INTRODUÇÃO À RECIPROCIDADE QUADRÁTICA GABRIEL BUJOKAS Questão. Seja p um primo ímpar. Para quais valores de a a seguinte equação tem solução: x2 ≡ a (∗) mod p Definição 0.1. Seja p um primo ímpar, e a um inteiro. O símbolo de Legendre é definido como: 0, se p divide a, a = 1, se a equação (∗) tem solução, p −1, caso contrário. Hoje a gente vai aprender a calcular o símbolo de Legendre. 1. Raízes Primitivas Antes de estudar o símbolo de Legendre, vai ser útil ter mais uma ferramenta: raízes primitivas. Definição 1.1. Para a ∈ (Z/pZ)∗ , defina a ordem de a ordp a = min{d > 0 | ad ≡ 1 mod p} Exercício 1. Prove a propriedade básica da ordem: ad ≡ 1 mod p =⇒ ordp a|d Como ap−1 ≡ 1 mod p, ordp a|p − 1 Definição 1.2. A gente chama a de raiz primitiva se ordp a = p − 1. Exercício 2. Seja α ∈ (Z/pZ)∗ uma raiz primitiva. Prove que {1, 2, . . . , p − 1} = {α0 , α1 , . . . , αp−2 } Isso é, qualquer a ∈ (Z/pZ)∗ , existe um único 0 ≤ k ≤ p − 2 tal que αk ≡ a mod p Teorema 1.1. Se p é um primo ímpar, Z/pZ tem raiz primitiva. Na seção 8 tem um exercício guiando uma demonstração desse teorema. Date: Sexta Feira, 22 de Junho de 2012. 1 2 G. BUJOKAS 2. Calculando o símbolo de Legendre Nessa seção, p é um primo ímpar. Exercício 3. Prove as seguintes propriedades básicas do símbolo de Legendre. 0 (1) a ≡ a0 mod p =⇒ ap = ap 2 (2) ap = 1 (3) Use raízes primitivas para provar o Critério de Euler: p−1 a mod p ≡a 2 p b (4) ab = ap p p p−1 (5) −1 = (−1) 2 p Para calcular o símbolo de Legendre, nós precisamos de mais duas fórmulas: Teorema 2.1. p2 −1 2 = (−1) 8 p Teorema 2.2 (Reciprocidade Quadrática). Seja p 6= q > 0 primos ímpares positivos. Então p−1 q−1 q p = (−1) 2 2 p q Exercício 4. Calcule os seguintes símbolos de Legendre. 37 −26 91 −13 , , , 89 41 101 53 3. A ideia Vamos tentar provar o teorema 2.1. Vamos assumir o seguinte: Hipótese (H). Existe ω ∈ Z/pZ, tal que ordp ω = 8. Exercício 5. Assuma a hipótese (H). Seja y = ω + ω −1 ∈ Z/pZ. Mostre que (a) y 2 ≡ 2 mod p (b) É claro que pelo item anterior, 2 é um resíduo quadrático. Mas vamos ignorar esse fato, e continuar o argumento. Mostre que 2 p−1 y ≡ mod p p (c) p2 y ≡ y p ≡ ω p + ω −p mod p ( ω + ω −1 , se p ≡ ±1 mod p 2 (d) p y ≡ ω 3 + ω −3 , se p ≡ ±3 mod p (e) ω 3 + ω −3 = −(ω + ω −1 ) RECIPROCIDADE QUADRÁTICA 3 (f ) Conclua p2 −1 2 = (−1) 8 p Agora a gente tem que justificar a hipótese (H). Como (H) implica que 2 é um resíduo quadrático, (H) não é sempre verdade. O que fazer quando (H) não é verdade? A ideia é introduzir formalmente um símbolo ω que satisfaz ordp ω = 8 por definição. A gente vai aprender a formalizar esse processo na próxima seção. 4. Corpos finitos Um corpo k é um conjunto equipado com operações +, × satisfazendo as regras usuais, tal que qualquer elemento não nulo de k tem um inverso multiplicativo. Exemplo 4.1. Esses são corpos: R, Q, C, Z/pZ. Esses não são corpos: Z, Z/nZ, quando n não é primo. Vamos usar a notação Fp = Z/pZ, para ressaltar que estamos pensando em Z/pZ como um corpo. A construção que a gente precisa é muito semelhante a construção dos números complexos a partir dos números reais. 