REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇÃO DE TOCQUEVILLE: análise de um fenômeno multicomplexo. Margareth de Abreu Rosa1 Rainner Jerônimo Roweder2 RESUMO A importância da Revolução Francesa refletiu-se em vários setores da vida social, econômica, cultural e deixou um grande legado para as sociedades modernas, principalmente sua contribuição ao mundo jurídico, na visão de Alexis de Tocqueville, que defendia a liberdade, a igualdade e a democracia. Summary: The importance of the French Revolution was reflected in various sectors of social, economic, cultural and left a great legacy to modern societies, especially its contribution to the legal world, the vision of Alexis de Tocqueville, who defended freedom, equality and democracy. Palavras-chave: Revolução Francesa, liberdade, igualdade, democracia. Key-words: French Revolution, freedom, equality and democracy. 1. Introdução “As nações de nossos dias não poderiam impedir que em seu seio as condições sejam iguais; mas que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade , isto depende delas”. (Democracia na América. Tomo II, IV, 8). O presente texto tem por finalidade apresentar o pensamento político de Alexis de Tocqueville (1805-1859), escritor, pensador político e historiador francês. O autor provém de uma família nobre traumatizada pela Revolução e que permaneceu fiel aos valores do Antigo Regime. Influenciado pelos filósofos do Iluminismo, ele rompe com a herança familiar e vê em 1789 o advento inelutável de uma nova ordem social e política, fundadas nos princípios democráticos. 3 Suas investigações estão voltadas para poder compreender e explicar uma dada realidade sócio-política. E, apesar de arriscar-se a apresentar cada uma como parte de um processo mais 1 Professora das Faculdades de Direito Promove e doutoranda em Direito Processual Penal-UFMG Mestrando em Direito pela UFMG 3 “ Mas, na França pós-Revolução, marcada pelas sucessivas crises política e sociais, a instauração da democracia continua problemática. Para compreender porque, Tocqueville vai buscar nos Estados Unidos ‘uma imagem da própria democracia’. Inaugurando uma ciência política nova, ele deduz da análise sócio-histórica um modelo teórico para compreender a natureza de uma sociedade democrática, suas condições de existência e de funcionamento, e prever suas evoluções, a fim de descobrir ‘os meios de torná-la proveitosa aos seres humanos’ ” (100 Obras-chave de Filosofia. P.34) 2 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 geral, não é particularmente favorável à construção de grandes teorias explicativas sobre o desenvolvimento da humanidade. Além disso, é a defesa de um ideal, enquanto realização de uma idéia, como valor principal que pudesse se concretizar, que o move enquanto analista e homem público.4 2. Causas da Revolução Francesa As causas da Revolução Francesa foram várias: o declínio do feudalismo, a monarquia absoluta, as crises: moral, financeira, econômica e social. Tratou-se de um fenômeno multicomplexo, com respostas tão multifacetadas como as causas. O Antigo Regime foi marcado pelo absolutismo, que conforme Rémond consiste no poder não compartilhado, concentrado na pessoa do rei. Seu caráter pessoal é o que os sociólogos políticos chamam hoje de personalização do poder. 5 Tocqueville, citado por René Rémond, demonstra de forma luminosa que a Revolução prolonga diretamente a obra dos soberanos absolutos. O que nenhum deles conseguiu levar a cabo será conseguido pelas assembleias revolucionárias, passando por cima de todos os particularismos e da ordem social tradicional.6 Para Tocqueville, a divisão das classes é uma das causas da morte do antigo regime, a nação é uma sociedade composta por diversas ordens mal unidas e de um povo cujos membros só têm poucos laços entre eles e onde, portanto, ninguém se preocupa com assuntos que não os tocam diretamente e não há, em nenhum lugar, interesses comuns.7 A busca da liberdade também é trabalhada por Tocqueville como uma importante causa da Revolução. Ele refere-se a uma liberdade singular que não se encontrava no antigo regime. O governo que transformava tudo em dinheiro, pondo à venda a maior parte das funções públicas, perdera a faculdade de oferecê-las ao seu bel prazer, gerando ações contra a liberdade de seus súditos. Segundo ele, o que tão fortemente agarrou os corações de certos homens à liberdade é a sua própria atração, seu encanto, independente de suas dádivas. Neste 4 SANTOS, Célia Nunes Galvão Quirino dos. Tocqueville: a Realidade da Democracia e a Liberdade Ideal. 