ISSN 2175-2176
Revista Digital
Ano VI - Número 23
Julho a Setembro de 2014
Conselho Editorial
Coordenador-Geral
Fernando Maximo de A. Pizarro Drummond
Conselho Editorial
Antonio Luiz Calmon Teixeira da Silva - BA
Alexandre Brandão Martins Ferreira - RJ
Claudia Lima Marques - RS
Claudio Araújo Pinho - MG
Ester Kosovski - RJ
Geraldo Luiz Mascarenhas Prado - RJ
José Ribas Vieira - RJ
Luiz Dilermando de Castelo Cruz - RJ
Vitor Sardas - RJ
Revista Digital do Instituto dos Advogados Brasileiros /
Instituto dos Advogados Brasileiros. Vol. VI, n.23 (jul. –
set. 2014). Rio de Janeiro: IAB, 2014 [on-line].
Trimestral.
Disponível em: http://www.iabnacional.org.br/
ISSN 2175-2176
1. Direito – Periódicos. I. Instituto dos Advogados Brasileiros.
CDD 340.05
CDU 34(05)
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Daniel Aarão Reis
2
2
Sumário
4
CORRÊA, Rodrigo de Oliveira Botelho
O Papel do Direito na Contenção dos Efeitos
Maléficos da Corrupção nas Atividades Negociais
38
NICOLAY, Thiago
O Critério do Regime de Bens para o Direito
Sucessório sob a Ótica Civil-Constitucional
81
ALBUQUERQUE, Ivana Harter
Cláusulas Contratuais Limitativas e Excludentes do
Dever de Indenizar
127
PEREIRA, Jacqueline Lopes
A Família Solidária como Proposta de Mitigação de
Vulnerabilidades de Idosos, Pessoas com Deficiência
e Famílias Monoparentais
166
CERQUEIRA, Fábia Larissa
O Dano Moral no Casamento por Infração Grave aos
Deveres Conjugais
210
SCHKRAB, Claudia de Sá Cardoso
Código de Defesa do Consumidor x Convenção de
Montreal: qual ordenamento jurídico aplicar para
garantir os direitos dos usuários de transporte aéreo
internacional
3
3
Doutrina
O Papel do Direito na Contenção dos Efeitos Maléficos da
Corrupção nas Atividades Negociais
Rodrigo de Oliveira Botelho Corrêa1
RESUMO: Nesse trabalho estuda-se a repercussão que a corrupção gera nas
atividades negociais. O foco do trabalho é o efeito que a corrupção causa aos
participantes dos diversos mercados, principalmente no tocante ao aumento dos
custos para se negociar e a perda de oportunidades lícitas e legítimas de negócios.
O objetivo principal é verificar como o Direito pode atuar para conter os efeitos
maléficos da corrupção nesse ambiente de mercado.
Palavras-chave: Corrupção – Atividade Negocial – Reparação de Danos
ABSTRACT: In this paper we study the impact that corruption generates in
business activities. His focus is the effect that corruption causes the participants of
the various markets, particularly with regard to increased costs to negotiate and
the loss of lawful and legitimate business opportunities. The main goal is to see how
the law can act to contain the evil effects of corruption in this market environment.
Key-words: Corruption – Business Activities – Demage Repair
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO 1. ATIVIDADE NEGOCIAL E MERCADO 1.1 O direito
comercial antes do liberalismo clássico 1.2 Os atos de comércio 1.3 A teoria da
empresa 1.3.1 A teoria da empresa no Código Civil brasileiro 1.3.2 A influência da
Economia sobre a teoria da empresa 2. A ATIVIDADE NEGOCIAL 2.1 A empresa
como mecanismo para a redução dos custos de transação e instrumento de ganho
de eficiência 3. O DANOS À ATIVIDADE NEGOCIAL GERADO PELA CORRUPÇÃO E A
SUA REPARAÇÃO 3.1 A repressão à corrupção pelo 3.2. A reparação do dano
provocado à atividade negocial por ato de corrupção 3.2.1 O conceito de dano
material 3.2.2 Os danos emergentes 3.2.3. Os lucros cessantes 3.2.4 A perda de
uma chance. Conclusão. Referências
1
4
Primeiro colocado do concurso de monografias "Aloysio Maria Teixeira" na categoria advogado
4
INTRODUÇÃO
O objetivo desta monografia é o compreender o papel que o Direito exerce
na contenção dos efeitos maléficos que a corrupção produz, notadamente no
âmbito das atividades negociais.
Os
jornais
estampam,
para
infelicidade
da
população,
quase
que
diuturnamente, notícias envolvendo corrupção. São casos de suborno, nos quais os
envolvidos recebem ou pretendem receber vantagens indevidas. Eles ocorrem tanto
no âmbito do Poder Público, quanto na esfera privada.
Além de causarem opróbrio e indignação, a corrupção produz efeitos
econômicos perversos. Ela atinge o sistema de mercado – invertendo a lógica de
que o preço é o principal referencial para a tomada de decisões - e viola princípios
constitucionais como o da livre concorrência e da livre iniciativa. Por isso o Direito
precisa atuar para evitar, corrigir ou superar esses efeitos daninhos.
Especificamente quanto às atividades econômicas, que são as que mais
importam
para
o
presente
estudo,
a
corrupção
gera
custos
e
impede
oportunidades. Por impactarem um direito legítimo, que é o exercício de atividade
produtiva, os custos e as chances perdidas devem ser consideradas danos e, como
tais, devem ser reparados integralmente.
Não basta, contudo, que o Direito assegure essa reparação. Se essa
conduta afeta direitos legítimos, é indispensável que o ordenamento jurídico o
tutele integralmente. Sendo assim, cumpre ao sistema jurídico desempenhar esse
papel de garantir a efetividade desses direitos, o que pode ser feito de três formas:
(i) repressão da conduta antijurídica por meio da previsão de sanções – que podem
ser de caráter penal, administrativo e civil -; (ii) adoção de estímulos que induzam
a pessoa a praticar atos que não sejam contrários à lei, e, como já mencionado,
(iii) reparação integral dos danos causados pelos envolvidos no ato de corrupção.
Para o cumprimento dessa tarefa deverão ser analisados os efeitos
econômicos que esse tipo de conduta produz e as formas pelas quais os danos
podem ser evitados, mitigados ou reparados. Este estudo, contudo, se restringirá
ao exame da terceira hipótese, ou seja, a reparação integral dos danos causados
pelos envolvidos no ato de corrupção.
Como o estudo se limitará ao ordenamento brasileiro, é necessário relatar
a evolução do tratamento jurídico dado à atividade negocial, com especial atenção
à adoção da teoria da empresa pelo direito comercial e o momento atual dessa
disciplina. Somente então será possível se medir a extensão dos danos aventados e
compreender como o Direito pode atuar para eliminar ou mitigar os efeitos
malévolos decorrentes dessa forma de atuar.
5
5
A pesquisa parte, portanto, do problema relacionado ao tratamento dado
pelo direito aos efeitos produzidos pela corrupção especificamente quanto às
atividades negociais, tal como a exploração de empresa.
No desenvolvimento do tema, procurou-se demonstrar como a corrupção,
por deturpar princípios econômicos, morais e éticos que são considerados pelo
Direito, atinge expectativas e direitos legítimos, devendo ser objeto de repressão.
O
trabalho
foi
estruturado
em
pesquisa
jurídico-teórica,
de
cunho
bibliográfico e documental, vinculada à área de direito civil empresarial, tendo sido
utilizado o método dedutivo.
No capítulo 1 buscou-se situar o problema por meio de um panorama do
tratamento dado à atividade negocial e à tutela do mercado. Traçou-se a linha
histórica que refletiu a evolução do Direito Comercial, do seu surgimento como um
direito voltado para a disciplina da classe dos comerciantes – vertente subjetivista , a guinada que sofreu com a ascensão da teoria dos atos de comércio – visão
objetiva -, e, por fim, a entrada da teoria da empresa e da proteção do mercado.
O capítulo 2 dedicou-se ao estudo da atividade negocial, notadamente do
papel que a empresa desempenha no aumento da eficiência por meio da redução
de custos.
Por fim, dedicou-se o capítulo 3 à análise dos efeitos malévolos da
corrupção e como o Direito deve lidar com isso.
1 ATIVIDADE NEGOCIAL E MERCADO
Com o objetivo de situar o problema, analisa-se, neste capítulo, o
desenvolvimento do direito comercial: a sua concepção medieval calcada na figura
da pessoa do mercador; a adoção, pelo liberalismo clássico, da figura dos atos de
comércio positivados; o surgimento da teoria da empresa e, finalmente, a empresa
como elemento do ordenamento do mercado. Trata-se de assunto necessário para
se compreender a questão debatida nesta monografia, qual seja o alcance da
reparação de danos surgidos às atividades negociais decorrentes da corrupção.
A trajetória do direito comercial está atrelada à prática reiterada dos
mercadores e aos usos e costumes por eles adotados. A partir da necessidade de se
tornar mais seguras essas relações comerciais, ele se positiva: primeiramente, nos
estatutos das corporações de ofício e associações de classe; depois, nos códigos
liberais e, em seguida, nos inúmeros diplomas legais que disciplinam seus
institutos.
6
6
Parte-se neste capítulo da formação das instituições mercantis na Idade Média 1.
Isso porque, conquanto houvesse intensa atividade comercial nas civilizações da
Antiguidade, não se conhece registros da existência da figura do comerciante de
profissão.2
O surgimento do direito das corporações de ofício é a primeira etapa dessa
jornada até alcançar o moderno ordenamento do mercado, no qual a empresa, na
condição de atividade organizada com vistas ao lucro, configura um importante
elemento, notadamente para a redução dos chamados, numa tradução descuidada,
de “custos de transação”, que nada mais são do que os custos institucionais
relacionados ao mercado. Esse ordenamento do mercado é constituído por diversos
outros ordenamentos volvidos a determinado setores, sendo o direito comercial
apenas um deles.
1.1 - O DIREITO COMERCIAL ANTES DO LIBERALISMO CLÁSSICO
Não é possível se afirmar, com segurança, que houve um direito comercial
na mais remota antiguidade, não obstante, com o aparecimento da moeda, tenha
surgido a figura do mercador, que tinha por profissão intermediar as trocas do
comércio. Existiram, sim, algumas normas voltadas a disciplinar essa atividade,
como o Código do Rei Hammurabi, da Babilônia, tido como uma das mais antigas
normas escritas. São conhecidas, ainda, diversas regras jurídicas, regulando
instituições de direito comercial marítimo, que os romanos acolheram dos fenícios,
denominadas Lex Rhodia de Iactu (alijamento) ou institutos como o foenus
nauticum (câmbio marítimo). Mas nenhuma dessas normas chegou a formar um
corpo sistematizado, voltado para a disciplina dessa área do Direito3.
O Império Romano desconhecia o direito comercial. Os estrangeiros - que
eram quem geralmente praticavam mercancia - eram regidos pelo jus gentium, ao
passo que os cidadãos romanos – dedicados mais às atividades rurais e ao exercício
dos atributos da propriedade - observavam o jus civile, que previa normas distintas
1
2
3
Para um panorama da atividade comercial na Antiguidade, v. FERREIRA, Waldemar, Tratado de Direito
Comercial, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1960, pp. 14-50.
Registra Alfredo Lamy Filho, citando Levin Goldschmidt: “Em verdade – repetimos – o comércio ‘mão
na mão, olhos nos olhos´ sempre se praticou, e há milênios, na China ou no Egito, ou em Pompéia, em
Óstia ou na Grécia. E também nos mercados, área a que todos tinham igual acesso para efetivar as
trocas. Mas não há referência ao comerciante de profissão, e é nos mercados que se desenvolvem as
primeiras noções dessa relação que se constitui no ‘valor das coisas’ (Temas de S.A. – Rio de Janeiro:
Renovar, 2007, p. 4).
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 8
7
7
do primeiro. Não havia, assim, um direito especial voltado para tratar das questões
do comércio.
A Idade Média, contudo, o conheceu. Após a queda de Roma, com o
restabelecimento da ordem política, administrativa, social e econômica do ocidente,
o comércio voltou a florescer, sobretudo na Itália, em cidades como Veneza, Pisa,
Gênova, Milão, Bolonha e Florença.
Como afirma João Eunápio Borges, o misto de direito romano e canônico que
vigorava na Itália nessa época não satisfazia os interesses dos comerciantes,
sobretudo em vista da hostilidade do direito canônico à usura 1. As corporações, que
haviam sido formadas como reação às invasões e ao arbítrio dos senhores feudais 2,
elaboraram um novo direito para os comerciantes. Destaca Waldemar Ferreira, que
os “[n]egociantes, banqueiros, industriais, artejanos, quantos se sentiram atraídos
por interêsses (sic) comuns, se organizaram em corporações, sujeitas a rigorosa
disciplina, em que residia o segrêdo (sic) de sua força”.3
Cuida-se de um ordenamento fincado no sujeito para o qual ele era dirigido,
isto é, o mercador. Ele alcançou grande importância, muito em decorrência da
fragilidade da organização dos Estados. Não havia ainda uma consciência exata do
papel do Estado. Nessa época “se confundem o público e o privado, o imperium e o
dominum, a fazenda do príncipe e a fazenda pública”4. Os usos comerciais e os
estatutos corporativos tornaram-se o direito comum de todos os comerciantes da
Europa, “o jus mercati ou jus mercatorum que dominava sem contraste, em todos
os portos, feiras e mercados”5.
Registra João Eunápio Borges que remontam a essa época diversos
institutos do direito comercial, como a matrícula dos comerciantes, a necessidade e
força probante dos seus livros, as sociedades comerciais, as letras de câmbio, as
operações bancárias, o seguro e a falência6.
Na França, com a ascensão do Absolutismo, o direito das corporações de
ofício foi sucedido por corpos de leis baixados por Luís XIV, sob a influência do seu
ministro de Estado e da economia, Jean-Baptiste Colbert. A primeira dessas
Ordenanças, de março de 1673, se referia ao comércio terrestre, regulando as
atividades dos “negociantes, mercadores, aprendizes, agentes de bancos e
corretores, livros de comércio, sociedades, letra de câmbio, notas promissórias,
prisão por dívidas, moratórias, caução de bens, falências, bancarrotas, jurisdição
1
2
3
4
5
6
8
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. 5ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1976,
pp. 24-25.
FERREIRA, Waldemar, op. cit, p. 39.
Ibidem, p. 39-40.
TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro.
Renovar. 1991, p. 14.
BORGES, João Eunápio, op. cit, p. 27; HEINSHEIMER, Karl. Derecho Mercantil. Trad. Agustín Vicente
Gella – Barcelona: Editorial Labor S. A., 1933, p. 3
BORGES, João Eunápio. Idem, p. 26.
8
comercial”. Ela é comumente chamada de “Código Savary”, em vista da
contribuição dada por um comerciante que tinha esse nome. A segunda, baixada
em 1681, foi a Ordenança da Marinha, que regulava vários contratos do direito
marítimo1.
Com as revoluções liberais, as ordenações francesas foram substituídas pelo
direito dos códigos. Elas, entretanto, constituíram-se em importantes fontes de
estudo para os legisladores liberais e serviram de inspiração para o Code de
Commerce de 1807, que inaugurou uma nova fase do direito comercial.
1.2 - OS ATOS DE COMÉRCIO
O chamado período estritamente subjetivista do direito comercial, que retrata a
fase na qual ele traduzia um “direito corporativo, profissional, especial, autônomo, em
relação ao direito territorial e civil, e consuetudinário”2 sofreu com certas fragilidades
institucionais, notadamente pelo seu objeto, pois esse era o critério que definia a
competência judiciária dos cônsules e magistrados, aos quais cabia a aplicação
contenciosa do direito das corporações. Isso porque muitos aspectos da vida do
comerciante não deviam ser submetidos a esse direito; eles, à ciência certa, praticavam
atos da vida civil, que não se relacionavam com a atividade econômica e profissional
que exerciam.
Era necessário, assim, delimitar a matéria que seria submetida e esse direito
especial. Começa-se, então, a delinear-se o conceito objetivo calcado sobre o ato de
comércio.
Esse conceito dá um passo importante com as ordenações francesas de 1673 e
1681. Todavia, foi com a Revolução Francesa, que constituiu-se na principal revolução
liberal, tendo influenciado inúmeros outros movimentos dessa natureza, que ele se
firmou. Seus ideais eram contrários a privilégios, como a existência de um direito
corporativo especial e autônomo. Não à toa, em 14 de junho de 1791, foi editada a
célebre Lei Le Chapelier, que proibiu, sob qualquer forma, a constituição e manutenção
de todas as espécies de corporações de cidadãos do mesmo estado e profissão.
Há de se acrescentar a esse movimento a codificação do direito privado, que foi
um dos principais frutos dessa revolução. Especificamente no que tange ao direito
1
2
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 10
REQUIÃO, Rubens, op. cit., p. 11.
9
9
comercial, viu-se que o direito das corporações de ofício, calcado na figura do mercador
que integrava a corporação, foi sucedido por ordenações. Estas, que tinham origem
absolutista, foram substituídas por um código: o Code de Commerce de 1807.
Esse código, apesar de não haver inovado muito nessa matéria, tendo
conservado quase tudo o que dispunham as ordenações que o antecederam, solidificou a
repressão àquele direito das corporações de ofício. Inspirado pelos aventados ideais
liberais da Revolução Francesa, o Código napoleônico de 1807 repeliu privilégios.
Recusou a existência de um direito classista, que não se submetia ao poder do Estado.
Até porque, como já havia sido notado pelos absolutistas, aquele direito medieval não
era adequado para fazer frente às necessidades de conquista de novos mercados.
Principalmente, o Código Comercial francês adotou a concepção objetiva do
direito comercial. Nas palavras de Paula Andréa Forgioni, “[c]om sua supressão e
promulgação do Código Comercial francês, a competência especial firma-se na prática
de determinados atos: os atos de comércio”1. Essa tendência orientou vários códigos
editados posteriormente, como o Código Comercial espanhol de 1829; o Código
Comercial português de 1833 e o Código Comercial italiano de 1865. Assim também se
deu no Brasil, por meio do Regulamento n. 737 de 1850.
Conquanto o Código Comercial de 1850 tenha adotado, a princípio, uma
posição subjetiva, ao dispor, no seu artigo 4º, que “[n]inguém é reputado comerciante
[...], sem que se tenha matriculado em algum dos Tribunais do Comércio do Império, e
faça da mercancia profissão habitual”, da mesma forma como fez o artigo 9º ao
asseverar que “[o] exercício efetivo de comércio para todos os efeitos legais presume-se
começar desde a data da publicação da matrícula”, o citado Regulamento, que
disciplinava a “ordem do Juizo (sic) no Processo Commercial”, estabelecia quais seriam
os atos de comércio ou de mercancia (artigos 19 e 20)2.
1
2
10
FORGIONI, Paula Andréa. A Evolução do Direito Comercial Brasileiro: da mercancia ao mercado. – São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 40.
Dispunha o artigo 19 do citado Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850: “Considera-se
mercancia: § 1º A compra e venda ou troca de effeitos moveis ou semoventes para os vender por
grosso ou a retalho, na mesma especie ou manufacturados, ou para alugar o seu uso. § 2º As
operações de cambio, banco e corretagem. § 3° As emprezas de fabricas; de commissões; de
depositos; de expedição, consignação e transporte de mercadorias; de espectaculos publicos. § 4.° Os
seguros, fretamentos, risco, e quaesquer contratos relativos ao cornmercio maritimo. § 5. ° A armação
e expedição de navios.” Já o artigo 20, determinava que: “Serão tambem julgados em conformidade
das disposições do Codigo, e pela mesma fórma de processo, ainda que não intervenha pessoa
commerciante: § 1º As questões entre particulares sobre titulos de divida publica e outros quaesquer
papeis de credito do Governo (art. 19 § 1º Tit. unico Codigo). § 2.° As questões de companhias e
sociedades, qualquer que seja à sua natureza e objecto (art. 19 § 2º Tit. unico Codigo). § 3." As
questões que derivarem de contratos de locação comprehendidos na disposição do Tit. X Parte I do
Codigo, com excepção sómente das que forem relativas á locação de predios rusticos e urbanos (art.
19 § 3° Tit. unico Codigo). § 4º As questões relativas a letras de cambio, e de terra, seguros, risco, e
fretamentos”.
10
Logo, conquanto já fosse possível se notar algum espaço para uma concepção
subjetiva de comerciante, sua ordem legal foi calcada em preceitos de ordem objetiva.
A doutrina da época, entretanto, tinha grande dificuldade de estabelecer um
sentido unívoco para o objeto do direito comercial. Cada autor procurou, a seu modo,
apresentar uma noção de ato de comércio ou de mercancia, já que a concepção
puramente objetiva não era suficiente para retratar o fenômeno da atividade de
comércio. Essa dificuldade permaneceu mesmo após a revogação do Decreto n.º 737 de
1850, ocorrida com o advento do Código de Processo Civil de 1939, uma vez que, em
vista da existência de institutos próprios do comerciante – como a compra e venda
mercantil -, do costume arraigado, da jurisprudência e da doutrina, essa visão objetiva
do direito comercial foi preservada até o advento do Código Civil de 2002.
Além das que foram apresentadas acima, há ainda mais uma característica
importante desse período, que merece ser destacada. Ela diz respeito à distinção entre
obrigações civis e comerciais.
O Código Comercial regulava os institutos específicos do direito comercial,
inclusive as obrigações. O instituto que não fosse particularmente ligado ao comércio,
era disciplinado pelo direito civil. Portanto, o direito comercial era considerado um
direito especial, ao passo que o direito civil o direito comum. Daí vozes da importância
de Waldemar Ferreira1 sustentarem, com amparo em normas do Código Comercial, em
especial o seu art. 121, a existência de um direito das obrigações comum ao direito civil
e ao direito comercial.
A falta de um critério mais seguro para se operar a distinção desses
regimes causava muitas dúvidas, notadamente em relação ao contrato de compra e
venda. Com o advento do Código de Defesa do Consumidor e, sobretudo, com o
Código Civil de 2002, esse problema foi resolvido.
Não se pode deixar de mencionar, que tramita no Congresso Nacional o
Projeto de Lei n. 1.572/2011, que trata do novo Código Comercial. Uma das
principais características desse projeto é a de estabelecer novamente a cisão do
Direito das Obrigações, por meio da adoção de regimes diferenciados entre
obrigações civis e obrigações empresariais.
1
Segundo Waldemar Ferreira, haveria, de um lado, o Código Civil e,
permeio, o direito das obrigações, comum a um e outro. “Êste é o
que o Código Comercial de 1850 determinou, no art. 121, que as
contratos em geral se aplicariam aos contratos comerciais, com
consignadas” (op. cit., p. 202).
de outro, o Código Comercial e, de
sistema do Direito Brasileiro, desde
disposições do Direito Civil para os
as restrições ou modificações nêle
11
11
1.3 - TEORIA DA EMPRESA
Em meio à Segunda Guerra Mundial, a Itália edita, em 1942, seu Código
Civil. Esse Código unificou e uniformizou as obrigações civis e comerciais. Isso
representou, em certa medida, uma inovação, em vista do que ocorrera com os
códigos civis francês e alemão1, que não tratavam de matéria relativa ao direito
comercial. Contudo, é importante destacar que essa não foi a primeira experiência
de uniformização do direito privado. O Código de Obrigações suíço de 1911 já havia
estabelecido um tratamento único para as obrigações civis e comerciais. O próprio
Código Comercial brasileiro determinava a aplicação do direito civil aos contratos
comerciais, desde que não houvesse conflito com as suas disposições. Nessa linha,
destacam-se os artigos 121 e 428 do Código Comercial, que assim dispunham:
Art. 121 - As regras e disposições do direito civil para os contratos em geral
são aplicáveis aos contratos comerciais, com as modificações e restrições
estabelecidas neste Código.
Art. 428 - As obrigações comerciais dissolvem-se por todos os meios que o
direito civil admite para a extinção e dissolução das obrigações em geral,
com as modificações deste Código.
Além de uniformizar o tratamento dos institutos de direito privado, o
Código Civil italiano transferiu o eixo do direito comercial dos atos de comércio para
a empresa.
Naquele momento, a noção de empresa guardava forte orientação fascista,
pois ligava o exercício dessa atividade ao atendimento do interesse da nação 2. Ele
surgiu como um conceito dissociado dos valores liberais que orientaram o Code de
1
2
12
O Código Comercial alemão previa a aplicação do Código Civil em matéria comercial, quando esta não
estivesse em conflito com a norma especial. Nesse sentido, afirma Karl Heinsheimer que “[e]l Derecho
mercantil regula sus instituciones solamente en aquellos puntos particulares en que se separa de las
normas generales del Derecho civil, o en que es preciso completar los preceptos de alquél. En
consecuencia, las precricipciones del Código civil tienem también aplicación en materia comercial (art.
2 de la Ley promulgando el Código de Comercio alemán de 10 de mayo de 1897), y ello, tanto en
cuanto a los principios fundamentales, que son en primer término comunes a los principios
fundamentales, que son en su calidad de fuente subsidiaria para complementar el Código de Comercio
en las materias reguladas por éste” (Derecho Mercantil. Trad. Agustín Vicente Gella – Barcelona:
Editorial Labor S. A., 1933, p. 2).
A Carta del Lavoro continha os princípios gerais do corporativismo. A partir dela, é possível se extrair a
importância da empresa e a sua vinculação aos interesses da nação. Destaca-se, nessa linha, o seu
artigo VII: “Lo Stato corporativo considera l'iniziativa nel campo della produzione come lo strumento
più efficace e più utile nell'interesse della Nazione. Nell'organizzazione privata dela produzione,
essendo una funzione di interesse nazionale, l'organizzatore dell'impresa è responsabile dell'indirizzo
della produzione di fronte allo Stato. Dalla collaborazione delle forze produttive deriva fra esse
reciprocità di diritti e di doveri. Il prestatore d'opera, tecnico, impiegato od operaio, è un collaboratore
attivo dell'impresa economica, la direzione della quale spetta al datore di lavoro che ne ha la
responsabilità”.
12
Commerce1, notadamente pelo ambiente de forte dirigismo econômico adotado pelo
governo fascista.2 O espírito corporativista orientou diversas de suas normas. 3
Com a queda do fascismo, a Carta del Lavoro e alguns artigos do Codice
Civile foram revogados. Contudo, o Código Civil de 1942 continuou a ser o
epicentro do direito privado e a noção de empresa se tornou neutra aos princípios
corporativistas e fascistas.
Já a Europa, com o fim da Segunda Guerra, iniciou um movimento de
recuperação econômica. Orientados pelos princípios da livre iniciativa e da livre
concorrência, os países europeus, por meio de tratados internacionais, foram
construindo um novo cenário político, com vistas à superação das barreiras
comerciais, o que culminou com a formação da União Europeia.
Nesses tratados internacionais, como notícia Paula Andréa Forgioni, o
conceito de empresa esteve presente. 4 Podem ser citados, nessa linha, o Tratado
da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, de 1951; o Tratado da Comunidade
Econômica Europeia, de 1957; o Tratado da Comunidade Europeia, de 1992. O
Tratado de Funcionamento da União Europeia, que alterou e consolidou o Tratado
da Comunidade Europeia, dispõe sobre a empresa em vários de seus artigos.
Atualmente,
crescimento
a
econômico,
União
que
Europeia
tem
no
está
engajada
incentivo
ao
em
estratégias
empresário
e
de
ao
empreendedorismo seus principais pilares. Fala-se em uma “nova revolução
industrial”, por meio da qual as empresas, alavancadas pelas novas tecnologias,
expandiriam suas atividades, sobretudo para alcançar novos mercados 5.
O Código Comercial francês seguia a linha objetiva calcado sobre os atos de comércio, o que se estrai
logo do seu artigo 1º: “Sont commerçans ceux qui exercent des actes de commerce, et en font leur
profession habituelle”.
2
FORGIONI, Paula A. Op. cit., p. 67.
3
Paula A. Forgioni destaca como exemplos de normas corporativistas os artigos: 2.088
[“L'imprenditore deve uniformarsi nell'esercizio dell'impresa ai princìpi dell'ordinamento corporativo e
agli obblighi che ne derivano e risponde verso lo Stato dell'indirizzo della produzione e degli scambi,
in conformità della legge e delle norme corporative”], 2.089 [“Se l'imprenditore non osserva gli
obblighi imposti dall'ordinamento corporativo nell'interesse della produzione, in modo da determinare
grave danno all'economia nazionale, gli organi corporativi, dopo aver compiuto le opportune indagini e
richiesto all'imprenditore i chiarimenti necessari, possono disporre la trasmissione degli atti al
pubblico ministero presso la corte d'appello di cui fa parte la magistratura del lavoro competente per
territorio, perché promuova eventualmente i provvedimenti indicati nell'articolo 2091”] e 2.091 [“La
magistratura del lavoro, se accerta che l'inosservanza perdura, fissa un termine entro il quale
l'imprenditore deve uniformarsi agli obblighi suddetti.
Qualora l'imprenditore non vi ottemperi nel termine fissato, la magistratura del lavoro può ordinare la
sospensione dell'esercizio dell'impresa o, se la sospensione è tale da recare pregiudizio all'economia
nazionale, può nominare un amministratore che assuma la gestione dell'impresa, scegliendolo fra le
persone designate dall'imprenditore, se riconosciute idonee, e determinandone i poteri e la durata.
Se si tratta di società, la magistratura del lavoro, anziché nominare un amministratore, può assegnare
un termine entro il quale la società deve provvedere a sostituire gli amministratori in carica con altre
persone riconosciute idonee”] (idem, p. 70)
4
FORGIONI, Paula Andréa, idem, pp. 82-87.
5
Segundo a o documento intitulado “Compreender as políticas da União Europeia”, “[e]m 2012, a
Comissão Europeia reconduziu a iniciativa emblemática sobre política industrial «Reforçar a indústria
europeia em prol do crescimento e da recuperação económica», para se concentrar na melhor forma
de tirar partido desta nova revolução industrial. O objetivo é reforçar a inovação industrial e a
economia real. A iniciativa implica o alargamento das atividades empresariais para fora da União
Europeia em interações mutuamente vantajosas. Trata-se de uma importante parte da política da
1
13
13
1.3.1 - A teoria da empresa no Código Civil brasileiro
Após uma resistência inicial à teoria da empresa, a teoria dos atos de
comércio foi paulatinamente abandonada pela doutrina.1 Decerto que, com o passar
dos tempos, o objeto do direito comercial mudou. A doutrina e a jurisprudência
passaram a analisar o direito comercial não com base em atos isolados e até
estanques (atos de comércio por força de lei). Passou-se a dar mais importância ao
dinamismo
das
relações
comerciais,
notadamente
a
atividade
econômica
organizada para a produção ou circulação de bens e serviços.
De certa forma, essa tendência já era observada no início do processo de
codificação. O Código Comercial francês de 1807 previa que “todas as empresas de
manufaturas, de comissão, de transporte por terra e água” e “todas as empresas
de fornecimento, de agência, escritórios de negócios, estabelecimentos de vendas
em leilão, de espetáculos públicos” eram considerados atos de comércio2. Por
influência do referido Código, o Regulamento 737/1850, como visto, também
utilizou o termo empresa na enumeração dos atos de comércio.
Nessa época, no entanto, prevalecia a tese de que empresa era apenas uma
repetição profissional de atos de comércio. Famosa era a definição de Inglez de
Souza, segundo qual
por empresa devemos entender uma repetição de atos, uma organização de
serviços, em que se explore o trabalho alheio, material ou intelectual. A
intromissão assim se dá, aqui, entre o produtor do trabalho e o consumidor
do resultado do trabalho, com o intuito de lucro3.
Esse, contudo, não foi o conceito que vingou. A doutrina passou a adotar,
entre os vários perfis desse fenômeno poliédrico, consoante a clássica definição de
Alberto Asquini4, o subjetivo, calcado, por sua vez, na teoria econômica da
empresa, que a considera a atividade organizada e explorada por um empresário.
Como referências da doutrina de vanguarda que contribuiu para essa
evolução da teoria dos atos de comércio para a teoria da empresa, citam-se as
seguintes obras: Limitação da responsabilidade do comerciante individual, de 1956,
tese de cátedra de Sylvio Marcondes Machado; A preservação da sociedade
comercial pela exclusão do sócio, de 1959, tese de cátedra de Rubens Requião na
1
2
3
4
14
União para ajudar as empresas europeias a encontrar novos mercados e melhorar a sua
competitividade, ou seja, a sua capacidade para competirem eficazmente nos mercados mundiais”
(http://europa.eu/pol/pdf/flipbook/pt/enterprise_pt.pdf, acessado em 26/11/2013).
FORGIONI, Paula A., op. cit., p. 58.
REQUIÃO, Rubens, op. cit., p. 51.
REQUIÃO, Rubens, idem, p. 56.
ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. RDM 104, pp. 109-126, trad. Fábio Konder Comparato, do
original Profili dell’impresa, in Rivista del Diritto Commerciale, 1943, v. 41, I.
14
Universidade Federal do Paraná; Teoria do estabelecimento comercial, de 1969,
tese de cátedra na Universidade de São Paulo de Oscar Barreto Filho; A teoria
jurídica da empresa, de 1985, de Waldírio Bulgarelli.1
A jurisprudência também avançou sobre o tema, contribuindo para a
consolidação da teoria da empresa no Brasil. Como anota Paula Andréa Forgioni,
em pelo menos três grandes questões, as discussões jurisdicionais evoluíram com
base na visão de empresa: a) na construção do instituto da dissolução parcial; b)
no delineamento das hipóteses de exclusão de sócios; e c) na preservação do ente
produtivo que se encontra em dificuldades econômicas. 2
Após esse longo caminho, em 2002, a teoria dos atos de comércio cede
derradeiramente lugar à teoria da empresa. Com a sanção do Código Civil de 2002,
passa-se a vigorar oficialmente a teoria da empresa.
O Código Civil não chega a conceituar diretamente empresa. Ele o faz
quando trata do empresário. Segundo o seu artigo 966, “[c]onsidera-se empresário
quem “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção
de bens ou de serviços”. Partindo-se dessa definição, e considerando que
empresário exerce empresa, conclui-se que empresa é a “atividade econômica
organizada para a produção de bens ou de serviços”.
Como esclarece Sylvio Marcondes Machado, o Código Civil, tomando a
empresa em seu perfil subjetivo, conceitua o empresário por traços definidos em
três condições:
a)
exercício de atividade econômica e, por isso, destinada à criação de
riqueza, pela produção de bens ou de serviços para a circulação, ou pela
circulação dos bens ou dos serviços produzidos;
b)
atividade organizada, através da coordenação dos fatores de
produção – trabalho, natureza e capital – em medida e proporção variáveis,
conforma a natureza e o objeto da empresa;
c)
exercício praticado de modo habitual e sistemático, ou seja,
profissionalmente, o que implica dizer, em nome próprio e com ânimo de
lucro. Dessa ampla conceituação exclui, entretanto, quem exerce profissão
intelectual, mesmo com o concurso de auxiliares ou colaboradores, por
entender que, não obstante produzir serviços, como o fazem os chamados
profissionais liberais, ou bens, como o fazem os artistas, o esforço criador se
1
2
Em um caminho intermediário entre a teoria dos atos de comércio e a teoria da empresa, cita-se a
teoria das profissões mercantis, defendida com maestria por João Eunápio Borges. Segundo o
professor catedrático de direito comercial da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, “o
art. 19 do regul. 737, completando o art. 4º do Código, enumera as profissões que considera
mercancia. Vale dizer, o art. 19 do regul. 737 não tem o mesmo alcance do art. 632 do Código
francês, que enumera atos de comércio. Mas como o Código alemão de 1897, nossa lei fez, em 1850,
a enumeração das profissões mercantis”. E prossegue o mencionado professor, “do mesmo modo que
constituindo mercancia a prática profissional de ato de compra e venda para a revenda, não é, porém,
ato de comércio a mesma operação isoladamente considerada, a qual falta o requisito do art. 191 do
Código, também não será ato de comércio uma operação bancária, um ato de comissão ou qualquer
dos enumerados nos demais parágrafos daquele art. 19, sem que o mesmo se integre, através da
repetição profissional dos mesmos, numa mercancia. E esta é caracterizada pela “organização da
empresa criada especialmente para aqueles negócios”, como ensina o próprio Carvalho de Mendonça,
em relação às operações bancárias, numa lição que, [...], é aproveitável para todos os atos
compreendidos no art. 19 do regul. n. 737, e da qual aquele eminente comercialista não tirou todas as
consequências que dele decorrem necessariamente” (op. cit. p 110).
FORGIONI, Paula A. Op. cit., p. 91.
15
15
implanta na própria mente do autor, de onde resultam, exclusiva e
diretamente, o bem ou o serviço, sem interferência exterior de fatores de
produção, cuja eventual ocorrência é, dada a natureza do objeto alcançado,
meramente acidental1
A mudança de objeto do direito comercial alterou de forma substancial sua
teoria geral. Quem outrora era considerado comerciante, pelo simples fato de
praticar, profissionalmente, ato de comércio por força de lei, pode hoje não ser
considerado empresário. Para tanto, a pessoa, seja física ou jurídica, deve explorar
atividade economicamente organizada, não bastando a simples prática isolada de
ato de comércio.
Aliás, a definição de empresa não é pacífica na doutrina nacional. A distinção
entre sociedade simples e empresária ainda é motivo de divergências. Noves fora
as hipóteses que o Código Civil estabelece o regime societário, independentemente
do objeto social, como é o caso das sociedades por ações, que sempre serão
empresárias, e das cooperativas, que sempre serão sociedades simples, existem
dúvidas conspícuas sobre quais seriam os critérios para se definir uma sociedade
como simples ou empresária. As dúvidas aumentam ainda mais, quando se discute
o que seria o chamado “elemento de empresa”, a que se refere o parágrafo único
do art. 966 do Código Civil2.
1.3.2. A influência da Economia sobre a teoria da empresa
Um dos objetivos desta monografia é examinar a relação entre a Economia e
o Direito, notadamente no campo do direito comercial, para que se alcance uma
MARCONDES, Sylvio. Problemas de direito mercantil. São Paulo: Max Limonad, 1970, p.140-141
O parágrafo único do art. 966 do Código Civil dispõe que “[n]ão se considera empresário quem exerce
profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou
colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa” (grifei). O que seria
afinal esse “elemento de empresa”. A doutrina se divide em pelo menos duas correntes. Há quem
defenda que basta que a atividade intelectual seja organizada, para ela ser considerada empresária.
Outros sustentam que a organização por si só não seria suficiente. Para que fosse considerada
empresa, a atividade intelectual teria de produzir bens ou serviços que fossem comercializados
indistintamente, sem caráter pessoal. Sobre o tema, remeta-se a VERÇOSA, Haroldo Malheiros
Duclerc. Direito comercial: teoria geral, 4ª ed. ver., atual. e ampl.. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 135-141.
O Conselho de Justiça Federal aprovou, na III Jornada de Direito Civil, três enunciados sobre o tema:
“193 – Art. 966: O exercício das atividades de natureza exclusivamente intelectual está excluído do
conceito de empresa”; “194 – Art. 966: Os profissionais liberais não são considerados empresários,
salvo se a organização dos fatores da produção for mais importante que a atividade pessoal
desenvolvida”; “195 – Art. 966: A expressão “elemento de empresa” demanda interpretação
econômica, devendo ser analisada sob a égide da absorção da atividade intelectual, de natureza
científica, literária ou artística, como um dos fatores da organização empresarial”.
Destaca-se que o Superior Tribunal de Justiça já afirmou a natureza empresarial de sociedade limitada
de médicos (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 555.624. Relator: Ministro
Franciulli Neto, Brasília, DF, 19 de fevereiro de 2004. Revista do Superior Tribunal de Justiça. Brasília,
DF, v. 184, p. 196).
1
2
16
16
solução para a questão dos danos provocados pela corrupção. Logo, é necessário se
examinar se a Economia exerce influência sobre o fenômeno da empresa.
