onde Marie passara a infância.
A última mensagem de Antoine, redigida alguns dias antes de morrer, e que ela recebeu um ano mais tarde, terminava com uma súplica:
«Maman, embrassez-moi comme je vous embrasse du fond de mon coeur»
(«Mamã, beije-me como eu a beijo do fundo do coração»).
Esta carta espelhava a dor de 40 anos que Antoine sentia então como
a pior das punições pela sua indisciplina: ir para a cama sem um beijo
de boas-noites da mãe. Os seus apelos desesperados e enternecedores
para a reconciliação nunca ficavam sem resposta.
A necessidade de afeição da sua «petite maman», que ele sentiu
durante toda a vida, deve-se muito ao sentimento mútuo de felicidade
vivida durante a infância e ao talento de ambos para partilharem um
passado sagrado em termos simples. Em 1964, perto de completar
90 anos, Marie de Saint-Exupéry publicou as suas próprias memórias
de infância no castelo da família Fonscolombe, em La Môle, numa
recolha de ensaios e poemas intitulada Ouço Cantar a Minha Árvore.
O seu amor pela música, pela natureza e pela literatura, evidente
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na evocação que faz de uma infância idílica na companhia dos três
irmãos e da irmã mais nova, foi, sem dúvida, transmitido ao filho.
***
ENTRE AS INÚMERAS FOTOGRAFIAS existentes da família mais próxima de
Antoine, as que evocam uma maior nostalgia são as tiradas nos relvados de Saint-Maurice. Marie, alta, elegante e coquete, está cercada
pelos cinco filhos, cada um com o seu caráter singular. O grupo familiar nunca fora tão unido como quando a mãe lhes contava, à sombra
das tílias, histórias inspiradas na Bíblia ou em qualquer outra obra
edificante. Na maioria das vezes, as crianças uniam-se em alianças efémeras, determinadas pelos temperamentos e interesses do momento.
A mais velha, Marie-Madeleine, conhecida como Biche, fugia da companhia dos outros, sobretudo dos adultos, e refugiava-se num canto
do sótão a que ela chamava «o quarto chinês», onde lia, fazia paciências ou classificava a sua coleção de postais de flores e animais.
Simone, a irmã mais nova, era a contadora de histórias da família,
talento que lhe provocou durante toda a vida um sentimento de frustração, pois grande parte dos seus romances e contos foi sendo rejeitada
pelos editores, apesar da celebridade do irmão. Assim como a irmã
mais velha, também ela foi educada em casa, tanto no apartamento
de Madame de Tricaud em Lyon como em Saint-Maurice. Possuía um
caráter jovial, embora prepotente, e acompanhava Antoine nas suas
expedições à volta de Saint-Maurice para escapar à tortuosa tutora
alemã, lembrada apenas como Fraülein.
O segundo filho, François, tinha um temperamento doce muito parecido com o da sua irmã Marie-Madeleine e vivia na sombra de Antoine,
aceitando a sua autoridade exigente e dominadora até ao momento em
que uma discussão era resolvida à pancada. Por fim, havia Gabrielle,
uma linda menina, por vezes vítima do suplício dos irmãos e noutras
ocasiões heroína dos seus jogos românticos. Gabrielle seria a única
dos cinco a ter filhos e a recriar à volta deles a atmosfera indulgente de
Saint-Maurice no seu castelo de Agay, na costa mediterrânica, que se
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transformou no refúgio preferido de Antoine quando adulto. Os filhos
de Gabrielle foram os últimos a usufruir da sensibilidade de Marie para
os prazeres mais inocentes. Esperavam com tal impaciência as visitas
da avó que se debatiam por lhe levar a mala — até que ela teve a ideia de
levar sacos vazios, de modo a satisfazer toda a gente.
Mas o retrato mais notável de todas as fotografias da família era o de
Antoine. Reconhecia-se, desde menino, o seu olhar malicioso numa fisionomia que denotava já uma forte personalidade, ainda que emoldurado
por uma abundante cabeleira dourada que lhe valeu a alcunha Rei-Sol.
Quarenta anos mais tarde, ver-se-ia uma representação romântica da sua
coroa de cabelo louro nos desenhos infantis que fez do Principezinho,
numa altura em que já podia refletir na ironia de ser progressivamente
despojado de tanta beleza como castigo por se tornar adulto.
Todos os traços de caráter que fizeram de Antoine um companheiro
tão sedutor e tão exigente anos mais tarde eram já visíveis desde tenra
idade. Ele achava natural ser sempre o centro de todas as atenções como
se fosse lógico ser o preferido. Não dava tréguas à mãe. Seguia-a por
todo o lado com a sua pequena poltrona, onde se instalava para a ver
pintar ou bordar, reclamando incessantemente que ela lhe contasse
vezes sem conta as mesmas histórias bíblicas.
Já adulto, os amigos tinham de atender os seus telefonemas a qualquer hora do dia ou da noite sempre que ele se lembrava de lhes pedir
uma opinião sobre os seus escritos ou quando queria contar-lhes qualquer aventura. Ganhou esse hábito ainda muito novo, quando acordava
os irmãos de madrugada e os obrigava a acompanhá-lo ao quarto da
mãe para lhes ler um conto ou um poema que acabara de compor.
Era impossível resistir às suas exigências; a teimosia era outra das caraterísticas que Antoine conservaria durante toda a vida.
Uma gentileza natural compensava a sua faceta altiva. Enquanto
criança — contava a mãe —, desviava-se do caminho para evitar pisar
as lagartas e subia aos pinheiros que rodeavam o castelo para tentar travar amizade com as rolas.
Desde que fez uso da razão, fizeram-no tomar consciência do facto
de que ser herdeiro do título da família o tornava igualmente chefe de
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família, papel que iria complicar ainda mais a sua noção exagerada
de responsabilidade. Simone contou que, durante o verão tórrido de
1912, tinha perdido o relógio oferecido na sua comunhão durante um
longo passeio pelas colinas vizinhas na companhia de Antoine. Com a
determinação obstinada que marcaria muitas vezes o seu comportamento adulto, o irmão voltou para trás sozinho à procura do objeto,
percorrendo quilómetros em vão. Regressou ao cair da noite, esgotado
e enlameado, furioso e envergonhado por desiludir a irmã.
***
COMO SE VERÁ ADIANTE, o fascínio de Saint-Exupéry pela mecânica e
pela aviação começou aos 9 anos, mas a sua paixão pela escrita foi
ainda mais precoce. Todos se lembram de que, desde muito pequeno,
ele escrevia à menor oportunidade que lhe surgia, guardando as notas
numa pequena caixa, um hábito que era o prelúdio da sua obsessão
futura de anotar os pensamentos em cadernos de capas de couro.
Esta rotina constante de tomar notas contribuiu para outra caraterística de Antoine: a desordem. Há recordações das suas secretárias desarrumadas desde que era adolescente. Em Saint-Maurice, só Gabrielle
estava autorizada a imprimir alguma ordem ao seu território sagrado
quando a confusão se instalava.
Os seus primeiros poemas e contos de aventuras, inspirados na literatura heroica ou em narrativas populares, deram lugar a projetos sempre mais ambiciosos, chegando a escrever o libreto para uma opereta no
início da adolescência. Estas criações escondiam um desejo imediato de
obter a admiração do círculo familiar, necessidade que mais tarde teria
de ser colmatada pelos amigos mais próximos, os quais aprenderam
que teriam de formular as suas críticas com prudência se queriam continuar a merecer a estima de Saint-Exupéry.