2013. p.2 5 RÉMOND, RENÉ. O Antigo Regime e a Revolução, 1986, p.71. RÉMOND, op. cit., p.73 7 TOCQUEVILLE, Alexis. O Antigo Regime e a Revolução. 2ª ed. Brasília: UNB, 1982. p.122 6 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 sentido, odiava-se mais a dependência do que se amava a liberdade. A liberdade certamente é um dilema na obra de Alexis de Tocqueville. Há uma nítida tensão entre liberdade e igualdade. Segundo Marcelo Jasmin o dilema tocquevilleano se expressa na concepção de que a liberdade política na sociedade igualitária de massas (a “democracia” como Tocqueville a denomina) depende de uma práxis e de um conjunto de valores cujos pressupostos tendem a ser destruídos pelo desenvolvimento continuado das disposições internas à própria democracia.8 O individualismo inerente ao estado social democrático e a inserção do indivíduo na esfera de privacidade fez gerar uma crescente indiferença cívica que culminava na valorização de um novo tipo de despotismo, que era pautado na indiferença política dos cidadãos. Com isto, é possível inferir que para Tocqueville, só haverá liberdade democrática onde houver efetiva e permanente ação dos cidadãos no âmbito da esfera pública. A ciência política de Tocqueville crê e quer persuadir que é possível fazer evoluir as leis e os costumes das velhas nações européias, e principalmente da França, em harmonia com os progressos da democracia nos fatos e nos espíritos para garantir a liberdade.9 Os padres e os nobres experimentavam a liberdade da época de maneira diferente. Os nobres muito desprezavam a administração propriamente dita, apesar de vez ou outra procurá-la. Pouco se preocupavam com a liberdade geral dos cidadãos e admitiam de bom grado o peso da mão do poder em sua volta, mas não admitiam este peso neles próprios. Os padres formavam então um dos corpos mais independentes da nação e o único cujas liberdades particulares tinham de ser respeitadas. Paradoxalmente, em 1789, o caderno da ordem do clero, mostra-se favorável à liberdade civil. No século XVIII, o camponês francês não era mais a presa dos pequenos déspotas feudais; só de raro sofria violências por parte do governo; gozava da liberdade civil e possuía uma parte do solo; mas todos os homens das outras classes tinham-se separado dele e seu isolamento era talvez o maior que já se viu no mundo todo. Os burgueses abandonavam o campo e buscavam as cidades. O êxodo rural gera o afastamento em relação ao camponês, ficando somente o padre e o único homem bem educado e líder no meio deles, assim totalmente separado das classes superiores e dos seus iguais. Os fatos acima são antigos e gerais que preparam a grande Revolução. Os fatos particulares e 8 JASMIM, Marcelo. Despotismo e História na Obra de Alexis de Tocqueville. 2013, p. 1 FURET, François. "Le Système Conceptuel de 'De la Démocratie en Amérique'". In: L’Atelier de l’Histoire. Paris, Flammarion, 1989, p.228. 9 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 mais recentes que acabaram de determinar sua localização, seu nascimento e seu caráter devese aos homens de letras tornam-se os principais homens políticos do país, a ideia era a de substituir regras simples e elementares extraídas da razão e da lei natural aos costumes complicados e tradicionais da sociedade. Combatiam os privilégios e prevalecia a ideias da igualdade natural das condições. Aqui a liberdade era a única forma possível – podia-se filosofar quase sem coação sobre a origem das sociedades, sobre a natureza básica dos governos e sobre os direitos primordiais do gênero humano. 