4.1. Dos números reais para os números complexos. Vamos relembrar a construção dos números complexos. Nós começamos com os números reais R, e introduzimos o símbolo i, e definimos C = {a + bi | a, b ∈ R} Nós definimos i2 = −1, e extendemos a multiplicação e soma dos reais para o conjunto C. A gente pode reinterpretar essa construção da seguinte maneira. Considere o conjunto de polinômios R[x] com coeficientes reais. Observer que a soma e multiplicação de poliníomios já são definidas! Agora a gente olha módulo x2 + 1. C = R[x]/(x2 + 1) isso é: dois polinômios f e g são equivalentes se x2 + 1 | f − g. Observe que qualquer polinômio f é equivalente módulo x2 + 1 ao polinômio ax + b para algum a, b ∈ R. E note também que a multiplicação e soma definidas em R[x] coincidem com a soma e multiplicação usual em C. Uma analogia útil nessa construção é a seguinte. O anél Z é muito semelhante ao anel k[x], onde k é um corpo. Por exemplo, o conceito de número primo corresponde ao conceito de polinômio irredutível. Nesse contexto, o teorema de fatoração única é verdade nos dois anéis! A construção de k[x]/(f (x)) é análoga a construção Z/nZ Além disso, Z/nZ é um corpo exatamente quando n = p um primo. O teorema correspondente no contexto k[x] é o seguinte: 4 G. BUJOKAS Teorema 4.1. Seja k um corpo, f (x) ∈ k[x] um polinômio irredutível. Então F = k[x]/(f (x)) é um corpo. Nós chamamos F de extensão de k. Exemplo 4.2. C = R[x]/(x2 + 1) é a extensão de R com um elemento i(= x) tal que i2 + 1 = 0. 4.2. Construção de corpos finitos. Nós vamos usar o teorema 4.1 para k = Fp . Exemplo 4.3. Vamos extender k = F5 para conter uma raiz cúbica de unidade ω, isso é, ω 3 = 1, mas ω 6= 1. Note que isso implica ω 2 + ω + 1 = 0. Como o polinômio x2 + x + 1 é irredutível em F5 [x] [por que?], o teorema acima prova que F = F5 [x]/(x2 + x + 1) é um corpo, com um elemento 1 6= ω(= x) tal que ω 3 = 1. Exemplo 4.4. O que ia acontecer se k já tivesse uma raiz cúbica da unidade? Por exemplo, para k = F7 , o número 2 é uma raiz cúbica da unidade. Isso quer dizer que x3 − 1 = (x − 1)(x − 2)(x − 4) Em particular, x2 mod 7 + x + 1 = (x − 2)(x − 4) não é irredutível. Nós podemos usar essa construção para provar o seguinte teorema: Teorema 4.2. Para qualquer primo p, e inteiro n > 1, existe um corpo F que é uma extensão de Fp = Z/pZ que contém uma raiz n-ésima da unidade. Por exemplo, se p = 5 e n = 3, então F = F5 [x]/(x2 + x + 1) Por outro lado, se p = 7 e n = 3, então F = F7 já que 2 já é uma raiz cúbica da unidade. Esses corpos construídos pelo teorema 4.2 são muito semelhantes a Fp . Uma propriedade que eles têm em comum é a seguinte: Lema 4.3 (Sonho de todo estudante). Seja Fp ⊂ F uma extensão de corpos. Então (a + b)p = ap + bp Demonstração. O argumento é exatamente o mesmo usado para provar essa identidade quando F = Fp . Use o binômio de Newton, e o fato que p p| , se 0 < k < p k A observação é que p = 0 em qualquer extensão de Fp . Exercício 6. Seja F a extensão de Z/pZ que contém a raiz oitava de unidade, ω. Use o argumento do exercício 5, no contexto do corpo F , para provar o teorema 2.1. RECIPROCIDADE QUADRÁTICA 5 5. Somas de Gauss Vamos provar o teorema 2.2. A idéia da demonstração é muito parecida com a demonstração do teorema 2.1. Seja F a extensão de Z/pZ que contém a raiz q-ésima de unidade, ω. Defina X x y= ωx ∈ F q x∈Z/qZ Expressões como essa são chamadas de somas de Gauss. Exercício 7. Mostre as seguintes identidades (em F ): y 2 = (−1) y Conclua q−1 2 q p−1 q−1 2 2 p−1 q p = (−1) X x yp = ω px q x∈Fq X p px = ( ω px ) q q x∈Fq p = y q p−1 q−1 p q 2 2 = (−1) q p 6. Um problema mais geral