Esta sede de adulação instantânea nunca foi preenchida de modo
satisfatório pela lealdade do público anónimo, mesmo quando os seus
livros receberam prémios literários. A obra publicada representa somente
uma ínfima parte da imensa correspondência enviada aos amigos ou
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à família, cartas muitas vezes acompanhadas por desenhos humoristas ou sentimentais. Não havia nada que pudesse igualar o puro prazer
de apresentar a sua obra aos amigos ou à família, quando a noite caía
sobre o castelo. Houve um conto que ficou famoso, Le Téléphone, um
melodrama extravagante no qual um marido ausente telefona para casa
e é testemunha auditiva do assassínio de toda a família por assaltantes.
Existiam também momentos mais espontâneos de pura invenção,
como as charadas que as crianças representavam. Estas pantomimas como que eram um terreno neutro onde as crianças eram autorizadas a fazer pouco dos adultos sem serem consideradas descaradas.
Uma das mais célebres foi quando Antoine se vestiu com um roupão
ao contrário para exibir o forro vermelho e se pôs a ressonar no seu
cadeirão. A alusão ao bispo de Belley e aos seus sermões maçadores foi
rapidamente reconhecida.
Outra representação abordou a guerra turco-búlgara de 1912, o primeiro combate em que se utilizaram aviões como armas de guerra,
prova de que os filhos mais velhos estavam ao corrente da atualidade
nacional e internacional.
***
O PRIMEIRO E O mais leal dos mentores e admiradores de Antoine na
sua procura de expressão pessoal e individualidade foi, sem dúvida,
a própria mãe. Marie de Saint-Exupéry recusava-se a aceitar as pressões familiares no sentido de levar os filhos a encararem a sua existência de um modo menos fantasioso, encorajando-os a quebrar algumas
das regras mais constrangedoras da rigidez aristocrática, que Antoine
acabará por rejeitar, apostando no «inconformismo».
Nenhum dos escritos de Marie de Saint-Exupéry exprime amargura
em relação aos vários dramas que a vida lhe reservou. O seu maior choque
foi a morte do marido, numa estação de caminho de ferro na Provença,
quando de uma visita ao castelo familiar de La Môle, em março de 1904.
A tragédia levou-lhe o companheiro e o sustento, deixando Antoine,
então com 3 anos, órfão de um modelo masculino.
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CAPÍTULO II
Olhar a morte de frente
Acidente na Estação de La Foux
Segunda-feira à tarde, o genro do Sr. Fonscolombe, em viagem com a sua
jovem esposa, sucumbiu subitamente na estação de La Foux devido a
uma congestão cerebral. Foram-lhe prestados os cuidados adequados
o mais depressa possível na sala de espera. O médico, chamado à pressa,
chegou de imediato, mas infelizmente em vão. O infeliz doente expirou
nos braços da sua esposa desolada, depois de ter recebido de um padre a
bênção e os últimos sacramentos. O corpo foi transportado para La Môle,
onde teve lugar o funeral.
Este acidente emocionou visivelmente os passageiros que chegavam nesse
momento à estação de La Foux de diversos pontos: Saint-Raphaël, Hyères,
Saint-Tropez e Cogolin.
As cruéis surpresas da morte! As nossas respeitosas condolências às
famílias que este acidente enluta.
in La Croix du Littoral, 20 de março de 1904
O
La Croix, um diário nacional, católico e monárquico, que publicava edições locais para a região mediterrânica, foi o único jornal a relatar a morte do pai de Antoine, a 14 de março de 1904.
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O mais irónico é que o nome do defunto não foi mencionado, se bem
que o jornalista tivesse presumido que o sogro, Charles de Fonscolombe,
um dos proprietários mais influentes das áridas colinas provençais de
Maures, fosse conhecido dos leitores.
Apesar de o repórter anónimo ajudar à confusão ao dar o título de
«acidente» à tragédia de La Foux, a intenção do artigo era bastante clara.
Calava todos os rumores ao insistir no facto de Jean de Saint-Exupéry ter
recebido os últimos sacramentos e ter falecido na presença da esposa.
A morte súbita em circunstâncias tão pouco dignas de um homem com
apenas 41 anos, cuja mulher esperava o quinto filho, iria necessariamente alimentar numerosas especulações.
Antoine e as outras crianças estavam à espera em La Môle quando
Jean de Saint-Exupéry morreu às 7 da tarde. Visitavam frequentemente
o castelo com os pais, e as primeiras recordações de Antoine em criança,
relatadas depois em Piloto de Guerra, são acerca das sombras assustadoras do castelo e dos silvos angustiantes do mistral. Estivesse ele presente ou não na estação de La Foux ou nas exéquias que ocorreram em
Saint-Maurice quatro dias mais tarde, conduzidas pelo padre Montessuy,
o súbito ritual do velório e o desaparecimento da principal personagem
masculina na família perturbaram obviamente Antoine.
A descrição que ele faz mais tarde de certos aspetos da sua vida pessoal priva-nos de qualquer revelação sobre o pai, e somente na sua obra
filosófica, Cidadela, isso foi em parte compensado. Encontram-se aí referências enigmáticas à morte do pai do chefe berbere, o qual conclui:
«Foi ele quem me iniciou na morte e me obrigou quando jovem a olhá-la
bem de frente, porque ele nunca fechou os olhos.»
Ao omitir a identidade de Jean de Saint-Exupéry no seu artigo,
o jornalista de La Croix fazia involuntariamente eco da opinião geral
sobre a família, segundo a qual ele não estava destinado a distinguir-se.
Não havia nada de relevante no seu passado celibatário até se casar aos
33 anos, provavelmente sob pressão familiar, para dar sentido a uma vida
sem objetivos.
Jean de Saint-Exupéry tinha sido oficial num regimento de cavalaria,
tal como o irmão mais novo, Roger, até aceitar um emprego de agente
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OLHAR
A MORTE DE FRENTE
de seguros na companhia detida pelo pai. Ele próprio escreveu, na sua
certidão de casamento, «sem profissão». Antes de se casar, Jean desfrutou das vantagens de ser um oficial solteiro, e ainda por cima nobre,
em cidades com guarnição da província, e deve ter sido necessária uma
certa força de caráter para abandonar de ânimo leve essa vida fácil e
adaptar-se a uma existência doméstica e rural, dominada pela autoridade
feminina e por um número crescente de nascimentos, que transformou
a casa em maternidade. Participava muito pouco ou nada na administração da propriedade Tricaud e parece ter sido uma figura pouco influente.
À data da sua morte, o legado mais importante que deixou foi o título
nobiliárquico. «Tenho um nome distinto», dirá Antoine a um amigo,
Jean Escot, durante o serviço militar na aviação, em 1921. Nessa altura,
não tinha ainda decidido se seria melhor impressionar os amigos com o
seu título ou, pelo contrário, não atrair as atenções sobre as suas origens.
A morte precoce do pai teve certos efeitos no subconsciente de
Saint-Exupéry que só se revelariam mais tarde, quando vai ficando
cada vez mais hipocondríaco à medida que se aproxima da idade em
que o pai morreu. Mas, na época, Antoine partilhava o destino de muitas crianças de tenra idade que eram órfãs de pai. O nome de Saint-Exupéry é frequentemente associado aos de outros três escritores do
século xx, cujos escritos se debruçaram sobre o comportamento ético
na sociedade moderna. Dois destes humanistas, Jean-Paul Sartre e
Albert Camus, também perderam os pais muito jovens, antes de completarem 1 ano. André Malraux ainda não tinha 3 anos quando o pai o
abandonou. Embora todos tivessem sido educados em famílias dominadas por mulheres, cada um deles viria a ter uma visão muito pessoal
das questões morais, sociais e emocionais.