Antes mesmo da adoção dessa teoria pelo Código Civil italiano, importantes
estudos sobre o papel da empresa foram desenvolvidos, principalmente nos
Estados Unidos. Em 1932, Adolf Berle e Gardiner Means, por meio da obra The
modern corporation and private property, demonstraram que na
sociedade
anônima, separam-se propriedade e poder de controle e que este, em companhias
com o capital muito pulverizado, acaba sendo exercido pelos administradores, o
chamado controle gerencial; e que essa separação pode proporcionar um grande
aumento da riqueza, na medida em que possibilita a aplicação de capitais em
empreendimentos bem estruturados e organizados, que visam ao lucro.
Em 1937, Ronald Coase publicou o artigo The nature of the firm. Nele o
aventado economista analisa o papel da empresa. Em resumo simplificador, ele
afirma que a razão de ser das empresas é a de aumentar a eficiência econômica,
por meio da redução daquilo que ele denominou de custos de transação 1.
Para estudar as consequências dessa revelação acerca dos custos de
transação e do papel da empresa como forma de aumentar a eficiência das trocas
no mercado, surgiu a chamada Nova Economia Institucional, liderada pelo
economista
Oliver
Willianson.
Essa
escola
econômica
desenvolveu
estudos
relacionados ao funcionamento do mercado, a partir de institutos como o contrato,
da empresa e sua forma de organização, dos já referidos custos de transação, dos
direitos de propriedade etc.
Pari passu, outra escola doutrinária de cunho liberal neoclássico, a chamada
Escola de Chicago, desenvolveu estudos que se notabilizaram pelas críticas à
intervenção do Estado na economia. Suas ideias influenciaram o surgimento de
escola, encabeçada por Richard Posner, que propunha a análise do Direito à luz da
Economia. Daí ter recebido o nome de escola da Análise Econômica do Direito. Essa
escola da Análise Econômica do Direito sofre críticas incisivas pelo fato de prestigiar
a eficiência econômica à justiça.2
Essas doutrinas econômicas deram um novo colorido à teoria da empresa. A
partir desses estudos, o seu centro foi deslocado da atividade economicamente
organizada para a sua função no mercado. Em outras palavras, a partir dessas
construções, a visão interna da empresa, ou seja, de sua organização, perdeu
prestígio. Ela deixou der ser considerada o fator mais relevante a seu respeito, pois,
segundo essa visão, o que de fato importa é o papel que a empresa desempenha
no mercado.
1
2
Os custos de transação serão analisados no capítulo 3.
Cita-se, à guisa de ilustração, a lúcida crítica apresentada por Ronald Dworkin à Análise Econômica do
Direito. Cf. O Império do Direito – São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 333-376.
17
17
O direito comercial evidentemente se ocupa das relações internas da
empresa, tanto que as disciplina normativamente. Mas a sua preocupação principal
é a relação que a empresa, como objeto de direito, mantém com o mercado. Essa
preocupação é tamanha, que ele edificou um sistema próprio para ela. Prevendo,
inclusive, como no caso da empresa individual de responsabilidade limita, a
personificação dessa atividade, passando a tratar a empresa como sujeito de
direito, que está em permanente interação com o mercado (Código Civil, art. 44,
VI).
2. A ATIVIDADE NEGOCIAL
Vive-se num mundo de fatos. Fatos reais ou, como ficou mais nítido
recentemente, virtuais, que compõem a vida mundana. O Direito se ocupa dos
fatos que resultam em consequências jurídicas. Esses acontecimentos são de duas
ordens: os fatos jurídicos stricto sensu e os atos jurídicos.
Os fatos jurídicos stricto sensu são aqueles acontecimentos da natureza,
que têm repercussão jurídica. A chuva torrencial, o terremoto, a erupção de um
vulcão que provocam danos a pessoas; a passagem do tempo, que constitui medida
para contagem de prazo; o nascimento da cria de uma vaca de propriedade de um
pecuarista são exemplos de acontecimentos da natureza que geram consequências
para o direito.
Os
atos
jurídicos
dizem
respeito
à
atuação
do
homem.
São
os
acontecimentos que têm como origem a sua conduta nos mais variados campos de
atuação humana: das artes à política, do ócio ao comércio. Os atos jurídicos
envolvem a realização da vontade. São atos que têm por fim imediato adquirir,
resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos. Quando ele contém, além
disso, uma declaração de vontade dirigida no sentido de obtenção de um resultado,
diz-se, então, estar-se diante de um negócio jurídico ou ato negocial. O negócio
jurídico é espécie do gênero fato jurídico, que, além daquele, possui as seguintes
outras espécies: fato jurídico stricto sensu e ato de realização da vontade ou ato
jurídico.
Sem desprezar as demais, o negócio jurídico é a mais importante espécie
de fato jurídico. Tanto assim, que o Código Civil de 2002, ao contrário do anterior,
tratou apenas dessa espécie de fato jurídico. Isso não significa que o direito deixou
de se ocupar das outras espécies, como os fatos jurídicos stricto sensu e os atos
jurídicos de realização de vontade. Estes continuam a ser disciplinados pelo
ordenamento. O Código Civil apenas deixou de normatizá-los em uma seção
específica, preferindo tratar diretamente do negócio jurídico. Mas existem normas
18
18
que versam sobre fatos jurídicos que não sejam negócios jurídicos, como o art.
147, que dispõe sobre dolo, o art. 191, que se refere à prescrição, o art. 212, que
trata de prova. Aliás, o próprio Livro III do Código Civil tem como título “Dos Fatos
Jurídicos”.
A consequência mais importante dos negócios jurídicos é a obrigação. E,
nesse particular, houve o novel Código Civil de acolher grande mudança, com ainda
mais relevo. Ele enveredou pela unificação do direito das obrigações. Ainda que isso
não representasse, bem dizer, uma novidade, pois, como visto no capítulo 2, o
Código Comercial já fazia remissão, no seu art. 121, à aplicação das regras do
Código Civil aos contratos comerciais. Essa atitude do Código Civil de 2002 colocou
uma pá de cal sobre o assunto.
Assim, o Código Civil se tornou o diploma de regência das obrigações de
direito privado. E mais. Logo em seguida ao Livro dos Direitos das Obrigações, o
Código trata do Direito de Empresa, fato também novo no Brasil.
Essa nomenclatura definitivamente não é feliz. Isso porque o Livro II da
Parte Especial do Código Civil não foi concebido para tratar exclusivamente de
empresa. Ele foi elaborado para disciplinar o fenômeno social caracterizado pela
prática reiterada de negócios jurídicos interdependentes, que são celebrados de
forma organizada, estável e com finalidade comum, por um mesmo sujeito. Seria a
atividade desempenhada por aquela pessoa – física ou jurídica - que se dedica ao
exercício de uma atividade econômica, seja uma atividade empresária ou não. As
palavras de Sylvio Marcondes, autor dessa parte do anteprojeto do aventado
Código Civil, deixam essa concepção muita clara, bastando-as por si só, prescindo
de maiores esclarecimentos:
Ora, não obstante serem os atos negociais facultados a todas as pessoas e,
por essa razão, cabíveis num direito objetivo comum, é certo que a sua
prática, quando continuadamente reiterada, de modo organizado e estável,
por um mesmo sujeito, que busca uma finalidade unitária e permanente,
cria, em torno desta, uma série de relações interdependentes que,
conjugando o exercício coordenado dos atos, o transubstancia em atividade.
E, assim como, partindo do conceito de negócio jurídico, o anteprojeto
parcial erige um sistema de atos, cabe assentar-se, no anteprojeto geral, os
postulados normativos do exercício da atividade. Atos negociais e, portanto,
atividade negocial. Atividade que se manifesta economicamente na empresa
e se exprime juridicamente na titularidade do empresário e no modo ou nas
condições de seu exercício1.
Atividade negocial. Este era o título do Livro II da Parte Especial constante
do anteprojeto elaborado pela comissão de juristas constituída, em 1969, pelos
juristas José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Clóvis
Veríssimo do Couto e Silva, Herbert Chamoun e Torquato Castro, e presidida por
1
MARCONDES, Sylvio. Problemas de direito mercantil. São Paulo: Max Limonad, 1970, p. 136.
19
19
Miguel Reale. Durante a tramitação do projeto de lei, esse título sofreu duas
alterações. Primeiro, ele foi substituído por “atividade empresarial” e, depois, por
“direito de empresa”, nomenclatura com a qual ele foi aprovado e sancionado.
O título original, contudo, traduz justamente o fenômeno, que provém do
direito das obrigações, mas que foi erigido a uma categoria diferenciada, sujeita a
um regime legal distinto1, e que é consentâneo ao exercício de atividade econômica
por uma pessoa. A rigor, tanto faz se essa atividade econômica é exercida por
pessoa física ou jurídica, ou se ela é ou não uma empresa. O aventado Livro II da
Parte Especial do Código Civil não trata apenas de sociedade, nem só de
empresário, nem, muito menos, se restringe às sociedades empresárias. Ele trata
da atividade negocial, como foi muito bem definido por Sylvio Marcondes na lição
acima reproduzida. E essa atividade envolve as atividades econômicas de natureza
intelectual,
aquelas
que
não
contam
com
organização
empresarial
e,
evidentemente, as empresas.
Com razão está, assim, Luiz Gastão Barros de Paes Leães, ao afirmar que
o nomen iuris ‘atividade negocial’, fixada no anteprojeto, seria de maior
rigor científico, na abrangência das matérias tratadas no tópico em questão,
do que a denominação ‘atividade empresarial’ e ‘direito de empresa’, que
foram, por fim, sufragradas no Código, já que ali não se trata apenas do
exercício da atividade profissional praticado por empresários e sociedades
empresárias2.
Conquanto este estudo parta da noção de atividade negocial para traçar
suas conclusões, é necessário alertar que a empresa é o principal ponto da
pesquisa. Isso porque, sem desprezar as demais atividades econômicas, fato é que
ela tem maior relevância para o direito comercial. Além disso, em vista de sua
organização, ela se constitui em um importante instrumento para redução de
custos e para o incremento das relações econômicas, contribuindo, destarte, para a
eficiência dos mercados.
2.1 A EMPRESA COMO MECANISMO PARA A REDUÇÃO DOS
CUSTOS DE
TRANSAÇÃO E INSTRUMENTO PARA GANHO DE EFICIÊNCIA
Com exceção dos contratos de execução imediata, no qual as prestações
são satisfeitas imediata e concomitantemente, a realização de um negócio jurídico
envolve riscos. Os preços podem oscilar de tal maneira que impeça a conclusão ou
continuação do negócio a não ser que as bases contratuais originais sejam
alteradas; existe o risco de a parte contrária não adimplir a sua obrigação ou de
1
2
20
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. A disciplina do direito de empresa no novo Código Civil brasileiro.
Revista de Direito Mercantil. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, n. 128. p. 12.
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros, op. cit, p. 12.
20
atrasar o seu cumprimento. Não se pode deixar de considerar o risco de uma falha
humana ou tecnológica ou mesmo de fatores não previstos que, de alguma
maneira, atrasem ou impeçam o cumprimento de obrigações. Há o risco legal, ou
seja, aquele que decorre da inadequação do arcabouço legal ou regulamentar ou de
falhas na formalização dos negócios, que os tornem questionáveis, inseguros ou
mesmo inexequíveis.
Conquanto a atividade negocial, que tem na celebração de negócios
jurídicos uma constante, conviva diariamente com esses riscos, eles a atrapalham.
Os
economistas
neoclássicos
indicam
que
os
agentes
econômicos
buscam
maximizar o bem-estar, por meio de trocas que lhes sejam vantajosas. Se existe
risco de essa troca não lhe proporcionar o aumento de bem-estar esperado, o
indivíduo poderá não se sentir encorajado para concluir o negócio e, assim, desistir
de fazê-lo. Em outras palavras, o agente econômico tem aversão ao risco 1.
Consequentemente, ele se configura em um elemento que afeta a eficiência do
mercado na concepção parentiana.
O direito comercial lida com eles desde o seu nascimento. Vários institutos
jurídicos surgiram justamente com a missão de reduzir, mitigar ou mesmo eliminar
esses riscos. O contrato de seguro e as sociedades com sócios de responsabilidade
limitada são os exemplos mais reluzentes. Não à toa economistas como Douglas
North e Kenneth J. Arrow consideram que o principal papel das instituições é o de
reduzir a incerteza por meio do estabelecimento de uma ordem estável, que
permita a interação entre os homens.
A solução para parte desses riscos é a sua transferência negociada que
ocorre no âmbito do mercado. É o caso do contrato de seguro. Em troca do
recebimento de um prêmio, o segurador assume riscos que seriam do segurado.
Também é o caso dos chamados derivativos. “Um derivativo constitui um contrato,
ou mesmo dois contratos conexos, ou um título, cujo valor, em princípio, resulta da
cotação de tais ações, que constituem, no elíptico jargão do artigo 2º, VIII, da Lei
6.385/76, os ‘ativos financeiros’2.
Há riscos, contudo, que dificilmente poderão ser atenuados por meio de
transferências negociadas no âmbito do mercado. Isso porque nem sempre o preço
será uma referência exata para a tomada de decisões.
Pelo modelo neoclássico de mercado, o preço tem a função de exprimir a
qualificação dada pelo mercado a determinado bem. Nem sempre, contudo, o preço
1
2
Otávio Yazbec conceitua aversão ao risco como “a postura que faz com que os agentes econômicos,
precisando definir seus planos de atuação, optem por aqueles nos quais exista um maior grau de
certeza ou, olhando a questão pelo outro lado, uma menor possibilidade de perdas” (Regulação do
mercado financeiro e de capitais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 24).
EIZIRIK, Nelson; Gaal, Ariádna B.; Parente, Flávia; Henriques, Marcus de Freitas. Mercado de capitais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 112.
21
21
reproduz perfeitamente essa avaliação. Há casos que influenciam o preço,
notadamente em vista da transferência de custos por mecanismos extramercado.
As chamadas falhas de mercado são geralmente supridas pela regulação.
Assim, o Estado interveria na economia por meio da instituição de tributos com
finalidade extrafiscal, mediante a outorga de subvenções ou subsídios, pela edição
de atos normativos de cunho regulatório e pela criação de infraestrutura.
Entre essas falhas, chama atenção os custos de transação. Estes, que
configuram o preço pela adesão a instituições e suas normas, são geralmente
supridos pelo controle dos fatores de produção. Isso porque eles decorrem
justamente de falhas institucionais, da burocracia e, sobretudo, das assimetrias de
informação. São os casos, por exemplo, dos chamados moral hazard ou risco moral
e da seleção adversa.
O primeiro se refere à insuficiência de informação e da dificuldade de se
acompanhar e de se fiscalizar a execução de contratos. O contraente pode não
revelar certas informações que, ao longo da execução do contrato, podem se
mostrar relevantes. Seria o caso do vendedor de um estabelecimento empresarial
que deixa de comunicar ao comprador a existência de uma dívida trabalhista ou
tributária que afete aquela universalidade de bens. Essa conduta, evidentemente,
seria ilícita.
O segundo diz respeito às assimetrias de informação que afetam o
mercado como um todo. O exemplo bem didático é aquele dado por George A.
Akerlof no artigo intitulado The Market for Lemons: Qualitiy Uncertainty and the
Market Mechanism (1970). Nesse artigo, o economista se refere ao mercado de
carros usados, apontando a dificuldade dos compradores para aferir as reais
condições em que se encontram o bem, ou seja, se o automóvel está um bom
estado ou se apresentam defeitos (os chamados lemons, gíria norte-americana que
designa os carros usados em más condições). Em vista dessa dificuldade, os
compradores não aceitariam pagar um preço mais alto por aqueles bens.
Consequentemente, os proprietários de carros em boas condições ficariam
desencorajados a vender seus bens enquanto tal, pois receberiam um preço
inferior. Eles seriam, assim afetados pela assimetria de informação, que dificultaria
a tarefa de distinguir os carros em bom estado dos que assim não se encontram.
A empresa – como organização dos fatores de produção – teria o papel de
eliminar ou reduzir esses custos de transação. Isso porque o empresário, ao
controlar todos os recursos para a produção, deixaria de buscar bens no mercado,
evitando negociações que gerassem os referidos custos de transação. O empresário
está livre para organizar os fatores de produção da maneira como melhor lhe
aprouver. Ele pode, por exemplo, licenciar uma marca, patentear um produto,
contratar a sua produção a terceiro. Veja o caso da indústria da moda. Não é
22
22
incomum se encontrar grandes empresários desse ramo, que não possuem
tecelagem nem confecção próprios. Eles possuem a marca e definem o design e o
padrão de seus produtos. Contudo, eles encomendam os tecidos e a confecção das
peças a outros empresários. Assim também o fazem quanto à distribuição dos
produtos, que pode ficar a cargo de distribuidores, agentes e franqueados.
A corrupção, assim como os custos de transação e os custos sociais,
deturpa as relações econômicas havidas na sociedade. Ele subverte a lógica de que
o preço é o principal referencial da tomada de decisões. Estas são tomadas
considerando as vantagens indevidas que são oferecidas ou prometidas.
A corrupção atinge em cheio à atividade negocial, pois, além de causar o
enriquecimento sem causa, retiram as chances daqueles que, por esforço próprio,
auferem condições melhores para negociar, mas, ainda assim, são preteridos por
essa forma abominável de relacionamento.
3. O DANO À ATIVIDADE NEGOCIAL GERADO PELA CORRUPÇÃO E A SUA
REPARAÇÃO
Chegado o momento de apreciar o dano que a corrupção causa à atividade
negocial e como se dá a sua reparação. O objetivo não é o de analisar conceitos
sedimentados, mas sim verificar quais direitos são violados pela corrupção e
levantar hipóteses relacionadas à reparação dos danos causados à atividade
negocial, em especial à empresa, em virtude da corrupção.
A humanidade precisa de um sistema de cooperação, pois ninguém é
autossuficiente.
Essa
cooperação
se
dá,
em
grande
parte,
em
ambientes
denominados mercados. As trocas entre os inúmeros agentes de mercado só são
viabilizadas, porque existem regras claras que tornam as relações jurídicas havidas
seguras. O mercado, como uma instituição, possui um ordenamento próprio, que
prevê direitos e impõe deveres a todos que dele participam.
Há um custo para que o indivíduo participe do mercado. Ele é justamente o
de cumprir com os deveres previstos no ordenamento do mercado. Trata-se de
custo que não foi considerado pela teoria econômica neoclássica. Esta se baseava
em um modelo segundo o qual os custos de produção de um determinado bem e os
benefícios decorrentes de sua negociação caberiam ao produtor ou vendedor,
enquanto que os custos para a aquisição do bem seriam de quem o adquirisse.
Esses seriam os limites da relação de mercado. No entanto, além dos já referidos,
existem, como visto, outros custos que o indivíduo tem de incorrer para participar
do mercado. Ademais, determinadas situações geram custos ou benefícios que
transcendem os aventados limites, afetando terceiros, sem que para esses novos
23
23
custos se tenha estabelecido preços, de modo que a sua circulação seria, assim,
externa ao mercado1.
A rigor, os agentes – que pagam os custos acima mencionados para
participarem do mercado - concorrem livremente pelas oportunidades de negócio.
O sucesso da participação do agente econômico, a depender das condições e
circunstâncias do mercado, estará diretamente ligado a sua habilidade, experiência,
conhecimento e a outros predicados pessoais, notadamente o de organizar os
fatores de produção de tal ordem, que permita-lhe obter um produto atraente ou,
no dito popular, “bom, bonito e barato”.
A corrupção desvirtua tudo isso. As oportunidades de negócio, por meio
dela, não são alcançadas com base no mérito empresarial, mas sim pela promessa
ou pelo pagamento de vantagem indevida, que não integra o custo direto ou o
preço do produto. Não há concorrência livre e leal e o produto do negócio não
reflete as condições de mercado.
Nota-se que a corrupção afeta o mercado. Ela destrói o sistema de preços;
retira as chances de se obter uma oportunidade legítima de negócio; atinge em
cheio a atividade empresarial.
3.1. A REPRESSÃO À CORRUPÇÃO PELO DIREITO
A corrupção, como visto, viola direitos e interesses tutelados pelo
ordenamento jurídico. O mercado, a livre-concorrência, a lealdade, a boa-fé são
gravemente afetados por esse tipo de conduta. Tanto que o direito a reprime.
O direito penal, por exemplo, tipifica como crime de corrupção passiva a
conduta de “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora de função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” (CP, art. 317). Ele também
considera delito a figura da corrupção ativa, que seria praticada por quem
“[o]ferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determinálo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”.
Esses são crimes que atentam contra a Administração Pública. A corrupção,
entretanto, não ocorre apenas nessa seara. Ela também pode ser configurada na
esfera privada. Assim, a Lei de Propriedade Industrial afirma que comete crime de
concorrência desleal quem “recebe dinheiro ou outra utilidade, ou aceita promessa
1
24
YAZBEC, Otávio, op. cit., p. 47.
24
de paga ou recompensa, para, faltando ao dever de empregado, proporcionar
vantagem a concorrente do empregador” (Lei n.º 9.279/96, art. 195, X).
O direito do trabalho autoriza a resolução do contrato de trabalho, por
justa causa, quando o empregado pratica “ato de improbidade” (CLT, art. 482, “a”)
ou realiza “negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do
empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual
trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço” (CLT, art. 482, “c”).
No plano do direito administrativo, considera-se ato de improbidade
administrativa que importa em enriquecimento ilícito, auferir qualquer tipo de
vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função,
emprego ou atividade pública, notadamente: (i) “receber, para si ou para outrem,
dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou
indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem
tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou
omissão decorrente das atribuições do agente público”; (ii) “perceber vantagem
econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem
móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços” pelas entidades da administração
direta, indireta e fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de pessoa jurídica incorporada ao
patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja
concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da
receita anual, “por preço superior ao valor de mercado”; (iii) “perceber vantagem
econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem
público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de
mercado”; (iv) utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas,
equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição
das entidades já mencionadas, bem como o trabalho de servidores públicos,
empregados ou terceiros contratados por elas; (v) “receber vantagem econômica
de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de
jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de
qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem; (vi) “receber
vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta,
para fazer
declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro
serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de
mercadorias ou bens fornecidos” a qualquer daquelas entidades acima referidas;
(vii) “adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou
função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à
evolução do patrimônio ou à renda do agente público”; (viii) “aceitar emprego,
comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física
25
25
ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou
omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade”; (ix)
“perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba
pública de qualquer natureza”; (x) “receber vantagem econômica de qualquer
natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou
declaração a que esteja obrigado” (Lei n.º 8.429/92, art. 9º).
A Lei n.º 8.429/92 prevê ainda, como atos de improbidade administrativa
que causam prejuízos ao Erário, “permitir ou facilitar a alienação, permuta ou
locação de bem integrante do patrimônio de qualquer das aventadas entidades, ou
ainda a prestação de serviço por parte delas, por preço inferior ao de mercado;
“permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço
superior ao de mercado”; “permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se
enriqueça ilicitamente”, entre outras condutas (art. 10). Ela também afirma
constituir ato de improbidade administrativa conduta que atente contra os
princípios da administração pública (Lei n.º 8.249/92, art. 11).
A
Lei
de
Improbidade
Administrativa
disciplina,
ainda,
as
sanções
administrativas e a reparação civil do dano, que deve ser integral (art. 12).
Recentemente,
foi
editada
a
Lei
Anticorrupção 1,
que
disciplina
a
responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos
contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. O art. 5º dessa lei
apresenta rol de condutas, que constituiriam “atos lesivos à administração pública,
nacional ou estrangeira”. São elas: (i) “prometer, oferecer ou dar, direta ou
indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele
relacionada”; (ii) “comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer
modo subvencionar a prática dos atos ilícitos” previstos naquela Lei; (iii)
“comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar
ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos
praticados; (iv) “no tocante a licitações e contratos: a) frustrar ou fraudar,
mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo
de procedimento licitatório público; b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de
qualquer ato de procedimento licitatório público; c) afastar ou procurar afastar
licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; d)
fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente; e) criar, de modo fraudulento
ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato
1
Cf. FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby; DINIS DO NASCIMENTO, Melillo. Lei Anticorrupção Empresarial.
Rio de Janeiro; Forum, 2014, passim. BITTENCOURT, Sidney. Comentários à Lei Anticorrupção. Rio de
Janeiro: Forum, 2014, passim. PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RISEK JÚNIOR, Rubens Naman. Lei
Anticorrupção: origens e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014, passim.
26
26
administrativo; f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de
modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública,
sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos
instrumentos contratuais; ou g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômicofinanceiro dos contratos celebrados com a administração pública”; (v) “dificultar
atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos,
ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos
órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”.
A responsabilidade por essas condutas é objetiva (Lei n.º 12.846, art. 1º e
2º). As sanções administrativas aplicadas a esses casos são multa, no valor de
0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do
último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os
tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua
estimação (art. 6º, I) e publicação extraordinária da decisão condenatória (art. 6º,
II). Elas podem ser aplicadas cumulativamente, devendo respeitar o princípio da
proporcionalidade em vista da gravidade do caso (art. 6º, § 1º). A decisão que as
aplicar deve ser suficientemente fundamentada. A punição administrativa do
ofensor não lhe retira a obrigação de reparar integralmente o dano (art. 6º, § 3º).
Além das punições administrativas, os entes de federação e o Ministério
Público poderão demandar judicialmente aplicação das seguintes penas aos
ofensores: (i) “perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem
ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do
lesado ou de terceiro de boa-fé”; (ii) “suspensão ou interdição parcial de suas
atividades”; (iii) “dissolução compulsória da pessoa jurídica”; (iv) “proibição de
receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou
entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder
público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos” (art. 19).
A prática de corrupção pode ainda configurar infração à ordem econômica1,
desde que o ato tenha por objeto ou possa produzir os seguintes efeitos, ainda que
não sejam alcançados: (i) “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre
1
Sobre as infrações à ordem econômica, cf. FORGIONI, Paula Andrea. Os fundamentos do
antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, 5. ed., passim; OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João
Grandino. Direito e economia da concorrência. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, passim; PROENÇA, João
Marcelo Martins. Concentração empresarial e o direito da concorrência. São Paulo: Saraiva, 2001,
passim; LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Lei de Proteção da Concorrência. Rio de Janeiro:
Forense, 1995, passim; FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Introdução ao Direito da Concorrência.
São Paulo: Malheiros, 1996, passim; VAZ, Isabel. Direito econômico da concorrência. Rio de Janeiro:
Forense, 1993, passim.
27
27
concorrência ou a livre iniciativa”; (ii) “dominar mercado relevante de bens ou
serviços”; (iii) “aumentar arbitrariamente os lucros”; e (iv) “exercer de forma
abusiva posição dominante” (Lei n.º 12.529/2011, art. 36). Se configurada, a
infração à ordem econômica pode dar azo à aplicação das sanções administrativas
previstas nos artigos 37 a 44 da Lei Antitruste, assim como à responsabilização civil
do ofensor pelos danos suportados pelos demais agentes de mercado (Lei n.º
12.529/2011, art. 47).
Nota-se, portanto, que o Direito reconhece que a prática de corrupção
afeta a sociedade de várias formas. Essa conduta pode ser devastadora, gerando
prejuízos das mais variadas ordens e afetando interesses legítimos de diversos
matizes.
3.2. A REPARAÇÃO DO DANO PROVOCADO À ATIVIDADE NEGOCIAL POR ATO DE
CORRUPÇÃO
A corrupção é um mau que assola a sociedade moderna. Seus efeitos não são
sentidos apenas no âmbito do poder público. O mercado e a vida privada são tão ou
mais atingidos por esses atos espúrios. Ela macula direitos e interesses legítimos,
que recebem a tutela do sistema jurídico. Entre esses direitos está o de exercer
atividade negocial, na qual se enquadra a exploração de empresa.
Não existe, todavia, uma norma específica que trate dos danos causados pela
corrupção às atividades negociais. Além disso, a teoria da responsabilidade civil,
que preceitua tanto o inadimplemento de uma obrigação, quanto o descumprimento
de um dever legal, foi edificada sobre os fundamentos da teoria neoclássica. Ela
também não considerou, especificamente no tocante à reparação dos danos, a
questão dos custos de transação e dos custos sociais, que são alguns dos custos
incorridos pelos empresários para estarem no mercado.
A omissão quanto a esses pontos reverbera nas relações negociais. A
concepção neoclássica entra em choque com a visão pós-moderna da sociedade,
com a tutela da livre iniciativa, da livre concorrência e da empresa. Torna-se
necessário o lançamento de outras luzes sobre essa questão.
A responsabilidade civil guarda respostas e soluções para esse problema.
Isso será visto nos próximos tópicos.
3.2.1. O conceito de dano material
28
28
Dano, como anota Agostinho Alvim, é a lesão do patrimônio 1, sendo que
esse
é
o
conjunto
das
relações
jurídicas
de
uma
pessoa
apreciáveis
economicamente. Ele deve ser avaliado subjetivamente. Não à toa, o coautor do
Código Civil, responsável pelo Livro do Direito das Obrigações, prefere a expressão
“danos e interesses” a “perdas e danos”2. Isso porque perda e dano tem o mesmo
significado, ao passo que a palavra interesse, tal como ocorre com a expressão
francesa dommages et intérêts, traduz a subjetividade do dano. No entanto, o
citado jurista conformou-se ao costume já arraigado e manteve aquela expressão
no anteprojeto que foi aprovado com essa mesma expressão, que hoje figura no
Código Civil de 2002.
Para apuração do dano material, adota-se o princípio da diferença,
segundo o qual o dano é estimado pela redução do patrimônio da vítima. Esse
princípio não traduz apenas uma perda imediata. Ou seja, não basta uma simples
conta de subtração entre o valor do patrimônio original e o que restou após a
ocorrência do dano para se apurar o valor da reparação. Devem ser considerados
também aqueles lucros que, conquanto ainda não integrassem o patrimônio, a
vítima tinha como justa a expectativa de receber, isto é, não devem ser
computados apenas o lucro que se estancou, como, por exemplo, o que alguém
normalmente obtinha, em sua profissão, e não mais poderá obter, em virtude de
descumprimento de dever legal ou de inexecução de obrigação por parte de
outrem. Lucro cessante é isso, mas também é aquele que o credor não obterá,
ainda que não viesse obtendo antes3.
Dispõe o Código que “[a]inda que a inexecução resulte de dolo do devedor,
as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito
dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual” (art. 403).
É fato, assim, que o dano deve compreender apenas os prejuízos efetivos e
os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato. Advirta-se que, uma vez
demonstrada essa relação de causa e efeito, a reparação há de ser completa,
integral. Ela deverá compreender todo o prejuízo arcado. Em outras palavras, não é
a extensão do dano que se submete àquela relação de causa e efeito com o ato que
o ocasionou. Uma vez causado o dano, a reparação deverá ser total.
A extensão da reparação encontra limite na repercussão que o dano teve
no patrimônio da vítima. O causador do dano não está obrigado a indenizar nada
mais do que a perda efetivamente experimentada e apurada segundo o princípio da
diferença. Tanto assim, que o referido art. 403 do Código Civil diz textualmente que
ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e das suas Consequência. São Paulo: Saraiva,
1980, 5. ed., p. 172.
2
Ibidem, p. 175.
3
Ibidem, p. 174.
1
29
29
“as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito
dela direto e imediato”. Logo, não há espaço para indenização de caráter punitivo1.
Confirma essa assertiva, o parágrafo único do art. 944, que autoriza apenas a
redução da indenização e não a sua majoração, em casos onde houver excessiva
desproporção entre a gravidade da culpa e o dano.
Pode ocorrer de haver indenização sem dano. Isso se dá em casos, nos
quais a lei dispensa a prova quanto à perda. Ou seja, quando o prejuízo é estimado
previamente. São casos tais: a cláusula penal (CC, artigos 408 a 416) e os juros
moratórios (CC, artigos 406 e 407).
Ainda que a vítima não experimente um dano efetivo, a indenização pelo
descumprimento total ou parcial da obrigação será devida. Se a cláusula penal for
estipulada para o caso de inadimplemento absoluto, poderá ser convertida em
indenização em benefício do credor, que, assim, não poderá exigir o cumprimento
da obrigação (CC, art. 410). Contudo, se ela se referir à mora ou em segurança
especial de outra cláusula determinada, o credor terá a faculdade de exigir a
satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação
principal (CC, art. 411).
Da mesma forma, as perdas e danos, nas obrigações de pagamento em
dinheiro,
são
pagas
com
atualização
monetária
segundo
índices
oficiais
regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado,
sem prejuízo de pena convencional (CC, art. 404).
O Código Civil procurou dar o máximo de efetividade ao princípio da
reparação do dano. Ao contrário do diploma anterior, que não admitia a discussão
sobre o valor de indenizações já preestabelecidas, como eram os casos dos juros
moratórios e da cláusula penal, o atual permite indenização suplementar, quando
preenchidos os requisitos para tal.
O art. 1.061 do Código Civil de 1916 dispunha que “[a]s perdas e danos,
nas obrigações de pagamento em dinheiro, consistem nos juros da mora e custas,
sem prejuízo da pena convencional”. Ele nada referia para o caso de os juros
moratórios não cobrirem integralmente o dano. Agostinho Alvim considerava essa
regra injusta. Logo, o Código Civil de 2002 previu a possibilidade de, “[p]rovado
que os juros de mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional,
pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar”.
O mesmo se dá com a cláusula penal. O art. 927 do Código Civil
estabelecia uma limitação para ela, qual seja, a de que o valor da multa não
poderia ser superior ao da obrigação principal. Todavia, ele não previa o pagamento
1
30
Com exceção do dano moral.
30
de indenização suplementar para a hipótese de a cominação prevista na cláusula
penal ser inferior ao dano. Isto também foi superado pelo Código Civil em vigor,
que, conquanto tenha mantido a limitação acerca do valor da cominação nela
imposta – que não pode exceder ao da obrigação principal -, admite o pagamento
de indenização suplementar, desde que as partes tenham assim convencionado.
Neste caso, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar
o prejuízo (CC, art. 416, parágrafo único).
Caso análogo ocorre com a indenização pela edição não autorizada de obra
literária, artística, científica e também de programa de computador. O parágrafo
único do art. 103 da Lei n.º 9.610/98 prevê que “[n]ão se conhecendo o número de
exemplares que constituem a edição fraudulenta, pagará o transgressor o valor de
3.000 (três mil) exemplares, além dos apreendidos”. Não obstante a redação clara
dessa norma, que trata apenas de valor presumido de indenização, no caso de não
ser possível quantificar o número de exemplares editados fraudulentamente, o
Superior Tribunal de Justiça vem se valendo dela para arbitrar indenização em
múltiplo do número de licenças de programas de computador indevidamente
cedidas ou comercializadas, o que, a toda evidência, caracteriza uma indenização
punitiva1. Essa interpretação revela-se equivocada, pois não encontra amparo na
lei. Melhor teria feito se decidisse por aplicar o art. 102 da referida Lei em sua
inteireza e, assim, estendesse a indenização, de modo a alcançar danos incorridos,
mas que não integraram seu cálculo.
Para a hipótese aventada neste estudo, é necessário considerar que a
Constituição da República Federativa do Brasil erigiu a princípio nuclear de seu
sistema a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Donde se pressupõe que ela
assegura a autonomia e a
capacidade de autodeterminação das pessoas,
observados os limites legais. Ela protege, assim, o direito de a pessoa procurar
maximizar seu bem-estar.
Isso pode ser feito pela sua participação no mercado, até porque este é,
sobretudo numa economia capitalista, o caminho que ordinariamente os indivíduos
tomam para alcançar esse desiderato. Não é de se estranhar, assim, que a
Constituição também tutele a livre iniciativa (art. 170, caput), o livre exercício de
profissão (art. 5º, XIII), a propriedade privada (art. 5º, XXII c/c art. 170, II) e a
livre concorrência (art. 170, IV). Esses são institutos que remetem ao sistema
liberal neoclássico do mercado. Sem embargo, a Constituição não os prevê
despidos de uma complementação necessária, pois faz alusão a valores da pós-
BRASIL. Recurso Especial n. 1.127.220/SP. Recorrente: Rede Brasileira de Educação a Distância S/C
LTDA. Recorrido: Centro de Estratégia Operacional Propaganda e Publicidade S/C LTDA. Relator:
Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, Brasília, DF, 19 de agosto de 2010, Diário de Justiça Eletrônico.
Brasília, DF, 19 de out. 2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 19 de jun. 2014.
1
31
31
modernidade. Fala-se, assim, em função social da propriedade, em defesa do
consumidor, em proteção do meio ambiente e em redução de desigualdades.
O ordenamento jurídico não só reconhece a empresa como um fenômeno
que favorece o mercado, como a tutela. Por outro lado, ele prevê, como remédio
para a violação de deveres legais e descumprimento de obrigações, o direito de a
vítima obter a reparação integral do dano sofrido.
Ora, se é assim, então danos causados pela prática de corrupção devem
ser reparados. Não há por que o ofendido, aquele que amargou um dano
emergente, ou que experimentou um empobrecimento sem causa ou que perdeu
uma chance de concluir um negócio deixar de obter uma indenização.
A seguir serão analisados os principais danos que podem compor a
indenização.
3.2.2. Os danos emergentes
Danos emergentes constituem-se naquilo que efetivamente se perdeu; a
diminuição atual do patrimônio1. No caso da reparação às atividades negociais, os
danos emergentes devem contemplar não só os prejuízos decorrentes do
inadimplemento da obrigação, mas também os custos de transação incorridos para
a celebração daquele negócio, assim como aqueles necessários para demandar o
cumprimento da obrigação e/ou da reparação do dano.
Em se tratando de dano causado por corrupção, há de se perquirir se a
conduta prejudicou os envolvidos, ou seja, se o negócio jurídico foi concluído por
um preço superior ao de mercado; se os indivíduos envolvidos no ato de corrupção
provocaram alguma perda patrimonial às pessoas jurídicas envolvidas.
Esse dano, caso comprovado, deverá ser reparado integralmente. A
indenização, portanto, deverá contemplar essa perda patrimonial. Para tanto, há de
ser aplicado o aventado princípio da diferença alhures mencionado.
3.2.3. Os lucros cessantes
Lucros cessantes são aqueles que o credor tinha uma justa expectativa de
receber ou, na dicção do Código Civil, o que ele razoavelmente deixou de ganhar. A
grande dificuldade de se apurar os lucros cessantes é quanto à prova. Como se
demonstrar que o credor teria uma justa expectativa de lucro a merecer a tutela do
1
32
BEVILÁQUA, Clóvis apud ALVIM, Agostinho, op. cit., p. 174.
32
direito. Um caso envolvendo falha de mercado parece bastante emblemático.
Imagine um agente de mercado que vai à falência, em virtude de pratica ofensiva à
livre-concorrência, como, por exemplo, a prática de corrupção, que o impede de ter
acesso a mercado valioso.
O ofensor deve indenizar não apenas os danos emergentes, que, nesse
caso, seria o valor do capital investido, sobretudo aqueles ativos que não poderão
ser recuperados, como os chamados sunk costs1 (custos irrecuperáveis), e também
os lucros que o falido teria se ele tivesse conseguido participar do mercado em
condições normais de livre-concorrência. Trata-se, obviamente, de caso de
enriquecimento ilícito do infrator da ordem econômica, que impõe à vítima uma
limitação de crescimento do seu patrimônio. O infrator, então, deve ser condenado
a pagar indenização que corresponda aos lucros obtidos em excesso, por
apropriação dos demais concorrentes.
Para tanto, não se deve tomar como parâmetro o modelo de concorrência
perfeita, visto que este é quase uma utopia. É possível se estabelecer um
parâmetro próximo da realidade de um mercado que funcionasse sem condutas
abusivas.
3.2.4. A perda de uma chance
A doutrina francesa da perte d´une chance (perda de uma chance) vem se
sedimentando no Brasil. Agostinho Alvim já tratava, na sua obra Da Inexecução das
Obrigações e das suas Consequência, da possibilidade de se vindicar reparação pela
perda de uma chance causada por outrem. Tratou o jurista da responsabilidade do
advogado que deixa de interpor recurso tempestivamente e, com isso, faz com o
que o seu cliente perca a chance de obter julgamento em outra instância 2. Outros
autores também se referiram à responsabilidade pela perda de uma chance, como
Miguel Maria de Serpa Lopes, para quem “[a] perda de uma chance ocorre quando
o causador de um dano por ato ilícito, com o seu ato, interrompeu um processo que
poderia trazer em favor de outra pessoa a obtenção de um lucro ou o afastamento
de um prejuízo”3.