10 Nascia a ideia de igualdade entre os homens. A aristocracia era rival do rei e se preocupava em usurpar-lhe o poder, já o rei considerava a burguesia e o povo seus aliados. A influência dos escritores foi tão grande que permitiu o acesso a todas as classes até as mais baixas da população - o povo – o camponês. Tal conclusão pode ser comprovada por Daniel Mornte, citado por Chartier: na obra de Mornet, As origens intelectuais da Revolução Francesa, três leis governavam a penetração de novas ideias que ele identificou com o Iluminismo, na opinião pública geral. Primeiro, as ideias desciam pela escala social “das classes altamente refinadas para a burguesia, para a pequena burguesia e para o povo”. Em segundo lugar, essa penetração se difundia do centro (Paris) para a periferia (as províncias). Finalmente, o processo foi se acelerando no decorrer do século, começando com minorias que anteciparam as novas ideias antes de 1750 e prosseguindo nos decisivos e mobilizadores conflitos na metade do século, para chegar, após 1770, na difusão universal desses novos princípios.Isso Levou Mornet à tese subjacente do livro, de que “foram, em parte, ideias que determinaram a revolução Francesa”. Embora não negasse a importância – na verdade, a primazia – das causas políticas, Mornet considerou o pensamento iluminista, tanto em seus aspectos críticos quanto reformadores, como precondição necessária para a crise final da velha monarquia à medida que rumava para a revolução. 11 . A religião também teve grande influencia sobre o caráter da Revolução, principalmente pela perda de força do cristianismo em quase todo o continente Europeu. A irreligiosidade estava difundida entre os príncipes e os intelectuais, quanto ao povo, ainda estava preso aos preceitos da religião. Esta era incômoda e uma barreira para os escritores. Com a falta de apoio da religião, uma das bases fundantes do Estado até pouco tempo antes da Revolução, ficou mais fácil inserir novas bases para a formação de matrizes estatais. De acordo com Tocqueville: Não se trata mais de saber em que a Igreja dessa época pecava como instituição religiosa, mas em que era um obstáculo à revolução política que s preparava, sendo particularmente incômoda para os escritores que eram os principais produtores desta 10 TOCQUEVILLE. op.cit., p.145 CHARTIER, Roger, As Origens culturais da Revolução Francesa. São Paulo: UNESP, 2009, p.26. 11 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 revolução. Os próprios princípios que governam a Igreja já obstam as idéias que tentavam fazer prevalecer no governo civil. A Igreja apoiava-se principalmente na tradição: os escritores desprezavam todas as instituições fundadas sobre o respeito ao passado; ela reconhecia uma autoridade superior à razão individual: eles só apelavam para a razão; ela era fundada sobre uma hierarquia: eles advogavam a confusão das posições. Para chegar a um entendimento, ambos os lados deveriam ter admitido que, devido às suas situações essencialmente diferentes, a sociedade política e a sociedade religiosa não podiam ser regidas por princípio iguais. 12 A crise moral se dá pela influencia dos filósofos que na Encyclopédie não aceita nada sem prova. A revolução está nos espíritos antes de passar à prática. A crise financeira ocorre desde a Regência até o reino de Luis XVI com déficit nas finanças reais, em consequência do aumento constante das despesas e de um fenômeno generalizado de inflação. Foi imposta na França uma grande diversidade de barreiras alfandegárias, encargos tributários, direitos feudais ainda existentes, que enriqueciam poucos à custa de muitos. O governo tentava desenvolver a economia com obras públicas e temperamentos estatais como a distribuição de facilidades públicas, mas isto só fez as despesas aumentarem, em um cenário em que as receitas se tornavam cada vez mais escassas. O governo tornou-se, então, o maior consumidor dos produtos da indústria e detinha uma feição notadamente empresarial. Tal fato gerou um grande inchaço do Estado e um entrelaçamento de dívidas do erário público com a esfera privada. A crise econômica gerada pela queda dos preços dos produtos agrícolas agrava ainda mais os antagonismos sociais. Cumpre ressaltar que duas causas foram marcantes no pensamento do autor: primeiro quanto à participação dos homens de letras, constituídos por advogados, magistrados, que visava estabelecer uma ordem legitima; e em segundo lugar a importância da imprensa na formação da opinião pública, mediante a circulação de matéria impressa, haja vista que “o conhecimento está sendo estendido pela Imprensa, as Leis escritas são hoje conhecidas por todos e todo mundo pode abarcar seus próprio assuntos” 13 Todos os fatores acima mencionados irão desembocar no fenômeno da Revolução. 