DA INTERIORIZAÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR A DESCONSTITUIÇÃO DO SUJEITO Paulo Ricardo Ross. Os sucessivos fracassos que gradativamente vão marcando a história de vida dos Jovens e Adultos com dificuldades acentuadas de aprendizagem vão aniquilando sua própria condição de sujeito. A realidade excludente explícita na escola é um fato concreto também na Educação de Jovens e Adultos, contexto no qual se realiza esta pesquisa. A premissa é a que os sujeitos estão silenciados pelo suposto academicismo à medida que interiorizam e acumulam os sucessivos fracassos de não aprendizagem escolar. Quando concebemos um indivíduo como um ser abstrato, incapaz de travar lutas pela transformação de sua realidade, um ser que está condenado à estagnação e à passividade, então procedemos de modo autoritário e decidimos sua “vida”por ele, o que é melhor ou pior. Sob o pretexto da imobilidade do ponto de vista individual e a desmobilização do ponto de vista coletivo político, decide-se sua “felicidade” a partir de fora, impedindo-lhe de participar ativamente no projeto de sua existência. Assim o modo como a sociedade “resolve” a questão da existência dessa pessoa reflete uma concepção de homem e, ao mesmo tempo, aponta os pressupostos de sua prática escolar. No projeto de constituir a existência humana surge a necessidade do indivíduo transcender a condição imediata e aparente que lhe é imposta. O indivíduo não é um ser isolado. Então, uma eventual dificuldade visual, auditiva, física ou motora e as manifestações como estigmas, inércia e incapacidade podem ser superadas. É preciso permitir a esses sujeitos o direito de falar sobre seus anseios, desejos, cultura, avanços limites, possibilidades, saberes, enfim, falar da vida vivida. Embora a prática revele um ser fragmentado cujas metades dividem-se em papéis sociais e papel na escola, há de se considerar seus modos e formas criativas de se viver num mundo marcado pela desigualdade, resolvendo problemas buscando, nas suas significações responder aos desafios que surgem a cada percurso. E, portanto, há que se relacionar esse contexto às situações de aprendizagem formal. Assim, o objetivo desta pesquisa é identificar o valor que esses sujeitos atribuem à aprendizagem escolar e buscar nas suas falas, que saberes escolares relacionam-se ao cotidiano vivido. Através de pesquisa exploratória, pela prática da escuta, aproxima-se da confirmação da hipótese da inversão que está ocorrendo, ao contrário de se constituir sujeito vai-se, dosadamente se desconstituindo e, em conseqüência do processo intensivo de interiorização de fracassos esses sujeitos vão assumindo para si a responsabilidade pela suposta incapacidade. , a caracterização de deficiência está deslocada para o âmbito do indivíduo. Está fixada nele como se dele dependesse sua origem e sua determinação em razão da forte disseminação das teorias funcionalistas entre nós.Dificuldade para aprender converte-se em culpabilização. A incapacidade dos indivíduos deficientes, e de grupos de indivíduos, para tirar proveito dos programas fornecidos, por causa de limitações sensoriais, motoras, emocionais ou intelectuais, foi explicada em termos de posse demoníaca, retribuição de pecados dos pais, perversidade inata, castigo por delitos individuais, fraqueza moral inerente, genes defeituosos ou os inevitáveis acidentes da vida normal, segundo as crenças predominantes da época. (TELFORD, 1978, p. 48) As limitações se manifestam quando se pensa a história e a organização da escola de maneira autônoma e superior às necessidades e capacidades dos indivíduos. Essa é, pois uma concepção especulativa da história que busca tomar as manifestações das relações sociais objetivas próprias de um dado momento e convertê-las em natureza humana dos indivíduos. Mas as condições atuais de trabalho dos sujeitos e suas formas de interpretação do mundo não são próprias de sua natureza, mas são manifestações inerentes a um determinado estágio de exclusão social. Vincula-se a isso um estágio atingido pela capacidade de organização e de enfrentamento político de suas necessidades. Não se pode preestabelecer uma determinada condição social ao indivíduo tendo em vista uma compreensão dele em abstrato, fora de seu conteúdo social. Há pois que compreendê-lo a partir da totalidade das ações concretas construídas no passado e no presente para, então, estimar possibilidades de atuação no futuro. Contraditoriamente, a escola, espaço institucional privilegiado à difusão do saber histórico e social, preconiza como uma das principais funções a de contribuir para a formação de sujeitos ativos, criativos, participantes