***
SAINT-EXUPÉRY NÃO EXAGERAVA AO vangloriar-se de ter um «nome distinto». Em 1991, o seu sobrinho-neto, Frédéric d’Agay, fez um resumo
das árvores genealógicas dos quatro avós de Antoine, que se orgulhavam de ter antepassados de prestígio. Os aspetos contraditórios do
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ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
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PRINCIPEZINHO
caráter de Saint-Exupéry, umas vezes homem de ação, outras de letras,
refletem a fusão das influências culturais e militares do passado.
As quatro linhas genealógicas tinham em comum a mesma determinação em manter a linha aristocrática graças a casamentos sob a fé
católica cuidadosamente planeados, quer em função da linhagem social
quer da fortuna. Quando Antoine rompeu com esta tradição, casando-se
com Consuelo Suncin, oriunda de uma obscura família sul-americana,
a sua decisão foi considerada tão herética como se ele tivesse abandonado a religião. Era necessária uma certa coragem para rejeitar as vantagens de um «nome distinto», com tudo o que ele acarretava em matéria
de privilégios e de promessas de apoio familiar. Até ao momento em que
o valor financeiro da obra de Saint-Exupéry se manifestou, após a sua
morte, a maioria dos parentes considerava-o uma perda de tempo e um
exemplo deplorável.
Um dos documentos que Frédéric d’Agay trará à luz do dia será
Notice sur la famille Saint-Exupéry, escrito por Fernand de Saint-Exupéry,
avô de Antoine, que recua nas suas origens até ao tempo das cruzadas.
O livro do avô deve ter-lhe inflamado a imaginação quando estudava em
Le Mans, se bem que fosse demasiado jovem para compreender por
que se contentava o descendente de uma tão nobre linhagem com viver
numa modesta casa em vez de num imponente solar. O avô, apesar de
ser diretor da Compagnie du Soleil, uma companhia de seguros, não
tinha manifestado grande talento como homem de negócios e viu-se
censurado pelos maus investimentos que abalaram a fortuna familiar.
A verdadeira riqueza era constituída pela árvore genealógica que
remontava ao primeiro Saint-Exupéry, Raymond, à cabeça do seu feudo
na região do Limousin em 1235. O nome da família teve origem numa
aldeia do distrito de Corrèze, perto de Ussel, chamada Saint-Exupéry-des-Roches. A ligação à realeza acontece no século XVI, quando uma tal
Madeleine de Saint-Exupéry desposou um Bourbon, nascido ilegítimo
e que era camareiro do rei. No século XVII, a lealdade à coroa valeu a Jean-Antoine de Saint-Exupéry, capitão do Exército, a consideração pessoal de
Luís XIV, e todas as gerações a partir daí tiveram os seus heróis militares.
Na sua maioria, eram soldados, e alguns tomaram parte na Guerra da
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A MORTE DE FRENTE
Independência dos Estados Unidos, enquanto outros engrossaram as
fileiras dos émigrés monárquicos contra Napoleão após a Revolução.
Os laços militares com a realeza foram reforçados durante a
Restauração e o Segundo Império, cuja queda em 1870 pôs fim à carreira administrativa de Fernand de Saint-Exupéry enquanto sous-préfet,
o representante do governo nacional. A sua lealdade aos Bourbons
impedia-o de servir uma república.
***
O AVÔ DE ANTOINE nasceu em 1833 perto de Bordéus, no castelo de
Malescot, na região vinícola do Margaux. A mãe de Fernand era filha de
um negociante de vinhos, e foi devido a alguns investimentos malsucedidos na vitivinicultura e ao ataque de filoxera que a fortuna familiar se
desmoronou. O casamento de Fernand com Alix Blouquier de Trélan,
cuja família era originária de Tours, trouxe uma certa saúde financeira.
Mais uma vez, a ascendência de Antoine encontra-se estreitamente ligada às causas militares que opuseram a família de Trélan
e o exército revolucionário de Napoleão em Vendée. Não é de estranhar que as duas famílias dos avós de Antoine tenham sido defensoras ardentes da monarquia legitimista dos Boubons e feito inimigos
no seio dos republicanos ao defenderem uma nova restauração. Este
envolvimento na causa monárquica viria a influenciar fortemente a
adolescência de Saint-Exupéry.
A amante do rei Francisco e outras histórias
SE SAINT-EXUPÉRY DESCOBRIU A maioria dos seus antepassados paternos
graças às investigações do avô, o contacto com a família materna era
mais pessoal e embelezado pelo talento da mãe como contadora de
histórias. A caraterística militar dominante do lado paterno foi assim
compensada pela veia artística presente na ascendência de Marie
Boyer de Fonscolombe.
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ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
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PRINCIPEZINHO
Originária da nobreza do século XVIII, a família deixou em Aix-en-Provence uma herança cultural secular. Contam-se entre os seus descendentes numerosos pintores, músicos, escritores, colecionadores de
arte e cientistas. Marie sentiu-se desde criança encorajada a pintar e a
escrever, e os seus filhos cresceram num universo do qual guardaram
uma recordação particular: a mãe a contar-lhes histórias enquanto lhes
pintava os retratos.
Por outro lado, os laços que uniam Saint-Exupéry a Le Mans, no distrito do Sarthe, a ocidente, nunca tiveram o encanto criado pela atmosfera mais calorosa e soalheira das terras do Sul. Depois de enviuvar,
Marie refugiou-se primeiro no castelo de um familiar em Aix com os
seus filhos. Quarenta anos mais tarde, a Provença seria a última imagem
que Antoine levaria consigo da França antes de o seu avião desaparecer
no Mediterrâneo.
O castelo provençal de La Môle, perto de Saint-Tropez, onde Marie
cresceu, tinha sido adquirido em 1770. Praticamente cem anos mais
tarde, o avô, Emmanuel de Fonscolombe, ganhou o título de barão de
La Môle sob o reinado de Napoleão III. Desposou depois a filha de um
armador marselhês e tornou-se presidente da câmara da vila, passando
parte do tempo a compor música.
As opiniões monárquicas da família Fonscolombe eram ainda mais
impressionantes do que as dos Saint-Exupérys. O tio de Marie, o barão
Fernand, que tinha desposado a herdeira de um banqueiro marselhês,
foi ajudante de campo do conde de Paris, pretendente ao trono de França.
O castelo do tio Fernand, em Aix, foi um dos numerosos lares aristocratas onde Antoine passou parte das suas férias.
A mãe de Marie pertencia à família feudal Romanet de Lestrange,
com múltiplas ramificações. Uma das suas antepassadas tinha a fama
de ter sido amante de Francisco I, no século XVI, enquanto outro era
superior da ordem dos trapistas durante o Primeiro Império e teria convencido Napoleão a adotar uma atitude mais moderada em relação às
ordens religiosas.