12 IDEM, p. 150 CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revolução Francesa. São Paulo: UNESP, 2009, p.64. 13 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 3. A Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e as correntes predominantes sobre as origens da Revolução Francesa Segundo Albert Soboul, a Revolução assinala a elevação da sociedade burguesa e capitalista na história da França. Sua característica essencial é ter realizado a unidade nacional do país por meio da destruição do regime senhorial e das ordens feudais privilegiadas: porque, segundo Tocqueville em L’Ancien Régime et la Révolution (livro II, cap.I), “seu ‘objetivo particular era abolir em toda parte o resto das instituições da Idade Média”. 14 Para Tocqueville, era essencial expressar que a Revolução foi, paradoxalmente, o inevitável, tanto de uma evolução extremamente longa de centralização administrativa assumida pela monarquia, quanto de uma ruptura brutal, violenta e inesperada.15 Para o politólogo e historiador, considerado para alguns o mais importante da atualidade, Pierre Rosanvallon, em sua obra, Por uma História do Político, referindo-se à Tocqueville: Sobrevivendo apenas nos Estados Unidos como uma espécie de primeira testemunha europeia da excelência do sistema de governo norte-americano e profeta de sua futura grandeza nacional, apenas na década de 1950, Tovqueville viria a ser resgatado, na França como teórico da democracia, graças ao cientista social e historiador liberal Raymond Aron (1905-1983). Aron era, então, praticamente o único intelectual de porte a combater o marxismo político e academico hegemônico da época, fortemente estalinista, em obras polemicas como O Ópio dos Intelectuais e De uma Sagrada Família à Outra. Relendo Tocqueville conforme suas obras completas eram publicadas pela editora Gallimard, Aron percebeu o alcance daquela que lhe parecia a principal tese Tocquevilleana: a de que a modernidade não se caracterizaria nem pela indústria, como pretendera Comte, nem pelo capitalismo e pela luta de classes, como postulara Marx, e sim pela “igualdade social”, pela “igualdade de condições”. A redescoberta da teoria de Tocqueville colaborou expressivamente para que Aron desenvolvesse uma reflexão contraposta àquela desenvolvida pelos teóricos marxistas de seu tempo, que acusavam a democracia liberal (“burguesa”) como verdadeira burla ao ideal democrático. Daí que, em As etapas do pensamento sociológico, Aron incluísse Tocqueville na qualidade de sucessor de Montesquieu no interior de uma linhagem de índole liberal das ciências sociais, alternativa à matrizes então hegemônicas: a marxista e a positivista (Comte/Durkheim). Por outro lado, Aron não podia senão simpatizar com a orientação historiográfica de O Antigo Regime e a revolução na medida em que, livre de determinismos próprios da à filosofia da história então em voga, aberta causalmente à contingência, aos valores a atores individuais, ela parecia sintonizada com a de Weber – outro ator central do pensamento aroniano. 16 Ainda, em idêntico sentido, a reflexão historiográfica de Furet se caracteriza por uma constante referencia a Tocqueville que data pelo menos de 1971, quando publicou Tocqueville 14 SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa. São Paulo: DIFEL, 1974, p. 7 CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revolução Francesa. São Paulo: UNESP, 2009, p.35. 16 ROSANVALLON, Pierre. Por uma História do Político. São Paulo: Alameda, 2010, p.16-17. 15 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 e o problema da Revolução Francesa. A historiografia tocquevilleana teria sido praticamente a única a propor “uma conceitualização rigorosa da Revolução Francesa”. 