consolidando um processo democrático e emancipantório. Segundo MOLL (2003, p.22) por meio “de processos educativos, podemos rever formas de ser e de estar no mundo, tecendo compromissos comuns em torno de utopias de fraternidade e de alegria compartilhada entre todos”. O processo educativo em específico direcionado a jovens e adultos deve estar intrinsecamente relacionado à prática de vida desses sujeitos seus modos de ver e atuar no mundo, seus desejos e necessidades, sem pretensão em demasia é preciso conhecer quem são os alunos e alunas que freqüentam a Educação de Jovens e Adultos, é conhecendo-os que tomamos ciência de o quanto o modelo social excludente os atingem e os aniquila de forma desumana e, do mesmo modo como esse modelo é implementado em grande parte por uma lógica escolar homogeneizante, discriminatória, classificatória avessa a qualquer hipótese de se contribuir de fato para a formação de sujeitos. A referida hipótese adquire dimensões alarmantes quando analisada sob a ótica de Jovens e Adultos com histórico de Dificuldades Acentuadas de Aprendizagem, compreendidos nesse “grupo” alunos egressos de programas da Educação Especial ou diagnosticados por seus professores como sendo alunos com dificuldades acentuadas de aprendizagem, em ambas as situações trata-se de alunos que além de “carregar” todas as formas de exclusão impostas aos sujeitos menos favorecidos têm de conviver com um longo histórico de fracasso escolar. Propiciar práticas nas quais os sujeitos da aprendizagem possam perceber-se de fato capazes, é um desafio posto à escola e obviamente à própria prática pedagógica, porém, tal desafio não refere-se tão somente às questões de cunho metodológico retificando a idéia de VIZIM, (2001, P. 170), “faz-se necessário um trabalho que atinja as mentalidades e, portanto, a valorização da diferença no processo democrático”. O convívio com a diversidade possibilitará prescrever uma trama de novas demandas aonde os sujeitos do processo vão constituindo-se e firmando a própria identidade. Pode-se afirmar que, é na possibilidade de atuar interativamente que permite-se ao outro ou não a condição de se constituir sujeito. Partindo dessa premissa busca-se a partir das falas de Jovens e Adultos com dificuldades acentuadas de aprendizagem, em que medida a interiorização da situação de fracasso escolar vai tecendo uma rede de desconstituição do sujeito? O sujeito de acordo com os pressupostos de Vygotsky (1996), pode ser analisado como um modelo da sociedade, uma vez que, nele é possível visualizar o reflexo das relações sociais na sua totalidade. A partir dessa análise pode-se inferir que o sujeito não se constitui isoladamente e de igual modo é sob o olhar do outro, seus julgamentos, seus padrões pré-estabelecidos que o sujeito/Eu vai se desvelando ou mesmo se aniquilando. MOLON (2003), ao realizar a análise da constituição do sujeito na perspectiva vygotskyana, aponta “ser reconhecido pelo outro é ser constituído em sujeito pelo outro, na medida em que o outro reconhece o sujeito como diferente e o sujeito reconhece o outro como diferente. Eu me torno o outro de mim e me constituo a partir do outro”. Em se tratando de alunos com histórico de fracasso escolar o problema consiste justamente nesse ir e vir, pois o contexto no qual são inserido, em geral é constituído por uma única face, a do outro que insiste em não reconhecer a diferença e, obviamente quando a diferença não é problematizada como princípio de aprendizagem passa então a ser determinante e nesse caso de um sujeito fracassado, que gradativamente vai se desconstituindo. O contexto marcado por fracassos é reforçador dos esteriótipos deslocados da realidade em que são construído e impostos ao sujeito, para BRUNEL (2004, p. 21), é necessário (re)significarmos o lugar “simbólico” destes alunos e superarmos o rótulo de fracassados que freqüentemente a comunidade escolar os impõe, e retomar com eles sua posição de sujeitos no processo educativo”. A prática revela um contexto desumano no qual a grande falácia de contribuir para a formação de sujeitos críticos, ativos, atuantes, apresenta-se impregnada de contradições e o sujeito a ser constituído vai em doses homeopáticas absorvendo a condição de fracasso interiorizando-a e desconstituindo-se, ou seja, vai convencendo-se da incapacidade que lhe é reafirmada cotidianamente. Essa prática recheia-se da linearidade padronizada em detrimento ao que argumenta PINTO (1997, p.84) propiciar de fato a constituição do sujeito implica em “praticar um método crítico de educação de adultos que dê ao aluno a oportunidade de alcançar a consciência critica instruída