Os tribunais brasileiros passaram a aceitar essa teoria mais recentemente.
O caso mais rumoroso provavelmente foi aquele decidido pelo Superior Tribunal de
Sunk costs (custos afundados) são recursos empregados na construção de ativos que, uma vez
realizados, não podem ser recuperados em qualquer grau significante. Em termos econômicos, o
custo de oportunidade desses recursos, uma vez empregados, é próximo de zero. Os sunk costs são
considerados barreiras para entrada em mercados relevantes, conceito muito utilizado do direito da
concorrência.
ALVIM, Agostinho, op. cit., p. 297.
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Freitas Bastos, 1989, 5. ed., v. II, p.
375
1
2
3
33
33
Justiça no recurso especial n.º 788.459 – BA. Tratou-se do caso conhecido como
“Show do Milhão”, que era o nome de um programa de televisão, no qual os
participantes concorriam a prêmios, caso respondessem corretamente às perguntas
formuladas. O prêmio máximo era de um R$ 1 milhão.
Nesse caso, uma participante do programa conseguiu chegar à última
pergunta, cuja resposta, se dada corretamente, lhe garantiria o prêmio máximo.
Sucede que nenhuma das alternativas de respostas disponibilizadas pelo programa
responderia corretamente à pergunta. Como a autora desistiu de responder à
pergunta, justamente porque não encontrou, entre as alternativas disponibilizadas,
a resposta certa, ela demandou judicialmente o pagamento do prêmio máximo.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a autora fazia jus ao
recebimento de indenização pela perda da chance de receber o prêmio máximo e
condenou o titular do aventado programa de televisão a indenizá-la pelo que
razoavelmente deixou de lucrar. Confira-se a ementa desse julgado:
RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO. IMPROPRIEDADE DE PERGUNTA
FORMULADA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO. PERDA DA OPORTUNIDADE.
1. O questionamento, em programa de perguntas e respostas, pela
televisão, sem viabilidade lógica, uma vez que a Constituição Federal não
indica percentual relativo às terras reservadas aos índios, acarreta, como
decidido pelas instâncias ordinárias, a impossibilidade da prestação por culpa
do devedor, impondo o dever de ressarcir o participante pelo que
razoavelmente haja deixado de lucrar, pela perda da oportunidade.
2. Recurso conhecido e, em parte, provido.
(REsp 788.459/BA, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA,
julgado em 08/11/2005, DJ 13/03/2006, p. 334)
A partir das lições da doutrina e dos precedentes jurisprudenciais, foi
editado, na V Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, o enunciado
443, que trata da responsabilidade pela perda da chance, e que possui a seguinte
redação:
Art. 997. A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à
categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do
caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza
jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando
adstrita a percentuais apriorísticos.
Portanto, quando alguém deixa de ter uma oportunidade real, atual e séria
por culpa de terceiro, essa pessoa pode requerer a reparação desse dano. No caso
da corrupção, como visto acima, um agente de mercado consegue fechar negócio,
não porque foi mais eficiente, porque apresentou condições melhores, mas sim
porque ofereceu ou aceitou dar uma vantagem indevida. Com essa atitude, esse
agente retirou a chance dos demais integrantes daquele mercado de concluírem
aquele negócio de maneira lícita e legítima. Isso, a toda evidência, autorizaria a
responsabilização dos envolvidos no ato de corrupção pela perda da chance
experimentada pelos demais concorrentes de determinado mercado relevante.
34
34
Obviamente, para que surja o dever de reparar esse dano, há de ser
comprovado a prática do ato ilícito, ou seja, que o negócio somente foi concluído
em vista da prestação de vantagem indevida e que os demais concorrentes tinham
chances sérias, atuais e reais de fecharem aquele negócio, mas que isso só não
aconteceu, porque o concorrente se valeu desse expediente desleal para lograr o
lucro fruto daquele negócio.
Consequentemente, a teoria da perda de uma chance se traduz em meio
para resolução de lides, que envolvam o ressarcimento de concorrentes preteridos
em negócio jurídico pela prática de corrupção.
Conclusão
A corrupção é um comportamento degradante, que tem repercussão em
várias ciências humanas. A Ética, a Moral, a Economia e o Direito percebem seus
efeitos nefastos e a eles reagem.
No tocante ao Direito, a corrupção implica violação a princípios caros, tanto
da Administração Pública, quanto da Ordem Econômica. Não só a moralidade e a
eficiência administrativos são tocados pela corrupção; a livre-concorrência sofre
consequências drásticas pelas mãos corruptas.
A Lei Anticorrupção atentou para o problema da corrupção no plano da
Administração Pública. Foi um avanço, mas é preciso que esse problema seja
enfrentado por todos os seus prismas.
Se um ato de corrupção – ainda que ele não envolva o dispêndio de dinheiro
público – deve também ser notificado à autoridade competente e investigado. Não
se pode tratar a corrupção nas atividades privadas como algo menor ou sem
importância. Como visto, a corrupção inverte a lógica do mercado. Ela afeta o
interesse difuso de proteção do mercado, razão por que ela deve receber uma
atenção especial.
A responsabilidade civil pode ser um excelente meio de prevenir e reparar os
danos advindos da corrupção. Institutos como o enriquecimento sem causa e a
teria da responsabilidade civil pela perda de uma chance lançam-se como
importantes mecanismos para remediar os efeitos danosos dessa conduta expúria.
35
35
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37
37
Doutrina
O Critério do Regime de Bens para o Direito Sucessório
sob a Ótica Civil-Constitucional
Thiago Nicolay
1
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar o reflexo do regime de bens no
direito sucessório e, com isso, propor solução às diversas divergências existentes
acerca da sucessão do cônjuge e do companheiro. Antes da abordagem específica
do tema serão abordados os regimes de bens existentes no Código Civil e os
princípios, inclusive os constitucionais, que os regem. Posteriormente, será
examinado o fundamento constitucional do direito sucessório, bem como os
reflexos do regime de bens no direito sucessório, para, então, serem demonstradas
as divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da sucessão do cônjuge e do
companheiro e propostas soluções para as divergências. Para tanto, será necessário
um estudo aprofundado das normas de sucessão legítima do cônjuge e do
companheiro informadas pelos valores constitucionais. Será analisada, também, a
questão da hierarquia entre as formas de constituição de família na constituição
Federal de 1988.
ABSTRACT: This work aims to analyze the reflection of the property ruling in right
of survivorship and, thus, propose solutions to several existing disagreements over
the succession of the spouse and common-law spouse. Before the specific approach
will be addressed property ruling in the Civil Code and the principles, including
constitutional principles, governing. Later, it will be examined considerations of the
constitutional right of survivorship as well as the reflections of the property ruling in
right of survivorship, to then be shown the dissensions doctrine and former court
decisions about the succession of the spouse and common-law spouse, and
proposed solutions to dissensions. For that, will take a thorough study of the norm
of lawful succession of the spouse and common-law spouse informed by
constitutional values. Will be also analyzed the question of hierarchy between forms
of Family formation in the Federal Constitution of 1988.
INTRODUÇÃO 1. REGIMES DE BENS EXISTENTES NO CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO 1.1 Princípio orientadores do regime de bens. 1.2 O regime da
comunhão parcial de bens 1.3 regime da separação total de bens.1.4 O regime de
bens aplicável a união estável. 2.OS REFLEXOS SUCESSÓRIOS DO REGIME DE
BENS 2.1 Fundamento constitucional do direito sucessório e a sua relação com e
regime de bens 2.2 Sucessão do cônjuge 2.2.1 A discussão acerca da sucessão do
cônjuge casado sob o regime da separação de bens 2.2.1.1 Solução sob a ótica do
direito civil-constitucional 2.2.2 A discussão acerca da sucessão do cônjuge casado
sob o regime da comunhão parcial de bens 2.2.2.1 Solução sob a ótica do direito
civil-constitucional 2.3 Sucessão do companheiro 2.3.1Análise dos artigos 1.790 e
1.845 do Código Civil Brasileiro 2.3.2 Solução sob a ótica do direito civilconstitucional 3 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
Sumário:
1
38
Segundo colocado no Concurso de Monografias "Aloysio Maria Teixeira" na categoria advogado
38
INTRODUÇÃO
No presente trabalho, analisa-se o reflexo do regime de bens no direito
sucessório, especialmente na sucessão hereditária do cônjuge e do companheiro,
após a promulgação da Constituição Federal em 1988 e da entrada em vigor do
Código Civil Brasileiro, ocorrida em 2002, que inovou no tocante ao regime de bens
e à sucessão do cônjuge e do companheiro, bem como as controvérsias
doutrinárias e jurisprudenciais existentes acerca do tema.
Tais inovações se deram em razão de o cônjuge, do quarto lugar na ordem
de vocação hereditária, atrás dos parentes colaterais até o décimo grau, ter
passado a gozar do status de herdeiro necessário em propriedade plena no Código
Civil de 2002, concorrendo com os descendentes e ascendentes1 do falecido.
Essas evoluções dos direitos sucessórios do cônjuge, trazidas pelo Código
Civil de 2002, deram espaço a calorosas discussões doutrinárias e jurisprudenciais,
acerca da sucessão do cônjuge e do companheiro.
Desse modo, o presente trabalho fará uma interpretação dos dispositivos
que regem alguns dos regimes de bens existentes no Código Civil e o direito
sucessório sob a ótica civil-constitucional, conferindo maior importância à pessoa
humana, no caso o cônjuge ou companheiro supérstite, em relação às questões
patrimoniais que envolvem a relação marital e a sucessão.
O objeto de estudo do presente trabalho despertou interesse em razão de
o Direito Civil, assim como a sociedade moderna de uma maneira geral, viver um
crítico momento de inversão de valores. A exemplo disso, basta uma análise da
prática nos Tribunais de Justiça de todo país para se notar que, na maioria das
vezes, litígios se formam em um processo de inventário em razão da divisão do
patrimônio deixado pelo de cujus, sem que haja a mínima preocupação com o real
desejo do falecido manifestado em vida, o que pode acabar ferindo princípios e
direitos garantidos constitucionalmente.
Desta forma, demonstra-se a relevância do tema escolhido, por sua
importância tanto do ponto de vista da pesquisa acadêmica como do ponto de vista
da prática jurídica.
O primeiro capítulo do presente trabalho será destinado ao estudo do
regime da comunhão parcial de bens e da separação de bens, tanto a legal como a
convencional, já que somente serão enfrentadas as problemáticas acerca da
sucessão do cônjuge e do companheiro nesses dois regimes de bens, sendo
1
NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 3.
39
39
demonstrados, ainda, os Princípios Constitucionais aplicáveis aos regimes de bens,
bem como sua aplicação prática.
Será
abordada,
ainda,
a
concepção
de
família
sob
a
ótica
civil-
constitucional, abordando-se a questão da inexistência da hierarquia entre o
casamento e a união estável no ordenamento jurídico brasileiro.
Já o segundo capítulo será dedicado ao cerne do trabalho, que é o reflexo
do regime de bens no direito sucessório, bem como ao estudo dos dispositivos
inerentes a sucessão do cônjuge e do companheiro, sempre aplicando a
metodologia civil-constitucional, com vistas a garantir a tutela sucessória do
cônjuge e do companheiro.
Portanto, pretende-se, a partir do presente trabalho, demonstrar a íntima
relação existente entre o regime de bens e o direito sucessório, bem como os
reflexos que aquele tem neste definido, por via de consequência, critérios
interpretativos para uma análise da tutela dos direitos do cônjuge e do
companheiro no momento da sucessão mortis causa, isto tudo com base nos
valores e princípios presentes na Constituição Federal.
1.REGIMES DE BENS NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
O regime de bens, também conhecido como estatuto patrimonial dos
cônjuges, é o conjunto de regras que disciplina as relações patrimoniais, assim
entendidas a propriedade, a administração, a disponibilidade e gozo dos bens, entre
os cônjuges.
Desse modo, segundo Silvio Venosa1, “o regime de bens entre os cônjuges
compreende uma das consequências jurídicas do casamento”. E continua o referido
doutrinador: “Nessas relações, devem ser estabelecidas as formas de contribuição
do marido e da mulher para o lar, a titularidade e administração dos bens comuns e
particulares e em que medida esses bens respondem por obrigações perante
terceiros. ”.
Atualmente, são quatro os regimes de bens existentes no Código Civil, que
reservou o subtítulo I, do título II, do livro IV – artigos 1639 até 1.688 – para tratar
da matéria, são eles o regime da comunhão parcial de bens, da separação total de
bens, da comunhão universal de bens e o da participação final nos aquestos.
1
40
VENOSA. Silvio. Direito Civil – Direito de Família. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Atlas, 2010. p. 321.
40
No entanto, no presente trabalho somente serão abordados os regimes da
comunhão parcial de bens e da separação de bens, tanto a legal quanto a
convencional,
já
que
nesses
dois
regimes
as
divergências
doutrinárias
e
jurisprudenciais são mais intensas, sendo demonstradas as peculiaridades desses
dois regimes para que possa ser estudada a sucessão do cônjuge e do
companheiro, sob a ótica civil-constitucional.
Com efeito, embora o regime de bens tenha reconhecida importância no
presente estudo, não se pode olvidar das chamadas relações existenciais, que
consistem em direitos pessoais, devem prevalecer e direcionar as relações
patrimoniais, como ensina o professor Gustavo Tepedino1:
O vínculo matrimonial e a sociedade conjugal são instituídos com a
celebração do casamento, e desse ato de desencadeiam numerosos efeitos
jurídicos, sejam de natureza patrimonial, sejam de natureza pessoal. O CC,
em notável avanço em relação ao seu antecessor, separou em títulos
distintos o direito pessoal e o direito patrimonial, reconhecendo, dessa
forma, que os direitos e situações subjetivas existenciais e patrimoniais
devem ser tratados de forma qualitativamente diferenciada. (...) A pessoa
humana é o centro do ordenamento, impondo-se, assim, tratamento
diferenciado entre os interesses patrimoniais e os existenciais. Em outras
palavras, as situações patrimoniais devem ser funcionalizadas às
existenciais.
Desse modo, fica desde já consignado que, segundo a metodologia civilconstitucional, o direito patrimonial, não obstante seja de suma importância para as
relações matrimoniais, assim como para demais relações pessoais, não pode se
sobrepor às situações existenciais, de modo que sempre deverá ser garantida a
tutela da dignidade da pessoa humana.
1.1Princípios orientadores dos regimes de bens
Os princípios, mormente os de ordem constitucional, têm singular
importância na aplicação das normas infraconstitucionais, servindo de norte ao
intérprete das normas infraconstitucionais e evitando a transgressão de direitos.
Nesse sentido, afirmando a importância dos princípios constitucionais na
aplicação do direito, leciona Gustavo Tepedino2:
Se o Código Civil mostra-se ineficaz – até mesmo por sua posição
hierárquica – de informar, com princípios estáveis, as regras contidas nos
diversos estatutos, não parece haver dúvida que o texto constitucional
poderá fazê-lo, já que o constituinte, deliberadamente, através de princípios
1
2
Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 256.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 7
41
41
e normas, interveio nas relações de direito privado, determinando,
conseguintemente, os critérios interpretativos de cada uma das leis
especiais. Recupera-se, assim, o universo desfeito, reunificando-se o
sistema.
Essa é a verdadeira ideia de constitucionalização do direito civil, ou seja, “é
o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do
direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação
pelos tribunais, da legislação infraconstitucional”1
Com efeito, os regimes de bens existentes no Código Civil Brasileiro são
regidos por diversos princípios, sendo alguns deles de ordem constitucional, tais
como o princípio liberdade ou da autonomia da vontade, o princípio
solidariedade
e
o
princípio
da
igualdade,
além
de
outros
de
da
ordem
infraconstitucional, a exemplo do princípio da variedade de regimes e da liberdade
convencional.
Entretanto, no presente trabalho serão abordados somente os princípios
utilizados para a solução dos problemas ora propostos, que envolvem a sucessão
do cônjuge e do companheiro.
Pelo princípio da liberdade convencional é garantido aos cônjuges ou
companheiros escolher livremente, salvo as exceções legais, o regime de bens sob
o qual pretendem se casar, na forma do artigo 1.639 do Código Civil 2.
De acordo com interpretação civil-constitucional dada ao supracitado
dispositivo, extraída do Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da
República3:
O regime de bens consiste no estatuto patrimonial do casamento que,
segundo o artigo 1.639, caput, é informado pela mais ampla liberdade de
escolha dos cônjuges, a quem a lei, em respeito à autonomia privada,
confere a faculdade de “estipular, quanto aos seus bens, o que lhes
aprouver.
De acordo com Caio Mário da Silva Pereira, “a liberdade de escolha tem
essencialmente em conta a circunstância de que os próprios cônjuges são os
melhores juízes na opção do modo como pretendem regular as relações econômicas
a vigorarem durante o matrimonio”4.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do direito civil. Brasília: Revista de Informação
Legislativa - Secretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, v. 36, p.100.
2
“Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o
que lhes aprouver.”
3
Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 256
4
PEREIRA, Caio Mário da Silva. apud Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina
Bodin de (orgs.) et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 256
1
42
42
Portanto, tendo em vista que os futuros cônjuges são as pessoas mais
capacitadas para escolher o regime que irá regular as suas relações patrimoniais e
seus bens, sejam os já existentes ou os que eventualmente vierem a adquirir, o
legislador houve por bem deixar a cargo deles essa escolha, salvo em algumas
exceções, como é o caso da imposição obrigatória do regime da separação de bens,
prevista no artigo 1.641 do Código Civil.
Já com status constitucional, tem-se o princípio da autonomia privada que
reforça a ideia acima discorrida de que os nubentes são livres para, dentro dos
limites impostos por lei, escolher o regime de bens que melhor lhes aprouver,
regime este que regulará o casamento.
Nas palavras de Luiz Felipe Brasil Santos1, o regime de bens, "em respeito
à autonomia da vontade dos cônjuges, tem sido tradicionalmente informado pelos
princípios da variedade dos regimes matrimoniais de bens, da livre estipulação e da
imutabilidade".
Enfim, tendo em vista que o regime de bens tem impacto direto sobre a
vida dos cônjuges, nada mais certo do que deixá-los optarem livremente acerca do
regime de bens sob o qual se casarão.
Já o Princípio da Solidariedade, que é o pilar mais forte que sustenta os
regimes de bens, terá singular importância para o presente estudo, pois traz a ideia
central de que todos os indivíduos que vivem em sociedade têm o dever de se
ajudar mutuamente. E esse dever mostra-se ainda mais latente em relação aos
cônjuges, ao passo que, ao optarem pelo matrimônio, estão escolhendo dividir,
com seus respectivos consortes, vitórias e derrotas saboreadas durante a
comunhão plena de vida.
A esse respeito, ensina Maria Celina Bodin De Moraes 2 que:
A expressa referência à solidariedade, feita pelo legislador
constituinte,
longe de representar um vago programa político ou algum tipo de
retoricismo, estabelece um princípio jurídico inovador em nosso
ordenamento, a ser levado em conta não só́ no momento da elaboração da
legislação ordinária e na execução das políticas públicas, mas também nos
momentos de interpretação-aplicação do Direito, por seus operadores e
demais destinatários, isto é, pelos membros todos da sociedade.3
A promoção do solidarismo, com a prática da cooperação, colaboração e
partilha entre as pessoas, tem como objetivo a garantia de uma sociedade mais
SANTOS, Luiz Felipe Brasil Santos. Autonomia da vontade e os regimes matrimoniais de bens. apud
WELTER, Belmiro Pedro; MADALENO, Rolf. Direitos Fundamentais do Direito de Família. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004, p. 211.
2
MORAES, Maria Celina Bodin. O Princípio da solidariedade. Disponível em:
<http://www.idcivil.com.br/pdf/biblioteca9.pdf > Acesso em 30.11.2013.
3
MORAES, Maria Celina Bodin. O Princípio da solidariedade. Disponível em: <
http://www.idcivil.com.br/pdf/biblioteca9.pdf > Acesso em 30.11.2013.
1
43
43
justa, conforme determina a Constituição Federal, com a consequente proteção da
dignidade das pessoas humanas.
Nesse sentido, o professor Pietro Perlingieri ensina que as situações
patrimoniais, tal como o casamento, que é um misto de relação existencial e
patrimonial, demandam a indispensável cooperação entre os seus partícipes. 1
Portanto, o princípio da solidariedade deve ser observado conforme
previsto na Constituição Federal, tendo a mesma aplicação nas relações privadas, e
em diversos campos do direito, como direito das obrigações, contratos, imobiliário
e, em especial, no direito de família.
1.2. O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS
O regime da comunhão parcial de bens, ou regime oficial, que é o regime
legal hoje aplicado, foi inserido no ordenamento jurídico pela Lei 6.515/77 e
mantido pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 1.640 2, no qual estabeleceu-se
que em não havendo convenção acerca do regime de bens sob o qual o casamento
foi realizado, ou sendo ela ineficaz ou nula, vigorará o regime da comunhão parcial
de bens.
Por este regime, nos termos do artigo 1.658 do Código Civil 3, comunicamse os bens adquiridos, por cada cônjuge, na constância do casamento, a título
oneroso, sendo incomunicáveis, porém, os bens adquiridos por cada cônjuge antes
da celebração do casamento, bem como os bens recebidos na constância do
casamento por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar, os adquiridos a
título gratuito ou com valores exclusivamente pertencente a um dos cônjuges em
sub-rogação dos bens particulares, os de uso pessoal, os proventos de trabalho
pessoal de cada cônjuge e as pensões e rendas semelhantes, conforme enumera o
artigo 1.659 do Código Civil4.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. Maria
Cristina De Cicco. 2.ed. São Paulo: Renovar, 2002, p. 121/122.
2
“Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os
cônjuges, o regime da comunhão parcial.”
3
“Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na
constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.”
4
“Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento,
por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação
dos bens particulares;
III - as obrigações anteriores ao casamento;
IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.”
1
44
44
Nas lições de Sílvio de Salvo Venosa1:
A ideia central no regime da comunhão parcial, ou comunhão de adquiridos,
como é conhecido no direito português, é a de que os bens adquiridos após
o casamento, s aquestos, formam a comunhão de bens do casal. Cada
esposo guarda para si, em seu próprio patrimônio, os bens trazidos antes do
casamento. É o regime legal, o que vigora nos casamentos sem pacto
antenupcial ou cujos pactos sejam nulos, vigente entre nós após a lei
introdutória e regulamentadora do divórcio (...).
Ou seja, no regime da comunhão parcial de bens “formam-se três massas
de bens: os bens do marido, os bens da esposa, e os bens comuns” 2.
Com efeito, o fato de o regime da comunhão parcial de bens ser o regime
legal aplicado hoje em caso de ausência de estipulação pelos cônjuges, regra esta
adotada pelo Código Civil de 2002, decorre da semelhança de ideias entre este
regime e a instituição do casamento.
Isto porque, o casamento é a comunhão plena de vida, razão pela qual
espera-se que os cônjuges, ao optarem pelo casamento, o façam com o intuito de
unir esforços para atingir o fim perseguido pelo casamento, que é a formação de
uma família e garantia da dignidade da pessoa humana. Verifica-se, na instituição
do casamento, forte presença do princípio da solidariedade.
E é essa ideia de solidariedade que circunda o regime da comunhão parcial
de bens, ao passo que, neste regime, tudo o que foi adquirido na constância do
casamento, ou seja os frutos da união de esforços do casal, independente do
esforço direito de cada cônjuge, será partilhado igualmente, sejam ativos ou
passivos – patrimônio ou dívidas.
Nesse sentido, ensina Rolf Madaleno3 que:
A solidariedade familiar faz pesar sobre a sociedade conjugal os custos que
surgem para a cobertura das suas necessidades, constituindo-se por isto,
em um passivo da sociedade nupcial, fazendo Vaz Ferreira uma descrição
exemplificativa do que seriam dívidas da sociedade conjugal e, portanto,
comunicáveis, em contraponto àquelas consideradas pessoais e
incomunicáveis. Como dívidas sociais tenham-se presentes aquelas
contraídas por contrato oneroso durante o casamento e em benefício da
família (...).
Esse raciocínio está presente no artigo 1.664 do Código Civil 4 que disciplina
que “os bens da comunhão respondem pelas obrigações contraídas pelo marido ou
VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil “Direito de Família” Vol. VI, 10ª Edição, Editora Atlas, 2010, p.
332.
2
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Op. Cit., p. 744.
3
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Op. Cit. p. 744
4
“Art. 1.664. Os bens da comunhão respondem pelas obrigações contraídas pelo marido ou pela mulher
para atender aos encargos da família, às despesas de administração e às decorrentes de imposição
legal.”
1
45
45
pela mulher para atender aos encargos da família, às despesas de administração e
às decorrentes de imposição legal. ”
Ainda seguindo a linha de pensamento do referido artigo, tem-se que “os
bens comuns do casal somente respondem pelas dívidas contraídas por qualquer
dos cônjuges, caso elas tiverem finalidade de atender aos encargos da família, além
de gastos inerentes à administração e imposição legal. Esta regra se justifica, em
sede constitucional, no princípio da solidariedade.” 1.
Portanto, o regime da comunhão parcial de bens, assim como a instituição
do casamento, tem como alicerce principal o Princípio da solidariedade, o qual traz
a ideia de que os cônjuges devem forças, se ajudando mutuamente e dividindo as
vitórias e derrotas inerentes ao casamento, e construam uma família.
1.3. O REGIME DA SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS
O regime da separação total de bens “caracteriza-se pela distinção dos
patrimônios dos cônjuges, que permanecem estanques, na propriedade, posse e
administração de cada um.”2.
A esse respeito, disciplina o artigo 1.687 do Código Civil que “estipulada a
separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um
dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus reais.”.
Nesse sentido, ensina Caio Mário da Silva Pereira3:
No regime de separação de bens, cada um dos cônjuges conserva a posse e
a propriedade dos bens que trouxer para o casamento, bem como dos que
forem a eles sub-rogados, e dos que cada um adquirir a qualquer título na
constância do matrimônio, atendidas as condições do pacto antinupcial.
A opção por este regime de bens também deve ser feita por meio de pacto
antinupcial, já tendo havido, inclusive, manifestação do Superior Tribunal de Justiça
nesse sentido4.
Há, ainda, a possibilidade de os nubentes mitigarem a separação dos bens.
Nesse sentido5:
Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 312.
2
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. V. Op. Cit., p. 242.
3
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. V. Op. Cit., p. 242.
4STJ, 3ª T, REsp. 141.062, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, julg. 26.06.2000.
5Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 342.
1
46
46
Os cônjuges podem optar por uma separação total ou parcial. Naquela,
também denominada de separação pura, não há comunicabilidade dos bens
adquiridos durante o casamento nem os anteriores; nesta há adoção
excepcional da comunicabilidade pelo que se aproxima do regime da
comunhão parcial. No entanto, o artigo 1.687 é lido como a separação pura.
Até aqui foi discorrido acerca da separação total de bens convencionada
entre as partes. Porém, há hipótese em que a separação de bens é obrigatória, ou
seja, dependendo das características dos nubentes, o único regime sob o qual eles
podem se casar é o da separação total de bens, conforme artigo 1.641 do Código
Civil1.
Este é o caso das pessoas maiores de setenta anos, bem como de todos os
que dependerem, para casar, de suprimento judicial, compreendendo aquelas
pessoas não emancipadas e menores de 18 anos, observando, exclusivamente,
neste último caso, que quando os cônjuges atingirem a maioridade, poderão alterar
o regime de separação obrigatória de bens para o que melhor lhes aprouver.
Uma vez dissolvida a sociedade conjugal, divisão patrimonial é simples.
Cabe a cada cônjuge o que é seu, adquirido por si, não havendo neste regime a
comunicação patrimonial.
A respeito da dissolução da sociedade conjugal, o Supremo Tribunal Federal,
na contramão da ideia central do referido regime de bens, editou o verbete 377 de
súmula firmando o entendimento de que “no regime da separação legal de bens
comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento. ”
Porém, não iremos nos ater, no presente capítulo, a análise, interpretação e
aplicação do referido verbete, pois este será o objeto de estudo do segundo
capítulo.
Quantos às dívidas, as adquiridas antes do casamento não se comunicam; já
as
adquiridas
na
constância
do
matrimônio,
responde
cada
cônjuge
individualmente. Conforme já dito no decorrer do presente estudo, as dívidas
contraídas para a aquisição de coisas necessárias à economia doméstica são de
responsabilidade de ambos os cônjuges, em razão da solidariedade existente, mas
já
asa
dívidas
particulares
contraídas
por
cada
cônjuge,
são
de
sua
responsabilidade.
1.2 O REGIME DE BENS APLICÁVEL À UNIÃO ESTÁVEL
1“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do
casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;
III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”
47
47
Antes da promulgação da Constituição Federal, a união estável, quanto ao
aspecto patrimonial, era vista como uma mera sociedade de fato, sendo certo que
em caso de término da sociedade, por qualquer motivo, o objetivo era a partição
patrimonial. A convivência de enquadrava no campo do direito obrigacional.
Porém, com o advento da CF, que, como já mencionado, reconheceu a
união estável como entidade familiar, a meação do patrimônio passou a ser devida
com base no princípio da solidariedade familiar, não tendo importância a
contribuição de cada consorte na formação do patrimônio para que este seja
partilhado.
Com isso, “as uniões estáveis passaram assim, definitivamente, para o
campo do direito de Família, que regula a existência de uma “sociedade de afeto, e
não mais de uma sociedade de fato”1.
Seguindo essa linha de raciocínio, antes da promulgação do Código Civil, o
Superior Tribunal de Justiça já se manifestava no sentido de que a concubina
supérstite, em comprovando ter contribuído indiretamente para a formação do
patrimônio, seja cuidando da casa, dos filhos ou apoiando o marido, teria direito à
meação do patrimônio adquirido na constância do casamento.
Tal entendimento se consolidou ao se julgar aplicável à união estável a
súmula n.º 377 do STF, “segundo a qual no regime de separação legal de bens
comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”2
No
referido julgamento,
o Ministro Carlos Alberto Menezes
Direito
consignou que:
(...) para os efeitos da súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal não se
exige a prova do esforço comum para partilhar o patrimônio adquirido na
constância da união. Na verdade, para a evolução jurisprudencial e legal, já
agora com o artigo 1.725 do Código Civil de 2002, o que vale é a vida em
comum, não sendo significativo avaliar a contribuição financeira, mas, sim, a
participação direta e indireta representada pela solidariedade que deve unir
o casal, medida pela comunhão de vida, na presença em todos os momentos
da convivência, base da família, fonte de êxito pessoal e profissional de seus
membros.3
Com efeito, o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.725 4, prescreveu que
na união estável, salvo estipulação contratual feita por escrito pelos companheiros,
aplica-se o regime da comunhão parcial de bens.
Ou seja, se nada for pactuado pelos companheiros, suas relações
patrimoniais serão regidas pelo regime da comunhão parcial de bens.
Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 438.
2
Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 438.
3
STJ, 3ª T., REsp 736.627, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes direito, julg. 11.04.2006.
4
“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações
patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”
1
48
48
Nesse sentido, ensina Gustavo Tepedino1:
“a natureza do regime de bens associa-se ao ato jurídico formal da
constituição da família, justificando-se a amplitude de seu espectro de
incidência na vida patrimonial dos cônjuges em razão da publicidade
derivada do registro do ato matrimonial no cartório competente, em favor da
segurança de terceiros.”
O Código Civil estabeleceu, ainda, que os companheiros podem estabelecer
por contrato de forma escrita, denominado pacto de convivência, suas relações
patrimoniais, sendo
certo que
o
pacto
de convivência, além
de relações
patrimoniais, também pode regular algumas questões inerentes às relações
patrimoniais, nos termos e limites do pacto antenupcial.
O pacto de convivência pode ser alterado a qualquer tempo, até mesmo
para alterar o regime de bens, sem que seja necessária a conversão da união
estável para casamento, aplicando-se supletivamente o artigo 1.639, §2º do CC.
O momento em que mais se verifica a relevância do pacto de convivência é
o da dissolução da união estável, pois facilita a partilha de bens do casal.
2. OS REFLEXOS SUCESSÓRIOS DO REGIME DE BENS
Como visto, os regimes de bens acima estudados têm suas singularidades
quanto à divisão dos bens em caso de dissolução da sociedade conjugal, seja por
morte ou por vontade dos cônjuges e companheiros, o que influencia diretamente
na forma como serão partilhados com os herdeiros do de cujus.
No presente capítulo, serão demonstrados os reflexos dos regimes de bens
no direito sucessório e a importância do regime de bens escolhido pelos cônjuges
ou companheiros no momento da sucessão mortis causa.
Serão expostas, ainda, as problemáticas acerca da sucessão do cônjuge e
do companheiro, bem como as soluções vislumbradas resultantes de uma
interpretação civil-constitucional.
2.1 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO SUCESSÓRIO E A SUA RELAÇÃO
COM O REGIME DE BENS.
1
TEPEDINO, Gustavo. Controvérsias sobre a tutela sucessória do cônjuge e do companheiro. Em:
http://ojs.unifor.br/index.php/rpen/article/viewFile/2279/pdf, acesso em 25.09.2014, p. 61.
49
49
O Direito Sucessório é um importante ramo do direito civil-constitucional
que regula a sucessão dos bens deixados pelo de cujus aos seus herdeiros. O
direito de herança foi consagrado constitucionalmente no artigo 5º, inciso XXX 1, da
Constituição Federal, gozando, portanto, de status de direito fundamental.
Comentando sobre o inciso XXX do artigo 5º da CF, Judith Martins-Costa2
ensina que:
A herança é instituto jurídico a que a constituição apõe o selo da garantia,
conferindo-lhe a “nota de fundamentabilidade”. Portanto, a garantia
mencionada no inciso XXX é uma garantia institucional cujo o âmbito de
proteção é estritamente normativo, cabendo ao legislador ordinário
determinar a amplitude, a conformação, o conteúdo, e os modos de
exercícios do direito, sendo a sua atuação indispensável para a própria
concretização do instituto da herança. São Destinatários do inciso XXX o
estado e a generalidade dos cidadãos. (...)
O Direito de Herança é uma importante ferramenta para que o patrimônio
construído em vida por um indivíduo não saia de sua esfera patrimonial e vá para o
poder
do
Estado,
caracterizando,
assim,
verdadeira
afronta
ao
direito
de
propriedade do de cujus.
Nesse sentido, ensina Ana Luiza Maia Nevares 3 que “objetiva-se, com esta
garantia, impedir que a sucessão mortis causa seja suprimida do ordenamento
jurídico com a consequente apropriação pelo Estado dos bens do indivíduo após a
sua morte”.
Portanto, sendo assegurado constitucionalmente como direito fundamental,
o direito à herança jamais será suprimido do ordenamento jurídico, sendo garantida
a transferência do direito patrimonial em favor dos herdeiros do de cujus, sejam os
legítimos ou os testamentários4.
A esse respeito, Luiz Paulo Vieira de Carvalho 5 assevera que “quando a
pessoa é chamada ao mundo espiritual como consequência de fato natural
ordinário, a morte, o direito patrimonial transmissível que lhe pertencia não se
perde, apenas se desloca em favor de outra pessoa ou pessoas, continuando a
existir. ”
“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXX - é garantido o direito de herança; (...)”
2
MARTINS-COSTA, Judith. Comentário ao artigo 5º, inciso XXX. In: Canotilho, J.J. Gomes; Mendes,
Gilmar Ferreira; Sarlet, Ingo Wolfgang; Streck, Lenio Luiz (Coords.) Comentários à Constituição do
Brasil. São Pulo: Saraiva/Almedina, 2013. P.338.
3
NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade
constitucional. Op. Cit., p. 32.
4
“Art. 1.786 – A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade.”
5
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Atlas, São Paulo, 2014. p. 20.
1
50
50
Por esta razão, o direito sucessório é fundado na garantia constitucional do
direito à propriedade privada, prevista no artigo 5º, caput, XXII e XXIII1, que traz a
ideia de que os bens que um indivíduo possuiu em vida, após a sua morte, não
serão transferidos ao Estado, mas sim aos seus herdeiros, parentes mais próximos,
que, provavelmente, dividiram com o falecido as expectativas e frustações
saboreadas durante a vida e na construção do patrimônio.
Na mesma linha pondera Ana Luiza Maia Nevares 2 que: “Argumenta-se que
a inexistência do direito de herança numa sociedade em que não impera um
integral
coletivismo
da
propriedade,
levaria
a
um
consumo
desenfreado,
desestimulando a poupança. ”
E tal ponderação se explica no fato de que um indivíduo, em vida, sabedor
que após a sua morte seu patrimônio será integralmente transferido para o Estado,
certamente não irá acumular riqueza, mas sim realizar todo o seu patrimônio em
vida, consumindo de forma desmedida e deixando de poupar.
Acrescenta a referida doutrinadora3:
Além disso, segundo Marco Campoti, a transmissão dos bens para o Estado
criaria situações instáveis quanto à continuidade das relações jurídicas do
finado. Ainda nas suas lições, “todos os ordenamentos jurídicos antigos e
modernos preveem largamente o instituto da sucessão hereditária, seja pelo
reconhecimento da propriedade provada, que não cessa com a morte do
proprietário, seja pela necessária continuação para além da morte das
relações jurídicas econômicas, com uma regra de certeza no tempo quanto
ao adimplemento das obrigações.
Além disso, o direito sucessório tem um papel de “dirimir conflitos
familiares no universo onde repousavam as relações íntimas e fraternas do agora
falecido”4 ao disciplinar e distribuir o patrimônio por ele deixado, na forma da lei ou
de acordo com testamento, caso haja.
Tratando a matéria sob a perspectiva civil-constitucional, ensina Luiz Paulo
Vieira de Carvalho:
Efetivamente, o direito Sucessório justifica-se como significativo ramo do
Direito Civil-constitucional, a enfeixar, majoritariamente, um conjunto de
regras de ordem pública, imperativas, bem como, em menor proporção, de
regras dispositivas, isto é, supletivas, da vontade particular. Todas elas,
contudo, são indispensáveis à consecução dos objetivos supramencionados,
ao disciplinarem o que e a quem os bens, direitos e obrigações,
anteriormente na titularidade do hereditando, serão dirigidos.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; (...)”
2
NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade
constitucional. Op. Cit., p. 32.
3
NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade
constitucional. Op. Cit., p. 32.
4
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Atlas, São Paulo, 2014, p. 20.
1
51
51
Ademais, a garantia constitucional ao direito de herança, prevista no inciso
XXX do art. 5º da CF, é conexa com outras garantias princípios e direitos
constitucionais, como, por exemplo, o direito à liberdade, em relação ao de cujus
de dispor de seu patrimônio e escolher livremente a quem caberá o benefício de
receber parte de seu patrimônio.
Nesse sentido, veja-se mais uma vez as palavras de Judith Martins-Costa1:
A garantia do direito de herança está em conexão com outras garantias,
princípios e direitos fundamentais, como, nomeadamente, o direito à
liberdade (art. 5º, caput) e o princípio da autodeterminação pessoal,
subjacente aos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana e da
livre iniciativa (art. 1º, III e IV, art. 170, II, quanto à livre iniciativa
econômica), bem como a garantia ao direito de propriedade (art. 5º XXXII).
Não obstante a constituição garanta o direito de herança, inclusive como
garantia fundamental, conforme demonstrado acima, é certo que ela não
regulamentou a sucessão mortis causa, cabendo, portanto, ao legislador ordinário
esta tarefa.
Foi assim que o Código Civil de 2002 regulamentou a matéria no seu título
V, denominado “direito das sucessões”, delimitando o “conteúdo do direito de
herança, bem como a forma como esse direito é exercido e os limites que o
conformam.”2
Conclui-se,
portanto,
que
a
sucessão
hereditária,
com
assento
constitucional no inciso XXX da CF, tem fundamento constitucional no direito à
propriedade privada, bem como no direito à liberdade, direitos fundamentais da
dignidade
da
pessoa
humana
e
da
livre
iniciativa
e
no
princípio
da
autodeterminação pessoal.