17 (...) Aprofundando as pegadas de Aron, Furet entendeu que não bastava recuperar a obra de Tocqueville. Sendo a sua tarefa, ao contrário, a de reler a trajetória política francesa de uma perspectiva não-marxista, que implicava rejeitar a matriz historiográfica jacobina. (...), Furet passou apresentar a Revolução como um longo e sofrido processo de quase um século de passagem da França à democracia liberal. Neste quadro, a persistência da cultura política jacobina deixa de ser percebida como uma glória para ser vista como um obstáculo à constituição de uma cultura política democrática; da mesma forma, a Revolução deixa de ser um patriótico lugar de memória para ser encarada como um problema a ser enfrentado pela filosofia política. 18 Diferentemente da declaração da independência, em que somente algumas linhas são consagradas aos direitos do homem, a declaração de 1789, pelo contrário, dirige-se solenemente a todos os homens. O princípio da igualdade é consignado no art. 1º: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”; a Declaração de Virgínia afirmava somente: “Todos os homens nascem igualmente livres e independentes”. A igualdade jurídica é reconhecida pelo artigo 6º, a igualdade fiscal pelo artigo 13º. O artigo 4º dá à liberdade uma definição essencialmente negativa ‘A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outrem”. Ela é deste modo definida pelos seus limites, mas é apresentada como um poder, e nunca como uma coisa à maneira de Locke. Contudo, a noção de liberdade está estreitamente ligada à de propriedade, à qual é consagrado o artigo 17º: Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, del ninguém pode ser privado(...) 19 O contexto histórico em que vamos encontrar as correntes que explica o fenômeno da Revolução Francesa leva em consideração a influência do pensamento dos integrantes da Escola dos Annales (1929 e 1969), pelos seus fundadores, Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel, cuja aliança entre a geografia humana e a história nova, representada pela tradição de uma história social e cultural quantitativa que legitimam a história social em 17 ROSANVALLON, op.cit. p.18. 18 Idem . p.19-20 TOUCHARD, Jean. História das Ideias Políticas. Lisboa Europa-América, 1970, p. 20-21. A soberania da nação decorre da soberania da lei: A lei: do artigo 5º ao 11º , a expressão repete-se onze vezes, como se repetirá incessantemente nos discursos de Robespierre. Montesquieu falava das leis, Robespierre da lei. 19 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 detrimento da história política.20 Assim, podemos verificar que a Revolução no decurso do tempo histórico e pelo seu caráter, foi precisamente reduzida a três fases importantes de acordo com seus respectivos historiadores e defensores de uma nova teoria. A teoria Tocquevilleana (1851) defendia que a Revolução teve com causa principal a centralização do poder, concorrendo para a queda do antigo regime, conforme descrito em sua obra, O Antigo Regime e a Revolução. A teoria marxista, concedeu à Revolução Francesa uma interpretação social, baseada nos princípios do materialismo histórico e teve como principal liderança, Albert Soboul (1967), defendendo que a revolução burguesa estaria inscrita na lógica da necessária transição do feudalismo para o capitalismo. A teoria revisionista, liderada por François Furet (1970), constatou que a Revolução foi um fenômeno essencialmente político e cultural. 4. As origens culturais da Revolução Francesa Roger Chartier em sua obra, Origens culturais da Revolução Francesa, referindo-se a Furet, revela que, desencantado com o marxismo, também se afastou da tradição dos Annales de história social e cultural quantitativa, redirecionando a atenção acadêmica para a dinâmica da Revolução como fenômeno essencialmente político e cultural.21 Aduz ainda, que hoje já não é mais possível evocar complacentemente o caráter burguês da Revolução, seja em termos de causas ou de efeitos; os papéis, e na verdade, a própria definição, de outros atores sociais precisam ser reexaminados”. 