de si e de seu mundo”. Contrário ao que preconiza o autor o que se evidencia são pessoas cujas trajetórias escolares são marcadas por insucessos e, embora esse, seja aferido pelo outro – o professor- o ônus é único do aluno. O condição de silenciamento imposta pelo ato de não responder adequadamente aos conteúdos escolares contribuem para que esses sujeitos apropriem-se do fracasso a ponto de se negarem a possibilidade de aprendizagem, como pode-se analisar a partir da seguinte fala: “coitada da professora ela se preocupa comigo, mas eu não aprendo mesmo” (M. F. 55 anos). É notável a supremacia das aprendizagens escolares, a idéia de que somente por meio desses saberes é que se possa constituir-se é subjacente e, de alguma forma foi ao longo da história escolar desse sujeito sendo impregnada culminando na descrença nas próprias capacidades. Por meio da prática da escuta busca-se desvelar a voz desses sujeitos, no entanto, conforme bem assinala BARBIER, (1993, p.212) escuta não compreende só a audição, ela engloba outros sentidos, “o tato, o gosto, a visão e o olfato precisam ser desenvolvidos na escuta sensível” A partir da escuta, registro e análise das falas dos sujeitos envolvidos, busca-se legitimar o poder da voz, condição que exige dos educadores a humildade da escuta, a qual não se faz na oposição do falar narrativamente ao outro, mas na possibilidade que se funda no falar com eles. De acordo com DANTAS (1992, p.95) “a construção do Eu é um processo condenado ao inacabamento”, exposto à aprovação do outro. Libertar-se do outro expulsando o que está alheio dentro de si é um caminho seguro para a constituição do Eu. Portanto, a escuta prima pela possibilidade de expulsar o olhar aniquilador do outro que deixa marcas indeléveis na constituição de cada sujeito. As falas desse sujeitos são precisas e deixam claro que ao passo que interiorizam a situação de fracasso frente as aprendizagens escolares, deixam de se perceber sujeito, como na fala que se apresenta a seguir: “não aprendo porque tenho problema de cabeça. Mas, tenho que aprender as lições pra crescer” (D. 16 anos). É possível visualizar no contexto a lógica do aprender para crescer, pautada num processo total de negação do próprio Eu, que se curva ao mérito da aprendizagem escolar e como reforço assume-se o “problema de cabeça” como fator causal da situação de fracasso reduzindo todas as possibilidades de se constituir sujeito de aprendizagem. Engajar-se pela complexa totalidade de cada sujeito remete ao desenvolvimento de espaços para falas e escutas de modo a “prestar atenção nas emoções que as palavras suscitam, como alterações de vozes, sensação de conforto ao dizê-las. Escutar é construir juntos um diálogo prazeroso,...” (BRUNEL, 2004 p. 24) Para tecer algumas considerações sobre o contexto que vem se desvelando ao longo da pesquisa busca-se analisar o ápice de todo esse contexto de restrição e silenciamento o qual caminha para o mais sólido desencanto, caracterizado por GENTILI (2001, p.41) como sendo “sempre de uma forma ou outra tristeza”, considerando sempre o enfoque da desconstituição do sujeito frente aos sucessivos fracasso na aprendizagem escolar. A trajetória escolar desses jovens e adultos com histórico de dificuldades acentuadas de aprendizagem é muito semelhante a de outros sujeitos dessa etariedade que não apresentam as supostas dificuldades, é de igual modo marcada pela exclusão, pela tristeza pelo desencanto de tal forma que o direito à capacidade expressiva do pensamento e na possibilidade de atuar cooperativamente é rechaçada em virtude da condição de fracassado. A subjetividade de cada indivíduo, a propósito - in-divisível -, um ser que não pode ter sua vida divida em vida escolar e vida cotidiana, tendo claro que viver e aprender não são duas faces de uma mesma moeda, mas constituem um todo que ao ser analisado sob qualquer ângulo evidencia uma junção. Romper a dicotomia retomando, dialogando e refletindo acerca dos inúmeros impedimentos que se impõem ao jovem e adulto, em específico no contexto educativo, implica em re-significar o contexto pedagógico buscando garantir o direito à prática pedagógica humanizadora no sentido de valorizar as diferenças negando a prática da comparação entre os sujeitos. O direito à voz quando decidem por e para eles (as) o que é melhor, sem considerar seus desejos, anseios, expectativas e objetivos que os impulsionam a estar ou retornar à escola. O direito de optarem pelo que realmente desejam aprender quando adentram a escola e porque estão em busca de determinados conhecimentos. O direito de expressar significativamente todas as aprendizagens que detém