A FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA PARA AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS E A UTILIZAÇÃO DE FORMA SUSTENTÁVEL: Estudo de caso em comunidade da Grande Belém-Pará. Leonardo de Jesus Farias da Silva (FACI – Faculdade Ideal) Bacharel em Direito e Consultor Ambiental [email protected] Luiz de Jesus Dias da Silva (UFPA – Universidade Federal do Pará) Arquiteto urbanista, professor mestre e consultor ambiental. [email protected] RESUMO Este artigo tem o objetivo de discutir os conflitos agrários que envolvem comunidades quilombolas e de modo mais especifico um caso de comunidade localizada na Região Metropolitana de Belém, a qual luta para ver regularizadas suas terras na totalidade que lhes é de direito por herança de seus antepassados e da qual só parte lhes foi assegurada pela justiça. Esse é um exemplo, somente, de problemas enfrentados pelos que se declaram quilombolas, quanto à posse territorial efetiva e regularizada. INTRODUÇÃO A questão da terra, diretamente ligada à posse agroecológica, sempre foi alvo de uma grande luta por parte dos muitos interessados e detentores do direito a sua posse ou propriedade. Em meio a essa enorme contenda, surgem as várias figuras que reivindicam para si essa terra, alguns por pleno e constitucional direito, outros por excesso de ganância utilizando-se de golpes que burlam o sistema legal para que se obtenha a posse ou em alguns casos a propriedade dessa terra. Esse problema, que se arrasta por muito tempo na história do Brasil, provocando conflitos e despertando atenção da mídia e do Poder Público para sua minimização; exigindo necessária ação governamental no sentido de promover, de modo efetivo, a tão esperada reforma agrária e de imediato, providencias para demarcação de terras a quem tem direito e do fiel cumprimento das legislações existentes acerca dessa temática. O conflito agrário continua sendo um desafio ao governo brasileiro e esperança de solução para todos os atores sociais envolvidos. Para que se entende a posse agroecológica, bem como essa disputa, é necessário o conhecimento direto dos vários atores que reivindicam para si a terra, como os seringueiros, posseiros, fazendeiros, índios, ribeirinhos, quilombolas, entre outros. Para algumas dessas comunidades a posse á terra é de direito, como é o caso dos povos e populações tradicionais, e para outros, o interesse particular a essas “fatias de chão” os põe dentro da disputa que muitas vezes se encerra com o desrespeito aos direitos adquiridos constitucionalmente ou até mesmo de forma trágica com a perda de vidas importantes. Povos e populações tradicionais como indígenas e quilombolas, por direito constitucional deveriam estar contemplados com demarcações de suas propriedades, onde habitam desde tempos longínquos ou que reivindicam de algum modo sua posse. No entanto o cenário existente nesta primeira década do século XXI, não apresenta grandes novidades como soluções de impasses quanto à posse definitiva de terras a significativa parcela dessas populações tradicionais. A territorialidade, para essas populações, se transformou em objeto de luta incessante. Dentre esses vários atores sociais, mais especificamente os povos e populações tradicionais, que detém o direito á posse agroecológica das terras, destacam-se os quilombolas, objeto direto desse estudo, que por força constitucional possuem direito às terras por eles habitadas desde os tempos da escravidão, onde se organizaram e convivem de forma harmoniosa e sustentável, porém, alvos de muitos protestos e perseguições quanto a sua legitimidade para possuir essas terras. Para que se entenda de forma transparente a questão dos quilombolas, é necessário que se faça um apanhado partindo da formação de comunidades quilombolas, de seu conceito, seus direitos constitucionais e a aplicação dos mesmos nos dias atuais, tomando por exemplo a Comunidade Quilombola do Abacatal, localizada na Região Metropolitana de Belém, mais especificamente no Município de Ananindeua. A QUESTÃO DA TERRA As propriedades pelas quais todas essas