A mudança da futura Marie de Saint-Exupéry para Saint-Maurice-de-Rémens deveu-se aos dotes casamenteiros de Gabrielle de Tricaud,
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A MORTE DE FRENTE
unida por casamento a uma família que possuía outros castelos nas
redondezas. Uma vez que o dote de Marie era relativamente pequeno,
a tia Gabrielle teve de se empenhar numa busca exaustiva de um possível marido no seio dos seus próprios parentes. Entre os seus ascendentes, havia um marquês, Joseph de Lestrange, que tinha sido feito
barão por Napoleão em 1814. O marquês casou-se com uma jovem
nobre chamada Adelaïde Green de Saint-Marsault. Em 1790, a prima
de Adelaïde, Victoire Green de Saint-Marsault, desposou um fidalgo de
província, Georges de Saint-Exupéry, conde de Saint-Amans. Este longínquo enlace foi o suficiente para desencadear uma eventual aliança
com a família Saint-Exupéry. O potencial esposo, Jean de Saint-Exupéry,
foi enviado a Lyon como agente de seguros para representar a Compagnie
du Soleil. Marie, na altura apenas com 17 anos, foi apresentada nos
jantares e nas soirées musicais de quarta-feira organizados pela tia no
apartamento da praça de Bellencour.
Um século após o seu casamento, considera-se ainda que Marie teve
sorte em desposar um «nome distinto», apesar da posição social da sua
família e da fortuna exígua de Jean de Saint-Exupéry. Todavia, os talentos casamenteiros da tia Gabrielle não chegaram para encontrar marido
para a irmã de Marie, Madeleine de Fonscolombe, que sacrificou as suas
hipóteses de se casar para cuidar da mãe viúva.
Madeleine tornou-se parte do círculo feminino protetor de Saint-Maurice. Uma fotografia dela de perfil, olhando o sobrinho, revela uma
parte dos traços hereditários dos Fonscolombes. O nariz arrebitado de
Antoine, que lhe valeria gracejos públicos até à idade adulta, vinha-lhe
da família materna.
***
OBSCURAS FORÇAS POLÍTICAS TIVERAM igualmente um papel preponderante
nos primeiros anos de Saint-Exupéry. Observada do interior, a identidade de opinião dos aristocratas não era tão evidente como se poderia
supor. O clã legitimista de Fernand de Saint-Exupéry nutria algumas
suspeitas em relação à família dos Fonscolombes, afetos ao pretendente
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ANTOINE
DE
SAINT-EXUPÉRY: VIDA
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de Orleães. Segundo André de Fonscolombe, um diplomata na reforma
que era o primo preferido de Antoine, a sua família era suspeita de ter
sido contaminada pelas perigosas ideias socialistas desde o século XVIII,
com o compositor Emmanuel de Fonscolombe.
Na época, os aristocratas esclarecidos ficaram sob a influência do
conde Claude de Saint-Simon, um precursor das campanhas a favor
da igualdade do Homem e da partilha da propriedade. Emmanuel era
amigo do compositor Félicien David, também ele discípulo de Saint-Simon. Quando as famílias Saint-Exupéry e Fonscolombe se uniram
em 1896, os ideais de Saint-Simon eram ainda considerados pela maioria dos monárquicos como uma traição.
Aos olhos da linha militar de Ferdinand de Saint-Exupéry, o compositor Emmanuel de Fonscolombe, avô de Antoine, era uma pessoa
de pouco valor. Era membro da Academia de Santa Cecília, em Roma,
e maestro de capela, em Aix-en-Provence, onde compôs missas e motetes e redigiu um estudo sobre o músico veneziano Carissimi. O pai de
Marie, Charles de Fonscolombe, era também compositor e insistiu que
as suas duas filhas tivessem lições de piano, que continuaram em Saint-Maurice. Todos os filhos de Marie aprenderam a tocar um instrumento,
enquanto ela própria acrescentava aos seus múltiplos talentos a composição de música sacra sobre textos em provençal.
André de Fonscolombe ia amiúde a Saint-Maurice, onde se recorda
de ter ouvido tocar, sob a direção de diversos professores de música profissionais, trechos de Hahn, Fauré, Schumann, Schubert e Massenet.
Antoine aprendeu violino, mas o seu principal dom era um repertório
de cantos folclóricos que fazia as delícias dos companheiros de escola
e mais tarde dos amigos pilotos. Nem sempre respeitava o interesse
que a mãe nutria pela música contemporânea, em particular a de
Debussy. Já adulto, repetia frequentemente a sua brincadeira musical
preferida: fazer rolar laranjas sobre o teclado do piano, desafiando os
amigos a negarem que o resultado era tão divertido quanto uma partitura de Debussy.
A abertura de espírito de Marie de Saint-Exupéry relativamente à cultura moderna manifestava-se também na pintura, como testemunham
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A MORTE DE FRENTE
os seus excelentes trabalhos em pastel. Um dos seus antepassados,
Jean-Baptiste de Fonscolombe, tinha sido membro da Academia de
Belas-Artes de Marselha e da Academia das Artes do Desenho em Itália,
embora a inspiração dela fosse mais contemporânea, como atestam
os seus últimos retratos, que lembram as obras de Marie Laurencin.
Tendo em conta a influência filosófica de Saint-Simon que se agitava
em segundo plano, é pouco verosímil que Fernand de Saint-Exupéry
tenha acolhido de modo favorável a incitação da nora ao individualismo
e à tolerância e a sua pretensão de querer pôr a cultura quase ao nível da
religião. Contudo, no plano familiar, a sua autoridade sobre a educação
das crianças era limitada.
A lei francesa sustentava a ideia de que as mulheres eram incapazes de tomar decisões com independência, devendo, por conseguinte,
submeter-se aos homens. As necessidades afetivas não eram tidas em
conta. Antoine e o seu irmão François viveram sob a tutela de facto de
um conselho familiar encabeçado pelo avô paterno, Fernand. Nas questões espirituais, Antoine estava sob a alçada do seu tio e padrinho Roger,
a quem a honra obrigava, na ausência de um pai, a alimentar no sobrinho uma forte vocação religiosa.
Quando Antoine fez 9 anos, foi decidido que ele devia preparar-se
para desempenhar as funções de chefe de família e para uma carreira
militar. De um dia para o outro, arrancaram-no à indulgência do universo feminino de Saint-Maurice para o lançarem na atmosfera austera
e viril de um colégio de jesuítas, em Le Mans, onde em tempos o pai e o
tio tinham sido alunos internos.
Um lugar de doutrinação
O COLÉGIO DE NOTRE-DAME-DE-SAINTE-CROIX dá hoje para a rue Antoine
de Saint-Exupéry, uma ruela situada no centro de Le Mans, antigamente chamada rue des Vignes. Da passagem do escritor por esta
escola, onde entrou a 7 de outubro de 1909, existem apenas ténues
referências. A escola mudou de sítio duas vezes antes de Antoine a
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DE
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ter deixado definitivamente em junho de 1915, e a construção gótica
original foi confiscada pelo Estado em 1911 para ser transformada
em caserna. A ligação mais tangível a Saint-Exupéry é o atual edifício central na rue Prémartine, onde Antoine estudou e que serviu
durante algum tempo como sala de aulas.
Os padres que o rodeavam eram missionários devotados a um catolicismo tradicional e inflexível, que administravam um regime diário de
sacrifício religioso e disciplina militar. Hoje, essas regras severas foram
abolidas. Notre-Dame-de-Sainte-Croix mantém-se uma instituição católica particular associada à Companhia de Jesus, mas o reitor é laico e as
aulas são mistas. Rapazes e raparigas seguem um programa de estudos
tolerante, no qual a religião é encarada mais como tema académico do
que como uma cruzada.
