O que fazem as mães? (Mães Lacanianas) Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros VI – Seria o analista uma mãe? Sobre a função materna Romildo: Hoje será o nosso último encontro e me pareceu interessante aproveitá-lo para fazermos uma discussão geral e informal. Essas discussões costumam ser bastante positivas, pois podemos fixar melhor os conceitos e ideias. É a minha proposta para hoje. Antes eu gostaria de situar algumas breves conclusões. A ideia inicial do curso se deu durante uma conferência de Eric Laurent, quando ele esteve aqui para o ENAPOL (Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana). Estávamos sentados, Marcus André e eu, e Laurent falou da função materna, em um sentido diferente do que estamos trabalhando aqui, como Lacan menciona no seminário, que ainda não está traduzido, “Os Nomes-do-Pai”. Laurent falava de uma espécie de substituição da função do pai pela mãe, como uma característica dos nossos tempos. Lacan toma a questão da função materna no “Seminário 21”, mas num sentido pejorativo. Ele contrapõe à nomeação através do Nome-do-Pai o que chamou de “nomear para”, que seria regido, não pela função de relativização do significante Nome-do-Pai, mas este “nomear para” teria uma função de imperativo. Existiria no desejo da mãe algo que determina concretamente o destino do filho. É nesse sentido que Lacan vai falar da “ordem de ferro”1. Essa ordem de ferro se implantaria não pela imposição do desejo materno, simplesmente, mas pela substituição do Nome-do-Pai por esse império, essa potência que através da mãe traçaria o destino para o seu filho, com efeitos mais ou menos catastróficos. Éric Laurent falava de outra coisa na conferência. Não era a citação de Lacan, ele falava da existência de uma função materna a partir de um declínio da função do pai2. É um desafio tratar isso, tanto teoricamente quanto clinica e historicamente. Mais tarde eu o abordei, e ele indicou que teríamos que fazer um caminho pela lógica, para ver se através dela chegaríamos a uma definição possível do que seria uma função materna, diferente da mulher ou da mãe exercendo a função paterna. Seria algo muito mais complicado do que nos pareceu na hora. A questão que nós havíamos tomado, e que de fato não se respondeu, é se haveria uma função materna propriamente dita. Não se fala muito disso. Existe a função paterna, articulada, identificada com o significante do Nome-do-Pai e existe um contraponto de desejo nessa relação. Na razão Nome-do-Pai versus Desejo da mãe (NP/DM) tentamos ao longo do curso, não sei se com sucesso, manter essa tensão. Só existe desejo materno se for temperado por um significante, que não é o significante da sua função, que se for função é função de presença. O significante do Nome-do-Pai, contrariamente, marca uma função de ausência. Existe, então, uma espécie de 1 exterioridade na presença do desejo materno que é fundamental para que seja desejo e não outra coisa, um gozo. Lembro que durante a conferência de Laurent cutuquei Marcus André e disse que já tínhamos um assunto para nosso próximo curso. Comentamos que seria uma boa ideia tentar ver se existe a função materna. Continuo sem saber se existe a função materna e isso ficará para outra ocasião. Não será nos próximos 50 minutos que definiremos. Estava previsto que o curso não iria cumprir o que havia prometido. Pergunta: Você falou em princípios freudianos e lacanianos. Freudianos também? Você acha que quando Freud fala da mãe a função materna não está colocada? Romildo: Não essa mãe. Freud não tinha muita ideia sobre a mãe como efeito da falência do pai. Em parte por causa da época e em parte porque, segundo pensava Lacan, Freud tentou salvar o pai. A este respeito, comenta Jacques-Alain Miller: “No Seminário 11, ele analisa ou pelo menos esboça a análise do desejo de Freud como sendo o que entravou a potência da operação analítica. O desejo de Freud de salvar o pai foi o que impediu a análise de ocupar seu justo lugar”3. É evidente que no caso Hans, bem menos do que Lacan faz no Seminário 4, Freud contempla a possibilidade do excesso de carinhos da mãe na determinação da fobia de Hans, mas não a ponto de colocar em questão, como está no Seminário 4, o fracasso do pai real4. Mito e lógica Poderíamos pensar no que Lacan