Logo, é evidente a íntima relação existente entre o regime de bens e o
direito sucessório, ao passo que o regime de bens disciplina como serão partilhados
os bens do casal, em relação ao cônjuge ou companheiro supérstite, e o direito
sucessório tem a função de regulamentar a sucessão dos bens deixados pelo
falecido.
Nesse sentido, Ana Luiza Nevares3 ensina que:
Na concorrência com os descendentes, o Código Civil de 2002 estabelece
mais um requisito para compor o direito hereditário do cônjuge. Trata-se do
MARTINS-COSTA, Judith. Comentário ao artigo 5º, inciso XXX. In: Canotilho, J.J. Gomes; Mendes,
Gilmar Ferreira; Sarlet, Ingo Wolfgang; Streck, Lenio Luiz (Coords.) Comentários à Constituição do
Brasil. Op. Cit., p.340.
2
MARTINS-COSTA, Judith. Comentário ao artigo 5º, inciso XXX. apud Canotilho, J.J. Gomes; Mendes,
Gilmar Ferreira; Sarlet, Ingo Wolfgang; Streck, Lenio Luiz (Coords.) Comentários à Constituição do
Brasil. Op. Cit., p.340.
3
NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade
constitucional. Op. Cit., p. 160.
1
52
52
exame do regime de bens do matrimonio (CC/02, art. 1.829, I). Como já
afirmado é possível graduar a tutela sucessória do cônjuge a partir do
regime de bens do casamento.
Com efeito, nota-se a importância do regime de bens para o direito
sucessório, ao passo que com a escolha do regime, o falecido manifestou sua
vontade, inclusive, acerca da sucessão. Logo, se o de cujus optou por este ou
aquele regime de bens devem ser observadas, no momento da sucessão, as ideias
e regras do regime escolhido, respeitando, assim, a vontade do falecido.
Portanto, os efeitos do regime de bens escolhidos pelo casal, em vida,
devem persistir após a morte de um dos cônjuges, caracterizando a ultratividade do
regime de bens, influenciando decisivamente na concorrência sucessória entre
descendentes do de cujus e o cônjuge sobrevivente.
Necessário consignar que existem doutrinadores que entendem de forma
diversa, ou seja, entendem pela divisão e não pela comunicação desses dois ramos
do direito, ao passo que, para eles, com a morte, se encerra as vontades
manifestadas pelo de cujus em vida.
Para essa corrente, a escolha do regime de bens é ato praticado inter vivos
e, portanto, tem seus efeitos encerrados no momento da morte, pouco importando
as vontades manifestadas pelo morto, em vida, no momento da sucessão.
Nesse sentido, veja-se o entendimento de Luiz Paulo Vieria de Carvalho1:
(...) somos da opinião que a escolha do regime de bens, sendo ato inter
vivos só produz efeitos patrimoniais em vida dos declarantes. Rompido o
vínculo matrimonial pela morte de um dos cônjuges (art. 1.571, caput,
inciso I e parágrafo único do CC) cessam os efeitos da referida escolha e,
desse modo entendemos não possa influenciar as regras pertinentes à
ordem de vocação hereditária, de ordem pública e, portanto, de caráter
imperativo.
Repita-se
que
não
concordamos
com
esse
posicionamento,
mas
acreditamos que as declarações feitas em vida, quando da escolha do regime
patrimonial do casamento, produzem, sim, efeitos após a morte de um dos
declarantes, o que comprova a importância do regime de bens para a sucessão do
cônjuge e do companheiro.
Demonstrados os fundamentos constitucionais do direito sucessório, a
próxima relação entre o regime de bens e o direito sucessório, bem como os
reflexos que um tem no outro, passa-se a analisar a sucessão do cônjuge e do
companheiro, sob a ótica do direito civil- constitucional.
1
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 379.
53
53
2.2 SUCESSÃO DO CÔNJUGE
Para melhor compreensão acerca das discussões que giram em torno da
sucessão do cônjuge, necessário tratarmos dos seus direitos sucessórios no Código
Civil de 1916, bem como no Código Civil de 2002, passando pelas evoluções e
traçando as principais diferenças.
No Código Civil de 1916, em seu artigo 1.611 1, era determinado que na
falta de descendentes ou ascendentes seria deferida a sucessão do cônjuge
sobrevivente, se, na data da morte do outro cônjuge, a sociedade conjugal
estivesse vigente, ou seja, ainda não tivesse sido dissolvida, sendo certo, portanto,
que no anterior código, “os herdeiros necessários eram apenas os descendentes e
os ascendentes. ”2
Previa, ainda, o Código Civil de 1916, no artigo 1.725 3, que a sucessão do
cônjuge supérstite somente ocorreria na ausência de testamento deixado pelo de
cujus que o excluísse da herança.
Isto porque, o referido código não outorgava ao cônjuge status de herdeiro
necessário, mas sim de herdeiro facultativo.
A esse respeito, ensina Ana Luiza Maia Nevares 4 que “nesta hipótese,
receberá o cônjuge toda a herança, ou a parte não contemplada em testamento,
em propriedade plana, não importando o regime de bens em que era casado com o
falecido.”
Dessa forma, eram pressupostos para a sucessão legítima do cônjuge a
existência de casamento válido, bem como que não tenha havido dissolução da
sociedade conjugal ao tempo da morte.
Em relação ao primeiro pressuposto, comenta Ana Luiza Nevares 5 que “é
preciso recordar que o casamento putativo autoriza a sucessão do cônjuge de boafé, se a morte de um deles tiver ocorrido antes da sentença anulatória, uma vez
que esta não terá efeitos retroativos”. Portanto, caso haja boa-fé somente por
parte de um dos cônjuges, somente este terá direito à sucessão.
Quanto
ao
segundo
pressuposto,
há
divergências
doutrinárias
e
jurisprudenciais no tocante ao momento da dissolução da sociedade conjugal. Isto
porque, discute-se a possibilidade de o cônjuge separado de fato, hipótese em que
“Art. 1.611. À falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente,
se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal.”
2
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 320.
3
“Art. 1.725. Para excluir da sucessão o cônjuge ou os parentes colaterais, basta que o testador
disponha do seu patrimônio, sem os contemplar.”
4NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade
constitucional. Op. Cit., p. 80.
5NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade
constitucional. Op. Cit., p. 80.
1
54
54
apesar da separação fática ainda não houve a dissolução da sociedade conjugal
pelo divórcio, suceder ao outro.
Então veio o Código Civil de 2002 e trouxe em seu texto importantes
alterações no que diz respeito à sucessão do cônjuge.
Não obstante o artigo 1.8291 do Código Civil tenha determinado,
preferencialmente, a sucessão legítima em favor dos descendentes e ascendentes,
o mesmo introduziu duas significativas alterações
em
relação
à
sucessão
hereditária do cônjuge.
A primeira alteração encontra-se nos incisos I e II do referido artigo, na
qual extrai-se que o cônjuge sobrevivente passou a concorrer com os descendentes
do autor da herança, dependendo, no entanto, do regime matrimonial de bens sob
o qual o de cujus e a supérstite foram casados ou do regime imposto pela
legislação. No inciso II do referido artigo, tem-se que, “na falta de descendentes,
independentemente do regime de bens, passou a concorrer com os ascendentes
daquele, figurando, por fim, solitariamente no inciso III, recolhendo a herança
legítima como único titular na falta de tais descendentes e ascendentes.” 2
Já a segunda, e mais significativa, delas encontra-se no artigo 1.845 do
Código Civil3, que inseriu o cônjuge sobrevivente na condição de herdeiro
necessário, ao lado dos descendentes e ascendentes do autor da herança, ao
inverso do código civil de 1916 que considerava o cônjuge supérstite como herdeiro
facultativo.
Com isso, “privilegiou o legislador a colaboração, a solidariedade e a
dedicação do consorte, presumindo a sua participação na construção do patrimônio
familiar”4.
A inovação trazida pelo Código Civil de 2002 é de grande valia, pois, com
ela, foi conferido aos cônjuges o benefício da legítima, que consiste na porção de
50 % do patrimônio que o testador não pode testar ou doar, uma vez que esta
pertence aos herdeiros necessários5.
Nas lições de Luiz Paulo Vieira de Carvalho6:
1“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido
no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo
único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens
particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.”
2CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 320.
3
“Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.”
4
Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 634.
5
DINIZ, Maria Helena. (Coord.) Sucessão do cônjuge, do companheiro e outras histórias. São Paulo:
Saraiva. 2014. P. 11
6
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 322.
55
55
Pelo exposto supra, verifica-se que, se o inciso I do artigo 1.829 atribuiu ao
cônjuge supérstite concorrência sucessória com os descendentes do falecido,
ao mesmo tempo excepcionou tal concorrência ao subordiná-la ao regime de
bens escolhido ou imposto legalmente ao ex-casal, em princípio, segundo os
especialistas, com base na afirmação de que “quem meia não herda, quem
herda não meia”, ou seja, aquela que já encontrava aparado
economicamente pela meação obtida em vida advinda do regime
matrimonial de bens, não deve concorrer à herança com os descendentes do
morto, geralmente forças mais novas, presumidamente mais necessitadas
de proteção patrimonial.
Desse modo, embora o Código Civil de 2002 tenha inovado ao atribuir ao
cônjuge supérstite a qualidade de herdeiro necessário, concorrendo, assim, com os
demais herdeiros, essa inovação foi limitada pelo legislador. Isto porque, a
concorrência do cônjuge supérstite com os demais herdeiros está subordinada ao
regime de bens sob o qual o supérstite e o de cujus foram casados.
2.2.1 A discussão acerca da sucessão do cônjuge casado sob o regime da
separação de bens
De início, não obstante já tenha sido falado no tópico acima destinado ao
regime da separação de bens, necessário esclarecer que o regime da separação de
bens pode decorrer da vontade dos nubentes ou por imposição legal, nos termos do
art. 1.641 CC.
Cabe frisar, ainda, que no caso da separação convencional de bens, os
nubentes podem optar por “uma separação pura, onde não há comunicabilidade
dos bens adquiridos na constância do casamento nem os anteriores” ou por uma
parcial, onde “há adoção excepcional da comunicabilidade, pelo que se aproxima do
regime da comunhão parcial”1.
No entanto, doutrina e jurisprudência têm dado diferentes interpretações
ao artigo 1.687 do Código Civil, havendo divergência acerca da comunicabilidade
dos bens adquiridos pelos cônjuges casados sob o regime da separação de bens.
A divergência, no tocante ao regime da separação legal ou obrigatória de
bens, gravita em torno da possibilidade de se atribuir ao cônjuge casado sob este
regime de bens a qualidade de meeiro e herdeiro dos bens deixados pelo de cujus.
Em relação à possibilidade de meação, pelo supérstite, dos bens adquiridos
pelo casal na constância do casamento, a discussão é calorosa. A comunicabilidade
dos bens adquiridos por cada consorte casado sob o regime da separação legal de
1
56
Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 343.
56
bens, na constância da união, é muito discutida “já que sua característica é a
completa separação de patrimônio dos dois cônjuges (...). Logo, há dúvidas se a
comunicabilidade se restringe não só aos bens anteriores como aos adquiridos
posteriormente ao casamento.”1
Parte dos civilistas entende que não há qualquer tipo de comunicabilidade,
se apoiando nos argumentos de que o cônjuge, quando da elaboração do pacto
antinupcial, assim quis, vontade que deve ser respeitada após a sua morte e que o
Código Civil claramente disciplina a impossibilidade de comunicação patrimonial.
Por outro lado, em corrente que vem demonstrando-se majoritária, há os
que entendem que os bens adquiridos após o casamento, a título oneroso, devem
compor uma massa comum de bens do casal, fazendo jus o supérstite à proporção
de 50% destes. Se apoia essa parcela dos estudiosos nos princípios da dignidade da
pessoa humana e da solidariedade.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal de Federal editou o verbete 377 de
Súmula segundo o qual “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os
adquiridos na constância do casamento".
Naturalmente, em interpretação literal do texto inserido na lei civil em
vigor, se extrai que não haveria, em regra, comunicação nos aquestos. No entanto,
a fim de imprimir maior flexibilização ao sistema de separação ordenado por lei e
pôr fim às controvérsias acerca da comunicabilidade dos bens adquiridos durante o
casamento, realizado sob o regime da separação total de bens, o STF, após
reiterados decisões no mesmo sentido, consolidou seu entendimento com a edição
da Súmula 377.
Quanto à vocação hereditária do cônjuge casado sob o regime da
separação legal de bens, resta claro no texto do artigo 1.829 do CC o entendimento
de que (i) caso haja descendentes, o cônjuge sobrevivente não será considerado
herdeiro; (ii) no caso de o falecido deixar apenas ascendentes, o cônjuge supérstite
terá direito à herança na mesma proporção que os ascendentes; e (iii) já no caso
de o de cujus não deixar nem descendentes e ascendentes, o cônjuge sobrevivente
receberá a herança em sua totalidade.
Tais regras, contudo, também são objeto de discussões judiciais, inclusive
considerando o posicionamento da citada súmula 377 do STF, ao passo que, para
parte dos estudiosos, os bens dos cônjuges casados sob o regime da separarão
legal de bens se comunicam, devendo o supérstite ser, também, considerado
herdeiro em concorrência com os descendentes.
1
Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 264.
57
57
Nesse sentido, defende Luiz Paulo Vieira de Carvalho1:
Em nosso entender, a restrição sucessória à concorrência hereditária do
cônjuge sobrevivente com os descendentes do falecido em comento é
absurda, pois, além de ferir o princípio basilar do sistema sucessório de
proteger os familiares sobreviventes do falecido, só terá sentido se
aceitarmos a subsistência da súmula 377 do STF (...) sob pena de eixar em
desamparo, in concreto, o cônjuge supérstite, especialmente o do lar que,
em regra, não amealhou nem dispõe de patrimônio próprio.
Para Maria Berenice Dias, a vinculação do regime sucessório ao regime de
bens escolhido pelo casal é inconstitucional, pois havia a proteção não isonômica e
fora de razoabilidade. A referida doutrinadora critica veementemente a exclusão do
cônjuge casado sob o regime da separação legal da sucessão. 2
Entretanto, há parcela doutrinaria e jurisprudencial que entende ser
necessário o esforço comum de ambos os cônjuges na construção patrimonial para
que ocorra a referida comunicação dos bens. Ou seja, hoje em dia a divergência
está na continuidade ou não da aplicação do verbete 377 do STF.
Já com relação ao regime da separação convencional de bens, a discussão
envolve a comunicabilidade dos bens amealhados durante a relação conjugal, tendo
em vista a ausência de previsão legal, o que abre margem a diferentes
interpretações.
Alguns entendem ser aplicável, por analogia, o entendimento do Supremo
Tribunal Federal, firmado por meio do verbete de Súmula nº 377 3, no sentido de
que os bens adquiridos durante a união, também no regime da separação
convencional de bens, devem ser amealhados pelos cônjuges em caso de divórcio e
sucessão, e aqueles adquiridos antes da união, pertencem exclusivamente àquele
que o adquiriu.
Discute-se “se haveria sociedade de fato entre os cônjuges quando a
aquisição de determinado patrimônio tiver recebido o concurso de recursos
financeiros de ambos”4.
O Superior Tribunal de Justiça afastou a incidência do verbete 377 da
súmula do STF quando o regime de bens do casal é o da separação convencional,
não admitindo sequer o reconhecimento de uma sociedade de fato. A esse respeito,
consignou o ministro Humberto Martins que “A Cláusula do pacto antenupcial que
exclui a comunicação dos aquestos impede o reconhecimento de uma sociedade de
1CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 323.
2DIAS, Maria Berenice – Filhos, bens e amor não combinam! Disponível em
:<http://www.mbdias.com.br, acesso 23.nov.2013.
3 Sum. 377 - No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do
casamento.
4Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 342.
58
58
fato entre marido e mulher para o efeito de dividir os bens adquiridos após o
casamento”1.
Nesse mesmo sentido, Fabio Ulhôa Coelho2 ensina que:
Quando adotado o regime da separação de bens, o casamento não produz
nenhum efeito patrimonial. Cada cônjuge continua exclusivo titular de bens
e nenhum deles tem direito a qualquer meação sobre os do outro, ainda que
adquiridos na constância do casamento a qualquer título, com ou sem
contribuição do casal. Da inexistência de direito à meação não decorre
nenhum enriquecimento indevido, nem mesmo quando os dois cônjuges
contribuíram para a aquisição do bem registrado ou documentado somente
em nome de um deles.
Em sentido contrário, há os que entendem que, não obstante os cônjuges
adotem o regime da separação total de bens, é cabível ao supérstite o direito ao
montante de 50% do patrimônio amealhado durante o casamento, isto quando
comprovada a contribuição de ambos para a aquisição do patrimônio, sob pena de
enriquecimento ilícito de um cônjuge em detrimento do outro3.
Já em relação ao direito de herança, também há divergência doutrinaria e
jurisprudencial, porquanto parte da doutrina entende que o cônjuge casado sob o
regime da separação convencional de bens não é herdeiro concorrente com os
descendentes do falecido, sob o argumento o legislador ao utilizar a expressão
“separação obrigatória de bens” no inciso I do art. 1.829 do Código Civil, estaria
também se referindo a expressão convencional de bens.
Nesse sentido, defende Miguel Reale que:
A obrigatoriedade da separação de bens é uma consequência necessária do
pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão “separação obrigatória”
aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do art.1.641. Essa
minha conclusão ainda mais se impõe ao verificarmos que – se o cônjuge casado no
regime da separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da
herança – estaríamos ferindo substancialmente o disposto no art. 1.687, sem o
qual desapareceria todo o regime da separação de bens.
Em sentido contrário, outra parte da doutrina e jurisprudência entende que
haverá concorrência sucessória entre cônjuge casado sob o regime da separação
convencional de bens e os descendentes do de cujus.
A esse respeito, doutrina Luiz Paulo Vieira de Carvalho4:
Haverá concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente casado sob o
regime da separação convencional, com os descendentes do falecido,
STJ, 3ª T., REsp 404.088, Rel. para cordão Min. Humberto Gomes de Barros, julg. 17.04.2007
COELHO, Fabio Ulhôa. apud Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin
de (orgs.) et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 343.
3
TJRJ, 7ª C.C. Ap. Civ. nº 70016610651, Rel Des. Maria Berenice Dias, julg. 11.04.2007.
4
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 322.
1
2
59
59
independentemente da situação fática, mesmo porque, a uma, de maneira
expressa o legislador só exclui da concorrência sucessória o cônjuge que fora
casado sob o regime da separação legal ou obrigatória e não da separação
volitiva. (...) A duas, porquanto antenupcial é negócio jurídico intervivos,
com efeitos limitados a disciplinar os efeitos patrimoniais decorrentes do
casamento dos pactuantes, não sendo cabível produzir, desse modo, eficácia
ulterior a morte de qualquer dos nubentes, ocasião em que o vínculo
matrimonial é rompido.
De acordo com a corrente doutrinária e jurisprudencial que entende carecer
o cônjuge de direitos sucessórios sobre o patrimônio deixado pelo de cujus, o
cônjuge que se casou sob o referido regime de bens, quis, quando da celebração do
casamento, não fundir seu patrimônio com o de seu consorte em nenhum momento
de sua vida.
Desse modo, para a primeira corrente, não haveria possibilidade de o
sobrevivente concorrer com os demais herdeiros do de cujus, pois a vontade deste
deve prevalecer após a sua morte.
De outro lado, para os estudiosos que compõem a segunda corrente, há
possibilidade de o cônjuge sobrevivente concorrer com os demais herdeiros, uma
vez que, ainda que o regime adotado pelo casal tenha sido o da separação total de
bens, onde não se comunicam os bens de cada consorte, houve uma comunhão de
vida entre o casal, sendo certo que, a princípio, ambos se ajudaram mutuamente
durante a vida, sendo, assim, garantido ao sobrevivente o direito a concorrer com
os demais herdeiros.
2.2.1.1 Solução sob a ótica do direito civil-constitucional
Em síntese, os problemas resultantes de discussões doutrinárias e
jurisprudenciais, para os quais serão propostas soluções interpretativas no presente
tópico, são o direito à meação e sucessão do cônjuge sobrevivente (i) casado sob o
regime da separação legal de bens; e (ii) casado sob o regime da separação
convencional de bens.
Com o regime da separação legal de bens, previsto no art. 1.641, incisos I,
II e III, o legislador buscou proteger os nubentes que tenham se consorciado em
determinadas situações jurídicas que os deixem mais suscetíveis de serem
ludibriadas em relação aos seus bens, de modo a ser evitado, por exemplo, o
famoso “golpe do baú”.
Esse regime busca evitar, a exemplo do inciso II, que pessoas com idade
avançada possam se unir em matrimonio sob o regime da comunhão parcial de
bens, impedindo que aproveitadores possam se aproximar e vir a se casar com
idosos perseguindo o único fim de se beneficiar economicamente.
60
60
Importante frisar que a preocupação do legislador foi tamanha, que por
meio artigo 977 do Código Civil1 foi vedado aos cônjuges casados sob o referido
regime constituírem sociedade entre si e com terceiros.
No entanto, o regime da separação obrigatória de bens, fere o princípio da
liberdade de escolha do regime de bens, já estudado, bem como o princípio da
igualdade substancial, proibição de discriminação por forca da idade, bem como
dignidade da pessoa humana.
Ou seja, a interpretação literal do dispositivo, se por um lado protege o
patrimônio de uma pessoa, por outro fere princípios constitucionais e direitos
fundamentais desta mesma pessoa. Com isso, há uma preocupação com o
patrimônio da pessoa, o que deveria partir dele e não ser uma imposição
legislativa, em detrimento de princípios constitucionais e direito constitucionais
fundamentais.
Com efeito, na busca de mitigar a separação dos bens nesses casos e, com
isso, homenagear a aplicar, na interpretação do art. 1.641 CC, os princípios
constitucionais e infraconstitucionais acima referidos, afastados pelo legislador
ordinário, além de evitar o enriquecimento sem causa, o STF, atendendo o clamor
da doutrina, passou a entender pelo direito do cônjuge supérstite, casado sob o
referido regime de bens, à meação dos bens adquiridos na constância do
casamento, chegando a editar o verbete 377 da Súmula.
Gustavo Tepedino afirma que “numa posição intermediária, a sumula
persiste em relação aos incisos I e II do art. 1.641 do CC, para atender ao princípio
da solidariedade, o que não se justifica em relação ao inciso II, o qual está em
desapreço ao princípio da igualdade, positivado no art. 5º, caput, da CR”2.
E essa, a nosso sentir, é a melhor interpretação do dispositivo em análise,
enxergando-o dentro do sistema jurídico em que está inserido, e não isoladamente,
bem como reconhecendo a importância dos princípios constitucionais na sua
interpretação e, via de consequência, aplicando-os. A respeito da interpretação dos
dispositivos infraconstitucionais, observa Gustavo Tepedino3:
No caso brasileiro, a introdução de uma nova postura metodológica, embora
não seja simples, parece facilitada pela compreensão, mais e mais difusa, do
papel dos princípios constitucionais nas relações de direito privado, sendo
certo que doutrina e jurisprudência têm reconhecido o caráter normativo de
princípios como o da solidariedade social, da dignidade da pessoa humana,
“Art 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não
tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.”
2
TEPEDINO, Gustavo. apud Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de
(orgs.) et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 266.
3
TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma
reforma legislativa. Em http://www.tepedino.adv.br/wp/wp-content/uploads/2012/09/biblioteca10.pdf.
Acesso em 05.08.2014.
1
61
61
da função social da propriedade, aos quais se tem assegurado eficácia
imediata nas relações de direito civil.
Nesse sentido, entendendo pela aplicação dos princípios constitucionais
para a solução da questão, na mesma linha de raciocínio adotada pelo STF, a qual
estamos a defender, a Desembargadora Maria Berenice Dias consignou em um
acórdão de sua lavra1:
A jurisprudência deste Tribunal já é remansosa quanto à aplicação da
Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal aos casamentos celebrados pela
separação obrigatória de bens, visando à inocorrência de enriquecimento
ilícito de um cônjuge em detrimento de outro e à justa e equânime partilha
do patrimônio adquirido mediante o esforço comum, e que muitas vezes são
registrados apenas no nome de um dos cônjuges. Assim, partilham-se os
aquestos considerando a comunhão de esforços existentes num casamento excluídos os bens sub-rogados ou doados -, comunhão está baseada no
afeto, companheirismo e dedicação, sendo de todo despicienda a
necessidade da prova da contribuição financeira por parte dos cônjuges
Se os cônjuges optaram pelo matrimônio, que, como visto acima,
independente do regime de bens adotado, pressupõe a existência de comunhão
plena de vida, solidariedade, união buscando realizações pessoal e constituição de
família, é natural que, com a morte, o cônjuge supérstite possa partilhar os bens
adquiridos em vida por ambos.
Nesse sentido, Luiz Paulo Vieira de Carvalho2:
Este é em nosso sentir, até os dias atuais, o melhor posicionamento.
Consoante decisões jurisprudenciais, em especial no âmbito da 3ª Turma do
STJ, para que o cônjuge não adquirente do bem aquesto se torne
coproprietário deste, não há necessidade da prova do esforço em comum,
uma vez que, estando presentes na referida Súmula os princípios da
comunhão parcial, a comunhão dos aquestos é automática, por forca de
presunção absoluta de colaboração para a aquisição entre os cônjuges.
Fazemos a ressalva de que, logicamente, embora não seja necessária a
prova de esforço comum para que o supérstite tenha direito à meação dos bens
adquiridos durante a constância do casamento, cabe ao julgador, caso a caso,
analisar se há indícios de fraude por parte do supérstite, levando em consideração,
principalmente, o tempo que perdurou a relação.
No entanto, embora o sobrevivente seja meeiro dos bens adquiridos na
constância do casamento, não concorrerá com os herdeiros do de cujus na
sucessão dos bens havidos antes da celebração do casamento, bem como na
metade dos bens amealhados.
Isto porque, o artigo 1.829, inciso I, assim dispõe, e embora haja
divergência nesse sentido, a solução não guarda maiores mistérios. O supérstite,
1
2
62
TJRS, 7ª CC, AC 70007503766, Rel. Des. Maria Berenice Dias, julgado em 17.12.2013.
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 322.
62
como visto, de acordo com a solução proposta acima, ostenta a qualidade de
meeiro, fazendo jus a 50 % dos bens adquiridos na constância do casamento.
Portanto, não ficará desassistido o supérstite, ao passo que já recebeu o
que lhe era de direito em razão da meação dos bens adquiridos quando da
constância do casamento, sendo, dessa forma, devidamente observado o princípio
constitucional da solidariedade.
Ademais, essa forma de sucessão do cônjuge está de acordo com o
princípio que teria sido adoto pelo legislador ordinário, segundo o qual “quem meia
não herda, quem herda não meia”1
Já quanto a divergência acerca da sucessão do cônjuge casado sob o
regime da separação convencional de bens, é certo que não assiste ao supérstite o
direito à meação.
Isto porque, na separação convencional de bens, o cônjuge exerce sua
autonomia privada e liberdade de escolha do regime de bens, ao passo que o
regime não foi imposto, como no caso da separação legal de bens, mas sim uma
opção dos nubentes.
Por essa razão, carece ao cônjuge o direito à meação, pois, exercendo a
seu direito de escolher livremente o regime de bens sob o qual pretendia se casar
(princípio da liberdade de escolha do regime matrimonial), optaram os nubentes
por um regime sob o qual a regra é a da não comunicação.
Por outro lado, haverá a concorrência sucessória entre o cônjuge supérstite
e os descendentes do falecido, pois o legislador excluiu expressamente da
concorrência sucessória somente o cônjuge que fora casado pelo regime da
separação legal ou obrigatória de bens, e não pela separação que decorre da
vontade das partes.
Com mesmo entendimento, ensina Ana Luiza Maia Nevares 2 que:
Verifica-se que não merece prosperar o posicionamento que defende a
exclusão do cônjuge casado sob o regime da separação total convencional
de bens da sucessão quando em concorrência com os descendentes. Ao
contrário: a referida exclusão ocorreria em flagrante incoerência com a
tutela sucessória do cônjuge calcada na solidariedade familiar. Isso porque
ao cônjuge, como único componente fixo e estável da entidade familiar,
deve-se garantir uma proteção adequada por ocasião da morte de seu
consorte, sendo certo que é exatamente a ausência de meação que justifica
o estabelecimento de direitos hereditários quando há concorrência com os
descendentes.
No entanto, entendemos que o supérstite somente concorrerá com os
demais herdeiros do de cujus na sucessão dos bens adquiridos onerosamente na
1
2
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 322.
NEVARES, Ana Luiza. apud CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 336.
63
63
constância do matrimônio, e não nos bens que o falecido já possuía antes de
constituir o matrimônio.
Tal posicionamento decorre da aplicação do princípio da solidariedade e da
dignidade da pessoa humana, pois, exemplificando, não seria justo que uma mulher
que acompanhou o marido durante toda a vida e dedicou-se exclusivamente à
família fique desamparada quando da morte de seu consorte.
Desse modo, nos posicionamos de forma que devem ser aplicados os
princípios da solidariedade familiar e dignidade da pessoa humana na interpretação
dos artigos 1.687 e 1.829 do CC de modo que seja considerado o supérstite casado
sob o regime da separação convencional de bens herdeiro necessário, devendo
concorrer com os descendentes do de cujus, unicamente nos bens adquiridos na
constância do matrimônio.
2.2.2. A discussão acerca da sucessão do cônjuge casado sob o regime da
comunhão parcial de bens
No regime da comunhão parcial de bens, que, como visto cima, é o regime
legal adotado pelo Código Civil, há comunicação dos bens adquiridos na constância
do casamento a título oneroso, sem que haja sub-rogação, são os denominados
bens aquestos, na forma do artigo 1.658 do Código Civil.
Portanto, são considerados bens particulares de cada cônjuge, não
integrando, assim, a massa de bens comuns, os bens adquiridos pelos nubentes
antes do matrimônio a qualquer título e os adquiridos na constância do casamento
a título gratuito e os sub-rogados em seu lugar, conforme artigo 1.659 do Código
Civil.
Acerca da comunicação dos aquestos, interessante observação de Luiz
Paulo Vieira de Carvalho1:
Dá suporte à comunicação dos aquestos no regime da comunhão parcial,
que, como antes dito, formam uma massa patrimonial comum, a presunção
absoluta (iure et de Iuri, sem admissão de prova em contrário) de que
ambos os nubentes colaboraram para a aquisição dos bens, advinda da
affectio maritalis; cerne da sociedade conjugal)
No mesmo sentido, Rodrigo da Cunha Pereira ensina que:2
1
2
64
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 338.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Colaboradores Ana Carolina Brochado Teixeira; et.al. Código Civil e
legislação correlata da família. Porto Alegre: Síntese, 2003. p. 206
64
O casamento foi, é e parece que continuará sendo, na cultura ocidental, o
mais forte paradigma de constituição de família. Diante disto, para a
regulamentação das relações patrimoniais na união estável, o regime de
bens no casamento foi tomado como referência. Caracterizada a união
estável, os bens adquiridos na constância da relação, a título oneroso,
pertencem a ambos os conviventes. Com dissolução desta união estável, o
patrimônio será partilhado nos moldes do art. 1.658 e seguintes deste
Código. Portanto, não há necessidade de prova de esforço comum na
aquisição destes bens, cuja presunção já era prevista no art. 5 º da Lei nº
9.278/96.
No caso de morte de um dos cônjuges casados sob esse regime, não há
discussão acerca da meação dos bens comuns, pois assim já prevê a lei civil. A
discussão ganha relevo quando se analisa a possibilidade de concorrência do
supérstite com os demais herdeiros do de cujus à sucessão dos bens particulares
do falecido.
Acerca da concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente, devido a uma
falha legislativa, há quatro entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, os quais
serão a seguir demostrados.
Para os estudiosos que compõem a primeira corrente, inexistindo bens
particulares deixados pelo falecido, mas tão somente bens comuns, o cônjuge não
concorrerá com os demais herdeiros.
Já no caso de existirem bens particulares deixados pelo de cujus há
concorrência do supérstite com os demais herdeiros na sucessão desses bens. A
concorrência será com relação ao montante total da herança, ou seja, sobre os
bens particulares acrescidos da parcela de 50% dos bens comuns, que constitui a
meação. A concorrência também ocorrerá no caso de o falecido somente deixar
bens particulares.
Já para os que compõem a segunda corrente, dentre eles Zeno Veloso e
Carlos Roberto Gonçalves, o cônjuge sobrevivente concorrerá com os descendentes
do falecido somente sobre os bens próprios ou particulares que pertenciam ao de
cujus e não sobre os bens comuns, nos quais já é meeiro.
Isto porque, segundo Luiz Paulo Vieira de Carvalho1:
(...) para estes ínclitos juristas, o raciocínio contrário ensejaria este
vocacionado receber mais do que receberia se fosse casado pelo regime da
comunhão universal, além de ser um critério mais justo (onde se meia não
herda), não havendo sentido o reconhecimento do direito sucessório
superposto à meação, pois já participa como meeiro da porção dos aquestos
componentes do rol hereditário.
1
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 341.
65
65
Acerca da interpretação da parte final do inciso I, do artigo 1.829 do
Código Civil, foi editado, na III Jornada de Direito Civil, o Enunciado 270 1, segundo
o qual o cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial de bens somente
concorre com os herdeiros na sucessão dos bens particulares deixados pelo de
cujus.
Enfim, a primeira e a segunda correntes têm entendimentos similares,
sendo a única diferença no tocante ao montante dos bens aos quais o supérstite
concorrerá, sendo que a primeira corrente entende que a concorrência é sobre o
montante total a ser inventariado, incluindo bens particulares e comuns, e a
segunda corrente entende que a concorrência se restringe aos bens particulares,
sendo o cônjuge sobrevivente excluído da sucessão da parcela que não lhe pertence
dos bens comuns.
No mesmo sentido do entendimento adotado pela segunda corrente, a 4ª
Turma do Superior Tribunal de Justiça já se posicionou, em acórdão proferido no
Recurso Especial 974.241, no qual os Ministros que compõem a referida turma
entenderam que a concorrência sucessória entre supérstite e herdeiros se daria
sobre todo o acervo sucessório, e não somente sobre os bens particulares. 2
No entanto, com entendimento diametralmente oposto aos acima exposto,
forma-se a terceira corrente, a qual entende que, se o falecido era casado pelo
regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente somente concorrerá
com os herdeiros do falecido na sucessão da meação deixada pelo morto,
constituída pelos bens que se comunicaram e formaram a massa de bens comuns,
e não sobre os bens particulares deixados pelo falecido, caso haja.
Os que assim defendem, a exemplo de Maria Berenice Dias, se apoiam na
tese de que essa interpretação do artigo 1.829, I CC é a que mais se aproxima da
ideia do regime da comunhão parcial de bens, sendo inaceitável que o cônjuge
supérstite venha herdar a parte do patrimônio composta por bens individuais.
Argumentam, ainda, que, caso a dissolução da sociedade conjugal estivesse se
dando em razão de divórcio, ambos os cônjuges não teriam direito sobre o
patrimônio particular do outro.
Enunciado 270 – O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência
com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de
bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido
possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os
bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.
2
“CIVIL. SUCESSÃO. CÔNJUGE SOBREVIVENTE E FILHA DO FALECIDO. CONCORRÊNCIA. CASAMENTO.
COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. BENS PARTICULARES. CÓDIGO CIVIL, ART. 1829, INC. I. DISSÍDIO
NÃO CONFIGURADO. 1. No regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente não concorre
com os descendentes em relação aos bens integrantes da meação do falecido. Interpretação do art.
1829, inc. I, do Código Civil. 2. Tendo em vista as circunstâncias da causa, restaura-se a decisão que
determinou a partilha, entre o cônjuge sobrevivente e a descendente, apenas dos bens particulares do
falecido. 3. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, provido. (STJ – REsp nº 974.241 – DF
– 4ª Turma – Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro – Rel. para o acórdão Min. Maria Isabel Gallotti
– DJ 05.10.2011)”
1
66
66
A quarta e última corrente, a qual aderiu, em parte, o posicionamento
adotado pela terceira, entende que somente haverá concorrência sucessória entre
cônjuge sobrevivente e descendentes do falecido sobre a meação dos bens comuns
por este deixados, jamais sobre bens particulares eventualmente existentes.
Esse entendimento, que foi adotado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça, na oportunidade do julgamento do Recurso Especial 1.117.563, sob
relatoria da Ministra Nancy Andrighi, se apoia no respeito, após a morte de um dos
cônjuges, do regime de bens por ele adotado.
Nota-se que no âmbito do STJ a divergência está entre o entendimento da
3ª e 4ª Turmas, ao passo que para a 3ª Turma, só haverá concorrência sucessória
entre supérstite e herdeiros sobre a meação dos bens comuns deixada pelo morto,
mas nunca sobre os bens particulares. Já na 4ª Turma, o entendimento é de que a
concorrência entre o supérstite e os herdeiros somente ocorrerá se o falecido deixar
bens particulares e independente de meação por ele deixada, incidindo apenas
sobre bens particulares.
2.2.1.1. A solução sob a ótica do direito civil-constitucional
De início, importante consignar que o posicionamento ora adotado é no
sentido de que o regime de bens tem fundamental importância para o regime
sucessório, razão pela qual o regramento do regime escolhido pelo falecido e pelo
supérstite, quando da celebração do casamento, devem ser, preponderantemente,
observadas no momento da sucessão mortis causa.
Dessa forma, e respeitando a vontade do falecido manifestada quando da
escolha do regime de bens, pela interpretação das regras sucessórias o cônjuge
supérstite somente concorreria com os herdeiros na sucessão dos bens comuns, ou
seja, do montante resultante da meação do falecido, e não sobre os bens
particulares.
Com a sucessão, tem-se a continuidade da personalidade do morto, sendo
de suma importância a vontade manifestada em vida por ele, devendo ser
respeitada, portanto, a expressa manifestação de vontade do falecido quanto ao
seu patrimônio, feita na oportunidade da escolha do regime de bens.
Nesse sentido, Judith Martins-Costa e Miguel Reale1 ensina que:
1
MARTINS-COSTA, Judith; REALE, Miguel. Parecer. In:
http://www.escoladaajuris.org.br/doctos/sucessoes/JUDITH%20M%20COSTA%20Parecer%20Suc%20
Sep%20TOTAL%20de%20bens.pdf. Acesso em 27.07.2014.
67
67
Tão entranhada está culturalmente a ideia de a sucessão (revestindo o fato
biológico “morte”), expressar uma continuidade da personalidade do morto
que ainda hoje, vários institutos jurídicos promovem a sua disciplina,
bastando lembrar a hereditabilidade do direito de indenização por danos
patrimoniais e extra- patrimoniais15; a existência de negócios atributivos
post-mortem16; e a proteção geral da “personalidade” do morto. Ensina, a
esse respeito, a doutrina: “(...) com a morte, a personalidade jurídica,
embora “devesse” extinguir-se completamente (a personalidade jurídica
deve corresponder temporalmente à existência biológica concepção/morte) é
necessário, para certos efeitos (indenização do dano morte, defesa dos
direitos de personalidade ‘ante’ e ‘post-morte’, etc) entender que a
personalidade jurídica se mantém depois da morte na medida necessária
para servir de suporte a esses interesses.
Nessa linha de raciocínio, das correntes acima demonstradas a mais
correta, que faz uma interpretação civil-constitucional dos dispositivos presentes no
CC, é a que entende que o cônjuge supérstite, além da sua parte resultante da
meação, tem direito a concorrer com os demais herdeiros apenas na parcela da
meação que competiria ao morto, ou seja, nos bens comuns.
Nessa corrente, encontram-se os ministros da 3ª Turma julgadora do STJ,
que, no julgamento do Recurso Especial 1.377.084, entenderam, por unanimidade
de votos, que, na sucessão do cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial
de bens, o supérstite tem direitos somente sobre os bens comuns do casal, não
concorrendo com os demais herdeiros nos que se refere aos bens particulares do
morto.