O uniforme azul-marinho ao estilo dos cadetes que Saint-Exupéry
também usou desapareceu há muito. Os estudantes vestem-se como
qualquer adolescente francês e mostram pouco respeito por autoridades
intolerantes. O interior do edifício central transformou-se de tal maneira
que já não resta sequer um vislumbre da rígida rotina dos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, embora no exterior o monumento
aos mortos em combate sirva de lembrete. Muitos dos rapazes frequentavam o colégio como fase de preparação para a academia militar. Mais
de 50 nomes de oficiais mortos nas curtas batalhas de 1940 e após a
Libertação estão gravados no monumento; de todas as escolas de França,
um dos que revelam um maior número de ex-alunos mortos.
Apesar de os jesuítas de Notre-Dame-de-Sainte-Croix ainda se
encontrarem presentemente na primeira linha da batalha pela defesa
da educação religiosa contra a indiferença de uma república laica, não
há qualquer comparação com a luta da Igreja Católica contra o Estado
republicano laico que foi implantado após a derrota frente à Prússia de
Bismarck. O colégio tinha então a vocação nacional de recrutar acólitos
para uma verdadeira cruzada pela defesa da fé dos antepassados, posta
em perigo pela interdição governamental do ensino religioso nos estabelecimentos públicos. As escolas jesuítas encarregaram-se de preparar
deliberadamente os jovens para concorrerem às academias, de matriz
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A MORTE DE FRENTE
militar ou civil, conhecidas como as grandes écoles, que se tinham tornado
bastiões anticlericais após a Revolução. As famílias nobres e burguesas apoiaram vigorosamente a iniciativa e financiaram-na, e, em 1939,
os estudantes das academias eram, na sua maioria, conservadores.
Quando Antoine chegou a Le Mans, o seu tio, Roger de Saint-Exupéry,
era uma importante fonte de informações sobre o que significava fazer
uma guerra santa contra um Estado pagão. Tinha iniciado os seus estudos em 1876, quatro anos depois de Jean, o pai de Antoine. Os Saint-Exupérys estavam diretamente implicados, com outros nobres da região,
no financiamento do colégio que tinha sido, em 1870, um dos centros de
resistência à invasão alemã. Situada, na época, num imponente edifício
construído como uma abadia, a escola foi transformada em quartel para
os soldados franceses, muitos dos quais foram depois ali medicamente
assistidos, quando o sítio se tornou um hospital militar. Antes de o edifício ser devolvido ao seu uso original, os regimentos de Bismarck ocuparam as salas de aulas, que transformaram em cavalariças. A ocupação
deixou amargas recordações que, mais tarde, convenceriam a família a
enviar Saint-Exupéry para um colégio na Suíça para o proteger durante
a Primeira Guerra Mundial.
Após a guerra contra os prussianos, os jesuítas assumiram o controlo dos destinos da escola, até então dirigida por outra ordem religiosa.
A partir dessa época, foi mais um lugar de doutrinação do que uma instituição educativa, com os padres a combaterem os republicanos com a
mesma veemência que utilizariam mais tarde na luta contra o comunismo. As sangrentas reminiscências da Comuna de 1871, no decurso
da qual foram executadas personalidades religiosas pelo governo revolucionário, eram constantemente lembradas, tal como os communards
nunca esqueceriam os massacres perpetrados pelo Exército, apoiado
pela realeza e pelo clero.
Até à sua chegada a Le Mans, a educação formal de Antoine limitara-se a dois anos numa escola preparatória católica em Lyon. Ao mesmo
tempo que tentava seduzi-lo com o sectarismo religioso, o colégio serviu
também para a sua iniciação, tão cruel como prematura, à condição de
adulto. Em 1909, as aulas ainda decorriam no edifício gótico original,
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SAINT-EXUPÉRY: VIDA
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mas o conflito entre os jesuítas e o Estado ia aumentando. A querela
sobre o ensino religioso privado provocou o surgimento de fações mais
radicais no seguimento do caso Dreyfus, altura em que a escola se tornou, através da Ação Francesa dirigida por Charles Maurras, um campo
de recrutamento para o movimento antissemita e monárquico.
O ambiente em Notre-Dame-de-Sainte-Croix era espartano. O financiamento privado era tão limitado que não existia aquecimento no refeitório, onde 250 rapazes comiam a sua magra ração de caldo tépido sem
tirarem os sobretudos. As refeições decorriam em silêncio, tendo apenas
como fundo leituras litúrgicas.
Os colegas de Antoine eram, na sua maioria, originários de famílias numerosas com fortes tradições monárquicas. Era frequente 10 ou
12 irmãos serem distribuídos por classes diferentes, com o recorde das
famílias De Romanet e De Maury, cada uma com 19 filhos. A única
alteração pedagógica notável desde os tempos de escolaridade do pai
de Antoine era que o latim deixara de ser a língua principal no ensino.
O único senão era o horário carregado, digno da Idade Média, se bem
que Antoine, como externo, beneficiasse de um regime ligeiramente
menos rigoroso do que os internos, que tinham de se levantar às
5h30 da manhã. Foi a mãe que o inscreveu na escola, vivendo uma
parte do ano com Antoine e François, que ficaram primeiro em casa
do avô Fernand, uma casa burguesa, cinzenta e triste, no número
39 da rue Pierre-Bellon, a meia-hora de caminho do colégio.
A residência de Fernand era espaçosa, comparada com a que Marie
de Saint-Exupéry arrendaria no número 21 da rue Clos-Margot, para aí
viver com os filhos quando vinha a Le Mans. Tanto o interior como o
jardim eram exíguos. No resto do ano, ficava com as filhas em Lyon ou
em Saint-Maurice, enquanto Antoine e François ficavam a cargo de uma
tia, Anaïs de Saint-Exupéry, dama de honor da duquesa de Vendôme,
pertencente à família real francesa.
O impacto de ser transferido à força para tão longe da atmosfera
alegre de Saint-Maurine está bem patente numa foto da escola, com
Antoine de pé e expressão estoica, no meio de alunos que parecem em
estado de choque perante os sacrifícios esperados de crianças de 9 anos.
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A MORTE DE FRENTE
Outro aluno externo, Paul Gaultier, colega de turma de Antoine e futuro
jornalista, recordará estes rigores na revista que assinalou o centenário
da escola, em 1971. Todos os rapazes tinham de assistir à missa das 7h30,
seis dias por semana, e à grande missa das 8h30 ao domingo. As aulas
acabavam às 19 horas, e os alunos só tinham autorização para passar
a tarde de domingo em sua casa. Tinham de lutar a todo o momento
com o frio, com a água a gelar nas garrafas de mesa, e muitos deles
sofriam de frieiras, mas o pior era o temor dos castigos.
O mais intolerável deles era la colle, ou detenção, geralmente aplicado
nos períodos de repouso da quinta-feira e do domingo à tarde. Nos dias
do Senhor, a manhã era prolongada por mais uma hora de instrução
religiosa depois da grande missa, mas o tempo de lazer era muitas vezes
substituído por estudos suplementares para punir a turbulência, a falta
de atenção nas aulas ou a falta de entusiasmo pela instrução religiosa.
Também as brincadeiras no pátio eram fortemente vigiadas, e a
menor falta era reprimida de imediato pelos padres. Os alunos eram
obrigados, por exemplo, a fazer uma corrida de cinco ou seis voltas
em torno do grande campo de jogos, ou a ficar de castigo junto a uma
árvore durante todo o recreio. As faltas mais graves eram passíveis de
açoites com o chicote.