comunidades lutam, possuem características especiais de uso comum, como uma nova modalidade de posse, totalmente diferenciadas do que se conhecia, em fins do século XX, como “terras coletivas”; transcendendo às formas de propriedades anteriormente previstas como: condominial, sociedade anônima, sociedade limitada e cooperativa (ALMEIDA:2002,p.45). Para Arruti (2005, p.87) há uma semelhança no modo de tratar a questão de terras de populações remanescentes de indígenas e de quilombos, pelo governo brasileiro, consideradas inicialmente terras de uso comum. Para ele: Essa territorialidade, marcada pelo uso comum, é submetida a uma série de variações locais que ganham denominações específicas, segundo as diferentes formas de autorepresentação e autodenominação dos segmentos camponeses, tais como Terras de Santo, Terras de Índios, Terras de Parentes, Terras de Irmandade, Terras de Herança e, finalmente, Terras de Preto[...] A posse da terra no Brasil perpassa por várias questões, dentre eles a identificação dos diversos tipos e formas de ocupação da terra. Uma dessas formas de ocupação é a posse agroecológica, que detém como um dos seus primordiais fatores a função social a que essa terra deve atender para que se configure a posse agroecológica. Segundo Vivanco (2001), a função social da propriedade seria uma forma de reconhecimento de todo titular de domínio, que por ser um membro de uma determinada sociedade tem deveres e os direitos em relação a todos os outros membros de tal sociedade, no mesmo sentindo em que, se este chegar a ser o real titular do domínio cairá sobre o mesmo a obrigação de não realizar nada que possa impedir ou criar algum obstáculo à boa convivência dos membros dessa comunidade. Vivanco apud Chagas (2001), cita que o direito à propriedade se manifesta de forma concreta no uso e usufruto dessa terra. O dever que tem por objetivo a obrigação existente para com os demais membros desta sociedade se manifesta na necessidade de cuidar dessa propriedade objetivando que esta não perca sua capacidade produtiva, para atender ao titular dessa maneira, igualmente as necessidades dos demais sujeitos integrantes da comunidade local. No conceito de Borges (2001), a propriedade, no que tange ao imóvel, o direito a este está ligado diretamente à faculdade que a pessoa detém a possuí-lo para si, em detrimento a uma contrapartida que será o dever de utilização deste de acordo com o bem estar da comunidade. O conceito de propriedade visto acima, ligado diretamente a função social que esta exerce, foi evoluindo até a constituição brasileira de 1934 que tratou de inserir a restrição do direito de propriedade pelo interesse social da coletividade, o que foi feito igualmente pelas Constituições que se seguiram, porém, sem dar atenção direta às comunidades de remanescentes de quilombolas, até que se contemplasse a Constituição de 1988, que em meio a vários dispositivos tratando do tema posse agroecológica, traz no artigo 68 da do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT o direito à propriedade da terra por essas comunidades quilombolas, direito esse que embora esteja inserto no texto constitucional, vem precedido de muitas lutas por partes dessas comunidades que ao longo dos tempos tem sofrido todas a s formas de discriminações e perseguições. A garantia constitucional dada às comunidades quilombolas deve ser tratada diretamente ao conceito dado a essas ao longo dos anos, bem como a forma de utilização da terra e aos costumes conservados e mantidos por esses apesar da forte influência sofrida pelas culturas exteriores ao seu território. A seguir, o texto constitucional do artigo 678 da ADCT: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos”. Dado o seguinte preceito constitucional, parte-se para a completa determinação quanto aos quilombolas, no sentido de encontro da correta forma de determinação dessas comunidades, o que sempre foi objeto de protestos e confrontos por ruralistas e defensores dessas comunidades. QUILOMBOLAS COMO COMUNIDADES TRADICIONAIS As comunidades tradicionais são povos