fez do Édipo. É uma maneira de abordar essa questão. A primeira grande preocupação de Lacan em relação ao Édipo, me parece, foi tentar esgotar o caráter mítico do qual Édipo era cercado no relato freudiano. Dito de forma simples: o mito é uma tentativa de fazer a ligação entre o real e o imaginário. Aquilo que não pode ser dito é no entanto relatado. Imaginem, por exemplo, uma tribo em que se conta, de geração em geração, que um dia a lua desceu à Terra e fecundou uma mulher, e que daí se originou a humanidade. É uma maneira de apreender algo – a origem absoluta - que não pode ser dito e situá-lo como se fosse história. Esta é a função dos mitos, sobretudo os mitos de origem: contar o que não pode ser contado. Como diz Lacan, o mito visa “dar forma épica à estrutura” 5. Uma das mais importantes tentativas de Lacan nesse sentido foi a fórmula da metáfora paterna, que vem sendo repetida ao longo do nosso curso. Como se consegue expor, exprimir uma relação claramente dialética, em que os termos interdependem, no sentido de que se um deles é retirado o outro se perde? É o que caracteriza aquilo que Freud postulou através da invenção de um mito, que dá conta de questões clínicas. Não importa se os antropólogos gostam de Totem e Tabu, do Édipo freudiano, ou se acham uma besteira. Clinicamente Freud se serviu de alguns 2 mitos, inventou dois ou três que deram possibilidade para a clínica psicanalítica, ainda incipiente, de ter os pés no chão, ao articular uma série de elementos interdependentes. A função fundamental do mito, é o que escreveu Aristóteles em sua Poética, é contar histórias de famílias que provêm dos deuses, ou seja, traçar uma fronteira que não existia. A intervenção dos deuses, que, como dizia Lacan, são do real, dão início à história, que pode, a partir de então, ser narrada com personagens, ações, etc. 6. A meu ver, a primeira tentativa de Lacan, precoce ainda, foi de saber como seria possível dispensar a narrativa mítica. O que é preciso fazer, de tal maneira que a estrutura se expresse sem precisar de uma narrativa mítica? A metáfora paterna, que Lacan criou na “Questão preliminar” e no Seminário 3, é uma das respostas a essa questão. Ela equivale à expressão do Édipo e deve ser entendida como equivalente ao Édipo, mas depois que dele se enxuga o relato mítico.7 Podemos perceber o quanto Lacan deve a Lévi-Strauss. Certa vez, perguntaram a LéviStrauss, em uma entrevista para a televisão francesa, qual era a importância de Lacan em sua obra, e a resposta foi “nenhuma”. Lévi-Strauss considerava não dever nada a Lacan. Seria impossível que Lacan dissesse o mesmo em relação a Lévi-Strauss, que o ajudou a estabelecer um corte com a narrativa mítica. Isso que estou explicando a vocês não seria possível sem a ideia que Lévi-Strauss passou para Lacan, de que há uma independência da estrutura em relação ao relato, notadamente nas estruturas elementares de parentesco. Nesse sentido, para usar uma linguagem próxima da sociologia de Émile Durkheim, há uma primazia dos papéis sobre as pessoas, das funções dos personagens sobre suas supostas essências. A grande virada, graças à contribuição do estruturalismo, é de saber que esses personagens estão enquadrados num jogo de categorias estruturais. Esse era o pensamento de Lacan nos anos 60. No mesmo encontro, chamei a mãe de Hans, mãe edípica, de “mãe clássica”. Não foi no sentido de que ela representaria a fórmula da metáfora paterna, mas, até pelo contrário, no sentido de que ela faz com que a fórmula não funcione. Ou seja, a gente enquadra a história de pequeno Hans a partir de onde existe uma deficiência de funcionamento, uma falha onde toma forma o sintoma. A mãe de Hans, o pai, a irmã, o próprio Hans, o cavalo, atuam no sentido de furar a inteireza do matema lacaniano. É a partir desse ponto que eles começam a nos interessar, a partir de um desencontro entre os personagens e as funções. Uma coisa é a pessoa, e outra coisa é a função que exerce. Nossa pergunta para hoje é: será que o analista é uma mãe? Aceito contribuições. Há quem pense que o analista é uma mãe, ou que ele deveria ser uma. Se isso tem algum sentido, na fórmula, a presença do analista se instalaria a partir do DM, pois é onde está a mãe. Ao mesmo tempo, diz-se que o analista é uma garantia