A individualidade não era encorajada. As saídas efetuavam-se
sempre em grupo, e a maioria das excursões limitava-se a peregrinações religiosas. Antoine descreve, numa carta à mãe datada de 1910,
um destes passeios no início do verão, quando foi à abadia beneditina
de Notre-Dame-du-Chêne, em Solesmes, num carro puxado por cavalos
apinhado de estudantes. O tom era humorístico e sem qualquer recriminação, ao contrário do que acontecerá anos mais tarde quando Antoine
evoca o sofrimento por que passou em Le Mans durante a ausência da
mãe, quando esta estava em Lyon e não podia protegê-lo.
«Lembro-me de quando a mãe ia ao colégio e pedia ao padre-perfeito que acabasse com as colles», escreveu. «Eu costumava regressar a casa com a minha grande mochila às costas, soluçando por ter
sido punido — era Le Mans, lembra-se? —, e só os seus beijos e
abraços me faziam esquecer tudo. A mãe era o apoio todo-poderoso
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DE
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contra os vigilantes e os padres-perfeitos. Sentíamo-nos em segurança em sua casa; éramos só seus. Era bom.»
Nos últimos dias que precediam as férias grandes, a disciplina
afrouxava, e os alunos tinham permissão para tomar banho na ribeira
vizinha. Caso contrário, o desporto era encarado como um trabalho de
equipa vigoroso e violento. André Dunant, outro antigo aluno, recorda-se de que os jogos eram geralmente «muito viris». Os jogos de futebol opunham equipas de 50 rapazes, jogava-se com duas bolas e não
existiam muitas regras.
A maioria dos jogos recuperava elementos tático-militares, particularmente le jeu des boucliers, o jogo dos escudos. As turmas eram
divididas em dois campos que se batiam com a ajuda de bolas, tendo
por finalidade capturar a bandeira do adversário.
«Não havia rancor por causa da disciplina, pois muitos dos rapazes
estavam destinados a ingressar nas grandes écoles, como a Politechnique
e a Centrale, que preparavam engenheiros civis e militares», recorda
André Dunant. «Mais tarde, fui cadete da academia militar de Saint-Cyr,
e não havia nenhuma diferença entre a disciplina militar e a educação
dada em Notre-Dame-de-Saint-Croix.»
Este regime rigoroso, acompanhado de intensos estudos religiosos,
preparou ainda muitos alunos para a vida de renúncia do sacerdócio;
um dos colegas de Saint-Exupéry das turmas mais avançadas tornou-se
bispo de Le Mans.
***
À EXCEÇÃO DAS CARTAS para a mãe, existem poucas referências a Le Mans
nos escritos de Saint-Exupéry, se bem que ele confesse mais tarde aos
amigos que raramente se sentira feliz lá. Para uma natureza tão sensível
como a sua, a atmosfera de intolerância, sobretudo quando estava separado da mãe, devia ser uma verdadeira tortura, à qual ele se limitava a
reagir com uma passividade melancólica.
As suas notas de comportamento, postura e assiduidade eram geralmente medíocres. Os primeiros meses foram decerto os mais penosos,
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A MORTE DE FRENTE
mas os anos escolares mais desastrosos foram os de 1913 e 1914.
Até então, ele sofreu resignadamente em silêncio, e os seus primeiros
boletins escolares revelavam uma civilidade sem mácula. Entre 1913 e
1914, a avaliação da sua civilidade caiu para «E», numa escala alfabética descendente, ao mesmo tempo que a sua conduta em geral
recebia a menção de «EI», consideradas como «muito más notas».
Esta rebelião foi mais grave do que a habitual insolência da adolescência porque Antoine arriscou-se a ser expulso.
Cada «E» era punido com duas horas de castigo. Como Antoine
obteve sete «EI» e seis «I», o que ainda era pior, nos três meses que
precederam as férias de verão de 1914 teve de sacrificar a maior parte do
seu tempo livre. Não se apresentou no primeiro trimestre do outono
de 1914, e quando regressou para os dois últimos trimestres do ano
letivo de 1914−15, a sua conduta pouco melhorou, mas pelo menos não foi
castigado por impertinência.
A origem do problema residia num desentendimento com o avô,
Fernand. Desde muito jovem que Antoine tinha aceitado a autoridade
incontestada desta figura patriarcal de barbas brancas. Podemos adivinhar o deslumbramento juvenil suscitado pelo imponente patriarca por
trás de uma enorme secretária n’O Principezinho, onde se pode reconhecer no geógrafo uma caricatura do avô. A sua casa na rue Pierre-Bellon era, sem dúvida, mais enfadonha do que a de Saint-Maurice,
mas possuía uma biblioteca extraordinária, dotada de uma coleção de
livros raros iniciada pelo pai de Fernand. Antoine pôde consultar alguns
volumes preciosos, em particular uma obra de astronomia encadernada
a couro que o impressionou o suficiente para figurar à cabeça das informações que levou para Saint-Maurice no seu regresso para as férias do
verão de 1911.
À medida que Antoine foi crescendo, a relação com o avô foi-se tornando mais tensa. A autoridade deste como chefe do conselho familiar
estava em contradição com as atitudes liberais de Marie de Saint-Exupéry.
Existia um conflito de personalidades e prioridades, no qual Antoine
tomava firmemente o lado materno. Charlotte Churchill, uma das primas de Antoine, contou à intelectual americana Helen Crane que ele
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estava muitas vezes em desacordo com o avô, e vice-versa. Atribuía isso
aos seus temperamentos meridionais expansivos, explicando assim o
facto de serem os dois grandes faladores. Antoine tinha sido encorajado
a tomar parte das conversas, enquanto Fernand de Saint-Exupéry acreditava que as crianças deviam limitar-se a escutar.
Segundo a sua maneira rígida de ver as coisas, o neto não passava de
uma criança superprotegida que tinha de ser domada através de uma
rigorosa disciplina física. No decurso de uma conversa com Simone,
em 1912, Antoine revelou que até a sua tia Anaïs lhe batia quando ele se
mostrava insolente.
A lição mais importante que Saint-Exupéry aprendeu em Le Mans
foi, sem dúvida, descobrir quão reconfortante a camaradagem pode
ser na adversidade. Ao mesmo tempo, ele teve de aceitar as piadas
dos colegas a propósito da sua aparência. Em casa, era tratado por
Tonio. Em Le Mans, foi presenteado com duas alcunhas que o incomodaram até à idade adulta.
A primeira, Tatane, tinha que ver com o tamanho dos pés, que iriam
ser uma fonte permanente de divertimento, a ponto de se tornarem a
recordação mais nítida de uma jovem de 16 anos que dançou com ele
num bar na véspera da sua morte em 1944. Tatane seria depois substituído por outra alcunha que o aborrecia ainda mais, a de Pique-la-lune,
uma alusão ao nariz arrebitado e também ao ar distraído, que acabaria um dia por interferir com a sua carreira na aviação.
No plano académico, Saint-Exupéry raramente deixava uma boa
impressão nos professores, embora muitas das suas más notas possam
ser atribuídas a uma resistência passiva perante a autoridade. O número
de alunos da turma de Antoine variou entre os 19 e os 11, mas ele nunca
passou dos últimos lugares quanto ao seu aproveitamento. Obtinha as
piores notas em história, geografia, alemão, latim e ortografia. Os melhores resultados eram a francês, se bem que fosse considerado fraco na
gramática.
