O dilema de “ser” Sartre e “ter” um Rothschild
Três décadas depois de Jean-Paul Sartre ter fundado, em conjunto com Bernard
Lallement, o jornal Libération e de ter escrito na primeira edição que o diário não
estaria sujeito a interesses económicos, como acontecia na imprensa francesa, pois
“não busca nenhum lucro e não está sujeito a nenhum tipo de pressão”, os desígnios
do filósofo foram recentemente traídos.
O sonho de Sartre começou por se esvanecer no ano passado, quando o controle do
Libé, idealizado por revolucionários maoistas e homens da revolta estudantil de Maio
de 68, passou para as mãos de um dos herdeiros da família-símbolo do capitalismo
liberal: os Rothschild. Com um investimento de 20 milhões de euros, Édouard de
Rothschild libertou o terceiro diário mais lido de França de uma grave crise financeira
e tornou-se no accionista maioritário com 37% do capital do jornal. Porém, é na última
semana que o desejo de Sartre desaparece com o despedimento por pressão de
Rothschild de Serge July, responsável pela direcção editorial do Libération, o homem da
casa e da causa, desde a sua fundação há 33 anos atrás.
À luz da nova configuração dos meios de comunicação social e da lógica de mercado
que a suporta, este “adeus” ao espírito dos anos 70 que repudiava o dinheiro, no
fundo a mercantilização da cultura, era previsível. Se no primeiro momento da
destruição do projecto sartriano, o estrutural digamos, decorre da tendência de
grandes empresários se sentarem nos lugares das administrações de meios ou de
grupo de meios – nos rivais Le Figaro e Le Monde já tal havia sucedido com a entrada
em cena dos empresários da indústria bélica, Dassault e Lagardère; o segundo deriva
de um confronto de poderes em que a história, os valores e as ideias entre estes
últimos e aqueles que “ordenam” a vida social das pessoas acentua ainda mais essa
clivagem.
Tal como foi retractado pelo jornal italiano de centro-esquerda Repubblica, o episódio
da saída de Serge July simboliza o “fim de uma época”, a “última folha que cai” e o
“insucesso no terreno político da geração de Maio de 68”. Mas, também significa mais
do que isso, ao reflectir a complexidade que hoje envolve a comunicação social à
escala mundial, nomeadamente a relação entre a propriedade e a sala de redacção;
entre quem se preocupa com a rentabilidade e os accionistas e aqueles que criam
acontecimentos para os cidadãos.
Desta ligação emana a exteriorização de um dilema, que objectivamente ilustra este
caso do Libération, da comparação entre o que os media outrora foram e o que
actualmente são a partir da estrutura económica que os suporta. Ora, é o confronto
existencial entre a função e o papel representados pelo jornalismo no passado e as
condicionantes sociais, políticas e económicas contemporâneas que determinam a
agenda, o destaque ou a primeira página que, de algum modo, conduzem a clivagens no
interior do sector, a tensões dentro da própria casa que acabam, outras vezes não, em
rupturas como no caso de July.
Ignacio Ramonet, director do Le Monde Diplomatique, é bastante crítico em relação a
esta ligação patrão/jornalista, pois defende que o poder económico, enquanto primeiro
poder na era da globalização, perverteu a acção do jornalismo ao privilegiar os
resultados em desfavor do “ideal cívico” e, por isso, “os media deixaram de ser
viáveis”. São assim “um problema da democracia”, porque deixaram de ser o que eram
no passado.
No meu entender, parece-me óbvio que a questão desse modo colocada não
favorecerá a solução que Ramonet propõe para o problema: “serem os cidadãos a
defenderem um melhor funcionamento dos media”, se desde logo se parte com a
premissa determinista dos media como um mal da democracia, em que a sua crise de
credibilidade é explicada de forma simplista como resultado da globalização, esse
fenómeno que “torna as empresas mais importantes do que os Estados”, como ele diz.
Tal como Ramonet, também considero que os leitores, os espectadores e os ouvintes
serão sempre indispensáveis para “controlar”, no bom sentido, os meios de
comunicação social, contudo estimular ou favorecer esse dever cívico de atenção e de
sentido crítico exige da parte daqueles que diariamente desempenham funções no
sector, sejam eles administradores, directores ou jornalistas, esclarecimentos mais
substantivos, mais “inteiros”, do mundo que os rodeia, não enveredando pelo
facilitismo de dividir o mundo entre o bem e o mal, entre quem está do lado da
pureza das ideias e quem está com a “imoralidade” do dinheiro.
Para quem vive do jornalismo da redacção, o desafio não se coloca nessa divisão sob
pena de se julgar que a competitividade se abraça com “contra-vapores” ou em
“voluntarismos” para inverter o sentido do mundo, da globalização e da constituição
de grupos mediáticos, “inimigos” do bom jornalismo. Neste contexto, resistir poderá
passar por responder às necessidades que o mercado impõe, com o pressuposto da
credibilidade, isenção e verdade através de uma maior celeridade na entrega da
informação, condição base para o seu sucesso no actual quadro de uma sociedade
contemporânea adepta da velocidade e da imediatez. Diários de referência europeus
como EL Pais, The Guardian ou Le Monde estão a fazê-lo, através dos seus sites na
internet, porque não há alternativa e não há tempo para o lamento e o carpir do que
se almejava que a imprensa fosse. Como dizia Jean-Marie Colombani, director do Le
Monde numa recente conferência que deu em Portugal, “os jornais têm que exisitir na
Net e preservar essa existência”, como um dos caminhos para “relegitimar o
jornalismo”.
Resistir não será, certamente, julgar a vida da comunicação - a própria vida social –
como um campo que se divide entre a pureza da ideologia e o calculismo do
capitalismo. Os media, tal como o quotidiano de cada um, demonstram que cada vez
mais se actua e se convive numa dependência (in)suportavelmente aceite, entre a
necessidade da legitimação das ideias e o suporte de uma estrutura económica.
Entre “ser” Sartre e “ter” um Rothschild ao lado, assim se continuará a contar a vida
das pessoas e das notícias...
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