da função do Nome-do-Pai, o que significaria que ele deveria entrar nessa fórmula pela porta do NP. 3 O lugar do analista Eu gostaria de abrir a discussão a partir da ideia de como um analista não deve necessariamente se enquadrar nessa fórmula, que não foi feita pra ele. Proponho que ela deve auxiliar a entender a construção que permite a cada analista fazer do seu lugar um entrechoque entre uma função significante e um desejo. Podemos entender muita coisa na fórmula da metáfora, além da questão da psicose. Podemos colocar no lugar da incógnita o psicanalista, por exemplo, desde que se abstraiam um pouco as figuras do pai e da mãe, mas estabeleça-se x, y, z, ou S e S’, como Lacan escreveu na sua fórmula da metáfora. Veremos que a resultante vai ser sempre uma resultante desse entrechoque, dessa dialética entre uma função significante e um desejo. Poderia ser uma das maneiras de situar a expressão “desejo do analista”, que é uma criação de Lacan. Não creio que poderemos ir muito além disso, de pensar se é possível usar a fórmula da metáfora paterna, se ela pode ter utilidade, para a compreensão da função do analista. Silas Bourguignon: Se for assim, então, a fórmula não é só a primeira parte, ela é o conjunto dos elementos. Se o analista está no entrechoque entre ND e DM, como ficaria o outro lado da fórmula, o lado direito? O analista seria aquilo que possibilitaria a introdução do Nome-do-Pai no campo do Outro? Quando penso no outro lado da fórmula, vejo que o analista seria o garantidor do Nome-do-Pai, aquele que vem reforçar o Nome-do-Pai. Romildo: Isso é quase uma definição de Lacan. Lacan diz que a psicanálise introduziu o Nome-do-Pai na consideração da ciência.8 Mas o Nome-do-Pai já está contido no sintoma. Eu não estava pensando na fórmula toda, mas em como se depreende um funcionamento a partir de um entrechoque dialético. A grande questão aqui é que isso não dá para definir a função do psicanalista. O essencial da função dele fica dependendo de sua entrada em cena como desejo, um desejo muito particular, mas ainda assim um desejo. Flávia Hasky: Por que pensar se o analista é uma mãe? Para mim é um pouco difícil entender em que isso é uma questão. Seria como perguntar se essa mesa é feita de água. Romildo: Não sejamos tão radicais. No plano que eu estava chamando de mítico se pode, se fez, se faz isso, considerar a função do analista a partir de personagens. Por exemplo, em um comentário crítico de Lacan, ele fala dos psicanalistas clássicos, em especial de Karl Abraham e da fantasia dele como analista, suposta por Lacan, de ser uma “mãe completa”, que não deixaria nada faltar ao filho-analisante.9 Pergunta: Eu arriscaria dizer que o analista está mais como lugar de x, pois é no x que se situa a fantasia. Silas: Mas x não está isolado do desejo do analista. Na fórmula não existe o desejo do pai, só o desejo da mãe. A função materna não seria o próprio desejo? 4 Romildo: Nada aqui está isolado. Temos pensado ao longo do curso no desejo materno não em oposição frontal ao Nome-do-Pai, mas como um elemento articulado ao Nome-do-Pai. Quanto à mãe, sim, a mãe, foi a primeira coisa que afirmamos, define-se como desejo. Depois de ter mencionado isso aqui, encontrei uma citação de Lacan no Seminário 17 que vai na mesma direção.10 O que pode definir a mãe não são as prerrogativas do personagem, nem sequer o lugar na família, mas o fato de ser um desejo. Isso é o que define a mãe. É por isso que estou insistindo: esta fórmula deve ser lida dialeticamente. Vanya Bayon: Estou entendendo que você está com dificuldade de chamar o desejo materno de função. Romildo: Não estou com dificuldade. O desejo da mãe, simplesmente, não é uma função. Vanya: Quando a gente pensa na mãe crocodilo é o Nome-do-Pai que está barrando a boca do crocodilo. O Nome-do-Pai já está incluído na própria mãe. Romildo: Digamos assim: esse crocodilo só está de boca aberta porque tem um rolo de pedra impedindo que se feche. Se fosse diferente, se o Nome do Pai já não estivesse dialeticamente articulado ao desejo da mãe, este desejo não seria um desejo. O significante do Nome do Pai é ao mesmo tempo condição e limite para o desejo materno. Pergunta: Na escola inglesa há a função materna. Nós aqui temos um trabalho a mais, a coisa não está