22 Sobre o pensamento do autor de O Antigo Regime e a Revolução, Chartier, ao interpretá-lo, aponta três razões de ser da obra. A primeira é preventiva: Tocqueville denunciou qualquer 20 ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010. Resgate da história do político. Todas as contribuições da política . O político é interdisciplinar, distingue da história social, da sociologia, da teoria política e da história das ideias. O objeto da história conceitual do político é compreender a formação e a evolução das racionalidades políticas, isto é, dos sistemas de representações que comandam a maneira como uma época, um país ou grupos sociais conduzem sua ação e encaram seu futuro. É história política na medida em que a esfera do político é o local de articulação social e de sua representação. É história conceitual porque é em torno dos conceitos – a igualdade, a soberania, a democracia etc. – que se amarram e encontram intelegibilidade das situações e o princípio de sua ativação. 21 CHARTIER, Roger. Op.cit. p.20. 22 Idem, p.21 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 tentação de enxergar a filosofia do Iluminismo como uma ideologia exclusiva de uma burguesia triunfante em confronto com a aristocracia. Contrastou essa visão redutiva, que viria a ter algum sucesso depois dele, com outra que via as novas ideias como possuidoras de um espírito compartilhado por ‘todos os graduados acima da horda comum’. O pensamento racional e reformador, longe de indicar distância e diferenças, era comum às classes superiores, cuja rivalidade era ainda mais fortalecida por um vínculo comum com a ‘política literária’. Em segundo lugar, o livro de Tocqueville designa claramente algo que Mornet 23 foi incapaz de ver: os efeitos culturais das transformações nas formas do exercício do poder. Quando Tocqueville concedeu um lugar central e determinante para a configuração política em mutação (na destruição, por parte de uma administração despótica centralizada, da liberdade inerente a um governo baseado em instituições representativas), ele sugeriu uma forma sutil de pensar sobre posições e tensões na área intelectual e cultural. Encarar a construção do Estado absolutista e o desenvolvimento do pensamento crítico como duas histórias autônomas e paralelas constitui uma oposição demasiadamente simples. Foi precisamente por tender a monopolizar todo o exercício de governo que o poder real, centralizado administrativamente, produziu tanto a política intelectual quanto a opinião pública. Em terceiro e último, Tocqueville nos ajuda a formular a articulação entre a consciência histórica daqueles que fizeram história e a significância de suas ações, das quais eles próprios não estavam cônscios. A ilusão de ruptura que é o fundamento e o significado explícito do ato revolucionário tem suas raízes na política imaginária e abstrata construída pelos autores do século XVIII fora das instituições que comandavam a sociedade real.24 A importância da opinião pública no desenrolar dos fatos que deram origem a Revolução Francesa tem sido notória aos novos estudos sobre o tema, inclusive superando a antiga concepção de que a Revolução teria sido exclusivamente burguesa, acrescentando o fato de que outros atores devem ser considerados. Maior importância se tem dado aos homens de letras, magistrados que tornaram viáveis, pelos instrumentos da literatura, a formação de uma opinião pública que invadiu o discurso de todos os segmentos da sociedade – político, administrativo e judicial – nas duas ou três décadas do Antigo Regime. Eles operaram um instrumento poderoso tanto para a divisão como para a legitimação social. 23 Daniel Mornet -1933-1967 – As origens intelectuais da Revolução Francesa-1715-1787. Essa obra foi escrita na metade da carreira de Mornet, discípulo fiel de Gustave Lanson, docente de letras na Sorbone. 24 Ibidem, p.39-40. Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 Enquanto na Inglaterra aqueles que escreviam sobre o governo e aqueles que governavam misturavam-se, uns introduzindo ideias novas na prática e os outros corrigindo e circunscrevendo as teorias com a ajuda de fatos, na França o mundo político permaneceu como que dividido em duas províncias separadas e sem contato entre elas. A primeira administrava e a segunda estabelecia os princípios abstratos sobre os quais qualquer administração deveria apoiar-se. Aqui tomavam as medidas particulares indicadas pela rotina, acolá proclamavam leis gerais sem nunca pensar nos meios de aplicá-los: para uns a direção dos negócios, para os outros