antes mesmo de adentrar a escola ou as aprendizagens que tiveram acesso quando passaram pela escola, buscando desvelar o que de fato os permitem tornarem-se sujeitos. Considera-se então que, não se pode pretender permitir ao outro tornar-se sujeito quando se determina a partir de um currículo único o que o constituirá sujeito, essa postura apenas reforça a discriminação arbitrária desses jovens e adultos, pois, mais uma vez a condição de sujeito se dará a partir de suas respostas adequadas ao padrão homogêneo determinado, ou seja, responder satisfatoriamente a demanda da leitura e escrita convencional, da arte, da história da geografia da biologia entre outras áreas do conhecimento, implica a possibilidade de constituir-se sujeito. É preciso então problematizar como se configura nesse caso a desconstituição do sujeito no espaço em que se preconiza contribuir para constituição do mesmo, de modo a compreender que o fracasso não uma condição isolada de responsabilidade única do aluno é acima de tudo uma situação socialmente construída que vai se configurando ao longo da vida do sujeito. Escutar é mais que isso questionar a condição na qual encontram-se esses sujeitos desvela a impossibilidade de se atribuir tal condição a suposta dificuldades acentuadas de aprendizagem, pois, parte-se do pressuposto que todas as pessoas são sujeitos de aprendizagens. Deslocar o olhar da (im)possibilidade de se constituir sujeito por conta da atribuição de incapacidade implica direcionar esforços para o contexto relações sociais e o modo como essa podem servir de anteparo tanto para a constituição quanto a desconstituição dos sujeitos, segundo SMOLKA “não é o que o indivíduo é, a priori, que explica seus modos de se relacionar com os outros, mas são as relações sociais nas quais ele está envolvido que podem explicar seus modos de ser, de agir, de pensar de relacionar-se” (2000, p.30). Assim, os conhecimentos, valores e conceitos, que construímos sobre nós mesmos e sobre o mundo não existem a priori, mas sim ganham corpo e forma no processo de apropriação das práticas sociais, um processo marcado pela mediação do outro. Na perspectiva vygotskyana “tudo que é interno nas funções superiores, foi primeiro necessariamente externo”, mediado pelas relações entre os sujeitos e o mundo externo. Assim o campo das relações sociais é destacado como espaço de produção de signos e sentidos, de significação, e como tal, de produção de nossas subjetividades. Nesse contexto instiga-se a refletir como esses sujeitos jovens e adultos com histórico de dificuldades acentuadas de aprendizagem vêm-se percebendo sujeitos, suas possíveis relações na condição de fracassados com os objetos de conhecimento, com a diversidade de informações e conhecimentos que perpassam o seu(dele) cotidiano, considerando a restrita quase nula possibilidade de expressar e representar o mundo. Que conhecimentos circulam, sustentam, substanciam as práticas educacionais vividas por essas pessoas no contexto institucional, como esses jovens e adultos com participam das práticas, que oportunidades lhes são propiciadas? REFERÊNCIAS: BRUNEL, C. Jovens cada vez mais jovens na educação de jovens e adultos. Mediação. Porto Alegre. 2004. BARBIER, R. A escuta sensível em educação. Cadernos Anped. Porto Alegre, n.5. p.187-286.1993. DANTAS, H. A afetividade e a Construção do Sujeito na Psciogenética de Wallon. In: Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. La Taille, Yves de, São Paulo. 1992 GENTILI. P. A escola e cidadania em uma era de desencanto. (p. 41-55), in SILVA e VIZIM (orgs) Educação Especial: múltiplas leituras e diferentes significados. ALB. São Paulo. 2001. MOLL, J. A escola, a comunidade, a cidade: reinventar espaços para ressignificar a vida, (p.22-25). In. PREFEITURA MUNICIPAL DE GETULIO VARGAS. Saberes e fazeres Educativos, v. 2, n.1, 2003. MOLON, S. I. Subjetividade e constituição do sujeito em Vygotsky. Vozes. Rio de Janeiro. 2003. VIEIRA PINTO, A. Sete lições sobre educação de adultos. Cortez. São Paulo. 1997. VIZIM, M. A linguagem: elemento fundante na integração escolar da pessoas com deficiência mental (p. 163- 177), in SILVA e VIZIM (orgs) Educação Especial: múltiplas leituras e diferentes significados. ALB. São Paulo. 2001. VYGOTSKY, L. S. Os métodos de investigação reflexológicos e psicológicos. Teoria e método em psicologia. São Paulo, Martins Fontes. 1996. ___________________A Formação social da mente. Martins Fontes, São Paulo, 1984. SMOLKA, A. L. B. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. In: Relações de Ensino: Análises na perspectiva Histórico-Cultural. Cadernos CEDES, n.50, São Paulo. 2000