dada. Fiquei pensando se tem que ter algo determinante. Sei que essa palavra não é boa, mas na semana passada isso ficou muito forte. Parece que há que haver um vazio no desejo, isso tem que estar lá. Talvez possamos situar isso como um determinante. Pergunta: Para aproximarmos analista e mãe e pensarmos na possibilidade do analista ser uma mãe, devemos introduzir a questão do desejo? A questão se recolocaria: teriam alguma coisa a ver “desejo da mãe” e “desejo do analista”? Romildo: Exatamente por isso a questão do analista como mãe não é tão gratuita. Ela interroga o modo como se definiria a entrada do analista em cena. E a resposta é: pelo desejo. Falo, desejo e objeto Pergunta: Não consigo ver a diferença entre a criança como falo da mãe e como objeto a. Romildo: Mesmo quando dissemos que o objeto da castração é negativo e o objeto a não é negativo? Mesmo assim você não consegue ver a diferença? Pergunta: Entendo que o falo seja negativo e os objetos a não. Mas o falo tem um lado que não é negativo. Em Extimidade Miller define o falo como uma vestimenta para o objeto a, uma forma dele se vestir para se apresentar.11 Então, ele não é negativo. O falo se apresenta positivamente. 5 Romildo: É uma maneira de positivar o falo, que é negativo. O falo é o órgão que ninguém tem, mas pode ser representado por aquilo que falta à mãe. Neste sentido, podemos situar a castração da mãe como necessária a que ela faça das suas crianças objetos a, ou seja, para que as crianças passem de objetos que faltam a objetos presentes fora da mãe, o que representa uma positivação. Como entender, por exemplo, certas crises, algumas, aliás, bastante sérias, sofridas por algumas mães após o nascimento de uma criança? A chamada depressão puerperal, ou depressão pósparto, como entendê-la senão como uma dificuldade de completar a passagem que vai da falta que implica o desejo de ser mãe - e que nem sempre uma gravidez satisfaz -, à passagem para a visão de uma criança real? Além disso, essa passagem implica uma separação, uma vez que uma criança concreta, pelo fato mesmo de ser concreta, nunca vai corresponder inteiramente ao objeto que falta à mãe. A criança que estou chamando de concreta tem uma inércia, isto é, oferece um obstáculo ao que ela pôde representar na fantasia da mãe antes de nascer. Isto me parece fundamental para entendermos a relação entre objeto a e – φ. Silas: Só falamos do desejo da mãe e na fórmula não aparece o desejo do pai. Ela deveria chamar-se “materna” e não “paterna”. Romildo: Se encararmos isso como, por exemplo, levando à presença de uma criança, de fato é o desejo da mãe e a função significante do pai o necessário para que haja, para ela, essa produção. Não teria muito cabimento falar de desejo do pai aqui. O essencial é a articulação entre desejo materno e significante paterno, o que se faz, segundo Lacan, por uma metáfora. Se o desejo do pai não está contido neste é porque o desejo dele é o desejo do desejo da mãe. Ele deseja a mãe. Apesar de que sem ele acontece pouca coisa. Remeto vocês à definição de Pai e de Mãe em RSI, que discutimos no último encontro. Nós tentamos nesse curso ver se entendíamos a expressão “metáfora paterna”, que não é uma simples substituição. O Nome-do-Pai não substitui somente o desejo materno. O Nome-do-Pai faz desse desejo materno um desejo, ou seja, algo relativo a um objeto como significante. Dessa forma, os objetos representados pelos bebês, que são reais em um certo sentido, entram em uma cadeia de “equivalências eróticas”12, como dizia Lacan no seminário sobre a transferência. Eles vão equivaler a significantes. Todo mundo pensa que se ama sempre por substituição – o que de fato é um axioma freudiano - e que isso estabeleceria uma homogeneização, sem lembrar que em cada substituição, entre uma substituição e outra, existe uma precipitação, neste caso sim, de real. Portanto, a equivalência significante não significa uma homogeneização. Essa precipitação é o diferencial entre uma criança e outra. Por isso há quem se queixe da hipocrisia dos pais quando falam que gostam dos filhos igualmente. Essa é a função de relativização do significante. Sem o Nome-do-Pai teríamos um desejo – puramente hipotético, claro que apenas absorve seus objetos. Podemos usar como imagem, para