Questão. Quando a equação x2 ≡ a mod n A gente já aprendeu como resolver esse problema para n = p primo ímpar. Teorema 6.1 (Teorema chinês dos restos). Seja n = pα1 1 pα2 2 . . . pαk k . Para qualquer a1 , a2 , . . . , ak ∈ Z, mostré que existe x ∈ Z tal que x ≡ a1 mod pα1 1 x ≡ a2 ... mod pα2 2 x ≡ ak mod pαk k Use o teorema chinês dos restos para mostrar: Exercício 8. Seja n = pα1 1 pα2 2 . . . pαk k . Mostre que a equação x2 ≡ a mod n tem solução se, e somente se, as equações x2 ≡ a mod pαi i tem solução para todos i = 1, . . . k. 6 G. BUJOKAS 6.1. O caso n = pα , para p primo ímpar. A gente vai precisar de uma ferramenta nova. Exemplo 6.1. Considere a equação x2 ≡ −1 mod 25 A gente começa resolvendo a equação módulo 5. Ela tem uma solução x = 2. Vamos extender essa solução para módulo 25. Vamos achar x ≡ 2 mod 5 tal que x2 ≡ −1 mod 25 É fácil de achar esse x: x≡2 mod 5 =⇒ x = 5z + 2 Substituindo em x2 + 1, (5z + 2)2 + 1 ≡ 25z 2 + 20z + 5 ≡ 5(4z + 1) mod 25 Essa equação é equivalente a 4z + 1 ≡ 0 z≡1 mod 5 ⇐⇒ mod 5 Por exemplo, z = 1 é uma solução, o que significa x = 7 é uma solução de x2 ≡ −1 mod 25 A gente pode extender esse exemplo para a seguinte proposição: Proposição 6.2. Se p é um primo ímpar que não divide a, e xk é tal que x2k ≡ a mod pk então existe xk+1 tal que xk+1 ≡ xk mod pk x2k+1 ≡ a mod pk+1 Corolário 6.3. Seja p um primo ímpar, e a ∈ Z tal que p não divide a. Então a = 1 ⇐⇒ x2 ≡ a mod pk , para qualquer k > 0 p Exercício 9. Prove a proposição 6.2. Observação. Nós podemos generalizar a proposição 6.2 para o seguinte lema: Lema 6.4 (Lema de Hensel). Seja p um primo, e f (x) um polinômio. e n, k ∈ Z tal que 0 ≤ 2k < n. Se pk ||f 0 (xn ), e pn |f (xn ), então existe xn+1 tal que xn+1 ≡ xn mod pn−k f (xn+1 ) ≡ 0 mod pn+1 Exercício 10. Prove o lema de Hensel 6.4. RECIPROCIDADE QUADRÁTICA 7 6.2. O caso n = 2k . Considere a equação x2 ≡ a mod 2k (6.1) para a ∈ Z ímpar. Exercício 11. Mostre que a equação 6.1 tem solução se, e somente se, (a) k = 1, ou (b) k = 2, e a ≡ 1 mod 4, ou (c) k ≥ 3 e a ≡ 1 mod 8. Dica: Para o último item, use o lema de Hensel (ou uma indução como na demonstração da proposição 6.2). 7. Algoritmo Agora nós temos todas as ferramentas para resolver o seguinte problema: Quando ax2 + bx + c ≡ 0 mod n têm solução? A gente segue os seguintes passos: (1) Complete quadrados e reduza para uma equação da forma x2 ≡ a mod n (2) Use o teorema chinês dos restos para reduzir x2 ≡ a mod pk (3) Use o lema de Hensel para reduzir para os seguintes casos: x2 ≡ a mod p, onde p é um primo ímpar, x2 ≡ a mod 2k , para k = 1, 2 ou 3 (4) Use resíduos quadráticos para resolver as equações acima. Exercício 12. Determine se as seguintes equações tem solução: (a) x2 + 4x − 3 ≡ 0 mod 51 (b) 2x2 − 4x + 1 ≡ 0 mod 13 (c) x2 − x + 1 ≡ 0 mod 91 (d) x2 − 3x + 5 ≡ 0 mod 16 (e) x2 − 6x + 7 ≡ 0 mod 15 8. Apêndice: Demonstração da existência de raízes primitivas Teorema. Se p é um primo ímpar, Z/pZ tem raiz primitiva. Exercício 13. Vamos provar o teorema acima. (a) Seja f (x) um polinômio de grau d. Mostre que a equação f (x) ≡ 0 tem no máximo d soluções. (b) Mostre que xp−1 − 1 = mod p Y a∈(Z/pZ)∗ (x − a) 8 G. BUJOKAS (c) Para d|p − 1, mostre que xd ≡ 1 tem exatamente d soluções. (d) Mostre que X mod p φ(d) = n d|n (e) Mostre que #{a ∈ (Z/pZ)∗ | ordp a = d} = φ(d) (f ) Conclua o teorema 1.1. E-mail address: [email protected]