A esse respeito, veja-se trecho do acórdão que afirma a tese ora
defendida, no sentido de que a vontade do cônjuge, manifestada no casamento
com a escolha do regime de bens, deve ser tomada em consideração também no
momento de interpretar as regras sucessórias1:
A melhor interpretação é aquela que prima pela valorização da vontade das
partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida
como na morte dos cônjuges. Desse modo, preserva-se o regime da
comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação,
ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da
concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja ou não bens
particulares, partilháveis, estes unicamente entre os descendentes.
No entanto, embora seja o que mais respeita os princípios constitucionais e
do direito sucessório, o entendimento ora proposto como solução para a discussão
existente, que também é adotado pela 3ª Turma do STJ, não é o majoritário.
Com efeito, a interpretação do artigo 1.829, I CC ora proposta, respeita os
direitos individuais de cada consorte, ou seja, do falecido e do sobrevivente,
1
68
Recurso Especial 1.377.084. 3ª Turma julgadora do Superior Tribunal de Justiça.
68
observando, sobre tudo, a vontade do falecido e o princípio da solidariedade 1 sem
ferir
nenhum
princípio
ou
garantia
constitucional
e
tampouco
normas
infraconstitucionais.
Veja-se, ainda, já caminhando para a conclusão do presente raciocínio, o
que restou consignado no acórdão ora analisado:
A permanecer a interpretação conferida pela doutrina majoritária de que o
cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial herda em concorrência
com os descendentes, inclusive no tocante aos bens particulares, teremos no
Direito das Sucessões, na verdade, a transmutação do regime escolhido em
vida –comunhão parcial de bens – nos moldes do Direito Patrimonial de
Família, para o da comunhão universal, somente possível de ser celebrado
por meio de pacto antenupcial por escritura pública
Desse modo, a solução proposta, sob a ótica do direito civil-constitucional,
é a de que o cônjuge, além da meação, que não constitui herança, concorra com os
demais herdeiros do falecido na sucessão tão somente da metade dos bens
comuns, mas não a dos bens particulares.
Por fim, necessário abordar a hipótese em que o cônjuge falecido não deixa
herdeiros, mas deixa bens particulares.
Conforme inciso III do artigo 1.829 do CC, o cônjuge supérstite é o terceiro
na ordem de vocação hereditária legítima, de modo que receberá a totalidade da
herança, na qualidade de herdeiro único, independente do regime de bens do
casamento, caso não haja descendentes ou ascendentes do de cujus.
Isto porque, se assim não fosse, a herança seria integralmente destinada
ao ente estatal, o que não seria justo com o supérstite e feriria o direito à
propriedade, que, como visto, é o fundamento constitucional do direto sucessório.
2.3 SUCESSÃO DO COMPANHEIRO
De início, necessário consignar que a Constituição Federal, em seu artigo
226 §3º, reconheceu a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, não fazendo diferenciação em relação ao casamento.
Nesse sentido, leciona Gustavo Tepedino2:
À União estável, como entidade familiar, aplicam-se, em contraponto, todos
os efeitos jurídicos próprios, não diferenciando o constituinte, para efeito de
proteção do Estado (e, portanto, para todos os efeitos legais, sendo certo
que as normas jurídicas são emanação do poder estatal), a entidade familiar
O Princípio da Solidariedade está sendo respeitado ao passo que, por essa interpretação, o supérstite
concorrerá com os herdeiros na sucessão dos bens comuns, ou seja, dos bens que foram adquiridos
pelo esforço comum.
2
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Op. Cit., p. 385.
1
69
69
constituída pelo casamento daquela constituída pela conduta espontânea e
continuada dos companheiros, não fundada no matrimônio.
No entanto, embora a Constituição Federal tenha trazido a ideia de
proteção aos que vivem em união estável, seu texto não regulamentou o instituto,
cabendo, portanto, ao legislador infraconstitucional esta árdua tarefa.
Foi assim que, com o escopo de regular a união estável, foi editada a lei
8.971 de 1994, que além de regular o direito do companheiro aos alimentos,
passou a tutelar os direitos sucessórios dos companheiros.
Posteriormente, em 1996, foi promulgada a Lei 9.278 que regulou em seu
texto o artigo 226, §3º da Constituição Federal, regulamentando a união estável,
como
já
demonstra
em
tópico
anterior,
e
concedendo
ao
companheiro
sobrevivente, enquanto viver e não constituir nova união, o direito real de
habitação relativo ao imóvel destinado a residência da família. A Lei previu, ainda,
uma regra de divisão patrimonial que, segundo Ana Luiza Maia Nevares 1:
(...) tem pontos de contato tanto com o regime da comunhão parcial de
bens, quanto com aquele da separação, na medida em que presume que os
bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável são
considerados fruto do trabalho e da colaboração comuns, passando a
pertencer a ambos os conviventes em partes iguais e em condomínio. Tal
situação poderá ser afastada, restando a situação, por conseguinte,
semelhante àquela estabelecida no regime da separação, uma vez que não
haverá comunicação patrimonial entre os conviventes.
Já com o advento do Código Civil em 2002, o regime de bens adotado nas
uniões estáveis passou a ser o regime da comunhão parcial de bens, no que
couber, conforme artigo 1.725 do CC.
Outra inovação trazida pelo Código Civil foi acerca da sucessão do
companheiro. Isto porque, o CC, em seu artigo 1.790, tratou da sucessão do
companheiro, mas de forma confusa, de modo que à primeira vista sua leitura
deixa dúvidas acerca da verdadeira intenção do legislador.
Importante consignar, ainda, que o artigo 1.845 do CC, embora tenha
elencado o rol de herdeiros necessários, onde consta o cônjuge, não fez menção ao
companheiro como herdeiro necessário, havendo divergência, portanto, acerca da
qualidade de herdeiro necessário do companheiro.
1
70
NEVARES, Ana Luiza. apud CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 134.
70
2.3.1.ANÁLISE DOS ARTIGOS 1.790 E 1.845 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
A redação do artigo 1.7901 do CC, único artigo no Código destinado a
regulamentar a sucessão do companheiro, não é clara e, por isso, pode ensejar, de
acordo
com
a
interpretação
a
ele
conferida,
situações
prejudiciais
aos
companheiros, quando comparadas às dos cônjuges.
Por conta do texto do artigo 226, §3º da Constituição Federal2, alguns
doutrinadores argumentam haver hierarquia entre união estável e casamento, em
razão da parte do dispositivo que prescreve que é dever do Estado facilitar a
conversão da união estável em casamento.
Ou seja, toda a divergência em torno do artigo 1.790 do CC, que será
adiante demonstrada, resulta do fato de que parte considerável da doutrina e da
jurisprudência se posicionam no sentido de que o referido artigo é constitucional,
sob a alegação de que a não equiparação sucessória entre o casamente e a união
estável decorre da própria Constituição Federal, ao passo que a constituição ao
afirmar que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, estaria,
no fundo, declarando estar o matrimonio hierarquicamente acima da união estável.
Comunga deste entendimento, o Professor José Carlos Barbosa Moreira
argumentando que “não ocorreu, porém, equiparação entre os dois institutos, ao
contrário do que apressaram a sustentar alguns: a família formada pela união
estável coexiste com a fundada pelo casamento, mas aquela não se identifica com
esta.”3
No entanto, existe “tese oposta que pugna pela igualdade, considerando
que o parágrafo 3º do artigo 226 se dirige ao legislador infraconstitucional para que
removam os obstáculos existentes para a conversão da união o estável em
casamento, se os companheiros assim desejarem. ”4
Argumentam os que defendem a inconstitucionalidade do artigo 1.790 CC
que este artigo garante maior proteção ao cônjuge do que ao companheiro,
1“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens
adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao
filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada
um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
2Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
3MOREIRA, José Carlos Barbosa. apud CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit.,
p. 384.
4Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 540.
71
71
colocando, assim, o casamento em posição hierarquicamente superior à união
estável, ferindo diversos direitos e princípios constitucionais, como o Princípio da
Igualdade, da Solidariedade e da Dignidade da pessoa humana.
A esse respeito, leciona Luiz Paulo Vieira de Carvalho1:
De todo modo, exsurge a desigualdade numa situação de iníqua
inferioridade de direitos entre o companheiro na união estável e a pessoa
casada, violando pensamos, de modo cristalino, o princípio da vedação ao
retrocesso e outros princípios de índole constitucional, tais quais o da
dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, além da igualdade
formal e substancial de pessoas situadas em posição jurídica similar.
Pela redação do referido artigo, na união estável, o companheiro
sobrevivente
somente
poderá
suceder
os
bens
que
foram
adquiridos,
onerosamente, na constância da união, não podendo, porém, participar da
sucessão dos bens particulares, deferentemente do que ocorre no casamento sob o
regime da comunhão parcial de bens.
Por essa razão, o artigo tem “gerado numerosas críticas e interpretações
divergentes, que compreendem desde a amplitude da proteção constitucional a ser
dada aos que vivem em união estável, até o reconhecimento (ou não) do
companheiro como herdeiro necessário.”2
Ainda adotando esse entendimento, o STJ, por meio de acórdão de
relatoria da Ministra Nancy Andrighi, entendeu no sentido de garantir ao
companheiro o direito de concorrer com os descendentes do seu ex-companheiro,
já falecido, sobre o total do acervo onerosamente adquirido na constância da união,
não aplicando o inciso II do artigo 1.790 do CC3.
Ao julgar o leading case da filha exclusiva do pai que pretendia a aplicação
do artigo 1.829, I CC no lugar do artigo 1.790 do CC, sob o argumento de que o
regime jurídico não poderia ser mais favorável à união estável do que ao
casamento, a referida ministra considerou que a melhor interpretação do artigo
1.829, I do CC seria no sentido de preservação da vontade manifestada quanto ao
regime de bens, mantendo-a intacta assim na vida como na morte dos cônjuges,
tanto para o casamento sob o regime da comunhão parcial quanto para a união
estável.
Por fim, os simpatizantes desse entendimento, corroborando com seu
posicionamento acerca da inconstitucionalidade, arguem que o artigo 1.790 está
inserido, dentro do Código Civil, fora do título II, que regulamenta a sucessão
1CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 374.
2Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloisa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de (orgs.) et al. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. Op. Cit., p. 541.
3STJ, 3º T., REsp nº 1.117.563, Min. Nancy Andrighi, j. 17.12.2009, DJ. 06.04.2010
72
72
legítima, mais sim dentro do título I, que regulamenta a sucessão geral, quando o
correto serio o contrário.
Esta nítido, portanto, mais uma vez, que o legislador
colocou o companheiro em posição infimamente inferior à do cônjuge.
Quanto ao artigo 1.845, também houve um cochilo legislativo, ao passo
que este não atribuiu ao companheiro a qualidade de herdeiro necessário,
distinguindo, mais uma vez, o companheiro do cônjuge e colocando-o (o
companheiro) um uma posição hierarquicamente inferior à do cônjuge.
2.3.2.Solução sob a ótica do direito civil-constitucional
De início, antes de externar o posicionamento acerca da constitucionalidade
do artigo 1.790 do Código Civil, necessário consignar nosso posicionamento no
sentido da inexistência de hierarquia entre a união estável e o casamento.
A
Constituição
Federal,
embora
tenha
orientado
o
legislador
infraconstitucional a facilitar a conversão da união estável em casamento, não
pretendeu, com isso, colocar o casamento em posição hierarquicamente superior à
união estável, mas sim facilitar a conversão, até mesmo para que os consortes
possam escolher livremente pelos regimes de bens existentes, homenageando o
princípio da liberdade de escolha dos regimes.
Nesse sentido, consigna Luiz Paulo Vieira de Carvalho1:
A união estável é relevante entidade familiar, substancialmente protegida e
regulada pelo Estado, com direitos e deveres fundamentais, conferidos aos
seus membros (igualmente dignos) e que devem ser substancialmente
idênticos, insistimos, aos das pessoas casadas (arts. 1º, inciso III, e 5º,
caput e seu inciso XXX, c/c 226, caput, e seu § 3º, 1ª parte, da CRFB).
Acrescenta, na mesma linha de raciocínio, Ana Luiza Maia Nevares 2:
(...) como é possível dizer que o casamento é entidade familiar superior se
todos os organismos sociais que constituem a família têm a mesma função,
qual seja, promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros?
Admitir a superioridade do casamento significa proteger mais, ou
prioritariamente, algumas pessoas em detrimento de outras, simplesmente
porque aquelas optaram por constituir uma família a partir da celebração do
ato formal do matrimonio.
1
2
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 370.
NEVARES, Ana Luiza. apud CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 200.
73
73
Maria Celina Bodin de Moraes e Ana Carolina Brochado Teixeira, ao
comentarem o artigo 226 §3º da CF, a respeito da inexistência de hierarquia entre
a união estável e o casamento, consignaram que1:
Também restou previsto no §3º do art. 226 o dever do Estado de facilitar a
conversão da união estável em casamento – literalidade utilizada por muitos
para sustentar uma hierarquia entre as entidades familiares, com
superioridade axiológica do casamento em relação à união estável. Esta
argumentação não deve ser prevalecente, uma vez que a única diferença
existente entre eles é a formalidade é a formalidade e a oficialidade do
casamento, pois a base fática é a mesma, de modo a não se justifica que a
união estável seja criminatória. Duas razões relativamente simples explicam
a preocupação do constituinte: a primeira é a maior segurança que o
casamento ainda traz, bastando uma certidão para comprovar-se a relação.
A outra se refere no momento histórico em que foi promulgada a
Constituição, momentos em que poucos eram os direitos reconhecidos às
famílias não fundadas no casamento.
Portanto, ao nosso ver, embora o casamento e a união estável não sejam
instituições sociais idênticas, o conteúdo jurídico dos efeitos por elas emanados,
sob a ótica civil-constitucional, são iguais, com base no Princípio da Igualdade.
Nessa linha de raciocínio, não podemos nos posicionar de forma diferente
senão pela inconstitucionalidade do artigo 1.790, incisos I, II e II do Código Civil,
posto que este, fere de morte, princípios constitucionais que fundamento o regime
de bens existentes no Código civil e o Direito Sucessório, a exemplo do Princípio da
Igualdade.
O artigo 1.790 do CC estabelece (i) no seu inciso I que, se concorrer com
filhos comuns, o companheiro sobrevivente terá direito a uma quota igual a que por
lei for atribuída a cada um deles; (ii) no seu inciso II que, se concorrer com
descendentes apenas do autor da herança, o companheiro sobrevivente fara jus a
metade do que couber a cada um daqueles; e no seu inciso III que, se concorrer
com outros parentes suscetíveis, terá direito a 1/3 da herança.
Por outro lado, o artigo 1.829, I do CC, conforme interpretação utilizada na
sucessão do cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial de bens, já
explicitada acima, concorrerá com os descendentes do cônjuge na sucessão dos
bens comuns. Ou seja, receberá a sua meação e concorrerá com os descendentes
na parcela da meação do de cujus.
Portanto, o artigo 1.790, restringiu o direito do cônjuge concorrer, em
igualdade de condição, aos filhos comuns, sendo certo que, no caso de haver filhos
de “outro casamento”, o cônjuge não teria igualdade de condições com estes.
1
74
MORAES, Maria Celina Bodin; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Comentário ao artigo 226.apud
Canotilho, J.J. Gomes; Mendes, Gilmar Ferreira; Sarlet, Ingo Wolfgang; Streck, Lenio Luiz (Coords.)
Comentários à Constituição do Brasil. Op. Cit., p. 2119.
74
Ainda que haja divergência atual e calorosa sobre o tema, tanto no campo
doutrinário quanto no jurisprudencial, entendemos, em razão da falha legislativa
que resulta na afronta a Princípios constitucionais, pela inconstitucionalidade do
artigo 1.790 e seus incisos.
Desse modo, em casos concretos, devem ser aplicadas, analogicamente, as
regras previstas no artigo 1.829
e seus
incisos, com
interpretação civil-
constitucional demonstrada acima, de modo que o companheiro sempre concorrerá
em igualdade de condições com os herdeiros do de cujus na sucessão dos bens
comuns.
Veja-se, nesse sentido, trecho do acórdão proferido na oportunidade do
julgamento do Recurso Especial n.º 1.117.563, de relatoria da Ministra Nancy
Andrighi1:
Por tudo isso, a melhor interpretação é aquela que prima pela valorização da
vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta,
assim na vida como na morte dos cônjuges. Desse modo, preserva-se o
regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da
autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direto à
meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja ou
não bens particulares, partilháveis, estes unicamente entre os descendentes.
Quanto ao artigo 1.845, que não inclui o companheiro no rol dos herdeiros
necessários, embora a discussão seja acirrada, entendemos, respeitando opinião
contrária, que o legislador, mais uma vez, falhou ao se omitir.
O fundamento de defesa é o de que ao não atribuir ao companheiro
sobrevivente a condição de herdeiro necessário, companheiro este que constituiu
família com o falecido, o acompanhando até a sua morte, poderá o mesmo ser
totalmente excluído da sucessão, caso haja testamento que beneficia terceiros com
todos os bens que compõem o monte hereditário, ficando o companheiro
sobrevivente desamparado.
Caso seja considerado o companheiro como herdeiro necessário, o que
aqui defendemos, o testador somente poderá dispor de metade da herança,
limitação está aplicada no caso de haver cônjuge supérstite.
Ademais, conforme o acima exposto, “são equiparados os direitos
sucessórios dos cônjuges e dos companheiros sobreviventes, inclusive quanto à
ordem de vocação hereditária e à qualificação como herdeiro necessário.” 2
Nesse sentido, entendemos que a melhor interpretação do artigo em
referência é a de que o herdeiro necessário é o sucessor obrigatório com direito a
1
2
STJ, 3º T., REsp nº 1.117.563, Min. Nancy Andrighi, j. 17.12.2009, DJ. 06.04.2010
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. Op. Cit., p. 401.
75
75
uma quota parte da herança, sendo, portanto, o companheiro, herdeiro necessário,
embora não conste no rol do artigo 1.845 do CC.
CONCLUSÃO
O direito sucessório, por ser um importante ramo do direito civil que regula
a sucessão dos bens deixados pelo falecido, deve ter suas regras interpretados de
acordo com o seu fundamento constitucional, que é a garantia da propriedade
privada, prevista no artigo 5º, caput, XXII e XXIII1, de modo que os bens que um
indivíduo possuiu em vida, não sejam transferidos ao Estado após a sua morte,
mas
sim
aos
provavelmente,
seus
herdeiros
dividiram
com
ou
parentes
mais
o
falecido
as
próximos,
expectativas
pessoas
e
que,
frustações
experimentadas durante a vida e na construção do patrimônio.
Com efeito, a sucessão legítima, que é a modalidade que mais importa
para o presente estudo, como visto, é fundada na manifestação de vontade
presumida, que, no caso de casamento ou união estável já não é tão presumida
assim, pois, de acordo com nosso entendimento, ao optar por um regime de bens
ou pela união estável, o falecido manifestou a sua vontade acerca da disposição de
seus bens após a sua morte.
Além dos princípios constitucionais como os da solidariedade, igualdade e
dignidade da pessoa humana, tem forte impacto no momento da definição do
regramento sucessório do cônjuge e do companheiro a manifestação de vontade do
falecido externada por seus atos praticados em vida, tal como a escolha do regime
de bens ou a opção por constituir família por meio da união estável.
Os princípios, mormente os constitucionais, têm importantíssima função na
aplicação da lei civil, ao passo que orientam o aplicador do direito na interpretação
da norma infraconstitucional, evitando a ocorrência de transgressão de direitos 2.
Com isso, foi possível abordar as problemáticas resultantes da aplicação da
lei civil em relação à sucessão do cônjuge e do companheiro que, como visto, na
maioria das vezes é omissa, cabendo ao aplicador do direito interpretar a norma e
suprir a omissão legislativa.
Foram propostas soluções aos diversos problemas surgidos em razão de
divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da sucessão do cônjuge casado sob
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; (...)”
2
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Op. Cit., p. 6.
1
76
76
o regime da separação total de bens e da comunhão parcial de bens, bem como do
companheiro, sendo certo que em ambos os casos foram levados em consideração
as ideias de cada regime de bens, e, principalmente, dos princípios constitucionais
para a solução dos problemas.
Na sucessão do cônjuge casado sob o regime da separação legal de bens,
sendo adotado o entendimento de que essa imposição é inconstitucional, pois fere
diversos princípios constitucionais como o da solidariedade, igualdade e dignidade
da pessoa humana, entendeu-se que o cônjuge supérstite deve ter o direito a
meação dos bens adquiridos durante a constância do casamento, levando em
consideração, principalmente, o princípio da solidariedade familiar.
Já com relação ao cônjuge casado sob o regime da separação convencional
de bens, haverá a sua concorrência com os descendentes do falecido, mas somente
nos bens adquiridos na constância do matrimônio, não possuindo o sobrevivente
direito à meação e tampouco a sucessão dos bens adquiridos antes a celebração do
casamento.
Com relação ao cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial de
bens, chegou-se à conclusão de que o cônjuge, além da meação, que não constitui
herança, concorre com os demais herdeiros do falecido na sucessão tão somente
dos bens comuns, mas não a dos bens particulares.
Isto porque, embora não se entenda mais que com a sucessão há a
continuidade da personalidade do falecido, é certo que a sua expressa manifestação
de vontade acerca da disposição patrimonial após a sua morte, feita na
oportunidade da escolha do regime de bens, deve ser observada e respeitada. Ou
seja, a manifestação de vontade de uma pessoa em vida, para o direito civilconstitucional, sem sombra de dúvida, ecoa após a sua morte, tendo extrema
importância no momento da sucessão.
Após, analisou-se a sucessão do companheiro, com a interpretação dos
artigos 1.790 e 1.845 do Código Civil a luz de princípios e normas constitucionais,
tendo sido concluído pela inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil,
posto que o legislador, indo na contramão dos preceitos constitucionais insculpidos
no artigo 226, §3º da Constituição Federal, diferenciou os direitos sucessórios do
cônjuge ao do companheiro.
Embora o casamento e a união estável não sejam instituições sociais
idênticas, o conteúdo jurídico dos efeitos por elas emanados, sob a ótica civilconstitucional, são iguais, com base no Princípio da Igualdade.
Com efeito, o artigo 1.790 do CC restringiu o direito de o cônjuge
concorrer, em igualdade de condições, com os filhos comuns, sendo certo que,
segundo o referido artigo, no caso de haver filhos de “outro casamento”, o cônjuge
77
77
não teria igualdade de condições com estes; regramento este diferente do atribuído
à sucessão do cônjuge, como visto no presente estudo.
Desse
modo,
em
casos
concretos,
deve
ser
declarada
a
inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC e aplicadas, analogicamente, as regras
previstas no artigo 1.829 e seus incisos, com atenção à interpretação civilconstitucional já demonstrada, de modo que o companheiro sempre concorrerá em
igualdade de condições com os herdeiros do de cujus na sucessão dos bens
comuns.
Nesse sentido, entende-se que a melhor interpretação do artigo em
referência é a de que o herdeiro necessário é o sucessor obrigatório com direito a
uma quota parte da herança, sendo, portanto, o companheiro herdeiro necessário,
embora não conste no rol do artigo 1.845 do CC.
78
78
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80
80
Doutrina
Cláusulas Contratuais Limitativas e Excludentes do Dever
de Indenizar
Ivana Harter Albuquerque
1
RESUMO: Trata-se de estudo a respeito das cláusulas contratuais excludentes e
limitativas do dever de indenizar, mecanismos que visam à restrição ou subtração
da obrigação de reparar oriunda do inadimplemento contratual ou da violação de
um dever legal. O aludido escopo perseguido pelas cláusulas de não-indenizar se
realiza por meio da fixação antecipada da sistemática aplicável à definição de
eventual montante indenizatório, razão pelo qual logram assegurar aos
contratantes a redução dos riscos do negócio. É neste sentido que as cláusulas em
exame se situam no contexto do necessário equilíbrio entre a busca pela reparação
integral da vítima e a viabilização da atividade econômica, desestimulada pela
sobrecarga das indenizações. Isto porque, de um lado, promovem a limitação ou
exclusão do dever de reparar que seria suportado pelo devedor e, de outro,
contemplam o credor com instrumentos de compensação pela anuência à
convenção, tais como, a redução do preço do bem adquirido ou do serviço
prestado, a concessão de condições de pagamento mais flexíveis, dentre outros. As
cláusulas contratuais limitativas e excludentes do dever de indenizar revelam-se,
portanto, como instrumentos utilizados pelos contratantes com vistas a quantificar
os riscos financeiros do negócio, o que lhes possibilita uma maior segurança
negocial e jurídica. Em suma, a obrigação de indenizar torna-se elemento previsível
o que, em última análise, viabiliza a atividade produtiva, fomentando a economia.
No ordenamento jurídico brasileiro as cláusulas de não-indenizar não encontram
regulamentação expressa e sistemática, tendo o instituto merecido tratamento
legislativo esparso em normas pontuais que regulam campos específicos. Assim é
que visando fundamentar a admissibilidade das convenções acessórias em tela,
doutrina majoritária, elenca o princípio da autonomia da vontade e a liberdade de
contratar como pilares a sustentar a validade das cláusulas limitativas e
excludentes. Nada obstante a carência na regulamentação das convenções em tela
se impõe, ainda, como pressupostos à sua admissibilidade, a observância das
condições de validade para os negócios jurídicos em geral, já que destes
constituem espécies, bem como das vedações expressas e requisitos específicos
que lhe são aplicáveis.
ABSTRACT : This a study about excluding and limiting contractual clauses of the duty
to indemnify, mechanisms that placed in a context of the necessary balance
between the search for the full compensation to the victim and the economic
activity viability, discouraged by the overload of reparations, restrict or subtract the
obligation to repair originated from the breach of the contract or from the breach of
a legal duty. the conventions of hold-harmless clauses operate by prior fixation of
the applicable systematic upon the definition of the indemnity amount or even upon
the absence of compensation, which enables contractors the previous knowledge
about the risks and charges inherent to the business transacted. therefore, they
1
Terceiro colocado no Concurso de Monografias "Aloysio Maria Teixeira" na categoria advogado
81
81
reveal themselves as instruments used by the contractors in order to quantify the
financial risks of the business, which allow them a larger legal and business safety.
in short, the obligation to repair becomes a predicable element which, ultimately,
enables the productive activity, stimulating the economy. Inside the brazilian law
system, the non-indemnification clauses do not have specific and systematic
regulation, and because of that, this institute has been given sparse legislative
treatment, within rules that concern specific fields of law. aiming to support the
admissibility of the accessory conventions in point, majority doctrine lists the
principle of the autonomy of the will and the freedom to contract as the excluding
and limiting contractual clauses supporting pillars. But only as long as the validity
of assumptions are attended to the legal businesses in general, since the first is one
of the species of the last, as well as observed the expressed seals and specific
applicable requirements.
SUMÁRIO: Introdução I.AS CONVENÇÕES DE EXCLUSÃO OU LIMITAÇÃO DO
DEVER DE INDENIZAR E SUAS FUNÇÕES1.1 O Débito e a Responsabilidade 1.1.1. A
Inexecução como Pressuposto da Responsabilidade Contratual 1.2.As Cláusulas
Contratuais Limitativas ou Excludentes do Dever de Indenizar 1.2.1.A Natureza
Acessória das Cláusulas de Não-Indenizar 1.2.2. A Exclusão da Responsabilidade.
Problemas com a Terminologia II. MODALIDADES DAS CLÁUSULAS DE NÃOINDENIZAR 2.1. Limitação do Montante Indenizatório 2.2. Exclusão do Dever de
Indenizar a Determinados Tipos de Danos 2.3. Limitação dos Fundamentos do
Dever de INDENIZAR 2.3.1. Cláusulas sobre Atos de Terceiros 2.4. Equiparação a
Hipóteses de Caso Fortuito ou Força Maior 2.5. Cláusulas sobre Atos ou Abstenções
do Credor 2.6. Limitação da Garantia Patrimonial. III. REQUISITOS DE VALIDADE
DAS CONVENÇÕES DE LIMITAÇÃO E EXCLUSÃO DO DEVER DE INDENIZAR3.1. A
Ordem Pública 3.2. O Equilíbrio Econômico do Contrato 3.3. Obrigações Essenciais
do Contrato 3.4. O Dolo e a Culpa Grave. Conclusão. Referências
82
82
INTRODUÇÃO
No contexto de uma sociedade eminentemente industrializada, o dano,
antes acontecimento anormal e extraordinário, passa a integrar o curso natural das
atividades humanas, tornando-se acontecimento habitual e inevitável. A existência
do perigo, portanto, convola-se em elemento constante e cotidiano. Ademais, o
desenvolvimento tecnológico e a consequente especialização da produção resultam
na impossibilidade de identificação dos responsáveis por tais eventos danosos,
reservando, estes últimos, ao anonimato1.
Com efeito, o esquema de responsabilidade civil baseado na noção de que
apenas seriam ressarcíveis os danos provenientes de um comportamento culposo e
voluntário tornou-se insuficiente. Isto porque diante da fragmentação da produção
e potencialização dos riscos com conseqüente incremento dos acidentes, a
reparação das vítimas não poderia ficar adstrita a identificação do autor do dano e
a prova da conduta culposa. Em última análise, tal exigência constituiria verdadeira
prova impossível a desamparar a vítima do injusto.
Diante destas e de outras implicações sociais, econômicas e culturais
constata-se
uma
verdadeira
renovação
dos
paradigmas
que
norteiam
o
ordenamento jurídico.
Neste diapasão, cabe breve contextualização do panorama em que se
insere a aludida renovação. Assim é que da indiferença presente no Estado Liberal
onde a Constituição era carta política dirigida tão só ao legislador e o Código Civil,
ao revés, se afirmava como a própria constituição da sociedade, traduzindo a
ordem jurídica fundamental refletida na doutrina do laissez-faire, laissez-passer,
passa-se ao intervencionismo estatal cujo objetivo maior é propor uma releitura da
1
A esse respeito, leciona Maria Celina Bodin de Moraes: “Há um paradoxo que insere o conceito de risco
no centro do funcionamento da sociedade industrializada. O acidente, como emerge da sociedade
industrial, tem características que impedem de interpretá-lo nos significados anteriores de acaso ou
previdência. O conceito obedece a um tipo de objetividade específica e decorre do curso natural das
atividades coletivas, e não de acontecimentos excepcionais ou extraordinários. O evento danoso deixa,
pois, de ser considerado uma fatalidade e passa a ser tido como um fenômeno “normal”,
estatisticamente calculável.”(BODIN DE MORAES, Maria Celina. “ Risco, Solidariedade e
Responsabilidade Objetiva”. In: Revista dos Tribunais, vol. 854, São Paulo: Revista dos Tribunais, dez.
2006, p. 17). No mesmo sentido, Georges Ripert conclui que: “quanto mais às forças de que o homem
dispõe são multiplicadas por meio de mecanismos complicados suscetíveis de agir à distância, quanto
mais os homens vivem amontoados e próximos dessas máquinas perigosas, mais difícil se torna
descobrir a verdadeira causa do acidente e estabelecer a existência da falta que o teria causado. Na
expressão de Josserand, o acidente torna-se anônimo. A prova, aliás, só pode ser feita perante o juiz;
torna-se necessário, pois, intentar uma ação de êxito sempre problemático (RIPERT, Georges. O
Regime Democrático e o Direito Civil Moderno. São Paulo: Editora Saraiva (trad. J. Cortezão), 1937, p.
331 apud TEPEDINO, Gustavo. A Evolução da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro e suas
Controvérsias na Atividade Estatal. In:Temas de Direito Civil, Tomo I, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p. 183).
83
83
autonomia da vontade de modo a compatibilizá-la com a igualdade material e os
valores sociais. Enfim, a conclusão que se impunha preconizava pela insuficiência
das concepções do individualismo jurídico para regular os problemas sociais.
Nesta esteira de acontecimentos, presencia-se a gradativa perda de
centralidade dos códigos em função do surgimento de microssistemas 1, o que se
convencionou chamar de movimento de descodificação. Este processo destinou o
papel de reunificação do sistema à Constituição de 1988 cujo conteúdo axiológico
se lança com força normativa por todo o ordenamento jurídico.
Diante do papel de destaque assumido pela Constituição, da escolha da
dignidade da pessoa humana como fundamento da República (artigo 1º. III da
CF/1988), da crescente consciência social em relação aos direitos fundamentais e
do reconhecimento do caráter normativo do princípio da solidariedade social, clara
se fez a opção do constituinte pela primazia dos interesses existenciais em
detrimento dos interesses patrimoniais.
Desta feita, os institutos do direito contemporâneo, especialmente do
direito civil, antes guiados por uma lógica liberalista, ficam condicionados a uma
releitura à luz dos valores constitucionalmente tutelados. Por conseqüência, mitigase a dicotomia público/privado, inexistindo ilhas inóspitas à Constituição.
À luz desta sistemática e da nova realidade industrial da sociedade, operase igualmente uma mudança de foco na responsabilidade civil, deslocando o relevo
originalmente atribuído ao agente que cometeu o ilícito para a figura da vítima 2. O
objetivo primordial desta nova doutrina é atribuir ampla proteção à vítima, de modo
a fazê-la retornar ao status quo anterior à produção do evento danoso.
Em
função
desta
concepção,
parte-se,
em
primeiro
momento,
da
elaboração de presunções justificativas da imputação para em etapa posterior
admitir dispensas legais da conduta culposa em múltiplas situações específicas.
Consagra-se um modelo dualista de responsabilidade onde, de um lado,
centrada na noção de culpa, encontra-se a responsabilidade subjetiva e de outro
com
1
2
84
fundamento
na
justiça
distributiva,
na
solidariedade
social
e
Cumpre asseverar que a expressão “microssistemas” não se presta a identificar um ordenamento
jurídico com múltiplos sistemas uma vez que o sistema jurídico é uno. Ao revés, denota a presença de
variadas legislações não codificadas que, como as demais estruturas jurídicas do ordenamento, devem
ser interpretadas e aplicadas segundo a Constituição de 1988 incumbida do papel de unificar o sistema
mediante a irradiação de suas normas. A expressão supra condiz, portanto, com a criação de leis
esparsas que se prestam à regular determinado setor da vida privada com objetivo de garantir a
necessária proteção de parcelas da sociedade. Neste sentido, têm-se os exemplos: Código do
Consumidor (Lei n. 8.078/90), Lei de Locações (Lei n. 8.245/91), Estatuto da Terra (Lei n.4.504/64),
Estatuto do Idoso (Lei n 10.741/2003), entre outros. A esse respeito, confira: TEPEDINO, Gustavo. O
Código Civil, os chamados microssistemas e Constituição: premissas para uma reforma legislativa.
Disponível em: http://www.tepedino.adv.br/biblioteca (Último acesso em 27/11/2013).
Afirmou Maria Celina Bodin de Moraes: “Ressarcíveis não são os danos causados, mas sim os danos
sofridos, e o olhar do Direito volta-se totalmente para a proteção da vítima” (BODIN DE MORAES,
Maria Celina. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. In: Revista Brasileira de Direito de Família, v.
31, 2005, pp. 39-66).
84
consequentemente na repartição dos custos das atividades econômicas, figura a
responsabilidade objetiva que prescinde da culpa do lesante para configurar o dever
de reparar.
A inserção de um sistema objetivo de responsabilidade com a conseqüente
criação de uma bipolaridade dos sistemas de imputação se concretizou de forma
expressa no ordenamento jurídico. Isto porque, ao lado da cláusula geral de
responsabilidade subjetiva prevista no artigo 186, o Código Civil de 2002
estabeleceu no parágrafo único do artigo 927, de forma inédita e pioneira 1, cláusula
geral de responsabilidade objetiva. Em síntese, a culpa como critério de imputação
deixou de ser o centro do sistema passando a responsabilidade civil a ter dúplice
fundamento – a culpa e o risco.
Presencia-se, então, verdadeira objetivação da responsabilidade que, com
fulcro na teoria do risco, atribui o dever de reparar ao responsável pela exploração
da atividade perigosa, independentemente de valorações pessoais de conduta.
A previsão deste modelo bipartido com a correspondente extensão dos
danos
imputáveis
resultou
no
alargamento
do
campo
de
aplicação
da
responsabilidade civil consagrando o princípio da reparação integral da vítima de
larga defesa pela doutrina e jurisprudência.
Neste diapasão, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho assevera que “do ato
ilícito passou-se ao dano injusto, do causador passou-se à vítima. Ou seja, diante
do dano sofrido, a vítima fará jus à reparação integral, independentemente do juízo
de reprovação da conduta”2.
Contudo, a aludida busca pela reparação plena da vítima do dano como
corolário da expansão da esfera de atuação da responsabilidade civil perquirida aos
extremos conduz ao aniquilamento da iniciativa privada porquanto esta se vê
inviabilizada em função da elevada carga indenizatória proveniente da atividade
econômica, essencialmente produtora de riscos.
Tensão de tal ordem contrapõe de um lado, a proteção da vítima e de
outro a necessária conservação da atividade econômica que, em última análise,
interessa e beneficia a própria comunidade exposta aos riscos daquela.
Atento a tais implicações, o legislador, excepcionou o princípio da
reparação integral da vítima por meio do disposto no parágrafo único do artigo 944
1 Segundo Maria Celina Bodin de Moraes: “Uma cláusula geral de responsabilidade objetiva era, de há
muito, aventada pela doutrina germânica, liderando tendência, presente em alguns países
desenvolvidos, de incrementar as hipóteses reguladas pela responsabilidade sem culpa como meio de
oferecer melhor proteção e mais garantias aos direitos dos lesados. O Brasil parece ter sido o primeiro
país a concretizar tal anseio.” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. “Risco, Solidariedade e
Responsabilidade Objetiva”. In: Revista dos Tribunais, vol. 854, São Paulo: Revista dos Tribunais, dez.
2006, p.14).
2 FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Artigo 944 do Código Civil: O problema da mitigação do
princípio da reparação integral. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, n. 63.
Op.Cit.
85
85
do Código Civil1/2. É neste contexto que, buscando harmonizar a liberdade de
contratar, ínsita a prática negocial, com as necessidades sociais de proteção do
lesado, apresentam-se as cláusulas contratuais limitativas e excludentes do dever
de indenizar, a cláusula penal e o seguro de responsabilidade civil. Insta mencionar,
que
muito
embora
apresentem
similitudes,
as
cláusulas
de
não-indenizar
representam instrumentos autônomos.
Importante ressaltar, como bem observa Fábio Henrique Peres 3, que
diversamente do que
ocorre
com
a
cláusula
penal
e com
o
seguro
de
responsabilidade civil, as cláusulas de não-indenizar não possuem regulamentação
expressa no ordenamento jurídico brasileiro. Ao revés, recebem tratamento
legislativo esparso de acordo com o domínio disciplinado. Destarte, papel de
destaque assume a doutrina e a jurisprudência na sistematização do tema.
Exposto o panorama em que se inserem as cláusulas contratuais limitativas
e excludentes do dever de indenizar, o presente estudo será explorado no intuito de
delimitar o campo de validade e o espaço de aplicação das mencionadas
convenções.
Sendo assim, o trabalho em tela será organizado em três seções. Em
primeiro momento tratará da análise das principais características do instituto de
modo a definir suas funções e finalidades. Em segundo momento tratará das
possíveis estruturas adotadas pelas cláusulas de não-indenizar e das modalidades
reconhecidas pela doutrina e jurisprudência. Concluindo, tratará do exame dos
requisitos de validade das cláusulas contratuais excludentes e limitativas do dever
1 É controversa a questão acerca da aplicabilidade do parágrafo único do artigo 944 do Código Civil a
ambos os regimes de responsabilidade civil – objetiva e subjetiva - ou a apenas um destes. Argumenta
a primeira corrente pela limitação ao regime subjetivo de responsabilização. Neste sentido: KFOURI
NETO, Miguel. “Graus de culpa e redução equitativa da indenização”. In: Revista dos Tribunais, vol.