ilustrar o que estou dizendo, a diferença que a economia nos ensina entre valor de uso e valor de troca. Existe um jogo entre eles, uma espécie de combinação, que faz com que o movimento permanente que caracteriza o objeto da troca não perca o lastro, mais ou menos fixo ou constante, representado pelo valor de uso. Se tentamos imaginar uma separação entre eles, 6 teremos um valor de troca com pouca ou nenhuma relação com o uso do objeto. Clinicamente, temos o exemplo do consumismo, que é um fenômeno contemporâneo. O investimento libidinal, como dizia Freud, será dirigido não a um objeto em particular, mas à série, ou ao próprio movimento de sucessão metonímica. A diferença e o real Vocês entendem de onde aparece essa função Nome-do-Pai? O problema é que quando digo “Nome-do-Pai” todo mundo pensa em papai. É difícil imaginar essa função NP como, algo com um formato coletivo, ou então diverso segundo cada sujeito, no sentido de que para cada pessoa os Nomes-do-Pai podem ser diferentes. Podemos entender o declínio do pai na atualidade, pelo menos em parte, seguindo esse caminho, de uma ruptura na representação entre o personagem pai e aquele que ocupa a função. A clínica psicanalítica vai se ocupar de efeitos das novas agências de Nome-do-Pai, o que não interessou a Freud porque na época não existia. Pergunta: Há a necessidade de haver um homem, de carne e osso, para que uma mulher seja tomada como causa de desejo e assim barrar o excesso do desejo feminino? Romildo: Vou mudar um pouco sua pergunta para me manter no plano da metáfora paterna. Tomemos um exemplo atual: como se daria no caso de um filho de pais homossexuais? Não há “homem” e “mulher”, os dois são do mesmo sexo e hoje em dia querem ter família, gerar filhos, até fisicamente, no caso de duas mulheres. O que acontece? Essa fórmula subsiste? Lacan falava de homem e mulher, mas a experiência de hoje nos mostra que isso está vacilando, então, o que se faz? O nosso grande risco epistêmico e clínico é de nos tornarmos relativistas. Tudo vale tudo, filho criado por dois homens é a mesma coisa que filho criado por duas mulheres, um robô, uma máquina de costura. Tudo vale tudo, à falta de um operador que discrimine as coisas. Este é o nosso risco. E a psicanálise tem algo a dizer sobre isso. Podemos pensar na seguinte questão: será que o sexual se dá sempre e necessariamente como diferença? Em outras palavras, será que o encontro com o sexual é sempre um encontro com a alteridade? No caso dos homossexuais, para citar o exemplo mais importante, não me parece que a escolha passe sempre pelo cenário descrito por Freud, em que um homem encontra um semelhante e o ama como se amou a si próprio – e foi amado pela mãe – quando era criança. Não esqueçamos que a diferença, aqui, vai equivaler a um ponto de eleição de gozo. Teremos sem dúvida, no futuro, testemunhos de homossexuais que tentarão explicar um pouco quê lugar tem a diferença no amor homossexual, que já não sofre a repressão sexual que sofria antes. Eles vão se explicar, como todo mundo, diante da necessidade imposta pela função primeira do significante, que é de estabelecer diferenças. Silas: Existiria uma homossexualidade feminina? Romildo: Seguramente não igual à masculina. Aparentemente os pontos de fixação no corpo não existem, ou não têm a mesma importância que têm para os homens. 7 Silas: Será que Lacan diria as mesmas coisas hoje? Romildo: Não sei. Mas estou tentando ver se isso resiste como estrutura. E ver se não precisamos nos apoiar em mitos para dar conta do que Lacan tentou enxugar. A questão que fica é se uma tentativa estrutural resiste à mudança de relato. Quando Jean-François Lyotard, para caracterizar a pós-modernidade, afirmou que se tinham acabado os grandes relatos, ele não disse que se tinham acabado os pequenos. Os pequenos relatos não se referem às grandes tendências da cultura e é com eles que trabalhamos. Que risco a gente corre ao introduzir um relato imaginário? Para usar a palavra da moda: o risco de nos valermos, tanto na atuação clínica quanto na criação dos nossos argumentos, de preconceitos. Hoje em dia não se encontra mais ninguém com preconceito. Esta é uma marca da mediocridade da cultura. Não se encontra mais ninguém com preconceito, e, se tem, não vai dizê-lo, pois o