O seu interesse pela matemática e a geografia, matérias em que tivera
dificuldades em Le Mans, só se manifestou quando as pôs ao seu serviço como aviador e inventor. Na idade adulta, o aborrecimento que lhe
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A MORTE DE FRENTE
provocava a matemática em Le Mans deu lugar a uma verdadeira paixão
pela geometria. A única matéria que dominou com alguma consistência
durante a escolaridade foi a escrita, que lhe servia de avaliação pessoal e
de refúgio em períodos de angústia. As melhores notas que Antoine teve
foram em composições, entre os 12 e os 14 anos, o período que coincidiu
com a fase de maior indisciplina e impertinência.
Não foi um jesuíta intelectual que encorajou o talento literário de
Antoine. Em 1900, a ordem tinha sido expulsa de França e proibida
de ensinar. Em Le Mans, assim como noutros colégios, os jesuítas
desafiaram o governo ao deixarem para trás alguns padres jesuítas nos
bastidores e confiando o ensino a padres recrutados fora das ordens religiosas oficiais.
Estes padres diocesanos das pequenas cidades e vilas dos arredores de Le Mans prometeram seguir à letra as orientações dos jesuítas,
e fizeram-no tão bem que Notre-Dame-de-Sainte-Croix continuou como
um santuário do conservadorismo e da realeza até à Segunda Guerra
Mundial. Se a sua coragem em defender a fé contra as ingerências governamentais é de admirar, a verdade é que teve também o triste resultado
de encorajar muitos antigos alunos a fazerem escolhas contestáveis após
a derrota da França e a associarem-se ao extremismo do regime de Vichy
de Philippe Pétain e à ideologia divisionista da Ação Francesa.
Felizmente, os padres não eram desprovidos de consciência e não
podiam deixar de reconhecer um talento natural. O abade Auguste
Launay teve o mérito de ser o primeiro a aperceber-se das excecionais
qualidades de contista que Antoine manifestava. O padre é a figura central na mais notável das fotos de grupo feitas em Le Mans: 17 rapazes de
13 anos com um olhar solene, uns de pé, outros sentados, rodeiam um
padre de cara grande e severa e de cabelo à escovinha. Com a sua aparência austera, Auguste Launay, inevitavelmente alcunhado César, era
um crítico literário nato. Já antes de Antoine chegar ao 3.º ano as suas
qualidades de escritor tinham sido notadas por outros professores,
mas o abade Launay foi o único a vislumbrar o seu talento criativo, utilizando as redações de Saint-Exupéry como modelo pedagógico muito
antes de este se tornar um autor reconhecido e publicado.
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ANTOINE
DE
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E
MORTE
DO
PRINCIPEZINHO
Auguste Launay nasceu e morreu na vila vizinha de Sillé-le-Guillaume,
onde o pai era marceneiro. Na sua infância, não existia ali nenhuma escola
pública, pelo que a sua educação foi assegurada graças a uma vocação
religiosa que ele seguiu à risca durante os seus 34 anos de ensino em
Le Mans. O aspeto severo da fotografia foi confirmado por antigos alunos, que se recordam de uma pessoa distante, vestida sempre com uma
sotaina impecável e que, durante as aulas, raramente deixava a sua secretária, posta sobre um estrado. Recusava-se a tocar no giz, obrigando os
alunos a escreverem por ele no quadro negro enquanto os atormentava
com perguntas sobre a gramática do latim.
Além do latim, ensinava grego e religião, matérias contra as quais
Antoine se insurgiria quando fez 14 anos. O ambiente nas aulas de francês era bastante mais ameno, apesar das más notas de Saint-Exupéry
a gramática. O abade ficou tão impressionado com o que ele escrevia
que utilizou duas das suas composições como modelos de narrativa até à
sua saída do colégio no início da Segunda Guerra Mundial.
A mais conhecida é a «Odisseia de Um Chapéu», que conta o declínio de um chapéu alto que acaba como barrete de um chefe de uma
longínqua tribo africana. No começo do conto, que se prolonga por mais
de mil palavras, o chapéu conta como nasceu numa fábrica de chapéus,
onde «suportei toda a espécie de torturas».
Depois de cortado, esticado e lustrado, o chapéu é enviado para uma
loja parisiense, onde é um dos mais elegantes em exposição. «Eu era tão
brilhante que as senhoras que passavam não resistiam a admirar o seu
reflexo no meu lustro. Era tão elegante que nenhum cavalheiro distinto
podia olhar para mim sem sentir cobiça.» Adquirido por um milionário,
o chapéu é objeto de admiração dos amigos do senhor no clube, sendo
depois conservado e limpo com enorme cuidado durante vários meses
de «prazenteira existência».
«Um fiel criado a quem havia sido especialmente confiada a tarefa de
zelar pelo guarda-roupa do senhor cuidou de mim com lisonjeira gentileza. Polia-me todas as noites e voltava a polir-me todas as manhãs.»
O chapéu data o declínio da sua sorte no dia em que é dado como presente a um cocheiro prestes a casar-se. No primeiro dia, passa três vezes
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OLHAR
A MORTE DE FRENTE
por lama e pó sem ser limpo, e depois, «cheio de um desejo fervoroso de
vingança», encolhe e é vendido a um antiquário por 30 cêntimos.
«Este homem era um temível judeu, o nariz ligeiramente em gancho
que anunciava um rosto desonesto e mal-humorado. Depois de limpo,
fui novamente posto na montra, mas dessa vez exposto à zombaria
pública, pendurado de um cordão sujo.»
Segue-se um breve período de felicidade quando o chapéu é comprado por um jovem casal. «Mas um dia, quando Caroline e Mathieu
caminhavam pelo Sena, um violento golpe de vento transformou-me
num pássaro. Depois de vários segundos de terrível angústia, caí ao rio
e fui suavemente levado na companhia dos peixes, que olhavam, tementes, para este novo tipo de embarcação.»
Um homem andrajoso salva o chapéu, e, depois de ser sujeito a novas
torturas para reparar os estragos, é encaixotado e enviado para África.
Certa manhã, abri os olhos com a luz e fiquei horrorizado por ver
diante de mim pessoas pretas, a maioria de rostos tomados pelos
lábios e vestidas somente com um par de calções de banho fora de
moda e anéis nos narizes e nas orelhas. Sentado à parte num caixote de biscoitos, um daqueles estranhos homens segurava na mão
um cetro feito de um espanador de penas, mas que as perdera,
e vestia a pele de um leão morto com uma coragem equivalente à do
seu tamanho.
Agarraram-me duas mãos pretas, com admiração. Sobressaltei-me, amedrontado, e só sosseguei quando percebi que a tinta não saía.
Fui posto em cima da massa preta que era o rei. Ainda ali estou,
a passar dias felizes. Por vezes o meu lustro derrete-se à luz do sol escaldante, noutras o sentido prático do meu soberano fez-me ser usado
como frigideira. […]. Mas vivo em paz que chegue, a adornar a cabeça
do terrível Bam-Bum, o mais poderoso príncipe à face da Terra.
Escrevo estas linhas durante os dias da minha decadência, na esperança de que cheguem aos Franceses, contando-lhes que vivo num país
em que os chapéus estão sempre na moda e que, na verdade, quando
estiver gasto, espero mesmo ser venerado como relíquia por em tempos
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ANTOINE
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SAINT-EXUPÉRY: VIDA
E
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PRINCIPEZINHO
ter agraciado a cabeça do meu ilustre proprietário, Bam-Bum II,
rei do Níger.
Antoine de Saint-Exupéry, aos 13 anos
O manuscrito original desmentia o testemunho de colegas de Saint-Exupéry, que o descreviam como um aluno pouco cuidadoso, cujas cópias
estavam sempre cheias de nódoas. Talvez isto fosse verdade quando
o assunto não lhe interessava, mas a «Odisseia de Um Chapéu», que lhe
valeu um prémio especial no fim do ano letivo, foi redigida com uma
segurança e uma maturidade bem patentes na escrita clara e quase adulta.