839, set. 2005, p. 49. Em sentido contrário defende-se a aplicação a ambos os sistemas de
responsabilidade. Por todos: FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Artigo 944 do Código Civil: O
problema da mitigação do princípio da reparação integral. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado
do Rio de Janeiro, n. 63. Op.Cit. Ressalte-se, por fim, que o Enunciado 380 da IV Jornada de Direito
Civil promovida pelo Centro de Estudos Jurídicos do Conselho da Justiça Federal ao modificar a redação
do Enunciado 46 que lhe é anterior, suprimindo a parte final deste, parece adotar o segundo
entendimento referido.
2 Registre-se, contudo, que abalizada doutrina critica a vinculação utilizada pelo dispositivo entre o
procedimento de liquidação de danos e o grau de culpa uma vez que a fixação da extensão da
indenização (o quantum debeatur), como afirmam, dá-se pela análise do dano e do nexo causal,
independentemente da culpa com que agiu o ofensor. Neste sentido, assinalou Gisela Sampaio da Cruz
que a reparação não se vincula à culpa e sim ao prejuízo causado pelo agente, o que se deve aferir por
meio da relação de causalidade. (CRUZ, Gisela Sampaio da.O Problema do Nexo Causal na
Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 325). Em acréscimo, Marcelo Junqueira
Calixto critica o equívoco do legislador ao vincular a determinação do quantum debeatur ao grau de
culpa do agente causador do dano argumentando que o ordenamento jurídico brasileiro não mais
reconhece relevância jurídica à teoria dos graus de culpa por “entendê-la conexa ao caráter punitivo, e
não meramente reparatório da responsabilidade civil”. Entretanto, propõe que a redução do valor da
reparação devida à vítima se fará com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana,
igualmente aplicável em relação ao causador do dano, o que autorizaria excepcionalmente a
diminuição do montante indenizatório com supedâneo em juízo de equidade e com fulcro no limite
humanitário da reparação (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa na Responsabilidade Civil. Estrutura e
Função. Rio de Janeiro. Renovar, 2008, pp. 364-365).
3 PERES, Fábio Henrique. Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. 1. ed.
São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 22.
86
86
de indenizar, analisando, à luz dos valores e princípios ínsitos ao sistema jurídico
brasileiro, as vedações que lhe são inerentes bem como aquelas decorrentes de
expressa previsão legal.
I. AS CONVENÇÕES DE EXCLUSÃO OU LIMITAÇÃO DO DEVER DE INDENIZAR E SUAS FUNÇÕES
1.1. O DÉBITO E A RESPONSABILIDADE
O primeiro passo para buscar compreender a cláusula de não-indenizar é
avaliar o dever ao qual se refere, ou seja, o objeto da limitação ou exclusão. Com
efeito, costuma-se diferenciar os deveres jurídicos em originários e sucessivos. O
dever jurídico originário refere-se ao conteúdo da obrigação, é a prestação
propriamente dita. De outro lado, o dever jurídico sucessivo origina-se da violação
do negócio jurídico, ou seja, se impõe em face do descumprimento de um vínculo
jurídico preexistente, substituindo-o.
Não é esta senão a distinção elaborada por Alois Brinz quando decompõe a
relação obrigacional em débito (“schuld”) e responsabilidade (“haftung”)1. De fato,
o débito corresponde ao mencionado dever jurídico originário enquanto a
responsabilidade ao dever jurídico sucessivo.
Traduzindo a prestação a ser espontaneamente cumprida, o débito
representa o substrato jurídico da obrigação legalmente imposta – o dever geral de
não prejudicar terceiros (neminem laedere), a exigência de respeito aos direitos da
personalidade e à propriedade alheia – ou convencionalmente assumida em
contratos ou declarações unilaterais de vontade. A responsabilidade, por sua vez,
representa o vínculo nascido da violação de outro dever que lhe é anterior, ou seja,
inaugura o momento patológico da relação. Este novo vínculo alberga em seu
conteúdo a reparação decorrente daquela lesão precedente.
E, neste conteúdo reparatório, ínsito à responsabilidade, reside a pretensão
jurídica do lesado em requerer o cumprimento coercitivo da obrigação assente no
débito. Daí impõe-se instrumentos como a execução específica, a exceção do
contrato não-cumprido, a cláusula resolutiva, entre outros.
É certo, porém, que a violação de um dever jurídico originário não encerra
apenas o cumprimento coercitivo. Isto porque, o conteúdo reparatório do dever
1 A distinção entre débito e responsabilidade deve-se ao alemão Alois Brinz. O autor divide a obrigação
em Schuld und Haftung. Decorre desta distinção a visão dualista do vínculo obrigacional, decomposto
em dois elementos: o débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung). Neste sentido, confira: PEREIRA,
Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. 2. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pp. 15-28.
87
87
jurídico sucessivo é amplo, abrangendo, por isso, a totalidade dos prejuízos
oriundos da sobredita violação.
De outro lado, nem todo o dever originário será passível de cumprimento
coercitivo – o que ocorre nas hipóteses de inadimplemento absoluto e naqueles
onde não há, via de regra, propriamente uma prestação a ser adimplida como nos
casos de responsabilidade aquiliana.
Esta é a razão pelo qual se impõe, ao lado dos mecanismos acima
dispostos, o pleito indenizatório. Perceba, então, que a obrigação sobre o qual as
cláusulas contratuais excludentes e limitativas do dever de indenizar se projetam é
aquela nascida da violação de um débito preexistente. Em síntese, a convenção de
não-indenizar é mecanismo do direito que se presta, ao lado dos instrumentos de
cumprimento coercitivo da obrigação, a dar concretude à responsabilidade.
Insta mencionar que face ao estágio atual de evolução da responsabilidade
civil e à inserção de cláusula objetiva de imputação no parágrafo único do artigo
927 do Código Civil, o dever jurídico sucessivo e, por conseguinte a reparação
devida pode, a par das hipóteses de produção de danos decorrentes de condutas
negligentes,
imprudentes
ou
imperitas,
originar-se
de
situações
em
que
independentemente da análise da culpa, há o exercício habitual de atividade
perigosa causadora de risco.
Neste contexto, configurado tão somente o risco não haverá obrigação de
indenizar. Esta nascerá quando o exercício da atividade criadora deste risco causar
dano a outrem. Em suma, o risco oriundo da atividade perigosa é potencial gerador
da obrigação de indenizar que tão só irá se concretizar em face da constatação,
segundo as regras do nexo de causalidade1, da ocorrência efetiva do evento danoso
oriundo daquela atividade2.
Em síntese, a responsabilidade, seja subjetiva ou objetiva, provém da
violação de um dever jurídico originário consubstanciado em uma obrigação legal
1 Para uma ampla resenha acerca das regras e pressupostos do nexo de causalidade confira: CRUZ,
Gisela Sampaio da.O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2005.
2Neste ponto, cabe mencionar a existência de divergência doutrinária a respeito da licitude ou ilicitude
do ato que enseja a responsabilidade objetiva. De um lado, há autores a sustentar a ilicitude do
referido ato uma vez que apenas restaria dispensada a análise da culpa do agente. De outro, defendese que a imputação de responsabilidade objetiva independe, além da análise da culpa, da violação de
qualquer dever jurídico pelo agente. E, ausente a violação, a obrigação de reparar decorreria de ato
lícito. Defendendo a licitude do ato que enseja a responsabilidade objetiva, Carlos Roberto Gonçalves
(Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 29) e Maria Celina Bodin de Moraes.
Cumpre transcrever a passagem em que autora defende o citado entendimento: “(...) inteiras searas
do direito de danos, antes vinculadas à culpa, hoje cumprem o objetivo constitucional de realização da
solidariedade social, através da ampla proteção aos lesados, cujos danos sofridos, para sua reparação,
independem completamente de negligência, imprudência, imperícia ou mesmo da violação de qualquer
dever jurídico por parte do agente. São danos (injustos) causados por atos lícitos, mas que, segundo o
legislador, devem ser indenizados.” (“Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva”. In: Revista
dos Tribunais, vol. 854, São Paulo: Revista dos Tribunais, dez. 2006, p. 25) (grifou-se). Sustentamos a
primeira corrente. Isto porque ocorrido o dano, há violação de um dever jurídico assente no
ordenamento jurídico de não prejudicar terceiros. Desta violação, portanto, decorre o caráter ilícito do
ato que ensejará o dever de reparar.
88
88
ou contratual preexistente. E, a depender do conteúdo da sobredita obrigação
constituir-se-á a responsabilidade extracontratual, derivada da infração de um
dever legal, ou a responsabilidade contratual, decorrente do inadimplemento de
avença estipulada pelas partes. Note, ainda, que na modalidade contratual, há um
vínculo jurídico específico e preexistente à ocorrência do dano entre os sujeitos da
relação
jurídica
correspondente,
o
que
resta
ausente
na
sistemática
da
responsabilidade aquiliana.
1.1.1. A INEXECUÇÃO COMO PRESSUPOSTO DA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
No que respeita à responsabilidade civil contratual, a relação jurídica que
dá azo à existência de uma obrigação, de um dever originário ou ainda de um
débito, se materializa em um instrumento contratual. Deste resulta um poder
jurídico especial imposto e reclamado reciprocamente de ambos os sujeitos da
relação jurídica originada do contrato. É, portanto, através de um dever de
colaboração mútua1 que se busca o adimplemento do negócio jurídico firmado, o
que consiste no cumprimento normal da obrigação.
De outro lado, a constatação da violação de obrigação pré-acordada em
contrato, apta a configurar a responsabilidade contratual, dá-se pela análise do
aspecto quantitativo em virtude do inadimplemento total ou parcial, do aspecto
qualitativo em virtude do inadimplemento absoluto ou relativo e por fim, pela
análise da violação positiva do contrato.
Isto posto, variáveis serão as consequências aplicáveis à relação contratual
a depender da modalidade de inadimplemento. Contudo, a par das medidas legais
singularmente consideradas, advindo prejuízo decorrente do descumprimento do
contrato, cabível a reparação, eis que da violação dos deveres, ditos originários
resulta a responsabilidade e o consequente dever de indenizar.
Estudados os pressupostos do dever de indenizar na seara contratual,
cumpre proceder à análise das cláusulas restritivas da indenização neste mesmo
âmbito.
1.2. AS CLÁUSULAS CONTRATUAIS LIMITATIVAS OU EXCLUDENTES DO DEVER DE INDENIZAR
1 Neste sentido, a obrigação não é mais reconhecida como um vínculo estático, e sim dinâmico, onde as
partes confundem-se no papel de credor e devedor, havendo obrigações e deveres mútuos. A doutrina
da obrigação como um processo foi capitaneada por Clóvis do Couto e Silva. A esse respeito, veja-se:
COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como Processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
89
89
A obrigação de indenizar resultado que é da violação de dever jurídico
originário deve em razão do princípio da reparação integral da vítima corresponder
ao montante integral do prejuízo causado pelo inadimplemento obrigacional. A
reparação integral, contudo, poderá ser excepcionada em virtude de lei 1ou de
convenção entre as partes.
Assim, atendidos os requisitos de validade, faculta-se às partes a inserção
em instrumento contratual de previsão no sentido de limitar ou mesmo excluir a
obrigação pela reparação, por ventura devida em virtude do inadimplemento.
Neste sentido, a limitação ou exclusão do dever de indenizar assegura aos
contratantes a redução dos riscos do negócio através da ciência prévia das regras
aplicáveis quando da eventual necessidade de definir o montante indenizatório
devido em função do inadimplemento. É dizer, a cláusula de não indenizar opera
seus
efeitos
no
momento
patológico
da
obrigação,
alterando
ou
mesmo
substituindo a solução legal prevista para as hipóteses de descumprimento
contratual2.
Com efeito, independentemente da modalidade de responsabilidade em
questão,
se
contratual
ou
extracontratual,
as
convenções
limitativas
ou
exoneratórias devem, por essencial, estar previstas em negócio jurídico celebrado
pelas partes, consubstanciada em cláusula acessória ao contrato principal ou em
ato separado.
Em todos os casos, a estipulação da cláusula deve ser anterior ao
inadimplemento. Do contrário, gozará de natureza diversa da cláusula de nãoindenizar,
aproximando-se
da
renúncia
ou
da
transação,
conforme
as
particularidades do caso concreto.
1.2.1. A NATUREZA ACESSÓRIA DAS CLÁUSULAS DE NÃO-INDENIZAR
1
2
90
O princípio da reparação integral é legalmente excepcionado pelas excludentes de ilicitude previstas no
artigo 188 do Código Civil uma vez que estas promovem o afastamento do dever de indenizar daquele
que em determinadas condições especiais deu causa ao dano. São elas: legítima defesa, estado de
necessidade e exercício regular do direito. Contudo, cabe ressaltar que tais institutos jurídicos não
terão, em todos os casos, o condão de excepcionar o dever de indenizar. É que, embora sejam lícitos,
os atos praticados nessas circunstâncias, poderão gerar a obrigação de reparar nas hipóteses dispostas
nos artigos 929 e 930 do Código Civil.
Insta mencionar que as cláusulas contratuais limitativas ou excludentes do dever de indenizar embora
associadas frequentemente à esfera contratual podem, igualmente, abranger a responsabilidade
aquiliana. Nada impede que o afastamento ou a mitigação de eventual dever de indenizar de origem
não contratual constitua objeto de um contrato próprio, celebrado justamente para este fim. Neste
ponto, ensina Aguiar Dias (Cláusula de não-indenizar. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 245):
“sem dúvida que não havendo contrato não pode haver cláusula que, por definição, é estipulação entre
várias. Contudo, a irresponsabilidade pode ser objeto de convenção autônoma, destinada a afastar a
responsabilidade extracontratual”. Assim, observados os requisitos de validade da cláusula de nãoindenizar na seara contratual, mormente o prévio acordo e aceitação expressa e, ainda, a verificação
de uma compensação pela anuência à limitação ou exclusão de eventual indenização, perfaz-se a
possibilidade de as partes, ao preverem a probabilidade da verificação de danos nas suas relações
extracontratuais, ajustarem, em instrumento autônomo a convenção de não-indenizar.
90
A convenção limitativa e excludente do dever de indenizar funciona como
mecanismo acessório, nunca como obrigação principal. Neste contexto, é sabido
que os atos e negócios jurídicos são constituídos por elementos essenciais
(essentialia negotti), elementos naturais (naturalia negotti) e elementos acidentais
(accidentalia negotti).
Quanto aos elementos acidentais é possível mencionar que são aqueles que
podem figurar ou não no negócio jurídico vez que são desnecessários à formação
deste. Assim, as partes, deles se utilizam para modificar a eficácia do ato ou
negócio, adaptando-a a vontade negocial esposada. Os elementos acidentais são,
portanto, estabelecidos em cláusulas acessórias que acrescem ao negócio celebrado
não em virtude de exigência legal, mas sim em função do exercício da autonomia
privada das partes. Assim, perfazem cláusulas ou estipulações estranhas ao tipo
negocial adotado, mas que se legitimam pela intenção volitiva das partes.
Dito isto, é de se notar que a cláusula de não-indenizar constitui elemento
acidental, acessório. Isto porque não dispõe sobre o objeto principal do contrato,
mas estabelece condições que se ligam ao cumprimento da obrigação principal
naquele instrumento asseverada. Neste sentido as estipulações aventadas podem
ser apostas em cláusula acessória às estipulações principais ou mesmo em
documento apartado, desde que, em todos os casos, o ajuste preceda ao
inadimplemento.
Note-se do exposto que os elementos acidentais ou acessórios exploram
efeitos dados ao negócio jurídico tão só em função da vontade das partes. Assim, a
escolha pela inserção de elemento acidental cabe exclusivamente às partes,
podendo estas se amparar em instrumentos típicos tais como a cláusula penal,no
direito brasileiro, ou atípicos, pois que carentes de sistematização legislativa, tais
como as cláusulas contratuais limitativas e excludentes do dever de indenizar.
Decorre também da natureza acessória da cláusula de não indenizar a
necessária análise da validade e existência da obrigação principal como requisito de
que dependerá a eficácia daquela. Assim é que em função do tradicional princípio
da gravitação jurídica a invalidade ou inexistência da obrigação principal implica a
desconstituição da obrigação acessória, o que se encontra disposto no artigo 184
do Código Civil. Conseqüência inevitável, portanto, é a extinção da cláusula de não
indenizar face a invalidação da obrigação principal. Questiona-se, todavia, a solução
a ser adotada quando da invalidade apenas da cláusula de não-indenizar.
Neste contexto, deve-se aplicar a regra geral para tão só manter a
obrigação principal despida da convenção acessória anulada? Ou, ao revés, poderá
a cláusula contratual limitativa ou excludente do dever de reparar conduzir a
nulidade da obrigação principal?
91
91
Em princípio, em face da redação do artigo 184 já mencionado as
respostas conduziriam a manutenção do negócio jurídico principal. Isto porque a
invalidade das obrigações acessórias não conduz necessariamente a da obrigação
principal uma vez que aquelas podem ser destacadas desta em observância ao
princípio da conservação dos atos e negócios jurídicos manifestado no brocardo
latino utile per unitile no vitiatur1.
Cumpre, todavia analisar que embora as cláusulas acessórias constituam
partes não integrantes do núcleo do negócio jurídico celebrado podem, por vezes,
somar-se a este como um todo indivisível no que concerne ao interesse das partes.
Explica-se: em que pese a não influência dos elementos acidentais na substância do
ato, podem estes figurar de tal modo na relação jurídica a ponto de demonstrar que
a sua ausência implicaria na perda do interesse negocial das partes no sentido da
não assunção da obrigação principal isoladamente em relação àquela acessória ou
na contratação em condições manifestamente diversas ou ainda na revisão judicial
de seus termos ou condições2.
Diante disso, entendemos que cabe afastar a presunção relativa que
conduz a preservação do negócio jurídico quando da invalidade da cláusula
acessória, notadamente da cláusula contratual ou exoneratória do dever de
indenizar. Sendo assim, a questão da manutenção do pactuado quando da
invalidade de cláusula acessória seria analisada sob o enfoque das especificidades
da situação posta, podendo resultar na preservação da obrigação principal como
também acarretar a invalidade desta.
Esta análise se impõe especialmente no que respeita às cláusulas de não
indenizar uma vez que as consequências da inserção destas convenções em dada
relação jurídica aderem intensamente ao interesse negocial manifestado pelas
partes quando do ajuste do objeto principal contratado. Veja-se. O devedor se vê
previamente ciente do quantum devido a título reparatório e o credor goza da
vantagem que lhe foi concedida em contrapartida a anuência à cláusula limitativa
ou excludente. Em síntese, as cláusulas contratuais exoneratórias ou limitativas
1
2
92
Esta técnica de preservação do negócio jurídico denomina-se redução do negócio jurídico.
Este é o entendimento que se pode extrair da redação do artigo 51, § 2º do Código de Defesa do
Consumidor: “A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando
de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes”.
Na linha do texto, Caio Mário da Silva Pereira defende a possibilidade da invalidação da obrigação
principal em face da nulidade da cláusula de não indenizar a depender das circunstâncias negociais, o
que se extrai da seguinte passagem: “(...) quando a cláusula adere por tal arte ao negócio que vem a
formar com ele um todo incindível, admitindo a interpretação de que um não se realizaria sem a outra,
a ineficácia daquela atinge a validade deste. Mas, ao revés, se a hermenêutica da vontade autoriza
concluir que se justapõe ao negócio com caráter acessório e depois se invalida, cai sem deixar mossa
na obrigação a que adere, pela aplicação da regra geral de que o perecimento do acessório deixa
subsistir o principal, e o seu efeito não o contagia; vitiatur sed non vitiat. A recíproca também é a
genérica: extingue-se como acessória, se a obrigação principal, por qualquer motivo, vem a invalidarse” (Instituições de direito civil, v.2. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 348).
92
convolam-se em mecanismos de manutenção do equilíbrio econômico da relação o
qual integram a título acessório.
Isto posto, a manutenção da obrigação principal frente à invalidade da
cláusula de não-indenizar, em todos os casos, representaria subversão da paridade
contratual antes verificada, a uma face ao prejuízo do devedor, que se veria
obrigado a manter a vantagem concedida ao credor sem que em contrapartida
gozasse das regras de limitação ou exclusão da indenização e a duas pois ao credor
aproveitaria benefício desproporcional uma vez que a par da garantia que lhe foi
concedida pela a anuência à inserção da cláusula de não-indenizar, não se
submeteria a restrição ou exclusão de eventual pleito indenizatório. Clara é,
portanto, a relação de indivisibilidade das convenções limitativas ou excludentes do
dever de indenizar para com o objeto principal contratado.
1.2.2. A EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE. PROBLEMAS COM A TERMINOLOGIA
As cláusulas de não-indenizar são objeto de inúmeras designações. A
adoção indiscriminada e por vezes despercebida de certas expressões acarreta
prejuízo ao conteúdo conceitual das cláusulas acessórias em tela.
Com efeito, as cláusulas contratuais limitativas ou excludentes do dever de
indenizar
são
comumente
confundidas
com
as
cláusulas
de
exclusão
da
responsabilidade ou cláusulas de irresponsabilidade. Ocorre que as convenções de
não indenizar se prestam tão somente a afastar a consequência normal do
inadimplemento, qual seja – a reparação devida. Subsiste o dever de prestar
ajustado originalmente no contrato, razão pelo qual, poderá o credor requerer a
execução específica da obrigação, se possível, bem como valer-se de outros
instrumentos que visam compelir o devedor a cumprir o ajuste, tais como o direito
de retenção e a exceção do contrato não-cumprido.
As cláusulas de irresponsabilidade, por sua vez, aplicam-se somente em
decorrência de previsão legal. Visam à exclusão da ilicitude e, por conseguinte, da
responsabilidade, como por exemplo, as hipóteses de caso fortuito e força maior, as
situações de legítima defesa, estado de necessidade e exercício regular do direito.
De outro lado, as cláusulas limitativas e excludentes resultam da autonomia
negocial das partes e incidem apenas sobre as consequências patrimoniais do
inadimplemento
obrigacional,
subsistindo
a
responsabilidade
inatingível
por
qualquer convenção que almeje a sua exclusão ou restrição. Disto, verifica-se que
as cláusulas de irresponsabilidade constituem instituto autônomo em relação às
convenções de não-indenizar.
93
93
Com efeito, no que concerne a limitação ou exclusão da indenização
decorrente da inexecução de uma obrigação, descabida é a utilização de
denominações tais como cláusulas de irresponsabilidade, cláusulas de exclusão da
responsabilidade ou similares, já que, conforme demonstrado, tais convenções
constituem instituto autônomo, a saber – trata-se de exceção legal a regra da
responsabilidade em que, não obstante reste configurada a conduta e o dano, o
agente não será responsabilizado.
Note,
portanto,
que
a
questão
ultrapassa
os
lindes
meramente
terminológicos. Assim, reconhecendo tratarem-se, as cláusulas de não indenizar e
as cláusulas de irresponsabilidade, de fenômenos jurídicos autônomos impõem-se
algumas considerações.
Em primeiro lugar, verifica-se a intangibilidade da responsabilidade pela via
da autonomia das partes vez que aquela representa emanação da ordem jurídica de
sorte que apenas por lei poderá ser excepcionada. Disto, decorre a restrição do
âmbito de atuação das cláusulas contratuais limitativas ou excludentes do dever de
indenizar que se cingem ao dever de reparar e nada poderão fazer quando a
configuração do ilícito de per se.
Em segunda análise, afasta-se o entendimento que propugna que o ajuste
de cláusula de não indenizar facultaria ao devedor a opção de não cumprir a
avença, convolando o dever jurídico originário em verdadeira obrigação natural,
destituída que é de exigibilidade. Com efeito, inarredável é a conclusão no sentido
de que a convenção tratada não torna despido de obrigatoriedade o dever jurídico
originário que, por sua vez, permanece ‘acompanhado’ da responsabilidade
(haftung) e, portanto, das sanções que lhe são ínsitas.Subsistem os instrumentos
coercitivos de adimplemento da obrigação, tais como as astreintes1.
Neste particular, a cláusula acessória em questão apenas afetará a
possibilidade de requerer perdas e danos em eventual ação judicial de reparação de
forma que limitará ou excluirá tal pleito a depender do ajustado pelas partes.
Da mesma forma, a previsão de cláusula de não indenizar mantém a
possibilidade de aplicação da cláusula resolutiva seja de maneira tácita ou
expressa2. Tampouco restará afastada pela limitação ou exclusão contratual do
dever de reparar a possibilidade de incidência nos contratos bilaterais do instituto
da exceção do contrato não cumprido, previsto no artigo 476 do Código Civil. Por
As astreintes correspondem à multa cominatória aplicada pelo magistrado como modo de coerção
indireta para a efetivação de obrigações de fazer e não fazer (art. 461 § 4º do CPC). Em síntese,
constituem método persuasivo para o devedor adimplir a obrigação.
2
A esse respeito, o artigo 475 do Código Civil dispõe que: “a parte lesada pelo inadimplemento pode
pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos
casos, indenização por perdas e danos”. Ressalte-se que, conforme já dito, a convenção excludente ou
limitativa derrogará apenas a parte final do dispositivo uma vez que prejudicará a possibilidade de
requerer indenização por perdas e danos.
1
94
94
fim, é possível ao credor invocar eventual direito de retenção relacionado ao
inadimplemento do devedor.
Isto posto, preenchidos os requisitos de validade, as cláusulas de não
indenizar, aplicar-se-ão à esfera patrimonial da avença, preservando-lhe a
exigibilidade e os mecanismos relativos à tutela do cumprimento obrigacional,
porém restringindo total ou parcialmente o pleito indenizatório.
II. MODALIDADES DAS CLÁUSULAS DE NÃO-INDENIZAR
Estudadas as funções e finalidades exercidas pelas cláusulas contratuais
limitativas e excludentes do dever de indenizar, cabe neste momento analisar-lhes
a estrutura. Importa, neste ponto, observar que o estudo que ora se propõe não
pretende ser exaustivo ou obedecer a rigorosos critérios de classificação. Isto
porque a ausência de sistematização legislativa somada ao dinamismo da prática
contratual implica, por diversas vezes, na utilização de modalidades de cláusulas de
não-indenizar diversas das então enumeradas pela doutrina.
Sendo assim, neste trabalho, são apresentadas algumas das principais
manifestações das convenções em estudo.
2.1. Limitação do Montante Indenizatório
A primeira modalidade de cláusula limitativa é aquela que estabelece um
limite máximo fixo ou determinável para o valor da indenização que pode
corresponder a uma quantia fixa ou determinável por meio de fórmulas estipuladas
pelos contratantes; a um percentual sobre o valor total dos danos ou a um valor
resultante da aplicação de outro critério válido aposto pelas partes.
Assim, estipulado teto máximo de eventual indenização limita-se o dever
de indenizar a este montante. Disto resulta grande proveito para as partes uma vez
que o conhecimento prévio acerca do possível valor indenizatório lhes propicia mais
segurança negocial face a concreta ciência dos riscos que permeiam a obrigação
assumida.
Apurados os danos efetivamente causados 1, a aplicação da modalidade da
cláusula de não-indenizar que estipula um montante determinado ou determinável
para o valor da indenização conduzirá a dois resultados possíveis. Caso o quantum
1
Perceba que a cláusula limitativa não dispensa a liquidação do dano. Situação diversa é a que se
verifica na cláusula penal, onde a necessidade de apuração é afastada uma vez que esta representa
montante invariável a ser pago pelo devedor em caso de inexecução da obrigação principal.
95
95
debeatur sobeje o valor estipulado como limite máximo à indenização, atendidos os
requisitos de validade da convenção limitativa, ficará o credor destituído de
reparação direta no que tange ao excedente. De outro lado, caso o valor apurado
seja inferior à quantia fixa ou determinável estabelecida, o credor receberá a
quantia exata a que correspondem os danos que suportou e, portanto, a
indenização a ser paga será inferior ao limite pactuado.
Note que, nesta segunda situação na qual o valor dos danos incorridos pelo
devedor é inferior ao limite máximo estipulado pelas partes, a adoção da
modalidade de cláusula restritiva da indenização que fixa limite máximo ao
montante
indenizatório
não
terá
produzido
efeitos
práticos.
Isto
porque,
distintamente do que ocorre na cláusula penal, não há prefixação ou liquidação
prévia de danos.
Perpassadas as questões relativas à modalidade de cláusula de nãoindenizar no qual se estipula contratualmente uma quantia fixa determinada ou
determinável para indenização, cabe analisar a hipótese da limitação do dever de
indenizar consubstanciada na estipulação de um percentual de danos indenizáveis.
Fixa-se, assim, uma porcentagem de “reparabilidade do valor dos danos
verificados”1. Representa, pois, variante da cláusula limitativa que fixa máximo
indenizatório. Entretanto, em que pese a similitude apontada, importante distinção
prática se impõe vez que a previsão de percentual a que se submeterá a obrigação
de indenizar resultará em quantum indenizatório necessariamente inferior ao valor
dos danos incorridos.
A par deste caráter, cumpre ressaltar que a estipulação de quantia fixa ou
determinável poderá, como dito, afastar a efetividade da restrição contratual da
indenização precipuamente quando os danos efetivamente verificados forem
inferiores ao valor indenizatório. Isto porque nesta hipótese a reparação devida
restringir-se-á aos danos apurados. Disto, resulta que a incidência da cláusula de
fixação de máximo indenizatório condiciona-se à verificação de prejuízos superiores
ao limite máximo estipulado, operando apenas nesta eventual situação.
Note-se, por fim, que a espécie de cláusula que fixa porcentagem de danos
indenizáveis
possui
a
desvantagem
de
não
permitir
aos
contratantes
o
conhecimento prévio do valor máximo de eventual indenização, porquanto a fixação
deste dependerá sempre da extensão dos danos aferidos no caso concreto.
2.2. Exclusão do Dever de Indenizar a Determinados Tipos de Danos
1
96
PRATA, Ana. Cláusulas de exclusão e limitação de responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina,
1985, p. 86.
96
Outra espécie de cláusula limitativa é a que restringe o dever de indenizar
face a consideração de que algumas espécies de danos não são ressarcíveis. É
dizer, estipula-se a exclusão de determinadas espécies de danos da esfera
indenizatória, como por exemplo, os lucros cessantes, ou delimita-se o dever de
reparar a determinados danos1/2.
É sabido que, na composição do dano, o ordenamento jurídico brasileiro
considera que o patrimônio do ofendido pode ser atingido de modo positivo (danos
emergentes) ou de modo negativo (lucros cessantes)3. É o que explica o artigo 402
do Código Civil.
Nada obstante, é facultado às partes afastar contratualmente a reparação
quanto a elemento que muito embora componha o dano efetivamente produzido, o
que, a princípio, conduz à obrigatoriedade do ressarcimento, não pretendam incluir
nas respectivas esferas do montante indenizatório. É neste sentido que se afasta o
preceito legal consubstanciado no artigo 402 do Código Civil, supramencionado.
Insta mencionar que em que pese a natureza limitativa, tal espécie de
convenção poderá, por via oblíqua, representar a exclusão contratual do dever de
indenizar, na hipótese em que apenas o dano cuja reparação foi excluída ocorrer.
Veja-se, se a partes acordarem que somente serão indenizados os danos
emergentes, nenhuma indenização será devida, se, na situação concreta, apenas os
lucros cessantes se verificarem. De outro lado, a cláusula de limitação da reparação
Importa assinalar a existência de controvérsia a respeito da possibilidade de exclusão do dano moral
da esfera de composição do montante da indenização. Com efeito, a indenização por danos morais é
corolário da tutela da dignidade da pessoa humana, princípio constitucionalmente previsto, razão pelo
qual, não seria lícito às partes excluir a reparação devida em face de lesão a atributo da personalidade
humana. Contra a validade de cláusulas nestes moldes, José de Aguiar Dias (“Cláusula de nãoindenizar”. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p 216) e Nilson Lautenschleger Jr. (“Limitação de
responsabilidade na prática contratual brasileira: permite-se no Brasil a racionalização dos riscos do
negócio empresarial?”. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 125.São
Paulo: Malheiros, jan/mar. 2002, p. 14).
2
Há controvérsia na doutrina a respeito da possibilidade de excluir a indenização relativa aos danos
indiretos. Todavia, cabe defender a impossibilidade desta exclusão não com base nos requisitos de
validade da cláusula contratual limitativa e excludente do dever de indenizar e sim com respaldo na
própria natureza dos referidos danos. Com efeito, o artigo 403 do Código Civil, prevê que: “[a]inda que
a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os
lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”. Disto
resulta que no direito brasileiro para que determinado dano seja ressarcido deverá ser consequência
necessária do inadimplemento ou da violação de disposição legal, ou seja, o dano indenizável é aquele
que se liga a determinada conduta por uma relação de necessariedade, aferível por meio das regras do
nexo causal. Do exposto, o dano indireto não é ressarcível à luz do direito brasileiro, razão pelo qual é
inócua a utilização de cláusula de não-indenizar com intuito de limitar ou excluir o dever de reparar
relativo a estes tipos de danos. A respeito das controvérsias em torno dos danos indiretos, confira a
obra de Gisela Sampaio da Cruz: O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005.
3 A respeito dos conceitos abordados, esclarece Gisela Sampaio da Cruz que os danos emergentes
compreendem a “efetiva diminuição que o patrimônio da vítima sofre em razão do dano injusto” e os
lucros cessantes, a seu turno, condizem com o “lucro que o lesado esperava obter, mas não chegou a
auferir por conta do evento danoso”. (O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Op. Cit., p.
315).
1
97
97
a determinados tipos de danos não produzirá efeito algum na hipótese em que os
danos cujo ressarcimento a convenção exclui não ocorrem.
2.3. Limitação dos Fundamentos do Dever de Indenizar
É igualmente possível conceber a limitação do dever de indenizarem razão
da restrição dos fundamentos da responsabilidade. Esta modalidade consubstanciase no afastamento da reparação pelo devedor no caso de mora, de inadimplemento
decorrente de culpa leve ou quando o dano resultar de atos de prepostos, auxiliares
ou terceiros em geral que, por iniciativa do devedor, interfiram no cumprimento da
obrigação.
A convenção em análise, assim como a modalidade de cláusula que limita o
dever de indenizar a determinados tipos de danos, não opera necessariamente. Isto
porque a eficácia da restrição dependerá do fundamento legal da responsabilidade
em que se apoiará a obrigação de indenizar no caso concreto. Explica-se:
estipulado o afastamento convencional do dever de indenizar fundamentado na
mora do devedor, permanecerá, este, obrigado face ao inadimplemento culposo.
Todavia, em razão de tal constatação ser variável e posterior à produção
dos danos, defende-se a natureza jurídica de cláusula contratual limitativa do dever
de indenizar da convenção ora aventada.
2.3.1. Cláusulas sobre Atos de Terceiros
Na vida moderna, negócios jurídicos em geral firmam-se a todo o
tempo. Ocorre que as partes interessadas na celebração destas avenças nem
sempre poderão contratar ou mesmo executar o acordado diretamente. Desta
realidade, surge o emprego de terceiros para auxiliar ou substituir o devedor na
execução de suas obrigações.
Atento a esta especificidade da civilização atual e visando a proteção
daqueles que se viam compelidos a suportar os danos causados por terceiro
que agia em benefício do sujeito de direito, real parte da relação jurídica, o
legislador delineou os contornos do regime da responsabilidade indireta ou por
fato de outrem.
Destarte, nos termos do artigo 932, inciso III do Código Civil, são
também responsáveis pela reparação civil “o empregador ou comitente, por
seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes
competir, ou em razão dele”. Em complemento, o artigo 933 do mesmo diploma
98
98
declara que, dentre as demais pessoas indicadas, o empregador ou comitente
respondem, independentemente de culpa, pelos atos de terceiros auxiliares.
Entende-se, contudo, ser possível excepcionar os dispositivos citados,
mediante o afastamento do dever de indenizar por atos de empregados, serviçais
ou prepostos através do ajuste de convenção contratual limitativa e excludente do
dever de indenizar, no âmbito das relações paritárias e observados os requisitos de
validade1. Note que a referida estipulação contratual representa espécie de cláusula
de limitação dos fundamentos da responsabilidade uma vez que se afasta a
reparação em hipótese que, pelo regime legal, aquela seria devida como
consequência da responsabilidade civil indireta.
No direito português, o artigo 800, n.2 do Código Civil 2, é o dispositivo que
cuida da exclusão e limitação convencional do dever de indenizar por atos de
terceiros representantes legais ou auxiliares. Em que pese a omissão do legislador
brasileiro, oportuna é a interpretação de António Pinto Monteiro 3, acolhida pelo
Supremo Tribunal de Justiça de Portugal 4, acerca do dispositivo mencionado.
O autor citado propôs que a análise da validade das cláusulas de nãoindenizar por atos de terceiros não deva ser feita uniformemente uma vez que seria
necessário empregar diferentes abordagens conforme o terceiro envolvido, se
auxiliar dependente do devedor ou autônomo em relação a este. No entendimento
do jurista, em se tratando de terceiro dependente, o devedor será responsável por
todos os seus atos e eventual convenção limitativa ou excludente apenas operará
afastando a indenização nos casos de culpa leve.
Neste contexto, torna-se relevante identificar a relação contratual objeto
de convenção de limitação ou exclusão do dever de indenizar como sendo de
subordinação ou dependência. Atento a tal consideração, o autor português propõe
critérios para tanto. O primeiro encerra análise econômica vez que determina a
identificação da relação de subordinação nas hipóteses em que o terceiro auxilia o
devedor na sua atividade econômica organizada ou não, com intenção de
permanecer. O segundo critério sugere que o vínculo de subordinação restaria
1
2
3
4
Admitindo a mesma possibilidade: PERES, Fábio Henrique. Cláusulas Contratuais Excludentes e
Limitativas do Dever de Indenizar. 1ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pp. 106-118.
“ARTIGO 800º (Actos dos representantes legais ou auxiliares). 1. O devedor é responsável perante o
credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da
obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor. 2. A responsabilidade pode ser
convencionalmente excluída ou limitada, mediante acordo prévio dos interessados, desde que a
exclusão ou limitação não compreenda actos que representem a violação de deveres impostos por
normas de ordem pública” Disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugal_codigocivil.pdf
(Último acesso em 13/10/2014).
PINTO MONTEIRO, António. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. Coimbra:
Almedina, 2003, pp. 287 e seguintes.
Na esteira do afirmado por Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato: cláusulas de
exclusão e limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.
46 apud PERES, Fábio Henrique. Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de
Indenizar. 1ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 110.
99
99
presente quando ao devedor for possível exigir condutas e dar ordens ao terceiro
auxiliar ou representante.
Assim, na hipótese da exclusão ou limitação da indenização por atos de
terceiros subordinados ao devedor, Pinto Monteiro1 entende que se aplicam os
mesmos requisitos de validade das cláusulas de não-indenizar por atos do próprio
devedor.
Com efeito, havendo a sujeição dos terceiros a um vínculo de subordinação
com o devedor, o que importa no cumprimento de ordens e na modulação da
conduta conforme as instruções deste, representaria tamanha contradição o
estabelecimento de requisitos diversos para a validade das cláusulas de nãoindenizar relativa aos atos de terceiros subordinados e para aquelas relativas aos
atos do próprio devedor.
Ademais, admitindo a fixação de requisitos diversos a incidir sobre
terceiros dependentes de um lado e sobre o próprio devedor “mandante” de outro,
seria possível estabelecer critérios ora mais flexíveis ora mais rígidos para que um
ou outro dos sujeitos mencionados lograsse a inserção válida de convenção de nãoindenizar na relação contratual sobre o qual atuam. Note a incongruência
decorrente desta situação: Havendo a admissão de requisitos de validade mais
flexíveis no tocante a cláusula limitativa ou excludente por atos de terceiros
dependentes, o devedor utilizando-se de terceiros subordinados e, portanto,
sujeitos às suas determinações, ao ajustar a limitação ou exclusão do dever de
indenizar por atos de tais terceiros, restaria em situação mais favorável do que se
cumprindo diretamente a obrigação estipulasse igualmente a cláusula de nãoindenizar incidente, ao revés, sobre os seus próprios atos.