residentes no território brasileiro que trazem consigo vários aspectos que os diferenciam e os determinam como grupos específicos. Em uma forma simples de conceituação, as comunidades tradicionais são povos que possuem sua forma própria de organização social, ocupam suas terras e utilizam seus recursos naturais de forma consciente e sustentável, atendendo aos preceitos da posse agroecológica. Essa idéia de populações tradicionais está ligada diretamente a conservação de valores, tradições culturais deste povo que habita a um longo período de tempo o território por eles adquiridos de diversas formas. Quando se fala em populações tradicionais, não se pode deixar de considerar os quilombolas, que são uma das maiores formas de manifestação de comunidades tradicionais existentes no território brasileiro. O termo que determina as comunidades quilombolas vem sendo utilizado desde o período colonial. Segundo Lopes (1987) “quilombo é um conceito próprio dos povos africanos que através dos séculos vem sendo modificado (...) quer dizer acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa”. Esses conceitos são só alguns dentre os tantos que foram elaborados e que até hoje confundem os vários agentes envolvidos nessa questão, seja ao lado dos detentores de direitos, os quilombolas, seja ao lado dos ruralistas que tentam de todas as formas desqualificar as comunidades quilombolas com o fim de requerer para si a posse e propriedades das terras pelas quais os dois grupos brigam. Um conceito acerca desse tema, que está no imaginário popular, é o de quilombos são comunidades isoladas compostas basicamente por escravos negros foragidos das fazendas em que trabalhavam. Talvez este seja um dos primeiros conceitos surgidos acerca do tema e é certamente a primeira conceituação que vem a mente quando se fala em quilombos, o que certamente é uma forma errada de compreender o tema, sendo este um conceito que remete aos tempos coloniais do Brasil. O Decreto nº 4.887 de 20 de Novembro de 2003, e seu artigo 2º Caput cita traz o seguinte conceito acerca de comunidades quilombolas: Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. Seguido pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT da Constituição Federal de 1988, o termo quilombo deixou de designar escravos foragidos para designar os segmentos afro-descendentes, que devem ter seus direitos reconhecidos e que a tanto tempo lutam para verem esses direitos atendidos. QUILOMBOLAS E DIREITOS RECONHECIDOS Durante anos, as comunidades quilombolas vêm lutando para terem seus direitos reconhecidos, a cerca de 20 anos essas comunidades obtiveram as primeiras conquistas acerca do direito a propriedade a terra. Nesse período, o governo pôs-se em uma posição de imensa resistência, aceitar e executar a determinação constitucional acerca da matéria. Porém, não se pode negar o avanço, visto que até o ano de 2008, não mais que 143 territórios de remanescentes de quilombolas haviam sido reconhecidos e titulados legalmente, conforme o Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades Quilombolas (Ministério da Cultura/ FCP – Fundação Cultural Palmares, 2008). Ao se tratar de povos e populações tradicionais, observa-se maior avanço nas soluções de impasses e demarcações efetivas aos povos indígenas, no entanto, faz-se necessário que se dispensem especial atenção aos que se declaram remanescentes de quilombos, populações quais também detêm por força legal o direito à propriedade, mas que porém, quase sempre são alvos de questionamentos quanto a essa legalidade. Mesmo sendo um avanço pequeno, porém, considerável, este foi alvo de protestos por parte bancada ruralistas, no Congresso Nacional e até mesmo de alguns parlamentares independentes. Uma grande prova desses protestos é o Decreto 4.887/2003, que trata da regulamentação do procedimento para a titulação das terras de quilombolas, que tornou-se alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN nº 3239 no Supremo Tribunal Federal – STF, ajuizada pelo partido dos Democratas e alvo de uma projeto de decreto legislativo