preconceito é apontado como o grande pecado da época. Há excelentes razões para isso, mas não se pode exigir que não se pense nada antes, como indica o sentido literal da palavra preconceito. Pergunta: O problema não é o preconceito, são as ofensas. Geralmente as pessoas não fazem muita diferença. Mas para quem sofre esse tipo de preconceito faz diferença. Eles reclamam da ofensa, são ofendidos por serem de uma determinada forma. Romildo: O que você está chamando de ofensa é outra coisa. Ofensa é da ordem do real. Comentário: Então, tem uma confusão aí. Ninguém sabe direito o que é discriminação, ofensa e preconceito. Por isso dá essa confusão. Romildo: Sempre dá confusão. Mas ao lado tem avanços muito interessantes. Imagina o que era a vida de um homossexual há 50 anos atrás, o extraordinário sofrimento que ele vivia. Talvez não precise de 50 anos, menos do que isso até. Comentário: Eu me casei recentemente. Estamos vivendo há 21 anos e acabamos de fazer o contrato social no cartório. Há 20 anos isso não teria sido possível. Romildo: Mais do que isso. Há 20 anos não se conseguiria conceber isso, imaginar que isso fosse possível, senão como marginalidade social, cultural ou moral. Isabel Collier: Tem uma expressão que sempre me orienta muito que é o “desejo não anônimo”, da “Nota sobre a criança”. Ou ele está entre o real do corpo ou é a pura relativização. O desejo não anônimo orienta porque ele tira a ideia do asséptico. Tem um pouco da escolha desse homem por essa mulher, desse homem por esse homem, alguma coisa que singulariza o desejo e aí pode surgir uma criança. Romildo: Laurent, na conferência que citei, falava do desejo que não abre mão de suas origens, o desejo que diz de onde vem. Lembra um pouco o que você está falando de desejo não anônimo. Pergunta: Freud fala que quando Breuer sai do tratamento de Anna O. por causa da fala dela sobre a gravidez, Breuer perdeu a chave que indica uma mãe. É difícil entender isso porque ele não dá mais explicações. Ele fala um pouco do desejo da menina de dar um filho ao pai. É a saída do Édipo na menina. Ela tem que dar esse filho para um outro. 8 Romildo: Eu lembro de uma expressão usada por Freud em uma carta ao seu amigo Stephan Zweig que fala desse momento de vacilação de Breuer. No tratamento de Anna O., escreveu Freud a Zweig, Breuer tinha em mãos as chaves que lhe teriam aberto o caminho até às Mães, mas as deixou cair. Apesar de suas grandes faculdades intelectuais, não havia nele nada de faustiano.13 As Mães, nesse contexto, significam algo de primordial, da revelação de um saber fundador e ancestral, não correspondem às mães no sentido que o termo tem normalmente. Não sei se é a isso que você está se referindo. Quanto à saída do Édipo da menina, penso que podemos dizer que esse filho que seria dado ao pai já está no regime dos objetos de troca, ou seja, já implica uma relação com o Outro. Comentário: Sem a inscrição simbólica não é filho. Biologicamente nasceu uma criança, mas adotar como filho é outra coisa. Por isso Lacan diz que todo filho é adotado. Essa adoção pode ser por qualquer pessoa. Romildo: É um dever do psicanalista dar testemunho de que nem tudo é relativo. Existem precipitações de real que são suplementares, excedem as combinações da cultura – este é aliás um dos limites do estruturalismo para a compreensão psicanalítica -, mesmo quando estas vão no melhor sentido, no sentido libertador. Existe um precipitado sintomático, que é o real de cada sujeito. Sobretudo hoje, mais do que no tempo de Freud, cabe aos psicanalistas dizer alguma coisa sobre isso. Mesmo que pensem que ainda não sabem, que o assunto ainda precisa ser mais bem examinado. Em minha opinião, o relativismo não ajuda o psicanalista. Ao mesmo tempo, é preciso falar disso sem moralismo. É muito difícil. Como dizer que nem tudo vale tudo sem ser reacionário? É uma tarefa muito difícil a do psicanalista quando fala a partir do discurso que ele segue – o discurso do analista. E o progressismo sociológico ajuda muito pouco. Temos que partir do singular da clínica. Adriano Aguiar: Deixando um pouco de lado a questão do caso homossexual, queria introduzir outra. Tenho uma amiga que comentou comigo que se em até um ano ela não arrumasse ninguém para ser pai do filho dela, ela já tinha