Infelizmente, o outro texto modelar usado pelo abade Launay, que
relata o enterro de uma formiga, perdeu-se, embora o enredo tenha
ficado gravado na memória de vários alunos. Supostamente, o cortejo
fúnebre fora testemunhado pelo escritor Jean de la Fontaine, que o contava a um amigo. O ponto alto da redação de Antoine refletia o seu interesse pela mecânica. O cortejo era interrompido por um fio de água, e ele
descrevia o modo como as formigas construíam uma ponte de ervinhas
com a ajuda das mandíbulas.
Seria porventura agradável imaginar Antoine a regressar a Le Mans
depois de ter obtido o seu primeiro prémio com Voo Noturno, em 1931,
a fim de agradecer ao antigo professor pela sua perspicácia e encorajamento, mas ele guardava recordações demasiado amargas do colégio,
e tudo indica que não voltou lá depois de o ter deixado em 1915. Auguste
Launay não viveu o suficiente para ver a sua intuição confirmada,
quando os livros de Saint-Exupéry, principalmente Voo Noturno e Terra
dos Homens, se tornaram referências nacionais e modelos pedagógicos
em todas as escolas primárias e secundárias de França.
***
O ABADE LAUNAY ATRIBUIU 12 valores, numa escala de 0 a 20, a Saint-Exupéry pela sua história do chapéu. Tirara-lhe um ponto pelos erros
ortográficos, mas não houve nenhum comentário sobre a descrição
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A MORTE DE FRENTE
severa e racista de um dos proprietários do chapéu, um comerciante de
roupa em segunda mão, o horrível judeu de rosto hipócrita e amargo.
Não se pode atribuir a esta frase somente um simples erro de julgamento
feito por um jovem com quase 14 anos que, se calhar, nunca tinha visto
um judeu. A imagem refletia as ideias do meio em que ele vivia, onde a
maioria dos membros da família se sentia incomodada com a comunidade judaica, a que chamavam israelitas.
A ligação de Saint-Exupéry em jovem aos valores monárquicos e
antissemitas da Ação Francesa, partilhada pelos seus colegas de escola,
pusera-o em contacto com as caricaturas maldosas e caluniosas que,
mais tarde, seriam utilizadas pelo regime de Vichy como um pretexto
para a perseguição movida contra esta minoria étnica. Durante as
férias de verão que precederam a redação da sua «Odisseia», Antoine
tinha confessado a Simone que simpatizava com o movimento monárquico antissemita e que iria fundar uma sociedade monárquica secreta,
presidida por ele, para distribuir propaganda. No trimestre seguinte,
os seus colegas de turma editaram um jornal intitulado O Eco do Terceiro,
em que o humor obscurecia a pouca ambição política. Passado de mão
em mão, provocou uma hilaridade tal que atraiu a atenção de um dos
padres, que o confiscou e destruiu. É, pois, impossível saber se O Eco do
Terceiro apoiava ou não a Ação Francesa.
A passagem antissemita da sua redação de infância é menos interessante enquanto testemunho de um juízo imprudente da juventude
do que os exemplos marcantes do seu distanciamento em relação à
influência perniciosa recebida em Le Mans. Ninguém pode acusar Saint-Exupéry de ter sido antissemita na idade adulta. A sua tolerância ia bem
mais longe do que uma mera relação de confiança com os judeus, e em
Cidadela escreve uma enérgica parábola em defesa das minorias perseguidas, numa época em que Vichy tinha instaurado a caça aos judeus.
As opiniões e a escrita de Saint-Exupéry foram influenciadas muito
mais pela sua própria experiência do que pelas teorias sociais e religiosas que fascinaram muitos dos seus colegas ao longo das suas vidas.
Da estadia em Le Mans, reteve apenas algumas lições, como o valor
de uma amizade leal e a capacidade de enfrentar o sofrimento sem
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PRINCIPEZINHO
qualquer queixume. Por outro lado, a imagem rígida de Deus e dos dogmas católicos foram progressivamente modificados ou mesmo rejeitados no contacto com as realidades da vida. A intolerância, fosse ela
religiosa, social ou racial, desapareceu na idade adulta, quando se
convenceu de que a Humanidade tinha uma causa comum que transcendia as divisões e as verdades absolutas que os padres de Le Mans
persistiam em manter vivas.
***
AO MESMO TEMPO QUE anunciava a criação da sua sociedade secreta em
1912, Antoine confiou também aos irmãos, no seu regresso a Saint-Maurice-de-Rémens para as férias de verão, que um dia poderia tornar-se padre. Mas nenhuma destas duas confidências ofuscou o sucesso
provocado pelo seu novo amigo, um rato branco.
Segundo Paul Gaultier, seu colega de turma, o rato era o único
sobrevivente de um casal que lhe tinha sido oferecido pela tia Anaïs
de Saint-Exupéry. Como constava que os ratos tinham pertencido
originalmente à duquesa de Vendôme, talvez houvessem servido de
conforto às opiniões monárquicas de Antoine, que o tinham levado
a juntar a frase «pelo meu Deus, pelo meu rei e pela minha dama»
aos autógrafos que dava aos colegas.
O rato teve direito a uma gaiola perto das dos coelhos domesticados
das crianças, e a primeira noite foi passada, na sua maior parte, a planear o que ele comeria no dia seguinte. De manhã, encontraram a gaiola
aberta, e o rato tinha desaparecido. Nunca se soube se teria sido a tia
Gabrielle que dera ordem aos criados para se livrarem dele.
Passados alguns dias, o misterioso desaparecimento do rato e a efémera vocação sacerdotal de Antoine foram relegados para segundo plano
pelo acontecimento mais importante da sua vida desde a morte do pai.
Foi através do seu batismo de ar, num campo de aviação próximo do
castelo, que nasceu a paixão pelo voo, a primeira etapa de um percurso
perigoso que acabaria na sua morte violenta e solitária.
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21 mm
PAUL WEBSTER
(1937–2004),
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do piloto nunca foi encontrado. A aeronave era um
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aliada, um P-38 Lightning americano. Aos comandos
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ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
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caminhos, na última década da sua vida, fez dele
um autor de grande reputação, por trazer a lume uma
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«Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós.
Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.»
Antoine de Saint-Exupéry, in O Principezinho
PAUL WEBSTER
A biografia que revela os acontecimentos que deram origem
às personagens e histórias de O Principezinho
A biografia definitiva e apaixonante do autor
de O Principezinho , o livro que inspira gerações
BIOGRAFIA
A
ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
«Esta é uma biografia que possui todas as qualidades:
uma investigação meticulosa, bem escrita e repleta
de revelações psicológicas perspicazes.
O livro é tão bom que nos deixa a ansiar por mais.»
Sunday Telegraph
Vida e Morte do Principezinho
PAUL WEBSTER
«Paul Webster escreveu uma biografia fascinante,
ao incluir uma nova investigação sobre a vida e uma
análise cuidada sobre os extraordinários livros que
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Literary Review
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«Esta biografia está recheada de revelações.»
Le Figaro
«Uma biografia enérgica, simpática e vigorosa.»
Scotsman
«Webster percorre habilmente toda a carreira
de Saint-Exupéry, mas mantendo sempre
os seus próprios pés bem assentes na terra.»
Financial Times
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