Esta incongruência se reforça pela análise das características atuais da vida
moderna. Com efeito, Fábio Henrique Peres assevera que hodiernamente “a imensa
maioria das obrigações assumidas pelo devedor – seja em relações paritárias ou
nas marcadas pela vulnerabilidade econômica de um dos pólos contratantes – não
é, na prática, diretamente cumprida por este, mas sim efetivamente executada por
terceiros a ele subordinados – a qualquer título, sejam empregados ou não. Assim,
admitir regras próprias para a validade das cláusulas contratuais de limitação ou
exclusão de dever de indenizar por atos de tais terceiros dependentes, além de
conduzir a uma manifesta contradição no sistema jurídico, permitiria a criação de
um mecanismo legal apto a ensejar o contorno a normas imperativas” 2 (grifou-se).
PINTO MONTEIRO, António. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 274. Importa mencionar que José de Aguiar Dias compartilha do mesmo
entendimento supra (DIAS, José de Aguiar. Cláusula de não-indenizar. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
1980, p. 140).
2
Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. Op. Cit., p. 114.
1
100
100
Igual solução, qual seja, aplicação dos mesmos requisitos de validade para
a cláusula de não-indenizar por atos de terceiros dependentes e por atos do próprio
devedor, se impõe para o tratamento a ser dado às condições de validade das
convenções de limitação ou exclusão do dever de indenizar empregadas para
restringir ou subtrair a reparação por danos produzidos por atos de representantes
de devedor pessoa jurídica.
Explica-se: a pessoa jurídica, como sujeito de direito, é dotada de
personalidade jurídica, o que significa que possui aptidão genérica para adquirir
direitos e contrair obrigações. Todavia, esta capacidade é revelada na prática
negocial através de seus órgãos sociais que manifestam a vontade da pessoa
jurídica, evidenciando o que se convencionou chamar de presentação.
Do exposto, entende-se que os atos daqueles órgãos ou pessoas que agem
em nome e por conta da pessoa jurídica não podem ser juridicamente qualificados
como atos de terceiros em relação a tal sujeito de direito, já que, conforme
explicitado, não há duplicidade de vontades nesta relação e sim apenas uma
manifestação volitiva única da pessoa jurídica por meio de seus órgãos ou
presentantes em geral. Destarte, impõe-se que os atos destes últimos sejam
considerados como atos da própria pessoa jurídica beneficiada por sua atuação1.
Disto
resulta
que
eventual
cláusula
de
não-indenizar
inserta
em
determinado negócio jurídico operará segundo a dinâmica da restrição do dever de
reparar por atos próprios, não se inserindo na sistemática da responsabilidade
indireta ou por fato de terceiro. Sendo assim, os requisitos de admissibilidade das
cláusulas relacionadas aos atos dos presentantes legais ou convencionais do
devedor pessoa jurídica deverão, como dito, seguir os parâmetros gerais de
validade destas convenções.
Situação diversa, também abordada pelo doutrinador português, condiz
com a exclusão ou limitação convencionais do dever de indenizar por atos de
terceiros auxiliares com autonomia perante o devedor. Nesta hipótese, o autor
defende que em relação a terceiros independentes é facultado, ao devedor, afastar
o dever de indenizar que lhe caberia mesmo em caso de dolo ou culpa grave
daquele terceiro.
Em outras palavras, para António Pinto Monteiro, o devedor poderá limitar
ou excluir o seu dever ressarcitório pelos atos de terceiros independentes em
termos mais amplos do que se fosse ele próprio ou um auxiliar sem autonomia a
cumprir a obrigação pactuada, uma vez que, como dito, poderá se utilizar, neste
1
É certo, porém, que eventuais excessos empregados por aqueles que presentam a pessoa jurídica, no
exercício de suas atribuições, recebem tratamento da legislação pertinente. É o que explica, por
exemplo, o artigo 1.016 do Código Civil, a saber: “Os administradores respondem solidariamente
perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”.
101
101
caso, de cláusula de não-indenizar para excluir ou limitar a reparação inclusive em
caso de dolo ou culpa grave do terceiro independente, desde que haja acordo
prévio do credor neste sentido1.
Em que pese a controvérsia acerca da possibilidade de exclusão da
responsabilidade indireta inclusive a título de dolo ou culpa grave do terceiro,
parece não haver incongruência na sua admissão. Isto porque, a hipótese respeita
ao terceiro autônomo e independente que age, portanto, com liberdade moral e
intelectual em relação ao devedor, o que se opõe diametralmente à situação em
que o terceiro atua com subordinação. Por conclusão lógica, a cláusula de nãoindenizar não teria sua validade prejudicada, desde que atendidos os seus
requisitos e aposta em relação paritária, quando visasse a afastar, total ou
parcialmente, o dever de indenizar do devedor originário em virtude de dolo ou
culpa grave do terceiro independente.
Nesta situação, segundo defende Fábio Henrique Peres, “as partes
contratantes estipulariam apenas que ocasional atitude dolosa dos terceiros
independentes dirigida no sentido de não cumprir a obrigação contratualmente
assumida pelo devedor não ensejaria o dever de este reparar os danos daí
causados ao outro contratante. Em outras palavras, ocorreria mera transferência
dos riscos dos eventuais ônus financeiros decorrentes de tal fato da esfera jurídica
do devedor para a do credor, mediante alguma compensação, direita ou indireta,
percebida por este”2.
Cumpre esclarecer que neste caso não cabe alegar o enfraquecimento
excessivo da posição jurídica do credor, uma vez que este foi compensado
inicialmente por alguma vantagem negocial em contrapartida a anuência à cláusula
de não indenizar e, ainda, possui ação direta em face do terceiro independente com
o qual contratou muito embora tal demanda seja baseada na responsabilidade
aquiliana o que se reconhece, acarreta maior dificuldade à atividade probatória.
Não obstante, subsiste, ainda, a faculdade creditícia de exigir o cumprimento
coercitivo da obrigação pelo devedor por meio de instrumentos hábeis para tanto,
tais como a execução específica, o direito de retenção, a exceção do contrato não
cumprido, entre outros3.
Nuno Manuel Pinto Oliveira critica a tese defendida por António Pinto Monteiro. Neste sentido, confira o
seguinte trecho: “(...) admitir a exclusão ou a limitação da responsabilidade por actos de auxiliares ou
de representantes legais em caso de incumprimento imputável a título de dolo ou a título de culpa
grave equivalerá a aceitar a exclusão ou a limitação da responsabilidade do dever por um dolo que é
juridicamente seu ou por uma culpa grave que é juridicamente sua” (Cláusulas acessórias ao contrato:
cláusulas de exclusão e limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais. 3ª. ed. Coimbra:
Almedina, 2008, p. 60 apud AVELAR, Letícia Marquez de. A Cláusula de Não Indenizar: uma exceção
do direito contratual à regra da responsabilidade civil. Curitiba: Juruá, 2012, p. 57).
2
Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. Op. Cit., p. 117.
3
A esse respeito, confira o item 1.2.2.
1
102
102
Após expor a doutrina de António Pinto Monteiro, necessária é a análise da
tese à luz do direito brasileiro. Pois bem. O artigo 932, inciso III do Código Civil
brasileiro, expressa de forma minuciosa e clara que são também responsáveis pela
reparação civil, “o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e
prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”. Ao revés,
o artigo 800, n. 1, ao dispor acerca do tema prevê que: “O devedor é responsável
perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que
utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo
próprio devedor”.
Da comparação entre os dispositivos, é possível concluir que o direito
português alberga a responsabilização daquele a quem beneficia a atuação do
terceiro de modo abrangente, possibilitando a inclusão de terceiros subordinados e
terceiros independentes no âmbito de incidência do artigo 800 do Código Civil
português, na forma da interpretação de António Pinto Monteiro. Ao revés, a
legislação brasileira refere-se especificamente a responsabilidade dos empregados,
serviçais e prepostos que atuam em nome e por conta daquele o qual representam.
E, é sabido que empregado, serviçal ou preposto é todo aquele que presta
serviço ou realiza alguma atividade por conta e sob a direção de outrem, podendo
essa atividade ser permanente ou transitória. Ademais, a relação de emprego ou
preposição traz sempre uma ideia de subordinação.
Do exposto, percebe-se que no direito brasileiro, para esta hipótese –
terceiros representantes legais ou auxiliares que por iniciativa do devedor,
interfiram no cumprimento da obrigação - apenas é prevista a responsabilização
por fato de outrem, quando se tratar de terceiro sem autonomia perante o devedor.
Isto é, para que responda o empregador ou comitente, deve o resultado danoso ter
sido causado pelo empregado, serviçal ou preposto, ou seja, terceiros dependentes.
E, nestes casos, conforme entendimento de António Pinto Monteiro, o devedor será
responsável por todos os atos dos terceiros a ele subordinados e eventual
convenção limitativa ou excludente apenas operará afastando a indenização nos
casos de culpa leve daqueles. Ao revés, o afastamento convencional do dever
reparatório não produzirá nenhum efeito no caso de o dano ter sido causado por
dolo ou culpa grave dos terceiros subordinados uma vez que esta disciplina é,
segundo a tese defendida pelo doutrinador português, aplicável apenas aos
terceiros autônomos em relação ao devedor.
De rigor, notar que o mesmo se aplica para os atos praticados pelos
presentantes da pessoa jurídica, já que, conforme defendido, a manifestação
volitiva
daqueles
representa,
em
verdade,
ato
próprio
da
pessoa
jurídica
beneficiada.
103
103
Isto posto, desnecessária é a pretensão de exclusão ou limitação do dever
de indenizar daquele que se beneficia de ato de terceiro independente, uma vez
que nestes casos, segundo disposto no ordenamento jurídico pátrio, não restaria
configurada
a
responsabilidade
indireta,
sendo,
ao
terceiro,
atribuída
responsabilidade direta pelos danos que causar.
2.4. EQUIPARAÇÃO A HIPÓTESES DE CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR
A responsabilidade do devedor exclui-se, em regra, quando os prejuízos
sofridos pelo credor se devam a caso fortuito ou de força maior. É o que explica o
artigo 393 do Código Civil.
Em que pese a conceituação destes termos ser polêmica, tanto o caso
fortuito quanto o de força maior desincumbem o devedor de responder pelas perdas
e danos a que a sua inexecução deu causa. O afastamento do dever de indenizar
dar-se-á pela exclusão da responsabilidade civil a partir da interrupção ou quebra
do nexo causal uma vez que há causa estranha à conduta do devedor a provocar a
impossibilidade do cumprimento ou o cumprimento defeituoso do acordado 1.
A despeito dos casos reconhecidamente enquadrados na conceituação de
fortuito ou caso de força maior2, podem as partes convencionar que determinadas
situações ou acontecimentos equiparar-se-ão a tais hipóteses para efeito de
imputação do dever indenizatório.
Neste sentido, configura-se a cláusula de não-indenizar em comento
quando, nos dizeres de Ana Prata, verifica-se a presença de “casos de força maior
assimilados” e/ou “presunções de fortuito”. Trata-se, portanto, de cláusula
restritiva da reparação que equipara determinados acontecimentos a casos fortuitos
ou de força maior, excluindo, assim, a indenização que seria devida na ocorrência
de tais situações equiparadas.
Assim, por meio de cláusula desta natureza, as partes poderão acordar que
a inexecução decorrente da falta de um fornecedor ou de instabilidade econômica,
por exemplo, constituirá fatalidade não atribuível ao devedor uma vez que se
1
2
104
Nesta linha, defende-se que as excludentes de responsabilidade civil – fato exclusivo da vítima, fato
exclusivo de terceiro e caso fortuito ou de força maior – operam a partir da interrupção do nexo de
causalidade. Por todos: CRUZ, Gisela Sampaio da.O problema do nexo causal na responsabilidade civil.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 192 e seguintes.
É o caso do assalto a ônibus de transporte coletivo que quando não considerado acontecimento comum
ou corriqueiro pode, a depender das circunstâncias do caso concreto, caracterizar hipótese de fortuito
externo. A esse respeito confira a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Responsabilidade
civil. Transporte coletivo. Assalto à mão armada. Força maior. Constitui causa excludente da
responsabilidade da empresa transportadora o fato inteiramente estranho ao transporte em si, como é
o assalto ocorrido no interior do coletivo. Precedentes. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, 2ª
Seção, REsp. 435.865, Rel. Min. Barros Monteiro, julg. 09.10.2002, publ. DJ 12.05.2003).
104
tratará de casos fortuitos ou de força maior enumerados pelos contratantes de
acordo com os seus interesses. Destarte, nas situações equiparadas o devedor não
responderá pelos prejuízos, o que equivalerá à exclusão do dever de indenizar ou a
limitação deste na hipótese de uma concorrência de causas.
Neste contexto, António Pinto Monteiro1 elenca requisito próprio para a
validade das cláusulas de não-indenizar em comento. Assim, para o autor
português, é necessário que as hipóteses equiparadas a casos fortuitos ou de força
maior resultem de circunstâncias estranhas ao controle do devedor bem como
representem acontecimentos determinados e precisos. Concordamos com os
ensinamentos do doutrinador na medida em que o caso fortuito ou de força maior
constitui acontecimento alheio à atuação do agente, ou seja, trata-se de fatalidade.
Destarte, equiparar situações imputáveis ao devedor ou controláveis por este a
hipóteses de fortuito ou força maior iria de encontro ao cerne da referida
excludente de responsabilidade, bem como representaria conduta contraditória do
devedor reprimida pela teoria da contradição com a própria conduta ou venire
contra factum proprium2.
Por fim, pertinente é a observação de Fábio Henrique Peres 3 para quem a
modalidade de cláusula de não-indenizar em análise apresenta importante
vantagem prática uma vez que a especificação e concretização dos conceitos vagos
e imprecisos subjacentes ao fortuito e a força maior assegura maior segurança
jurídica à relação em que é aposta tal espécie de cláusula restritiva ou excludente
da indenização.
2.5. CLÁUSULAS SOBRE ATOS OU ABSTENÇÕES DO CREDOR
Ana Prata defende a possibilidade de excluir ou limitar a indenização devida
em função da prática ou não, pelo credor, de determinados atos previstos no
contrato4.
Dito isto, vê-se que as convenções desta natureza, incidem, de um lado,
sobre o conteúdo do negócio celebrado, mediante a estipulação de obrigação
contratual para o credor, e de outro, sobre a limitação ou exclusão do dever de
reparar do devedor como efeito de eventual não observância pelo credor da
obrigação convencionalmente constituída.
MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 109.
2
A esse respeito, confira a obra de Anderson Schreiber, A proibição do comportamento contraditório:
tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
3
Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. Op. Cit., p. 98.
4
Cláusulas de exclusão e limitação de responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina, 1985, p. 69.
1
105
105
Esta modalidade de cláusula de não-indenizar pode ser encontrada, por
exemplo, nos contratos de aquisição do serviço de pagamento eletrônico de
pedágio - “Sem Parar/ Via Fácil”, onde se obriga o consumidor a respeitar um limite
de velocidade ao passar pelo pedágio eletrônico, sob pena de a cancela do
equipamento não ser aberta a tempo de liberar a passagem do veículo e de ter o
consumidor de arcar com todos os ônus decorrentes da colisão do veículo com a
cancela. Trata-se, igualmente, desta espécie de cláusula, quando em contrato
firmado entre o consumidor e a administradora do cartão de crédito impõe-se ao
primeiro a obrigação de comunicar imediatamente a administradora de eventual
roubo, furto ou extravio do cartão sob pena de imputar ao consumidor a
responsabilidade absoluta pelas compras realizadas com o cartão de crédito
roubado, furtado ou extraviado até o momento (data e hora) da comunicação do
ocorrido1.
Em que pese a ampla utilização das cláusulas de limitação ou exclusão do
dever de indenizar por atos ou abstenções do credor, mormente nos exemplos
citados, há que atentar-se para os requisitos de validade das cláusulas de nãoindenizar, quaisquer sejam as modalidades adotadas.
Neste sentido, as cláusulas contratuais limitativas e excludentes do dever
de indenizar foram expressamente proscritas no âmbito das relações regidas pelo
Código de Defesa do Consumidor conforme dispõe os artigos 25 e 51, inciso I do
referido diploma. Do exposto, para aferir a validade das cláusulas citadas nos
exemplos supra, há que se fazer ponderação com a proteção consumerista, mote
da proibição da inserção de cláusula que exonere ou limite a obrigação de
indenizar.
Destarte, no caso do pedágio eletrônico, a cláusula que exclui o dever de
reparar da prestadora do serviço na hipótese de o consumidor ultrapassar a cancela
em velocidade superior ao estipulado, ocasionando danos ao veículo, visa, por fim
último tutelar aquele que se utiliza do referido serviço uma vez que se fundamenta
na
segurança
dos
usuários.
Ademais
a
condição
para
funcionamento
do
equipamento, qual seja, o respeito a um determinado limite de velocidade, não
representa imposição desproporcional ao consumidor. É neste sentido que se
defende a admissibilidade da exclusão do dever de indenizar nesta hipótese.
De outro lado, no caso da administradora do cartão de crédito que exige a
comunicação imediata do furto, roubo ou extravio do cartão sob pena de restar
excluída a obrigação de reparar daquela pelas eventuais comprar realizadas até o
momento da comunicação do ocorrido, entende-se que a obrigação imposta ao
1
106
Os exemplos citados foram retirados da obra de Letícia Marquez de Avelar. A Cláusula de Não
Indenizar: Uma exceção do direito contratual à regra da responsabilidade civil. Curitiba: Juruá, 2012,
p. 66.
106
consumidor, credor da indenização devida, é desarrazoada já que o coloca em
situação de extrema desvantagem uma vez que nem sempre será possível perceber
de
imediato
a
falta
do
cartão
de
crédito.
Em
acréscimo,
é
dever
das
administradoras dos cartões de crédito e das lojas em geral, apurar a regularidade
no uso dos cartões, exigindo, por exemplo, a apresentação de documento de
identidade do portador do cartão a fim de conferir a assinatura aposta no ato da
compra. Em face do exposto, defende-se ser inválida a inserção de cláusula de nãoindenizar nestes moldes.
2.6. LIMITAÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL
É sabido que o inadimplemento de uma obrigação ou a violação de um
dever legal produz um desequilíbrio na relação entre as partes envolvidas. Nesta
premissa e à luz do princípio da responsabilidade patrimonial, baseia-se o direito
para conceder ao credor instrumentos para haver do responsável, por meio da
execução dos bens deste, o equivalente à prestação ou a reparação, mais o
ressarcimento por outros prejuízos a que a inexecução ou o desrespeito a preceito
legal tenha dado causa. Esta possibilidade de responsabilização patrimonial do
devedor pelo débito assumido nos direciona a noção de garantia. Em síntese, “pelos
débitos assumidos voluntariamente ou decorrentes da força da lei, respondem os
bens do devedor, tomado o vocábulo “bens” em sentido genérico, abrangentes de
todos os valores ativos de que seja titular”1.
E, no ordenamento jurídico brasileiro, os artigos 391 e 942, ambos do
Código Civil, representam a adoção legislativa do mencionado princípio da
responsabilidade
patrimonial2
no
campo
da
responsabilidade
contratual
e
extracontratual, respectivamente.
Assim, via de regra, todos os bens do devedor permanecem num “estado
de sujeição” enquanto a obrigação não for cumprida. É possível, contudo,
excepcionar tal sistemática, estabelecendo por meio de cláusula contratual
limitativa e excludente do dever de indenizar, que nem todo o patrimônio do
devedor responderá pelo inadimplemento obrigacional, ou seja, é ajustada a
1
2
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. 4. 21a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012,
p. 273.
A adoção do princípio da responsabilidade patrimonial com todas as consequências que lhe são
advindas é, segundo nos informa Caio Mário da Silva Pereira, “uma conquista da civilização”
(Instituições de direito civil, v. 4. 21a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 273)
107
107
redução da garantia patrimonial de que dispõe o credor para satisfazer a prestação
que lhe deve o obrigado1.
Neste contexto, podem as partes optar por excepcionar determinados bens
da garantia patrimonial, permanecendo, o devedor, responsável com todos os
demais bens, o que, António Pinto Monteiro convencionou denominar delimitação
negativa2. De outro lado, é possível destacar bens determinados do acervo
patrimonial do devedor, hipótese em que apenas estes bens se sujeitarão à
satisfação da obrigação inadimplida, o que, o mencionado autor português,
convencionou chamar de limitação positiva3.
Destarte, a constituição de avença desta natureza configura limitação
indireta do dever de indenizar com efeitos semelhantes aos da modalidade de
limitação do montante indenizatório pelo qual se estabelece limite máximo fixo ou
determinável para a quantificação daquele quantum4. Isto porque a redução da
garantia patrimonial do devedor não conduzirá necessariamente a limitação ou a
exclusão do dever de indenizar daquele, uma vez que os bens do obrigado
abrangidos pela cláusula de não-indenizar sob análise podem quedar-se suficientes
para satisfazer a prestação inadimplida, hipótese em que a convenção não
produzirá efeitos.
Assim, em se optando pela inserção de limitação positiva da garantia
patrimonial, o credor possui a vantagem de conhecer previamente o acervo que
garante a eventual e futura indenização. Neste contexto, defende, Fábio Henrique
Peres5, que ausente qualquer estipulação negocial a respeito da alienação dos bens
abrangidos pela cláusula de limitação positiva, restará, obrigado, o devedor, via de
regra, a substituir ou reforçar a garantia em caso de deterioração, alienação,
depreciação, perecimento ou desapropriação dos bens destacados vez que
necessário é manter eficaz a garantia outorgada ao credor, sob pena, de
esvaziamento da limitação positiva operada pela cláusula de não-indenizar.
A inserção de cláusula de limitação negativa, por sua vez, poderá importar
ou não em prejuízo para o credor. Isto porque, conforme mencionado, em face do
ajuste de cláusula desta natureza, o devedor permanecerá respondendo com todos
A par desta possibilidade oriunda de ajuste contratual, o legislador excepcionou a regra do artigo 391
do Código Civil destacando alguns bens do devedor de modo a excluí-los da ‘garantia geral’ em que
consiste o patrimônio do obrigado. Destacam-se, neste sentido, o imóvel residencial do devedor, os
móveis que lhe guarnecem a residência e os equipamentos de uso profissional, impenhoráveis por
força do art. 1o da Lei n. 8.009/1990; o bem gravado com cláusula de inalienabilidade ou
impenhorabilidade (artigo 1.911 do Código Civil) ou, por outro motivo, inalienável (artigos 649, inciso
I, 1.164, 1.331, § 2o e 1.339, § 1o, todos do Código de Processo Civil); o crédito alimentício (artigo
1.707 do Código Civil); o bem de família (artigo 1.711 do Código Civil), dentre outros.
2
Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2003, p. 113.
3
Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2003, p. 113.
4
A respeito da cláusula de não-indenizar que opera por meio da limitação do montante indenizatório,
confira o item 2.1 o presente trabalho.
5
Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. 1a ed. São Paulo: Quartier Latin,
2009, p. 105.
1
108
108
os seus bens, salvo os que expressamente excepcionar. Desta sistemática resulta a
aplicação da acepção geral da garantia pelo qual o patrimônio do devedor visa à
satisfação da pretensão creditória quando inadimplido o débito.
Sendo assim, a extensão da garantia, neste caso, dependerá do aumento
ou diminuição do patrimônio do devedor. Veja: pode ocorrer a diminuição
patrimonial do devedor face a ocorrência de crise econômica que afete a atividade
empresarial por aquele desenvolvida, via de exemplo. Registre-se, contudo, que, a
possibilidade de redução do patrimônio do devedor é repudiada por António Pinto
Monteiro, para quem a cláusula de limitação negativa apenas poderá ser benéfica
para o credor1.
Todavia, na esteira do defendido por Fábio Henrique Peres 2, entendemos
que a obrigação suscitada de “não diminuir o patrimônio” poderá ocorrer por
fatores alheios à vontade do devedor - crise econômica, desastres naturais que
abalem o desenvolvimento da atividade empresarial, entre outros - constituindo,
portanto, obrigação de meio e não de resultado. Dito isto, ressalvada a atuação
maliciosa do devedor, não deve este ser responsabilizado pela diminuição do
patrimônio sobre o qual incida a cláusula de limitação negativa.
A par destas considerações, tanto no âmbito da cláusula de limitação
positiva como no da limitação negativa, serão, nos termos da lei, especificamente
punidas, a alienação/oneração fraudulenta dos bens do devedor que se prestam a
garantia de suas obrigações.
III. REQUISITOS DE VALIDADE DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS LIMITATIVAS E
EXCLUDENTES DO DEVER DE INDENIZAR
A ausência de sistematização legal do regime das cláusulas de nãoindenizar no direito positivo brasileiro exige do intérprete e operador do direito o
desenvolvimento de atividade integrativa de amplo espectro. Em verdade, as
convenções excludentes e limitativas do dever de indenizar encontram guarida na
lei de forma pontual uma vez que recebem tratamento legislativo esparso em
normas específicas voltadas a regulamentar domínios próprios.
Em que pese a omissão do legislador, as cláusulas de não-indenizar vem,
atualmente, sendo admitidas no direito brasileiro3, uma vez respeitados os
requisitos para sua validade e as vedações específicas que lhes são impostas.
Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2003, p. 113.
Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. Op. Cit., pp. 105-106.
3
Admitindo a cláusula contratual excludente e limitativa do dever de indenizar no direito brasileiro:
Fábio Henrique Peres (Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. 1a ed.
São Paulo: Quartier Latin, 2009), José de Aguiar Dias (Cláusula de não-indenizar. 4a ed. Rio de
1
2
109
109
E, visando fundamentar a admissibilidade das convenções acessórias ora
analisadas, doutrina majoritária, após constatar, de um lado, a ausência de
vedação genérica expressa e, de outro, a existência apenas de interdições
pontuais1, elenca o princípio da autonomia da vontade e a liberdade de contratar
como pilares a sustentar a validade das cláusulas limitativas e excludentes do dever
de indenizar2. Isto porque, a ausência de expressa proibição faculta às partes o
estabelecimento de sistemática indenizatória diversa da prevista no modelo legal
quando sobre a relação jurídica específica não incida vedação pontual3.
Assim, sendo certo que segundo o princípio da legalidade disposto no
artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, aos indivíduos, no campo privado, é
permitido fazer tudo quanto a lei não vede, lícito é a estipulação da limitação ou
Janeiro: Forense, 1980), Sergio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil. 9a ed. São Paulo:
Atlas, 2010), Letícia Marquez de Avelar (A Cláusula de não-indenizar: Uma exceção do direito
contratual à regra da responsabilidade civil. Curitiba: Juruá, 2012) No direito português, a cláusula de
não indenizar também é admitida, entre outros, por: António Pinto Monteiro (Cláusulas limitativas e de
exclusão de responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2003) e Ana Prata (Cláusulas de exclusão e
limitação de responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina, 1985). De outro lado, inadmitindo a
cláusula de não-indenizar, confira a doutrina de Ruy Rosado de Aguiar Júnior: “A existência de cláusula
de não indenizar, celebrada anteriormente a resolução, é contrária a lei e, assim como a renúncia
prévia do direito de resolver, não pode ser aceita” (Extinção dos contratos por incumprimento do
devedor. 2a ed. Rio de Janeiro: Aide, 2003). Defendendo a admissibilidade da cláusula contratual
limitativa do dever de indenizar e ao revés, a inadmissibilidade da cláusula contratual excludente do
dever de indenizar afirma Nilson Lautenschleger Jr.: “(...) a limitação não pode ser total, pois seria vil
e, como tal, não admitida, já que se equipararia à exclusão” (“Limitação de responsabilidade na prática
contratual brasileira: permite-se no Brasil a racionalização dos riscos do negócio empresarial?”. In:
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 125. São Paulo: Malheiros, jan/mar.
2002, p. 11-12).
1
Neste ponto, tome-se por exemplos de previsões pontuais e específicas que proíbem ou restringem o
campo de incidência destas convenções no direito brasileiro: a vedação da incidência de cláusula
limitativa do dever de indenizar sobre prazos de prescrição ou de decadência (arts. 192 e 209) a não
ser que se trate de prazo convencional de decadência (art. 211 do Código Civil); com relação aos
contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, segundo a regra do art. 618
do Código Civil, é vedada a redução do prazo de cinco anos durante o qual o empreiteiro de materiais
e execução responderá pela solidez e segurança do trabalho, o que, representa a impossibilidade de se
limitar, no tempo, o dever de indenizar do empreiteiro; é vedada a limitação ou exclusão do dever de
indenizar nos contratos de transporte de pessoas (art. 734 do Código Civil); a impossibilidade de
inserção destas convenções em contratos relativos a relações de consumo (arts. 25 e 51, inciso I do
Código de Defesa do Consumidor – Lei n. 8.078/1990).
2
Neste sentido, dentre outros, posiciona-se Álvaro Luiz Damásio Galhanone (“A cláusula de nãoindenizar”. In: Revista dos Tribunais. Vol. 565. São Paulo: Revista dos Tribunais, nov. 1982, p. 25) e
Sergio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. p, 530).
3
No mesmo sentido, Antonio Junqueira de Azevedo (“Cláusula cruzada de não-indenizar (cross-waiver of
liability), ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os contratantes. Renúncia ao direito de
indenização. Promessa de fato de terceiro. Estipulação em favor de terceiro”. In: Estudos e Pareceres
de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 203) e José de Aguiar Dias (Cláusula de nãoindenizar. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 73) sustentam que a presença de interdições
pontuais à cláusula de não-indenizar apenas em determinados campos, implicitamente conduz ao
reconhecimento de sua validade em outros contratos. Entretanto, como bem nos lembra, Fábio
Henrique Peres (Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. Op. Cit.,p.
130, nota de rodapé n. 293), a constatação de interdições pontuais à cláusula, é argumento que pode
ser utilizado para justificar a validade genérica das referidas convenções nos campos em que não há
vedação bem como poderá, de outro lado, fundamentar a sua inadmissibilidade uma vez que há
determinados momentos em que o legislador expressamente admite a cláusula de não-indenizar, o
que se pode extrair, via de exemplo, do artigo 450 do Código Civil, a saber: “Art. 450. Salvo
estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição integral do preço ou das quantias
que pagou: I - à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir; II - à indenização pelas
despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente resultarem da evicção; III - às custas
judiciais e aos honorários do advogado por ele constituído” (grifou-se).
110
110
exclusão de futura e eventual indenização pelas partes, se assim o desejarem e,
repita-se, observados os requisitos de validade das mencionadas convenções.
Insta, portanto, concluir pela admissibilidade das cláusulas contratuais
excludentes e limitativas do dever de indenizar, desde que atendidos os
pressupostos de validade para os negócios jurídicos em geral 1, já que destes
constituem espécies, bem como observadas as vedações expressas e requisitos
específicos que lhe são aplicáveis, que serão a seguir analisadas.
3.1. A Ordem Pública
Assim como à generalidade dos negócios jurídicos, às cláusulas contratuais
limitativas e excludentes do dever de indenizar não é dado furtar-se da observância
das normas de ordem pública e dos bons costumes2.
Destarte, a cláusula de não-indenizar só poderá ser estipulada quando a
norma de direito comum que estabelece a obrigação de reparar (que, em função da
convenção será restringida ou afastada) não tutela interesse de ordem pública. Este
requisito de admissibilidade, em que pese a imperatividade que lhe é ínsita, possui
conteúdo vago e indeterminado, o que, em última instância, torna imprecisos os
contornos de sua aplicação.
Assim é que a doutrina vem estabelecendo que a ordem pública condiz
com um conjunto de ideias – sociais, morais, políticas, econômicas cuja
conservação está ligada intrinsecamente a própria existência da sociedade que os
localiza em patamar superior a vontade dos indivíduos, logo intangível pelas
deliberações dos particulares3. É neste sentido que as cláusulas de não-indenizar
não são admitidas nas relações de trabalho.
Igualmente corolário da observância dos ditames de ordem pública é a
vedação do estabelecimento de cláusulas de não-indenizar que interessem
diretamente à vida ou à integridade física das pessoas naturais porque estes
ajustes afrontariam o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no
1
2
3
Neste ponto, cabível a análise do artigo 104 do Código Civil: “A validade do negócio jurídico requer: I –
agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável e III – forma prescrita ou não
defesa em lei”.
Acerca da observância obrigatória das normas de ordem pública, dentre outros: Álvaro Luiz Damásio
Galhanone (“A cláusula de não-indenizar”. In: Revista dos Tribunais. Vol. 565. São Paulo: Revista dos
Tribunais, nov. 1982, p. 28), Sergio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed. São
Paulo: Atlas, 2010. pp, 531-532), José de Aguiar Dias (Cláusula de não-indenizar. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1980, p. 43) e Antonio Junqueira de Azevedo (“Cláusula cruzada de não-indenizar
(cross-waiver of liability), ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os contratantes.
Renúncia ao direito de indenização. Promessa de fato de terceiro. Estipulação em favor de terceiro”.
In: Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 203).
Neste sentido, por todos, Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, v.3. 14ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2010. pp, 22-23) e Sergio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil. 9ª
ed. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 531-532).
111
111
artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988. Esta não é senão a razão do
firme posicionamento no sentido da invalidade da cláusula de não-indenizar na
seara da responsabilidade médica uma vez que neste âmbito a natureza do bem
protegido pela obrigação de indenizar é a incolumidade da vida humana 1.
A invalidade das cláusulas de não indenizar que interessem diretamente à
vida ou à integridade psicofísica das pessoas naturais se projeta, igualmente, no
repúdio à limitação ouexclusão da indenização por danos morais suportados por
pessoas naturais2.
Considera-se, ainda, que o respeito à ordem pública repudia as cláusulas
que limitem ou excluam o dever de reparar oriundo da violação aos preceitos da
boa-fé objetiva. Isto porque não seria dado às partes furtarem-se da observância
de um padrão ético socialmente exigível dos contratantes.
Destaque-se, por fim, que o rol acima traçado não é taxativo, impondo–se
a análise concreta da relação jurídica a que adere a cláusula de não-indenizar, bem
como da generalidade dos negócios jurídicos a fim de verificar o respeito à ordem
pública.
Demais disso, afirmou-se que a cláusula contratual limitativa e excludente
do dever de indenizar deverá ser afastada em face de norma imperativa proibindo a
sua estipulação3. Nestas hipóteses, dispensa-se a ponderação dos interesses
envolvidos a fim de perquirir eventual ofensa à ordem pública uma vez que o
legislador, de antemão, em face de situações que reclamam proteção, fixou a
1
2
3
112
Note que o rol acima disposto de circunstâncias em que a tutela da integridade e da vida das pessoas
naturais servirá de fundamento para negar validade às cláusulas contratuais limitativas e excludentes
do dever de indenizar é meramente exemplificativo, razão pelo qual há que se proceder a análise do
caso concreto a fim de verificar se a cláusula de não-indenizar refere-se diretamente a interesses
extrapatrimoniais. Demais disso, é possível citar a proibição da convenção que pretenda limitar no
tempo o dever de indenizar do empreiteiro pela solidez e segurança do edifício ou de outra construção
considerável o que se depreende do artigo 618 do Código Civil posto que o dispositivo estabelece ser
irredutível o prazo de cinco anos durante o qual o empreiteiro permanece responsável pela obra.
Quanto à inserção de cláusula de não-indenizar relativa aos danos morais suportados por pessoas
jurídicas, entende-se não se aplicar a mesma vedação. Isto porque, na esteira de Anderson Schreiber
(Direitos da Personalidade. Atlas, São Paulo. 2011, pp. 21-23) e Gustavo Tepedino (“Crise de Fontes
Normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002” In: A Parte Geral do Novo
Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp.
XXIX-XXX) somente as pessoas naturais sofrem dano moral uma vez que apenas a estas atribui-se
dignidade humana. Entretanto, a jurisprudência diverge, defendendo em larga escala, que as pessoas
jurídicas são suscetíveis de sofrer danos morais. Neste sentido, confira o enunciado da súmula 227 do
Superior Tribunal de Justiça: “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. Assim, adotando a premissa
de que a pessoa jurídica é titular de direitos da personalidade e portanto admitindo o cabimento da
indenização por danos morais em favor daquela, defende-se que eventual convenção de não-indenizar,
observados os requisitos de validade, poderá incidir limitando ou excluindo a obrigação de indenizar a
que se alude a uma pois não se vislumbra ofensa à ordem pública e a duas pois é igualmente
inexistente a violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, fundamento e razão
última do cabimento de danos morais. Admitindo a validade da cláusula de não-indenizar em face da
indenização por danos morais à pessoa jurídica, confira a obra de Fábio Henrique Peres (Cláusulas
Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. 1ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009,
pp. 151-153).
Assim, é possível mencionar o disposto no artigo 734 do Código Civil onde se veda a inserção da
cláusula de não-indenizar no contrato de transporte de pessoas e nos artigos 25 e 51, inciso I do
Código de Defesa do Consumidor, os quais afastam a possibilidade da utilização das convenções em
tela no âmbito das relações de consumo.
112
inadmissibilidade da limitação ou exclusão do dever de reparar, excepcionando o
princípio da autonomia da vontade.
3.2. O EQUILÍBRIO ECONÔMICO DO CONTRATO
A industrialização e consequente massificação das relações contratuais
evidenciou a insuficiência da igualdade formal para garantir os interesses efetivos
dos contratantes. Passa-se, então, a perquirir o equilíbrio econômico contratual,
manifestado na paridade das relações,por meio da análise das condições efetivas de
negociação das partes, afastando-se, assim, da visão clássica que propugnava pela
justiça contratual tão só em face da presença da capacidade para contratar. Somase a este fenômeno a crescente propagação das relações jurídicas marcadas pela
vulnerabilidade de uma das partes, especialmente face a elevada conclusão de
contratos de adesão.
Contudo, esta constatação não implica a afirmação da inexistência de
contratos paritários celebrados em situação de razoável igualdade e frutos de
ampla negociação. Neste contexto, cabe asseverar que para caracterizar a paridade
de uma relação negocial não se faz necessário que as partes se localizem em
perfeita simetria. Isto posto, admite-se, por ser dado real do qual não se poderá
distanciar o Direito, que uma das partes poderá apresentar maior poder de
negociação em função de questões econômicas, específicas ou gerais, ou mesmo
em função de aspectos de índole psicológica. Fosse necessária uma equiparação
minuciosa das condições de negociar das partes, a manutenção do equilíbrio
econômico do contrato não passaria de utopia.
Do exposto, a paridade contratual restará presente no âmbito de uma
relação na qual as partes tem um equal bargaining power1, verificando-se, ao
revés, a vulnerabilidade quando um dos contratantes logre impor unilateralmente
as condições de contratação que lhe aprouverem.
Certo que há determinados indícios a indicar a vulnerabilidade da parte tais
como as condições econômicas e profissionais, os conhecimentos específicos da
parte acerca do objeto contratado, entre outros. O que se quer defender é que não
se deve fixar aprioristicamente a inferioridade de um dos contratantes, uma vez ser
necessária a análise de seu real poder de negociação em todos os seus aspectos –
econômico, técnico e jurídico.
Caracterizada a relação paritária ganha relevo a autonomia da vontade vez
que face a presença da equidade e justiça contratuais emerge a obrigação nos
1
A expressão é utilizada por António Pinto Monteiro. Cláusulas limitativas e de exclusão de
responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2003, p. 247.
113
113
moldes estabelecidos pelas partes, como corolário da liberdade de contratar e da
relatividade e obrigatoriedade dos contratos. Registre-se que ao lado dos princípios
mencionados, cumpre observar os novos paradigmas do direito contratual,
mencionando-se desde logo que esta nova principiologia não se substitui aos
ditames clássicos. Ao revés soma-se àqueles de modo a permitir sua releitura.
Neste contexto, localiza-se a questão da validade das cláusulas de nãoindenizar. É dizer, as convenções de exclusão e limitação do dever de reparar
encontrarão guarida apenas no campo das relações paritárias1, uma vez que
pressupõem o expresso consentimento das partes bem como a compensação pela
anuência à cláusula, mediante a concessão de alguma vantagem correspondente –
por exemplo, a exoneração ou limitação recíproca do dever de indenizar, a redução
do preço do bem adquirido ou do serviço a ser prestado ou, ainda, a concessão de
condições de pagamento mais flexíveis, dentre outras. De certo que a anuência à
cláusula de não-indenizar não poderá representar imposição unilateral de uma das
partes, há que haver reciprocidade, encontrando a parte prejudicada pela eventual
limitação ou exclusão de seu pleito indenizatório justa compensação.