objetivando a sua anulação, projeto este de autoria de um deputado federal do PMDB/SC. Mesmo com todo tipo de preconceito sofrido, e as formas de perseguição por parte de todos que os julgam inferiores, os quilombolas, desde os tempos da escravidão, nunca deixaram de lutar por seus direitos, e o resultado dessas lutas vem aos poucos sendo colhido, mesmo que de forma lenta. Essas conquistas se fazem importantes para a história desse povo e para o futuro dos que virão após as gerações atuais. Sua territorialidade é algo imprescindível para o modo de vida e de sua identidade quanto quilombola. COMUNIDADES QUILOMBOLAS E RELAÇÃO SUSTENTÁVEL COM A TERRA A adaptação das comunidades de africanos na Amazônia foi muito favorecida com a ajuda dos indígenas, que serviram de modelo para esse negros no que tange a utilização dos recursos naturais disponíveis nas terras habitadas. Esses indígenas deixaram de herança para as comunidades quilombolas a sua maneira de caçar, a forma de pesca, a agricultura de corte e queima, os sistemas de manejo, seus hábitos alimentares, ente outros que muito se adaptam ao ambiente me que viviam. A posse civil se diferencia da posse agroecológica quando se dita que o primeiro como elemento subjetivo necessita tão somente que o possuidor detenha o título do bem, enquanto a posse agrária tem por fato objetivo a exploração da terra pela pessoa que a utiliza. Diz-se ainda, que a posse agroecológica tem por fundamental fator objetivo a utilização sustentável da terra. As características desta posse agroecológica se dão pela forma coletiva de apossamento dos recursos naturais e pela prática de trabalho familiar baseada no agroextrativismo. As formas de utilização e disposição destas terras de uso comum se dão por consenso do grupo habitante, e não por ações isoladas. Nesse sentido, há que se tratar de duas formas distintas de apossamento por essas comunidades, a do uso coletivo, no qual se destaca a utilização de forma comum da terra; e o de apossamento familiar, baseado no trabalho familiar. Quando se trata de áreas de uso comum, deve-se citar o conceito de Benatti (2008) como: um bem não sujeito à apropriação individual em caráter permanente. Nestes espaços combinam-se as noções de propriedade privada e de apossamento de uso comum, onde encontra-se um grau de solidariedade e coesão social, formadas a partir de normas de caráter consensuais que garantem a manutenção destes espaços.BENATTI (2008). Pode-se dizer então, que a posse agroecológica seria fisicamente a soma do espaço familiar com as áreas de uso comum da terra; e materialmente, se dá em três conjuntos, que são: a casa, a roça e a mata. Conforme as características descritas por BENATTI (2008), o autor define a posse agroecológica como sendo: a forma que um grupo de famílias camponesas (ou uma comunidade rural) se apossa da terra, levando em consideração neste apossamento as influências sociais, culturais, econômicas, jurídicas e ecológicas. Fisicamente, é o conjunto de espaços que inclui o apossamento familiar conjugado com área de uso comum, necessários para que o grupo social possa desenvolver suas atividades agroextrativas de forma sustentável BENATTI (2008). As características cotadas, bem como os conceitos acima descritos, remetem a uma maneira diferenciada de utilização da terra, que aplica-se diretamente as Comunidades de Remanescentes de Quilombolas e que os caracteriza e servem de base para que se defina essas Comunidades. CASO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE ABACATAL Embora sejam muitas as histórias e circunstância para obtenção de terras por comunidade que se declaram quilombolas, em cada grupo rural negro, a história é só sua, mas é também a de muitos outros grupos tradicionais, pelo Brasil afora, que lutam por direitos, e, em particular, lutam pelo direito a terra em que habitam, trabalham e constroem sua vida (ARRUTI:2005,P.338). O grupo, objeto desta pesquisa, é um caso onde há reivindicação de regularização fundiária das terras onde ocupam, discretamente , sem maiores pretensões. No imaginário popular