a direção da inteligência. Acima da verdadeira sociedade, cuja constituição ainda era tradicional, confusa e irregular, onde as leis permaneciam diversas e contraditórias, as camadas definidas, as condições fixas e os encargos desiguais, ia-se construindo pouco a pouco uma sociedade imaginária, na qual tudo parecia simples e coordenado, uniforme, equitativo e conforme a razão.25 Segundo Lynn Hunt, a cultura política revolucionária não pode ser deduzida das estruturas sociais, dos conflitos sociais ou da identidade social dos revolucionários. As práticas políticas não foram simplesmente a expressão de interesses econômicos e sociais “subjacentes”. Por meio de sua linguagem, imagens e atividades políticas diárias, os revolucionários trabalharam para reconstituir a sociedade e as relações sociais. 26 Visto como um todo, portanto, a nova classe política não foi socialmente homogênea. Advogados dominaram a política nacional e regional, comerciantes, artesãos e lojistas destacaram-se nas cidades, e uma mistura de camponeses, artesãos e pequenos comerciantes governou os povoados. Entretanto, houve padrões significativos por trás dessa aparente diversidade. O mais importante foi a ruptura social e política com o Antigo Regime, fazendo com que os verdadeiramente nobres praticamente desaparecerem da política após 1792. 27 Apesar de abominar o lado sombrio e sinistro dessa experiência, Tocqueville conclui: Portanto os franceses são ao mesmo tempo a mais brilhante e a mais perigosa de todas as nações européias, e a mais bem qualificada para tornar-se, aos olhos de outros povos, objeto de admiração, de ódio, de compaixão ou de alarme – nunca de 28 indiferença. 5. A Revolução: uma consequência natural 25 TOCQUEVILLE. Op.cit., p.147 HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007, p. 33. 27 HUNT, op, cit., p.197. 28 HUNT, op. cit., p.274. 26 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 Da analise dos fatores políticos, econômicos, e sócio-culturais experimentados pela sociedade francesa da época, Tocqueville relata que a Revolução nada mais é que um resultado natural do estado de coisas que a antecedeu. Existia uma nobreza que perdeu antigas regalias políticas, mas ainda mantinha uma grande gama de privilégios pecuniários e garantias individuais, tornando-se menos uma aristocracia e mais uma casta. Este fato revoltava diuturnamente o povo da época. A desintegração social e a uniformização e separação das classes privilegiadas foi um ponto sensível captado por Tocqueville, questão que contribuiu de forma incisiva para a revolta e para o desejo da Revolução. 29 O rei continuava a falar como quem manda, mas obedecia, na realidade, a uma opinião pública, que o inspirava ou arrastava diariamente e que consultava, temia e lisonjeava constantemente. Ele era absoluto quanto à letra da lei, mas limitado pela prática.30 O Estado-empresa da época que havia tomado conta dos negócios em todos os cantos, começava a pedir concordata. Além de retirar a capacidade dialógica do cidadão, circunscreveu toda França a Paris, deixando de lado o resto do território. Segundo Tocqueville Sendo a França um dos países da Europa que há mais tempo e mais completamente apagara qualquer vestígio de vida política e onde os particulares mais tinham perdido o manejo dos negócios, o hábito de interpretar os fatos, a experiência dos movimentos populares e quase a própria noção do povo, é fácil imaginar como todos os franceses puderam cair numa terrível revolução sem avistá-la, tendo aqueles que mais ameaçava marchado na primeira fila, encarregando-se de abrir e alargar o caminho que 31 a ela conduzia. A Igreja também já não servia mais de base para sustentar e guiar o pensamento político da época. A irreligiosidade tornou-se uma paixão geral. Atacavam a religião cristã sem mesmo tentar colocar outra em seu lugar; a Igreja, que outrora foi o primeiro dos poderes políticos, era agora odiado, apesar de não ser o mais opressivo. A opinião pública era encaminhada por filósofos, haja vista que as instituições livres, classes políticas, organizações sociais e religiosas encontravam-se extremamente 29 RIBEIRO, Fernanda Maria. The Causes of the French Revolution: how the