um amigo que se comprometeu a ser o pai e ela cuidaria da criança sozinha. Neste caso, o filho entra em um lugar muito diferente do que se tinha na família tradicional. Romildo: Vou lhe dar uma informação jurídica. Hoje em dia no Código Civil o centro da família não é mais o pai, é a criança. Éric Laurent desenvolve isso. Quem faz a família não são os pais, é a criança.14 Há um livro bem conhecido, que teve bastante sucesso na época em que foi publicado, História social da criança e da família, do historiador francês Philippe Ariès. Ele mostra como as crianças no Antigo Regime, em parte por morrerem muito novas, não valiam muita coisa, eram criadas praticamente junto com os animais, além de não terem um estatuto próprio, de crianças diferentes dos adultos. Nunca se sabia se iam sobreviver. Hoje em dia o lugar da criança é completamente diferente. Por exemplo: fui chamado algumas vezes para participar da Jornada dos Psicólogos Jurídicos. Em uma das vezes, um desembargador que dividia a plenária comigo afirmou que há um novo conceito que utilizam no direito de família, o “sentimento filial”, que, se entendi bem, dá um peso inédito à palavra da criança nos julgamentos de conflitos do casal. Ele pode 9 ajudar a definir, em caso de divórcio litigioso, a guarda da criança. É algo que seria impensável anos atrás. É claro que tudo isso implica uma transformação no lugar e função do psicanalista. Mais do que nunca, ele terá que saber o melhor possível qual a sua posição discursiva, para evitar que se perca, por exemplo, em uma atitude de protesto contra as misérias do mundo. Há algum tempo atrás, li uma frase de Jacques-Alain Miller que me impressionou: ele dizia que nós, psicanalistas, temos hoje em dia uma aliança tática com o humanismo. Essa afirmação mostra que alguma coisa mudou, tanto na cultura - pelo menos na medida em que é moldada pela ciência -, quanto na psicanálise. Não se trata de adesão ao humanismo que instala o homem no centro do mundo, o que, como se sabe, foi objeto da crítica de Lacan, mas de uma objeção ao que as transformações do mundo podem ter de desumano. Agradeço a presença atenta de todos vocês. Falo em meu nome e no nome de Marcus André. Até breve! Sexto encontro do Curso Livre do ICP-RJ ocorrido na Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio, em 24/11/2011. Transcrição de Daniele Menezes, revista pelos autores. 1 LACAN, J. (1974). “Os não tolos erram”. Seminário inédito, aula de 19 de março de 1974. 2 LAURENT, É. (2011). “Além da felicidade, a época do ‘mais!’”. Conferência proferida na Academia Brasileira de Letras do Rio de Janeiro, em 07/06/2011. Inédita. 3 MILLER, J.-A. (2008-2009). “Curso de orientação lacaniana III, 11: Coisas de Fineza em Psicanálise”. Inédito, aula de 21 de janeiro de 2009. 4 Cf. FREUD, S. (1996[1909]). “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”. In: Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. X. Rio de Janeiro: Imago Editora, p. 29 & LACAN, J. (1995[1956-1957]). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 198. 5 Idem. (2003[1973]). “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 531. 6 Idem. (2005[1962-1963]). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 334. 7 Idem. (1998[1955-1956]). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 563; Idem. (1998[1957-1958]). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 185 & Idem. (1998[1957]). “A instancia da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: Escritos. Op. cit., p. 519. 8 Idem. (1965-1966). “O objeto da psicanálise”. Seminário inédito, aula de 01 de dezembro de 1965 & Idem. (1988[1965-1966]). “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Op. cit., p. 889. 9 Idem. (1998[1964]). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 151. 10 Idem. (1992[1969-1970]). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 105. 11 MILLER, J.-A. (2010[1985-1986]). Extimidade. Buenos Aires: Paidós, p. 205. 12 LACAN, J. (1992[1960-1961]). O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 250 13 Freud, S. & Zweig, St. (1995). Correspondance. Paris: Rivages Poches/Petite Bibliothèque, pp. 8889. 14 LAURENT, É. (2011). “A análise de crianças e a paixão familiar”. In: Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum, pp. 27-44. 10