continua a idéia de que quilombos, quilombolas ou terras de preto existem, mas estão muito distantes de centros urbanos, no entanto bem próximo da capital do estado do Pará, mas precisamente no município de Ananindeua, encontra-se uma comunidade cujos membros, na sua maioria, descendem de escravos que serviram a nobreza entre o século XVIII e XIX, quais ocupam uma área que antes pertencera à Belém e hoje faz parte desse município na Região Metropolitana. O município foi dividido, através do seu Plano Diretor em duas zonas rurais, sendo uma ao norte, mais precisamente a Ilha de João Pilatos e a outra ao Sul denominada de Abacatal, em homenagem a comunidade afro-descendente objeto desse estudo. Entre as zonas rurais acima citadas, está a zona urbana de Ananindeua, fortemente marcada pela passagem da BR316 que liga a cidade de Belém a outros recantos do país na direção das regiões Nordeste e Centro Oeste. Muitos cidadãos tanto de Ananindeua, como da Capital do Pará ouvem falar da comunidade de Abacatal, porém, nem todos têm idéia da origem dessa comunidade, dessa terra e muito menos da rica história que marca o seu surgimento e trajetória até os dias de hoje, onde a comunidade descendente de escravos convive como agricultores em terras herdadas legalmente, mas muito carente de infra-estrutura física e equipamentos públicos que melhoram a qualidade de vida de uma sociedade. A Comunidade do Abacatal localiza-se na Estrada do Aurá, km 8. Aurá, Ananindeua – Pará. O acesso pelo Rio Guamá se dá por meio do igarapé Uriboquinha. Possui características rurais, porém, interage com o dia a dia urbano, tanto em função das ocupações no seu entorno como pela proximidade com a cidade, comercializam produtos como carvão, frutas, verduras e farinha na Feira do Produtor de Ananindeua, alguns jovens freqüentam as escolas da cidade e os moradores recorrem a hospitais ou postos de saúde e outros serviços localizados no meio urbano, pois localiza-se a cerca de 8Km do centro de Ananindeua, conforme descrevem Marim e Castro: Localizada às margens do igarapé Uriboquinha, que é afluente do rio Guamá [...]. Abacatal mantém estreita relação com a vida urbana embora conserve sua feição rural. Sua existência está relacionada com a expansão urbana, que cada vez mais configura situações de tensão e múltiplas ameaças. Com a retomada de uma política da borracha baseada no cultivo da hevea, as terras adjacentes a Abacatal foram doadas pelo estado à empresa Pirelli, que limitou o espaço de coleta, caça e agricultura para seus moradores. Por outro lado a abertura da rodovia BelémBrasília alterou as formas de comunicação entre essa área rural e acidade. As novíssimas intervenções geradoras de mudanças em Abacatal são a construção da Alça Viária e o Parque Ambiental de Belém : (2004,p.14). A comunidade Abacatal, foi por muito tempo esquecida pelo Poder Público, como outros locais de características semelhantes ocupados na sua maioria por negros que trabalham em coletas de produtos extrativistas, que mesmo pertos de centros urbanos pouco exigem para ver satisfeitas suas necessidades. Nas proximidades dessa área nota-se a degradação ambiental resultante desse descaso, como o desmatamento, o lixo na estrada de acesso e as crateras resultantes da retirada de material usado na construção civil, como pedra preta e aterro. A única via de acesso por terra é a Rua Dom Pedro I, que liga a BR316 à comunidade, essa via é também conhecida como estrada Santana do Aurá, sua entrada está localizada na BR316 ao lado do hospital Anita Gerosa, situado quase em frente ao prédio da Prefeitura de Ananindeua, próximo também da barreira da Polícia Rodoviária Federal, quase na divisa do município de Marituba. Na foto 01, é observado o hospital e a entrada da via de acesso à comunidade, as linhas de ônibus Aurá tem seu terminal a dois Km da BR316, a partir desse ponto só é possível acessar a via a pé, de bicicleta, motocicletas ou por meio de veículos com tração nas quatro rodas, pois essa estrada ( foto 2) é empoeirada no tempo de estiagem, esburacada e cheia de lixo e