institutions and the customs of Monarchy Regime influence the revolt, 2008, p.5 30 TOCQUEVILLE. Op.cit., p.165 31 Idem, p.185 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 enfraquecidas. As idéias eram de paz, mas a prática violenta. Este contraste foi uma das mais marcantes características da Revolução, pois ela foi orquestrada por uma classe refinada e executada por camada bruta da população, enfadada por séculos de abusos e que sempre teve que engolir a sua própria voz. Desta forma, os ecos de liberdade vieram em um tom diferente do projetado, mais profundo, mais sensível e mais sanguinário. A centralização administrativa concentrava mais críticas da opinião pública do que propriamente poder. Mas, certamente foi um dos grandes fatores que aproximaram a Revolução da realidade. Somam-se a isto as peculiaridades da nação francesa. Na concepção de Tocqueville, jamais houve na terra uma única outra nação tão cheia de contrates e tão extremada em cada um dos seus atos, mais levada por sensações e menos por princípios; assim, sempre agindo melhor ou pior do que se esperava, ora abaixo, ora muito acima do nível comum da humanidade. Só ela podia gerar uma revolução tão repentina, tão radical, tão impetuosa e, entretanto, tão cheia de voltas, de fatos contraditórios e de exemplos contrários.32 Este é apontado pelo autor como um dos fatores que levou a Revolução a eclodir na França e não em outros países da Europa que já se preparavam, mesmo que sem saber, para este movimento. Segundo ele, nenhuma nação jamais embarcou numa tentativa tão resoluta como os franceses em 1789 de romper com o passado, de provocar, como se fosse, uma cisão em sua linha de vida e de criar um golfo intransponível entre tudo que foi até o momento e tudo a que se aspira agora ser. 33 E, assim, ocorreu a Revolução, sem que ninguém a previsse e sem nenhum fator único indutor de um dos maiores fenômenos sócio-políticos do milênio passado. 6. Conclusão Não se pode deixar de considera a atualidade do pensamento de Alexis de Tcqueville quanto à interpretação das causas, origens e consequências da Revolução Francesa. Por certo vários foram os fatores que culminaram com o rompimento com o Antigo Regim, entretanto, sua 32 Ibidem. P. 189 TOCQUEVILLE, Apud. CHARTIER, op.cit. p. 40-41. 33 Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015 concepção política da Revolução tem sido o marco para o estudo dos atuais historiadores, pois a Revolução, ainda hoje, é referencia para o estudo dos grandes desafios da humanidade – os ideais de liberdade e igualdade – que refletiram no pensamento iluminista da época. Os fundamentos filosóficos da Revolução estão também comprovados como tese subjacente para determinar o fim do Antigo Regime. Aspectos relativos a uma liberdade singular e a uma liberdade de imprensa foram pensados por Tocqueville, como fatores determinantes para o rompimentos com o Antigo regime, apesar de ter a Idade Média, entre os séculos XIII-XV, já concebido, em sua estrutura, a possibilidade de ascensão social, demonstrando que a igualdade mencionada se referenciava a uma igualdade de poder e não igualdade de direitos. A Revolução ainda hoje nos fascina, pois foi palco de uma transformação política para o capitalismo ou para o nascimento do socialismo, dando à política um status de atividade poderosa e como agente de mudança consciente. Referências CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: UNESP, 2009. FURET, François. Le Système Conceptuel de 'De la Démocratie en Amérique'. In: L’Atelier de l’Histoire. Paris: Flammarion, 1989, GOFF, Jacques Le. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2001. HUNT, Lynn. Política, Cultura e Classe na Revolução Francesa. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007. JASMIM, Marcelo. Despotismo e História na Obra de Alexis de Tocqueville. São Paulo: IEA USP, 2013, Disponível em http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/jasmintocqueville.pdf, acesso no dia 16/05/2014, às 12:32 RIBEIRO, Fernanda Maria. The Causes of the French Revolution: how the institutions and the customs of Monarchy Regime influence the revolt, Brasília: uvanet, 2008. 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