DUAS PERSONAS NAS CENAS ENUNCIATIVAS DE “LE MONDE” E “LIBÉRATION” Vanessa Ferreira de Oliveira, mestranda FFLCH/USP Rua Piracicaba, 727, Jd. Veloso, Osasco/SP, CEP 06152-090 [email protected] Resumo: O artigo mostra o cotejo do emprego de elementos do plano de expressão que tornam evidentes certos traços do plano do conteúdo em dois jornais da imprensa dita séria francesa, “Le Monde diplomatique” e “Libération”. Dessa forma, por meio do sincretismo entre os planos, é possível depreender dois diferentes ethé e duas diferentes personas, ou seja, o caráter e o tom que implicam o modo de presença desses dois jornais, assim como o perfil do seu público alvo. Abstract: The article shows the employment of some expression plan elements which can make clear certain content plan traces in two French newspapers, “Le Monde diplomatique” and “Libération”. This way, by the syncretism between the plans, it´s possible to see two differents ethé and two differents personas which envolve the way of being of these two newspapers, as well as its target public profile. Palavras-chave: semiótica, enunciação, ethos, cena enunciativa. Key-words: semiotics, enunciation, ethos, enunciative scene. Introdução Neste estudo, observamos a representação de duas personas nos jornais franceses “Le Monde” e “Libération” e como cada um usa sua máscara para inserir enunciador e enunciatário em cena. Para analisar tais máscaras e suas diferentes personas, isto é, a imagem que se pretende vender ao público, nada mais apropriado do que usar as suas “capas de rosto”, “la une” em francês. O “rosto” é a expressão do corpo do jornal, uma parte da totalidade por meio da qual se pode depreender a maneira como cada um cria sua identidade e mostra sua máscara. Já que o sentido só se dá pela diferença e o discurso é constitutivamente heterogêneo, veremos cotejados esses dois ethé que discursivizam duas concepções de mundo criada na própria percepção constitutiva do outro. Para análise, tomamos o exemplar do “Libération”, do dia 6 de outubro de 2003, e o Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 662-667, 2005. [ 662 / 667 ] exemplar de “Le monde diplomatique”, de junho de 2003. O primeiro tem tiragem cotidiana, o segundo, mensal. Le Monde De “Le Monde diplomatique”, temos o exemplar de junho, cuja primeira informação, antes mesmo do título, é a manchete “retraite, école, chômage: un cocktail explosif”, que anuncia o tom dessa edição: explosivo. “Le Monde diplomatique” traz, na primeira página, uma resenha, “Mourir au travail”, um resumo bastante completo da matéria “Où va l´Empire américain?” e, no canto esquerdo, com o título “Contestations”, há um passeio breve pelos assuntos abordados no decorrer do jornal. A imagem utilizada na capa de rosto é a pintura “Navas de San Juan”, pequena e pouco colorida, que remete à figura mitológica de Dâmocles, cuja história simboliza "um perigo iminente que paira sobre a vida". No canto inferior direito da página, há duas propagandas. À esquerda, há uma resenha, “Mourir au travail”, de Ignacio Ramonet. Esse narrador tem a função de interpretar e avaliar os fatos do enunciado criando simulacro de distanciamento e objetividade, caro a esse jornal e uma marca dessa cena genérica. O texto é aberto com voz passiva, modo verbal que diminui a responsabilidade e a ação do sujeito. Esse recurso, assim como o uso da terceira pessoa, citação das fontes e dados estatísticos, mostram o afã pela objetividade desse ator da enunciação. Contudo, há marcas da enunciação enunciada no decorrer do texto que denunciam seu caráter e ponto de vista. No primeiro parágrafo, vemos reticências e um ponto de exclamação, mostrando indignação face aos fatos narrados; no segundo parágrafo, entre parênteses, como uma pausa do enunciador para expressar sua indignação há outro ponto de exclamação. A escolha lexical também é índice de sua enunciação, como o adjetivo altamente opinativo do quarto parágrafo: “Cela rend particulièrement répugnante l´attaque contre le régime des retraites”. No último parágrafo, o uso do pronome “on” generalizador para iniciar esse parágrafo, mostrando que o enunciador não se responsabiliza pelo fato enunciado e não é conivente a ele: “On estime normal que deux salariés français perdent leur vie au travail chaque jour”. O “garant”, cujo co-enunciador é incorporado, mostra que nem um nem outro concordam com o fato de ser considerado normal o fato de dois assalariados franceses perderem suas vidas no trabalho. Outro índice da inserção do tu é a questão retórica que encerra o texto, pois uma pergunta pressupõe um enunciatário para receptá-la e respondê-la. A questão “Comment ne pas comprendre la colère des citoyens?” mostra, no enunciado, uma pergunta, porém, na enunciação, existe a confirmação da cólera do próprio ator da enunciação: “A cólera dos cidadãos é totalmente compreensível”. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 662-667, 2005. [ 663 / 667 ] No alto da página, ao lado direito, há a introdução da manchete Où va l´empire Américain? (mais uma pergunta nesse enunciado de “contestações”). Robsbawm, na introdução, faz, enuncivamente, uma contextualização na história do mundo e, no terceiro parágrafo, é instaurada uma debreagem actancial enunciativa, evidenciando um apelo do autor ao leitor, o enunciador quer aproximar-se do coenunciador e trazê-lo para sua situação de comunicação em “nous vivons” e “Prenons”. Contudo, o texto termina com maior distanciamento com o uso do passé simple. As publicidades do livro “L´Amérique latine en effervescence” e do “1er Festival du Film des Droits de l´Homme de Paris” não são neutras ou colocadas arbitrariamente na capa de rosto, ela é coerente ao dialogismo nela existente fazendo eco ao tom da edição: o título do livro mostra o paralelismo entre “en effervescence” e a manchete sobre um coquetel “explosif”. Também há interdiscursividade entre a publicidade do “festival do filme dos direitos do homem de Paris” e o texto “Mourir au travail”, que contesta as mortes de homens enquanto trabalham, onde estão mesmo os seus direitos? Em “Le Monde diplomatique”, vemos a ocorrência do tempo passé simple enquanto ele é inexistente em “Libération”, onde é utilizado somente o passé composé. O passé simple, empregado para expressar a concomitância ao momento de referência pretérito no sistema enuncivo, constrói o simulacro de jogar a cena enunciada para um cronônimo distante, afastado do momento da enunciação, enquanto o passé composé marca a anterioridade ao momento de referência presente no sistema enunciativo e constrói a ilusão de presentificação da cena narrada No texto de Eric Robsbawn, o autor usa o passé composé e o présent, porém, ao fim do texto, lemos “La Grande-Bretagne, qui régna sur l´empire le plus vaste de son temps, n´était qu´un Etat de grandeur moyenne”. Qual efeito o enunciador queria criar ao usar esse tempo verbal quando poderia ter usado o passé composé que já vinha usando? Além de criar uma ruptura que coloca a sentença em relevo, trata-se de um excerto não embreado, causando a impressão de ser um universo autônomo, já que o passé simple expõe os acontecimentos sem relacioná-los ao momento da enunciação e a distância do tempo em que a Grã- Bretanha reinava soberana, um tempo do “récit”, torna-se ainda maior, assim como a distância do enunciado em relação à situação de enunciação. O enunciador ausenta-se, aparentemente, desse enunciado, não assumindo responsabilidade pelo dito e cria um simulacro de assepsia da subjetividade e apagamento do sujeito da enunciação, proporcionando maior credibilidade ao enunciado, tais efeitos que não seriam reforçados com o emprego do passé composé. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 662-667, 2005. [ 664 / 667 ] Libération “Libération” faz uso de fotografias, fonte e cores como recursos para tornar o jornal vivo e real. O plano de expressão da capa de rosto de “Libération” mostra traços relevantes para a depreensão do conteúdo e de seu ethos: a organização sintática das frases apresenta orações coordenadas e simples, praticamente não há hipotaxes, hipérbatos, períodos longos ou orações subordinadas; tornando a leitura mais rápida e simples. O emprego do passé composé é mais um dos recursos para aproximar o leitor , assim como a mistura de registro, que garante a adesão de um público diversificado, evidenciando uma persona aberta e receptiva ao Outro. Na primeira página do exemplar de “Libération”, a imagem é do cadáver de uma das vítimas do atentado em Haifa. A foto foca diretamente a mão que remete às atrocidades da guerra e ao que a manchete, de maneira pouco imparcial, diz: ISRAËL L´IMPOSSIBLE FORTERESSE. O resumo da matéria, assim como a legenda, são sempre pequenos como caracteriza esse jornal. Não existe, em “Libération”, textos muito desenvolvidos, resenhas ou propagandas publicitárias, há apenas as manchetes em caixa alta, leads e indicações das páginas. Em compensação, a imagem não é uma pintura, mas sim uma fotografia que constrói um efeito de sentido de impacto já presente na sua dimensão: 3/4 de toda a capa de rosto. “Libération”, para realizar a perfórmance de aderir ao seu conjunto de leitores um público variado e de mostrar uma persona próxima