depressões, que no período mais chuvoso se tornam alagadiços e cheio de lama, conforme pode ser visto na foto 3. Foto 1. Via de acesso a partir da BR316 Fonte : Autor, 2010 Foto 2. Estrada de acesso à comunidade Fonte : Autor, 2010 Foto 3. Estrada de acesso à comunidade Fonte : Autor, 2010 Essa comunidade Quilombola é composta por remanescentes dos escravos que serviam ao Conde Coma Mello em uma de suas várias propriedades. Essa terra que hoje comporta o quilombo do Abacatal foi passada por herança do Conde Mello as suas três filhas, Maria do Ó Rosa de Moraes, Maria Filistina Barbosa e Maria Margarida Rodrigues da Costa nascidas de uma relação deste com a escrava Olímpia. A moradia do Conde era na cidade de Belém com sua família tradicional, porém, visitava com frequência suas terras localizadas na subida do Rio Guamá, mais precisamente às margens do igarapé Uriboquinha. Naquela época, o único caminho para que se chegasse até essas terras era este e que, devido ao ecossistema de igapó era muito alagado. Para sanar esse problema os escravos do Conde construíram um caminho de pedras para que o proprietário chegasse da beira do igarapé Uriboquinha até a sua propriedade em terra firme. Este caminho até os dias de hoje ainda resiste e é um dos maiores marcos históricos desta comunidade. A figura 1 ilustra a árvore genealógica da escrava Olímpia desde o romance com o Conde Coma Mello. Fig.1- Árvore genealógica da família formada a partir do Conde Coma Mello e a escrava Olímpia. Fonte Marin e Castro ( 2004, p. 46) Como outras comunidades quilombolas, o Abacatal sofre há anos com o descaso do Poder Público, a comunidade é cercada por áreas desmatadas, ocupações ilegais e degradação ambiental através das crateras criadas pela retirada de material utilizado na construção civil, as quais se transformam em lagoas, propensas para criadouro de mosquitos, e outros vetores de doenças, além de servir de rota alternativa para o aterro sanitário municipal, por caminhões coletores de resíduos sólidos de cidades da Região Metropolitana, o que resulta em uma local de forte acumulo de lixo na estrada e forte odor. Os únicos meios de transporte com que contam os habitantes do Abacatal são os caminhões que carregam a produção do quilombo, veículos de tração animal ou as bicicletas. Essa comunidade apesar de toda influência sofrida, se mantêm com uma estrutura característica de antigos quilombos, com sentido de produção coletiva e terra comum, como pode ser observado na figura 2, que apresenta um croqui de sua propriedade. Figura 2: Croqui da Comunidade do Abacatal Fonte: Marin Castro, (2004, p. 85) Nos dias atuais, a comunidade do Abacatal é a única dentro da Região Metropolitana de Belém e proximidades que tem suas terras regulamentadas e tituladas, porém, essas terras entregues aos moradores pelo ITERPA no ano de 1999 representam pouco mais de 14,5% do que fora deixado como herança a essas famílias pelo Conde Coma Mello. Segundo Marin e Castro(2004, p. )a herança deixada pelo Conde correspondia a 2.100 hectares. No ano de 2003, o Instituto de Terras do Pará abriu novamente um processo com o fim de aumentar a área da propriedade que lhes pertencente, processo este que se arrasta nos trâmites normais da justiça paraense, mas que quando pesquisado está sempre em fase de homologação pela autoridade competente. O descaso com essa comunidade continua quando se percebe a inexistência de unidades de saúde, água encanada ou rede de esgoto, igrejas, ou comércio, seguindo ainda pela falta de policiamento ou qualquer outra forma e segurança e o abastecimento de energia elétrica que é precário. Devido a esta falta de estrutura, a violência é um dos maiores problemas experimentados por essa comunidade, pois quando os jovens necessitando ir às aulas cruzam os 7 km da estrada de acesso, correm riscos, pois essa se apresenta muitas vezes deserta e é cercada por florestas, o que facilita a ação de bandidos. O Abacatal sofre os maiores problemas no período chuvoso, quando as doenças aparecem e a inexistência de um posto de saúde na comunidade força