Latusa digital – N° 23 – ano 3 – julho de 2006 Em tempo: sozinho, mas não sem os outros* Paulo Vidal** Em análise com Freud, o psicanalista americano Smiley Blanton, envergonhado certa vez por chegar atrasado à sessão, logo que se estirou no divã lhe disse: “Estou com medo que meu relógio esteja um pouco atrasado. É melhor que o acerte pelo seu”. Obteve como resposta “meu relógio está usualmente certo” de um Freud que, nem por isso, – detalhe que surpreendeu Blanton – lhe “disse as horas”.1 A questão do tempo para um sujeito não se regula portanto em espelho pelo relógio de algum mestre, a psicanálise procede na contramão da sincronização que rege as nossas sociedades; afinal, o caos e o pânico tomariam conta dos transportes, do mundo dos negócios e das finanças, das indústrias, caso os relógios deixassem de bater em uníssono. Se o inconsciente para Freud ignora o tempo, é porque a medida única que conhece é o falo, só que este não provê os sujeitos de identidades sexuais, pois não existe no Outro significante que lhe corresponda, lhe faça par. Na hora do amor, que faria de dois um, os relógios nunca marcam a mesma hora, tornando sempre faltoso o encontro com o Outro sexo. Na falta da boa hora * Este texto de Paulo Vidal é fruto do trabalho desenvolvido na Oficina II: O despertador e o real, coordenada por Paulo Vidal e Marcus André Vieira, cujo trabalho é preparatório para as XVII Jornadas Clínicas da EBP-Rio de agosto próximo, que gira em torno do tema: Para que serve um pai? Usos e versões. Fazem parte desta oficina, entre outros, Clarissa Ramalho; Elisa Werlang; Flávia Hasky; Gal Ferraz; Gláucia Barbosa; Marci Dória; Rodrigo Abecassis; Rodrigo Lyra, Tatiane Grova. ** Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise – EBP. 1 BLANTON, S. Diário de minha análise com Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1975, p. 20. 1 para o sexual, o sujeito faz do tempo sintoma, entendido como aquilo que não anda no compasso da medida. Na clínica psicanalítica, a função do tempo se presentifica para o sujeito desde a urgência na demanda de análise até à pressa em concluir. Por isto, a relação entre subjetividade e temporalidade se acha no cerne do ensino de Jacques Lacan, no qual encontra uma articulação original, cujo marco é O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (1945) 2, escrito que polarizou o trabalho de nossa oficina O despertador e o Real. Texto de caráter aporético, cuja opacidade parece renascer a cada leitura, exigindo sempr de novo um tempo para compreender, tem suas arestas demarcadas com precisão no indispensável comentário que dele faz J.-A. Miller no curso Los usos del lapso3. Apresento em seguida alguns dos resultados que colhi dessa leitura com outros: 1. Único nome próprio citado em O tempo lógico, Descartes atinge a certeza (“penso, logo sou”) nas Meditações depois de levar a dúvida ao extremo; ao passo que, na solução proposta por Lacan ao apólogo dos prisioneiros, a certeza é obtida de maneira antecipada, sendo posta à prova da dúvida por meio de duas escansões. 2. É que, para a lógica, o emprego do verbo ser na cópula lógica, sob o modo por exemplo do “todo x é y”, prescinde do tempo ou o considera instantâneo. De certo modo, a lógica supõe o olhar de Deus, na sua eternidade. Ora, diversamente da implicação lógica tradicional, no tempo lógico a conclusão (“logo”) incide, retroage sobre as premissas. 2 LACAN, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 197-228. 3 MILLER, J.-A. Los usos del lapso (1999-2000). Buenos Aires: Paidós, 1ª edição, 2004. 2 3. Posto que a conclusão (antecipada) é condição de verdade das premissas, enquanto sujeito me precipito agindo em função de dados que só depois de meu ato serão (ou não) validados. O tempo lógico não é uma lógica do tempo, mas uma lógica do ato na qual o tempo toma o valor de significante. 4. O tempo lógico privilegia a função da pressa, acentuada já no escrito sobre o estágio do espelho, no qual lemos que a prematuração da criança induz esse “drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação” (1949)4. Tentando suturar a hiância entre a experiência que tem do corpo e a forma ideal percebida no espelho, a criança se precipita numa identificação com um objeto – a imagem do outro – que toma emprestado do Outro. Intuição da divisão do sujeito que, formulada a hipótese do inconsciente estruturado como uma linguagem, será concebida como a divisão do sujeito entre dois significantes, submetido portanto a uma batida temporal: ao se identificar com um S1, o sujeito desaparece sob o significante que o representa para outro significante 5. É uma lógica da casa vazia, entrevista por Freud no seu exame das formações do inconsciente: o ato falho, o esquecimento, põem em jogo algo que falta ao seu lugar, que não se acha no seu lugar, assinalando que por ali passou um sujeito. Para os prisioneiros do tempo lógico, a casa vazia é inscrita pelo X, pela incógnita que cada um traz nas costas e de cuja solução depende o seu destino, a sua liberdade: qual é a cor do disco que porto? 6. Condenados a compartilhar o inferno por toda a eternidade, os três personagens da peça de Sartre A portas fechadas5, incapazes de perceber as próprias falhas, se esmeram em apontar as falhas uns dos outros, acabando por concluir que “o inferno são os outros”. Para Sartre, o insuportável são os outros, ao que Lévi-Strauss retrucou: “o inferno é cada um”. À concepção 4 LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998, p. 100. 5 No original, Huis Clos, significativamente datada de 1944. 3 existencialista do sujeito, o apólogo lógico dos três prisioneiros responde por sua vez que o sujeito pode concluir quanto ao que é. Ele atinge sozinho o verdadeiro, mas não o faz sem os outros, numa operação que deixa resto. É o esboço de uma lógica coletiva que não desconheça o insuportável: se apressadamente “Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem”6, nem por isso deixo de ser responsável pelo insuportável, pela Coisa que me habita. 6 LACAN, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada, op. cit., p. 213. 4