do enunciatário, utiliza neologismos e o registro da língua oral, como: “Pas de constitution, pas d´argent”. A expressão “pas de” é preponderante no registro oral e seu uso, na imprensa escrita, cria um efeito de aproximação de seu leitor alvo, um leitor descontraído e despreocupado com formalidades. A persona de “Libération” demonstra um maior vínculo entre o enunciado e a situação de enunciação. A cena genérica da imprensa dita séria é respeitada, porém esse cotidiano rompe com o caráter sisudo e tradicional de “Le Monde”. Assim como, no plano da expressão, a diagramação, as fotografias, o tamanho da mancha e dos artigos, a preferência de contruções verbais simples que aproximam o co-enunciador da cena enunciativa do jornal, o emprego do passé composé é mais um dos recursos, no plano da conteúdo, para aproximar o leitor. Em “Libération”, é possível verificar o uso exclusivo dos tempos do sistema enunciativo. O emprego desse tempo verbal evidencia o que já foi dito: “Libération” é um jornal cuja persona busca a adesão do co-enunciador por meio Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 662-667, 2005. [ 665 / 667 ] do efeito de aproximação criando um simulacro de cumplicidade e conivência com o seu leitor, que se reconhece nele e, assim, senti-se inserido. Conclusão Foi possível verificar, em uma mesma cena genérica, a da imprensa dita séria francesa, dois diferentes modos de presença no mundo, ou seja, cada jornal representando um unus, um estilo, um ethos próprio e representando para determinado público uma determinada persona. “Le Monde diplomatique” apresenta o mundo por meio da discursivização de um ethos , como diz Maingueneau, jansenista, cujo ideal de voz, de concentração e densidade, não vai de encontro a uma grande pluralidade de leitores, pois “poucos eleitos entram no reino do céu”. Em contrapartida, “Libération”, com um caráter humanista devoto, ou seja, de maior abertura ao Outro, dá espaço a registros de todos os tipos para atrair um público o mais heterogêneo possível. O primeiro, com a rigidez de sua hexis corporal, desenvolve uma cenografia de fixidez e refinamento, assim como de apagamento do co-enunciador e do ator da enunciação, o segundo, com maleabilidade da hexis corporal, desenvolve uma cenografia de liberdade, descontração e flexibilidade. Essas cenografias permitem construir tanto o ethos do jornal quanto o perfil do seu leitor, pois os jornais apresentam-se da forma como acreditam ser a mais apropriada para corresponder às expectativas de seu enunciatário. Assim, o primeiro busca realizar a perfórmance de convencer o co-enunciador da objetividade, seriedade, refinamento e comprometimento caracterizadores de seu ethos. Já o segundo busca realizar essa perfórmance por meio de uma cena de enunciação que o legitime como sendo aquela onde um enunciador jovem e livre dirige-se a um coenunciador jovem e livre. “Libération” expressa um ethos que não busca a “justa medida” de um ourives de palavras, mas deseja a exacerbação buscando a libertação da linguagem, dos pensamentos, das formas fixas, enquanto o outro necessita das rédeas fixas das normas para que seu discurso seja legitimado. O “garant” de cada um dos jornais, ou seja, o papel do próprio ethos enquanto responsável pela imagem e pela cenografia direcionada aos respectivos coenunciadores, com seu estilo próprio, busca a conivência do leitor e deve ser fiel a essa cumplicidade. A cena enunciativa de “Le Monde diplomatique” busca preservar as faces positivas, de acordo com Maingueneau (2002:24), do enunciador e do enunciatário e, assim, cumprir seu contrato genérico por meio de um ethos mais distanciado e uma voz mais amena ao se dirigir aos seus leitores, também mais amenos. Assim, temos o ethos beligerante de corpo aberto e voz que grita de “Libération” e o ethos eufemístico de corpo seletivo de “Le Monde diplomatique” com uma voz que fala mais baixo no refinamento do seu dizer. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 662-667, 2005. [ 666 / 667 ] Referências Bibliográficas Discini, Norma. O estilo nos textos. Editora Contexto, São Paulo, 2003. Fiorin, José Luiz. As astúcias da enunciação, As categorias de pessoa, tempo e espaço. Ed. Ática, São Paulo, 2ª ed. 2001 Landowsky, Eric. “Uma Semiótica do cotidiano (Le Monde, Libération)” in A sociedade refletida, educ Pontes, São Paulo, 1992. Landowsky, Eric. Presenças do outro, ed. Perspectiva, São Paulo, 2002. Maingueneau, Dominique. Analyser les textes de comunication. Ed. Nathan Université, Paris, 2002. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 662-667, 2005. [ 667 / 667 ]