os moradores a procurarem auxilio na cidade, percorrendo a mesma estrada, com os mesmos riscos e muitas vezes nem mesmo recebem o auxilio a tempo. O que se observa de problemas que ocorrem nessa comunidade pesquisada pode refletir as muitas congêneres, pois os grupos que se declaram quilombolas no Brasil têm um longo caminho histórico a percorrer para o alcance de seu reconhecimento como parte da população brasileira a qual a nação tem uma dívida social ainda não absolvida plenamente ou até oficialmente, visto que descendem de um povo estrangeiro tornado prisioneiro, transformado em escravos e depois emancipados com a abolição da escravatura antes do início do período republicano, sem que lhes tivessem oferecido condições mínimas de sobreviver com dignidade na luta por um lugar ao sol, aqui tido como inserção social. A questão agrária é só mais um problema da comunidade de Abacatal, que mesmo se arrastando nos tribunais, tende a ser resolvida em médio prazo, mesmo que de modo parcial, pois é possível que eles não revejam nem metade da terra questionada como herança do Conde Coma Mello; mas seus problemas maiores perpassam pela falta de Políticas Públicas e transformação de suas terras, hoje zona rural, em área urbana através da demanda ou pressão por moradia dos habitantes de Ananindeua, sem que haja um preparo desses atores sociais para enfrentamento de um modo de viver totalmente diferente do modo em que vivem e viram seus pais, seus avós e bisavós viverem. CONSIDERAÇÕES FINAIS O que as comunidades quilombolas reivindicam hoje é tão insignificante diante da trajetória de sofrimento imprimida aos seus ancestrais, no período colonial e do império na história do Brasil e pelas riquezas que eles geraram nas lavouras de cana de açúcar e plantação de café, para muitas gerações de fazendeiros, enriquecendo-os e contribuindo para o desenvolvimento do país. A organização dos agrupamentos que se autodenominam “comunidades negras rurais”, sem dúvida foi crucial para que conquistas fossem conseguidas quanto aos aspectos fundiários no Brasil. Os estados do Pará e do Maranhão merecem destaques pelo elevado número de assentamentos levantados e principalmente pelos regularizados ao longo dessa luta. O princípio advindo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, da Constituição Federal de 1988, no seu Artigo 68, pode até ter sido elaborado com intuito de provocar dúvidas quanto a quem tem direito à posse de terras reivindicadas por agrupamentos de negros rurais, que se autodenominam quilombolas, mas o sentido de luta dessas comunidades foi muito profícuo ao conseguir enfrentamento nos incansáveis debates ocorridos sobre essa temática e respeito quanto ao sentido de “comunidade”, de “auto-identidade” e da “autodeclaração” como o mais importante nesse contexto. Em vários estados brasileiros as Constituições e leis subsidiárias ou complementares trouxeram avanços quanto ao reconhecimento da “autodenominação” e promoveram, por conseguinte, vários levantamentos e regularização de terras de quilombos. Assim como a comunidade de Abacatal, várias outras no mesmo estágio de regularização fundiária, mesmo vendo resolvidas as essas pendências tendem a sofrer, no futuro próximo, uma influência do meio urbano tão intensa, que poderá mudar seu modo de vida, seu modo de produzir coletivamente e principalmente seu sentido de tradição, cultura, pertencimento aos quilombolas. O mais importante é que toda mudança ocorrida em prol dessas comunidades deve ser acatada pelas mesmas e considerada uma evolução no que tange aos direitos garantidos aos mesmos. No entanto, essa evolução que efetiva os direitos garantidos às “comunidades quilombolas” deve se dar de forma ainda mais veloz, para não só garantir os direitos pertinentes as comunidades negras rurais, como corrigir os vários erros cometidos contra essas comunidades que tanto contribuíram com o desenvolvimento do Brasil e em troca tiveram apenas dor, preconceito e seus direitos desrespeitados. REFERÊNCIA BENATTI, José Helder. 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