Esta não é senão a razão para a forte repulsa a validade de cláusulas
contratuais excludentes e limitativas do dever de indenizar em contratos de adesão.
Contudo, conforme se vem defendendo, a verificação da paridade da relação deverá
se dar a partir da análise do caso concreto. E assim, muito embora se admita que
nos contratos de adesão há uma presunção da ausência de equilíbrio econômico, há
que se aferir de acordo com as circunstâncias fáticas presentes se realmente a
limitação
ou
exclusão
do
dever
de
indenizar
foi
imposta
unilateralmente,
destituindo-se a outra parte de qualquer contrapartida pela anuência à cláusula.
Da presença da reciprocidade quando do ajuste de cláusula de nãoindenizar extrai-se o equilíbrio econômico contratual, ou seja, verifica-se a
equivalência entre as vantagens obtidas pelos contratantes. De um lado, ao
devedor, assegura-se o conhecimento prévio das regras que definirão o montante
máximo da indenização, ou no caso específico das cláusulas excludentes, a
ausência de indenização, no caso de eventual inadimplemento. De outro, o credor
gozará de vantagem correlata pela anuência à convenção limitativa ou excludente
do dever de indenizar.
1
114
Neste sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “As cláusulas limitativas, contanto que atendam
aos requisitos descritos, são consideradas válidas e eficazes, sendo admitidas pela jurisprudência,
tanto mais quando inseridas nas chamadas relações paritárias em que as partes têm oportunidade de
negociar: “(...) uma coisa é cláusula dessa natureza [cláusula de não indenizar], já vedada no direito
brasileiro, e outra são cláusulas limitativas de responsabilidade em contratos firmados entre partes
igualitárias, entre profissionais, que naturalmente têm a oportunidade de discuti-la ou, de alguma
forma, têm a liberdade de contratar e a liberdade contratual amplamente assegurada” (STJ, 2ª Seção,
REsp. 39.082/SP, Rel. Min. Fontes de Alencar, j. 09.11.1994, v. m., DJ 20.03.1995, p. 6.077 – trecho
do voto-vista do Min. Cláudio Santos).
114
3.3. Obrigações Essenciais do Contrato
Costuma-se negar validade à cláusula de não-indenizar que pretenda
limitar ou excluir o dever de reparar nascido da violação de obrigação principal do
contrato1 sob o argumento de que a convenção nestes termos pactuada importaria
no desvirtuamento da essência da relação contratual bem como inviabilizaria a
consecução dos fins pretendidos pelo negócio jurídico. Em outras palavras, a
cláusula apenas seria admissível em face das obrigações acessórias do contrato.
Assim, o repúdio da doutrina à cláusula contratual excludente e limitativa
do dever de indenizar que se refira à obrigação principal do contrato dá-se,
primordialmente, com o objetivo de garantir a eficácia das obrigações assumidas
em contrato.
Com efeito, há casos em que, descumprida a obrigação principal, não resta
ao credor nenhuma alternativa útil a não ser a indenização devida em função do
inadimplemento. É esta a hipótese presente nos contratos de depósito ínsitos aos
estacionamentos comerciais de automóveisNeste contexto, verificada a perda ou
deterioração dos referidos bens, nenhum dos instrumentos de cumprimento
coercitivo da obrigação – tais como as astreintes, a exceção do contrato não
cumprido, a cláusula resolutiva expressa ou tácita, o direito de retenção - se
prestaria a tutelar a posição jurídica do credor privado de seus bens. De fato, o
objetivo do proprietário do automóvel é a guarda e a segurança do veículo. Em
ocorrendo o furto ou deterioração lhe restaria apenas o pleito indenizatório uma vez
que os demais instrumentos previstos em lei não conduziriam a uma tutela efetiva
da pretensão manifestada no contrato.
Sendo assim, a validade da cláusula de não indenizar que incida sobre a
obrigação principal do contrato depende da análise da manutenção ou não do
substrato funcional do negócio jurídico celebrado. Explica-se. Analisando o exemplo
do contrato de depósito supramencionado, vê-se que o dever de guarda e
conservação da coisa depositada constitui a obrigação principal do contrato. O
descumprimento
da
referida
obrigação
não
encontrará
tutela
efetiva
nos
instrumentos de cumprimento coercitivo do contrato já que não será possível
restituir a exata coisa depositada. Então, apenas restará ao credor, requerer
1
Defendem esta posição, dentre outros, Sergio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil. 9ª
ed. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 533-534), Antonio Junqueira de Azevedo (“Cláusula cruzada de nãoindenizar (cross-waiver of liability), ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os
contratantes. Renúncia ao direito de indenização. Promessa de fato de terceiro. Estipulação em favor
de terceiro”. In: Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 201) e Sílvio de
Salvo Venosa (Direito Civil: Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 60).
115
115
indenização pelo valor correspondente à coisa. Daí que subtrair ou restringir a
possibilidade da indenização desfigura o contrato, tornando-o ineficaz ao credor.
Nestas hipóteses, portanto, a convenção limitativa ou excludente do dever de
indenizar deverá, em regra, ser repudiada.
De outro lado, há determinados tipos contratuais nos quais a incidência da
cláusula de não-indenizar sobre as obrigações principais não promoverá a
descaracterização dos elementos de qualificação do negócio jurídico ou mesmo
retirará a efetividade das prestações assumidas em contrato uma vez que, muito
embora se limite ou se exclua o dever de indenizar resultante do inadimplemento
da obrigação principal, subsistem mecanismos no ordenamento jurídico aptos a
tutela efetiva do crédito.
Demais disso, o cabimento da convenção de não-indenizar dependerá do
preenchimento dos demais requisitos de validade. Neste diapasão, ressalte-se que
o atendimento do requisito relativo à inexistência de dolo do agente corrobora a
validade da cláusula que pretenda limitar ou excluir o dever de reparar decorrente
do inadimplemento de obrigação principal do contrato uma vez que não poderá o
devedor se utilizar da convenção nestes moldes pactuada para intencionalmente se
furtar do cumprimento da avença.
O mencionado raciocínio não é, contudo, adotado pela doutrina. Neste
sentido, o entendimento predominante é o da invalidade da convenção de nãoindenizar incidente sobre a obrigação principal, sem ressalvar as hipóteses em que
a inserção da cláusula mantém a eficácia das prestações assumidas em contrato
mediante a subsistência dos mecanismos de tutela do crédito 1.
Em que pese a oposição da doutrina majoritária, defendemos, na esteira de
Fábio Henrique Peres2, que as cláusulas de não-indenizar que se refiram a
obrigações principais do contrato apenas serão nulas quando a sua inserção
ocasionar a descaracterização dos elementos do tipo contratual. Esta análise se
dará pela constatação concreta da suficiência ou não dos demais instrumentos
legais de tutela da posição jurídica do credor.
3.4. O Dolo e a Culpa Grave
Muito embora inexista qualquer proibição legal expressa, é consenso na
doutrina e na jurisprudência que as cláusulas de não-indenizar devam considerar-se
inoperantes quando o fato gerador da obrigação de indenizar se originar de
Neste sentido, posiciona-se, dentre outros, Sergio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil.
9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 533-534).
2
Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. Op. Cit., pp. 185-186.
1
116
116
inadimplemento ou conduta dolosa da parte beneficiada pela exclusão ou limitação
da reparação1.
Dentre outros, o principal argumento utilizado para repudiar a cláusula de
não-indenizar nesta seara assenta na invocação da imoralidade, da ofensa aos bons
costumes e à ordem pública. De fato, em que pese subsistirem os instrumentos de
cumprimento coercitivo da obrigação, admitir a possibilidade do sujeito jurídico que
ao expressar a sua vontade negocial, acorda a limitação ou exoneração do seu
dever de indenizar face a inexecução obrigacional, descumprir intencionalmente o
dever subjacente ao negócio firmado, foge à boa-fé e à justiça contratual.
Demais disso, há autores que defendem que a exclusão ou limitação do
dever de indenizar imputável ao devedor a título de dolo equivaleria a uma
dissolução
do
vínculo
jurídico
obrigacional,
destituindo
de
coercitividade
a
obrigação, convolando-a, em verdadeira obrigação natural . Acrescentam outros
2
doutrinadores que constituiria igualmente razão para a inadmissibilidade da
cláusula em caso de dolo do devedor, o repúdio às condições puramente
potestativas3.
Contudo, ainda que tenha sido convencionada a exoneração ou a limitação
do dever de indenizar em virtude de dolo, o que se admite apenas a título de
argumentação, o credor tem a possibilidade de, diante do inadimplemento do
devedor, requerer judicialmente o cumprimento coercitivo da obrigação, conforme
expusemos no item 1.2.2. Com efeito, o débito assumido não se destituirá de
exigibilidade em face da inclusão de cláusula de não-indenizar, razão pelo qual o
adimplemento da obrigação sobre o qual incide a cláusula não se sujeita ao arbítrio
do devedor.
Destarte, em que pese concordarmos com a inadmissão da cláusula deindenizar incidente sobre a inexecução dolosa, cabe considerar que a eliminação
das conseqüências do dolo do agente por meio das cláusulas em exame não teria o
condão de afastar a força coercitiva do vínculo obrigacional.
Neste sentido, posicionam-se, dentre outros: Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, v.
2. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 346), Antonio Junqueira Azevedo (“Cláusula cruzada de
não-indenizar (cross-waiver of liability), ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os
contratantes. Renúncia ao direito de indenização. Promessa de fato de terceiro. Estipulação em favor
de terceiro”. In: Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 202-203), Fábio
Henrique Peres (Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do Dever de Indenizar. 1ª ed. São
Paulo: Quartier Latin, 2009, pp. 169-179), Sergio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil.
9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 532-533) e Ana Prata (Cláusulas de exclusão e limitação de
responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina, 1985, pp. 279-317).
2
Defendendo este entendimento, Sergio Cavalieri Filho: “(...) a exoneração do dolo equivaleria à
dispensa de prestar, à negação da própria obrigação, e não, simplesmente, do dever de reparar. Seria
estabelecer a impunidade da má-fe prevista de antemão. O devedor que se reservasse o direito de não
cumprir a obrigação por seu próprio arbítrio, em verdade, não a teria contraído” (Programa de
Responsabilidade Civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. p, 532).
3 Neste sentido, posicionam-se, Sílvio Venosa (Direito Civil: Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo:
Atlas, 2007. p, 59) e Sílvio Rodrigues (Direito Civil: Responsabilidade Civil. 20ª ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 181).
1
117
117
Do exposto, a invalidade das cláusulas limitativas e excludentes que
pretendam afastar o dever de reparar oriundo de inadimplemento doloso dá-se não
com base na destituição da obrigatoriedade do negócio e sim com fundamento na
violação da ordem pública e da boa–fé objetiva, vez que admitir a utilização de
cláusulas nestes moldes iria de encontro à observância de um padrão ético
socialmente exigível dos contratantes.
Cumpre mencionar a observação de Fábio Henrique Peres no sentido de
que a cláusula de não-indenizar “deva ser reputada inválida apenas no que tange à
sua aplicabilidade em situações de dolo, restando plenamente válida e eficaz em
outras hipóteses”. É que, nos limites permitidos, busca-se preservar os contornos
negociais definidos pelas partes no exercício da autonomia da vontade.
Por fim, procederemos a análise da admissibilidade da cláusula de nãoindenizar que pretenda limitar ou excluir o inadimplemento ocasionado por culpa
grave do devedor. Inicialmente, cabe mencionar que a doutrina amplamente
majoritária afirma a validade das cláusulas que objetivem a eliminação ou restrição
das consequências advindas da inexecução por mera culpa. Isto porque, nesta
hipótese, não há violação frontal da ordem pública, ao revés, todo inadimplemento,
salvo o proveniente de fortuito ou força maior, alberga certo desvio no padrão de
conduta do agente.
A discussão surge quando da análise da cláusula que pretenda afastar a
reparação decorrente de inadimplemento por culpa grave do devedor. Com efeito,
há autores a defender a admissibilidade das referidas cláusulas1 conquanto
predomine a corrente que nega a validade daquelas face a equiparação da culpa
grave ao dolo, afastando a validade da cláusula em ambas as hipóteses 2.
Neste ponto cumpre asseverar que há distinção concernente à natureza
entre a culpa grave e o dolo. Neste sentido, no dolo há o descumprimento de
determinado dever jurídico primário pelo devedor que, almejando tanto ao ato em
si como aos seus efeitos, descumpre voluntária e deliberadamente a obrigação. A
culpa, por sua vez, prescinde da intenção de descumprir, ou seja, o devedor não
visa ao inadimplemento mas o acaba provocando por falta de diligência ou
prudência.
Nesse sentido, por todos, José de Aguiar Dias (Cláusula de não-indenizar. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1980, pp. 100 e seguintes).
2Manifestam este entendimento, António Pinto Monteiro (Cláusulas limitativas e de exclusão de
responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 235-236), António Junqueira de Azevedo
(“Cláusula cruzada de não-indenizar (cross-waiver of liability), ou cláusula de não indenizar com
eficácia para ambos os contratantes. Renúncia ao direito de indenização. Promessa de fato de terceiro.
Estipulação em favor de terceiro”. In: Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva,
2004, p. 202) e Marcelo Calixto Junqueira (A culpa na Responsabilidade Civil. Estrutura e Função. Rio
de Janeiro. Renovar, 2008, p. 366). Em sentido contrário, negando a equiparação entre o dolo e a
culpa grave, dentre outros, José de Aguiar Dias (Cláusula de não-indenizar. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1980, p. 98) e Fábio Henrique Peres (Cláusulas Contratuais Excludentes e Limitativas do
Dever de Indenizar. 1ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pp. 174-179).
1
118
118
Esclarecido este ponto, há que se notar que, atualmente, adota-se uma
concepção objetiva ou normativa da culpa, prescindindo-se, no sistema pátrio, da
análise dos graus de culpa. É dizer, independentemente do grau de culpa, à
conduta causadora do dano serão imputadas as consequências advindas da
responsabilidade civil, segundo as regras do nexo de causalidade. Assim, dado a
igualdade de efeitos, há que se defender uma unidade conceitual da culpa.E, desta
argumentação resulta a impossibilidade de se referir à culpa grave já que esta nada
mais é que simplesmente “culpa”.
Contudo, em que pese o ordenamento jurídico brasileiro não sufragar a
teoria do grau de culpa, admite-se a utilização excepcional da quando da
determinação do montante indenizatório prevista no parágrafo único do artigo 944
do Código Civil, bem como para determinar a invalidade das cláusulas de nãoindenizar nos casos de culpa grave.
Disto, conclui-se, i) o dolo e a culpa grave são institutos distintos; ii) não
se afigura cabível a referência à culpa grave vez que face ao não reconhecimento
da teoria da gradação de culpa, impõe-se a consideração da unidade conceitual
desta; iii) em que pese estas ressalvas, por motivos de ordem pública, utiliza-se da
referência à culpa grave para equipará-la, em seus efeitos, ao dolo, vedando-se a
possibilidade de isenção ou limitação da obrigação de indenizar quando o dano
resulte de culpa grave do devedor.
CONCLUSÃO
Em tentativa de síntese do estudo é possível consignar as seguintes
conclusões:
I. Quanto ao papel da cláusula de não-indenizar: À cláusula de nãoindenizar é atribuída a função de limitar ou excluir determinada e eventual
obrigação
de
reparar
prevista
em
seu
âmbito
de
incidência,
oriunda
do
inadimplemento contratual ou da violação de um dever legal. Desta forma, logra
assegurar aos contratantes a redução dos riscos do negócio por meio da ciência
prévia das regras aplicáveis quando da eventual necessidade de definir o montante
indenizatório. É dizer, a cláusula contratual limitativa e excludente do dever de
indenizar opera seus efeitos no momento patológico da obrigação, alterando ou
mesmo substituindo a solução legal prevista para as mencionadas hipóteses de
inexecução contratual ou violação de dever derivado da lei.
II. Quanto ao domínio em que desempenham suas funções: O campo de
atuação, por excelência, das cláusulas de não-indenizar é o da responsabilidade
contratual porquanto o
estabelecimento
contratual
da
exoneração
ou
da
119
119
restrição do dever de reparar dá-se mormente entre pessoas que possuem um
vínculo contratual prévio entre si.
III. Quanto à exclusão da responsabilidade: As cláusulas de nãoindenizar incidem tão somente em face das repercussões patrimoniais do dever
jurídico secundário uma vez que a responsabilidade e o dever originário
consubstanciado na obrigação contratada, se mantém incólumes. Neste particular,
a cláusula acessória em questão apenas afetará a possibilidade de requerer perdas
e danos em eventual ação judicial de reparação de forma que limitará ou excluirá
tal pleito a depender do ajustado pelas partes permanecendo, de outro lado, a
faculdade creditória de exigir o cumprimento da obrigação mediante a utilização de
instrumentos jurídicos de imposição da satisfação do crédito tais como a execução
específica, as astreintes, a exceção do contrato não cumprido, o direito de
retenção, a cláusula resolutiva expressa ou tácita, entre outros.
IV. Quanto às modalidades assumidas pelas cláusulas de não-indenizar: A
ausência de sistematização legislativa somada ao dinamismo da prática contratual
implica na utilização de formas de cláusulas de não-indenizar diversas das então
enumeradas. Sendo assim, buscou-se traçar rol exemplificativo das formas de
manifestação mais frequentes das convenções de não-indenizar. São elas:
limitação
do
montante
indenizatório,
exclusão
do
dever
de
indenizar
a
determinados tipos de danos, limitação dos fundamentos do dever de indenizar,
equiparação a hipóteses de caso fortuito ou força maior, cláusulas sobre atos
ou abstenções do credor e limitação da garantia patrimonial.
V. Quanto à fundamentação de validade das cláusulas de não-indenizar:
Doutrina majoritária, após constatar de um lado, a ausência de vedação genérica
expressa e de outro, a existência apenas de interdições pontuais à cláusula de nãoindenizar, elenca o princípio da autonomia da vontade e a liberdade de contratar
como pilares a sustentar a validade das cláusulas limitativas e excludentes. Isto
porque a ausência de expressa proibição faculta às partes o estabelecimento de
sistemática indenizatória diversa da prevista no modelo legal quando sobre a
relação jurídica específica não incida vedação pontual. Insta, portanto, concluir pela
admissibilidade das convenções de não-indenizar, desde que
atendidos os
pressupostos de validade para os negócios jurídicos em geral, já que destes
constituem espécies, bem como observadas as vedações expressas e requisitos
específicos que lhe são aplicáveis.
VI. Quanto aos requisitos próprios das cláusulas de não-indenizar: Assim
como à generalidade dos negócios jurídicos, às cláusulas contratuais limitativas e
excludentes do dever de indenizar não é dado furtar-se da observância das normas
de ordem pública. É neste sentido que as cláusulas de não-indenizar não são
admitidas nas relações de trabalho ou quando interessarem diretamente à vida ou
120
120
à integridade física das pessoas naturais, face a proteção do princípio da dignidade
da pessoa humana ou ainda, quando pretendam excluir ou limitar o dever de
reparar oriundo da violação da boa-fé objetiva. Demais disso, afirmou-se que a
cláusula contratual limitativa e excludente do dever de indenizar deverá ser
afastada em face de norma imperativa proibindo a sua estipulação.
Reputar-se-á válida a cláusula contratual em tela em face da existência de
uma real contrapartida à sua estipulação, como corolário do equilíbrio econômico da
relação sobre o qual incide. Note que este cenário se configurará apenas nas
situações em que as partes estão em reais condições de negociar acerca das
vantagens e concessões advindas da inclusão da cláusula de não-indenizar. É
possível, então, concluir que as convenções de exclusão e limitação do dever de
reparar encontrarão guarida apenas no campo das relações paritárias uma vez que
pressupõem o expresso consentimento das partes bem como a compensação pela
anuência à cláusula mediante a concessão de alguma vantagem correspondente –
por exemplo, a exoneração ou limitação recíproca do dever de indenizar, a redução
do preço do bem adquirido ou do serviço a ser prestado ou, ainda, a concessão de
condições de pagamento mais flexíveis, dentre outras.
Consideramos, ainda, que não se deve negar de plano a validade da
cláusula de não indenizar que incida sobre a obrigação principal do contrato. Isto
porque a questão dependerá da análise da manutenção ou não do substrato
funcional do negócio jurídico celebrado.Assim, as cláusulas contratuais limitativas e
excludentes que se refiram a obrigações principais do contrato apenas serão nulas
quando a sua inserção ocasionar a descaracterização dos elementos do tipo
contratual. Esta análise poderá se dar pela constatação concreta da suficiência ou
não dos demais instrumentos legais de tutela da posição jurídica do credor.
Por fim, muito embora inexista qualquer proibição legal expressa, é
consenso na doutrina e na jurisprudência que as cláusulas de não-indenizar devam
considerar-se inoperantes quando o fato gerador da obrigação de indenizar se
originar de inadimplemento ou conduta dolosa da parte beneficiada pela exclusão
ou limitação do dever de indenizar. A discussão surge quando da análise da
cláusula que pretenda afastar a reparação decorrente de inadimplemento por culpa
grave do devedor. Contudo, em que pese o ordenamento jurídico brasileiro não
sufragar a teoria do grau de culpa, admite-se a utilização excepcional da gradação
de culpa em grave, leve e levíssima para determinar a invalidade das cláusulas de
não-indenizar nos casos de culpa grave. Assim, apesar destas ressalvas, por
motivos de ordem pública, utiliza-se da referência à culpa grave, para equipará-la,
em seus efeitos, ao dolo, vedando a possibilidade de isenção ou limitação da
obrigação de indenizar quando o dano resulte de culpa grave do devedor.
121
121
Enfim, as controvérsias a respeito das cláusulas contratuais excludentes e
limitativas do dever de indenizar parecem infindáveis. Contudo, neste trabalho,
procurou-se demonstrar os pilares em que se sustentam as mencionadas
convenções, bem como elucidar os principais critérios utilizados na busca
incessante
pela
demonstração
de
sua
validade
quantificação dos riscos financeiros do negócio.
122
122
enquanto
ajustes
caros
a
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126
126
Doutrina
A Família Solidária como Proposta de Mitigação de
Vulnerabilidades de Idosos, Pessoas com Deficiência e
Famílias Monoparentais
Jacqueline Lopes Pereira1
RESUMO: Por meio deste estudo procurar-se-á explanar a razão pela qual a
Família Solidária é entidade familiar implícita ao texto constitucional, mediante a
exposição das funções da família no direito brasileiro desde a Codificação de 1916
até os dias atuais. O trabalho observa e aponta quais são os princípios que lançam
luz sobre essa entidade familiar, cujas características residem na cooperação entre
seus membros diante de uma situação de vulnerabilidade em comum, como a
enfrentada por idosos, por mães ou pais solteiros e por pessoas com deficiência.
Sua união, com o propósito de dividir despesas e, principalmente, viver em
ambiente de afeto e companheirismo, resulta na formação de família fundada na
solidariedade e na busca da autonomia coexistencial. A partir da doutrina, de
precedentes de tribunais e de pesquisas sobre casos concretos, analisam-se
algumas situações em que se verifica a Família Solidária e os moldes para sua
constituição.
Palavras-chave: Direito
Cooperação. Autonomia.
de
Família.
Família
Solidária.
Socioafetividade.
ABSTRACT: Through this study, the reason why is the Solidary Family considered
an implicit familiar entity will be sought to explain by the exposition of the family
functions on the Brazilian Law from the 1916 Codification to nowadays. The study
notes and points which are the main principles that shed lights on this family,
which characteristics lie on the cooperation between its members in face of a
vulnerable situation in common, such as the faced by elderles, single mothers or
single fathers and disabled people. Their union, with the proposal of expenses
division and the share of life with affection and fellowship, results on the formation
of a family based on solidarity and on the looking for coexistencial autonomy. From
legal literature, courts precedents and researches on concrect cases, some
situations will be analyzed where it is possible to verify the Solidary Family and the
ways for its constitution.
Keywords: Family Law. Solidary Family. Affection. Cooperation. Autonomy.
Sumário:1 INTRODUÇÃO. 2. Família: do individualismo à solidariedade 2.1 família
transpessoal: a célula do estado 2.2 a família fusional e a família eudemonista 2.3 a
família solidária como família eudemonista 3 princípios norteadores da família
solidária 3.1 o princípio da dignidade da pessoa humana 3.2 o princípio da
solidariedade 3.3 o princípio da igualdade 3.4 o princípio da liberdade 3.5 o
princípio da pluralidade das formas de família 3.6 o princípio da afetividade 4 a
família solidária ou “irmandade socioafetiva” 4.1 idosos 4.2 pessoas com deficiência
4.3 famílias monoparentais: “nós, os meus e os seus” 4.4 constituição da família
solidária 5. Considerações finais. Referências
1
Primeira colocada no Concurso de Monografias "Aloysio Maria Teixeira" na categoria acadêmico
127
127
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo visa demonstrar os motivos pelos quais a denominada
“Família Solidária” é entidade familiar implícita ao texto constitucional, bem como
traçar
suas
características
à
luz
da
principiologia
do
direito
de
Família
constitucionalizado. Para tanto, vislumbram-se as funções que a família tem no
direito brasileiro desde o Código Civil de 1916 – com forte influência do movimento
de Codificação existente a partir do século XIX na Europa continental – até os dias
atuais, sob a regência da Constituição Federal de 1988.
Dos dados retirados de pesquisas sobre a sociedade brasileira, nem toda
família emana o ideal de afetividade propagado pelo “eudemonismo”. A situação de
vulnerabilidade que idosos, mães e pais solteiros e pessoas com deficiência
enfrentam pode ser agravada pelo alto custo de vida nas cidades brasileiras, pelo
abandono por seus parentes, pela violência moral e/ou física, dentre outros
motivos. A Família Solidária, “Irmandade” ou “Irmanada”, é família eudemonista, já
que se contrapõe à realidade de abandono e miséria para buscar a proteção da
dignidade da pessoa humana através da cooperação de seus membros.
O presente estudo pretende expor – de modo não exaustivo – que os
princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da igualdade, da
liberdade, da pluralidade das formas de família e da afetividade regem a Família
Solidária em busca da tutela e desenvolvimento das pessoas que a integram.
Ao levar em consideração os critérios apresentados por Paulo Luiz Netto
Lôbo da publicidade, ostensibilidade e afetividade, pela análise de casos judiciais e
demais pesquisas de dados busca-se a identificação da Família Solidária formada
pela união socioafetiva de idosos, famílias monoparentais ou pessoas com
deficiência. A busca por casos referentes a esses grupos funda-se nos exemplos
propostos pela doutrinadora Ana Carla Harmatiuk Matos ao tratar da referida
entidade familiar.
A carência de bibliografia aprofundada sobre essa entidade familiar no
Brasil é um desafio que instiga a pesquisa sobre o tema e, por outro lado, é um
limite considerável no desenvolvimento de trabalhos acadêmicos de conclusão de
curso de graduação. O que se pretende discorrer na presente monografia é um
esboço do que ainda pode ser aprofundado em grupos de estudo em sede de pósgraduação de Direito, por conta da diversidade contida no estudo da Família
Solidária e das questões que essa envolve. Uma visão interdisciplinar, que beba das
demais Ciências, como Medicina, Psicologia e Sociologia, além da busca por dados
de pesquisas, pode ajudar no desenvolvimento de estudos mais amplos.
128
128
2 FAMÍLIA: DO INDIVIDUALISMO À SOLIDARIEDADE
2.1 FAMÍLIA TRANSPESSOAL: A CÉLULA DO ESTADO
Em momento inicial deste estudo, é importante desenvolver o tema da
noção do que seria, afinal, a família. As tradições jurídicas ocidentais formaram a
concepção de família a partir de suas experiências históricas, mas no presente
estudo se dará ênfase ao processo evolutivo da denominada Civil Law ou direito
europeu continental e sua repercussão no direito brasileiro, especialmente a partir
do período em que se desenvolveu o movimento da codificação. Desde logo se
ressalta que esse movimento verificado ao longo dos séculos XIX e XX nos países
europeus contribuiu para o nascer do Código Civil Brasileiro de 1916 e o recorte
temporal a ser feito se limita na amplitude do desenvolvimento das Codificações,
conforme se confere nas linhas a seguir.
Roger Raupp Rios (2007, p. 109-114) aponta que a partir do Código
Napoleônico de 1804 houve menção à família como aquela composta pelo
casamento entre homem e mulher.
Para esse momento histórico (início do século XIX), a família relacionava-se
intimamente com o Estado e havia uma preocupação prevalente sobre aspectos
patrimoniais a ela relacionados. Paulo Luiz Netto Lôbo resume o fenômeno da
patrimonialização do Direito de Família nas codificações ocidentais:
Seria o direito de família o mais pessoal dos direitos civis. As normas de
direito das coisas e de direitos das obrigações não seriam subsidiárias do
direito de família. Entretanto, os códigos civis, na maioria dos povos
ocidentais, desmentem essa recorrente afirmação. Editados sob inspiração
do liberalismo individualista, alçaram a propriedade e os interesses
patrimoniais a pressuposto nuclear de todos os direitos privados, inclusive o
direito de família. (LÔBO, 2011, p. 23, grifos nossos).
O homem branco, burguês e chefe de família exercia o poder marital
perante os demais membros da família, tal qual o Estado exercia sua soberania
perante os cidadãos. Roger Raupp Rios salienta a relação da configuração jurídica
da família e o modelo de Estado:
Tratava-se de fundar a ordem pública sobre a ordem privada, a ordem social
sobre a ordem doméstica, a grande pátria sobre a pequena. Neste contexto,
devem ser salientados o reforço drástico do poder marital, a supremacia
absoluta da família legítima, a condição jurídica submissa da mulher e a
criminalização do adultério feminino. Além disso, a hierarquia familiar
repousava em uma disciplina machista do pátrio poder, reforçada por seu
controle público. (RIOS, 2007, p. 110, grifos nossos).
129
129
Nota-se que o modelo transpessoal era apresentado por uma perspectiva
machista que rechaçava a igualdade entre os membros da unidade familiar. Os
interesses que o guiavam divergiam daqueles individuais pertencentes às pessoas
que integravam a família. Para essa concepção, o sinônimo para família se limitava
ao casamento civil e heterossexual.
Tal configuração é observada no Código de Beviláqua e, conforme pondera
o professor Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, em terras brasileiras o autoritarismo
da figura paterna prevaleceu do mesmo modo que no continente europeu:
Esse modelo brasileiro do século XIX (que se reflete na codificação de 1916),
apesar de partir de uma formação histórica diversa, não conflita com os
caracteres da família nuclear europeia do século XIX, em que o lar,
supostamente compreendido como um espaço essencialmente privado,
acaba por conhecer uma ampliação da autoridade dos pais sobre os filhos e
do marido sobre a esposa. (PIANOVSKI RUZYK, 2011, p. 320).
No Brasil, independente em 1822 e República somente em 1889, a
“família” dos estratos sociais detentores do poder político e econômico era a
patriarcal, fundada no casamento, fortemente influenciada pelo direito canônico,
com marcantes desigualdades entre seus membros e voltada a atender interesses
do próprio Estado.
O Código Civil de 1916 encontrou famílias com muitos filhos, fato este
dado em razão, dentre outros fatores, do predomínio da população rural do país e a
necessidade de mão de obra para o trabalho agrário.
Além do número de membros nas famílias, outra característica do período,
como já apontado, era o patriarcalismo. Era ele quem detinha o poder diretivo,
controlador e punitivo sobre a vida de esposa e filhos.
Família no contexto do Código Civil de 1916 era instituição que só poderia
nascer do casamento entre pessoas de sexos diferentes, em que a autoridade
marital ou patriarcal era a detentora total de direitos civis.
A posição de chefe da família trazia atrelada a si a busca pela concretização
dos objetivos perseguidos pelo Estado no pequeno núcleo familiar, os autores
Francisco José Ferreira Muniz e José Lamartine Correa de Oliveira enfatizam:
A família – tal como o Estado – perseguiria um fim ético superior aos
interesses individuais de seus membros. O que caracterizaria este organismo
seriam os vínculos de interdependência entre as pessoas e a sua
dependência a um fim superior. Trata-se – como se vê – de uma concepção
supra-individualista de família. Verifica-se desse modo, que a noção de
família como organismo dotado de caráter transpessoal está ligada a uma
concepção hierarquizada da família: hierarquizada nas relações entre marido
e mulher e nas relações entre pais e filhos. (MUNIZ; OLIVEIRA, 2003, p.
17).
Havia rígida divisão de papéis entre os membros da família, o que traz a
impressão de um engessamento de modelo familiar. Os estudiosos Ligia Ziggiotti de
130
130
Oliveira e Ábili Lázaro Castro de Lima sintetizam outras características do Código
Civil Brasileiro de 1916 que se remete à lógica da família transpessoal:
O projeto de Clóvis Beviláqua mantinha as luzes do século XIX. Consagrou o
direito à propriedade, elevando-o à categoria de absoluto, e conferiu amplas
liberdades para contratar, ainda que às custas da opressão de parte
eventualmente mais fraca, a quem restaria honrar com quaisquer
compromissos pactuados. Quanto às relações familiares, fez jus ao objetivo
de moldar, artificialmente, a moral que deveria defini-las e assim se fez
conservador ao fundá-las pelo matrimônio, proibido o divórcio; preferir a
segurança dos laços sanguíneos ao acaso dos laços afetivos, na filiação,
também legitimada pelo casamento; e declaradamente patriarcal ao
encarregar pela direção da família exclusivamente o homem. (LIMA;
OLIVEIRA, 2014, p. 59, grifos nossos).
Além da hierarquia interior à estrutura familiar, também é percebido o
especial status conferido à família fundada no casamento. Esse foi reforçado pela
Constituição de 1946 que em seu artigo 163 dispunha que “A família é constituída
pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do
Estado”. Pontes de Miranda (1974, p.174) assinala que a família a que se fez
referência dizia respeito à “instituição social da família, o que vale por diretriz
programática da Constituição de 1946”.
Prevalecia a noção de que o casamento seria “mais família” do que outras
entidades familiares. A experiência transpessoal estava prestes a se alterar
principalmente por conta de mudanças sociais que adentraram no Brasil no século
XX. No entanto, ressalta-se que o Código Civil de 1916 permaneceu vigente até o
início do século XXI
2.2 A FAMÍLIA FUSIONAL E A FAMÍLIA EUDEMONISTA
O crescimento demográfico, o processo de migração interna, o aumento de
desigualdades sociais e bolsões de pobreza contribuíram para a transformação da
família no decorrer do século XX, conforme explica Carbonera (2013, p. 44), “a
multiplicidade de costumes, crenças religiosas, orientação sexual, enfim, a
diversidade populacional colocou fim, de forma definitiva, na possibilidade de o
sistema jurídico manter a tutela a uma única forma de família”.
Com as conquistas legislativas, como o divórcio e a cada vez mais
propagada ideia de igualdade entre os cônjuges, foi observada a construção da
família fusional, explicada pelo autor Roger Raupp Rios (2007, p. 113): “[...]
observou-se a instauração de um tipo de relação familiar que privilegiava a
satisfação afetiva conjunta dos cônjuges, pelas aspirações de intimidade e
reciprocidade no seio familiar – é o advento da ‘família fusional’”. Tal modelo, o da
131
131
família “feliz”, não se preocupava com a felicidade individual de seus membros,
mas da felicidade como somente possível com a satisfação conjunta.
A função, ou as funções da Família no Direito brasileiro dos dias atuais não
são essas propagadas pela família fusional. A Constituição Federal de 1988
reconhece o papel da família como atriz no cenário social e a autonomia do
indivíduo participante da entidade familiar desatrelada a interesses transpessoais
ou fusionais.
Por meio do disposto nos artigos 226 a 230, inseridos no título VIII – “Da
Ordem Social”, o constituinte brasileiro garantiu proteção às entidades familiares,
admitindo uma ideia plural e democrática de família em detrimento da concepção
anterior de família transpessoal e também de uma possível idealização da família.
Segundo José Afonso da Silva:
A família é afirmada como base da sociedade e tem especial proteção do
Estado mediante assistência na pessoa de cada um dos que a integram
e criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Não é mais só pelo casamento que se constitui a entidade familiar. Entendese também como tal a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes e, para efeito de proteção do Estado, também, a união estável
entre homem e mulher [...]. (SILVA, 2012, p. 852-853, grifos nossos).
Com efeito, hoje, por meio da Constituição Federal de 1988, vislumbra-se
no Brasil um sistema mais dinâmico que o existente nos primórdios do século XX. O
fenômeno da constitucionalização do Direito Civil trouxe uma releitura do direito de
Família. Enquanto a ordem jurídica anterior reconhecia e conferia efeitos somente à
família “legítima”, o atual sistema jurídico primao pela pluralidade de entidades
familiares e a proteção do indivíduo.
A constituição da pessoa humana em uma entidade familiar autoevidente
que privilegia a coexistência é o que promove uma vida digna e livre. Os
professores José Lamartine Correa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz
introduziram na doutrina brasileira a família eudemonista, que se adéqua à
proposta de desenvolvimento dos membros da família em detrimento de aspectos
instrumentais e transpessoais: “A concepção eudemonista da família progride à
medida que ela regride ao seu aspecto instrumental. E, precisamente por isso, a
família e o casamento passam a existir para o desenvolvimento da pessoa – para a
realização dos seus interesses afetivos e existenciais”. (MUNIZ; OLIVEIRA,
2003, p. 13, grifos nossos).
Nesse sentido, família não é considerada uma convenção social: é reflexo
de dados culturais, históricos e sociais. É estrutura básica social em que a pessoa
132
132
se desenvolve e, por não admitir uma forma pré-determinada, é compatível com a
ideia de pluralidade.
Apesar disso, não se pode fechar os olhos à realidade brasileira: ainda é no
seio das famílias onde residem os maiores índices de abusos e violência no país.
Embora o Direito tenha passado por mudanças paradigmáticas, ainda a
realidade de muitas mulheres, crianças e idosos é a de abandono e abusos de todas
as formas. Essas pessoas vulneráveis são as que mais sofrem com a violência por
parte de seus familiares e com o descaso estatal. Essa triste realidade, que se
contrapõe à concepção da família democrática e eudemonista, provoca o estudioso
do Direito a buscar saídas ou tentativas de mitigação de tais situações.
Uma possível solução é admitir como entidades familiares aquelas formadas
por
pessoas
que
se
tratam
como
se
irmãos
fossem
em
cooperação
e
socioafetividade. Afinal, o Direito brasileiro dos dias atuais não se coaduna com
situações de exclusão, conforme observam os doutores Luiz Edson Fachin e Carlos
Eduardo Pianovski Ruzyk: “A contemporaneidade não mais se compatibiliza com o
sistema de direito que, em sua pretensão de completude, exclua relações sociais
que não estejam estritamente subsumidas a modelos pré-ordenados” (FACHIN;
PIANOVSKI RUZYK, 2006, p. 269).
O atendimento de vulneráveis em uma relação humana onde há comunhão
de vida, solidariedade e afeto instiga o estudo da ora denominada Família Solidária,
que consiste na união de pessoas em situação semelhante de vulnerabilidade para
construir e viver em família. Ela é entidade familiar não prevista expressamente no
corpo do texto constitucional, mas tão família como as demais, conforme será
exposto ao longo do presente trabalho.
2.3 A FAMÍLIA SOLIDÁRIA COMO FAMÍLIA EUDEMONISTA
Quando se trata de matéria de direito de família, a vida como ela é se
encontra
um
passo
à
frente
do
legislador.
A
afetividade
como
elemento
caracterizador de entidade familiar aponta a falência do modelo tradicional
transpessoal, que muito mais levava em conta o ter do que o ser. Rosana Amaro
Girardi Fachin (2001, p. 96) ressalta o caráter patrimonialista do direito de família
do Código Civil de 1916, afirmando que “[...] É incontestável a superação do tipo
de família codificado, que se constituía como grupo econômico patrimonialista, no
qual os indivíduos viviam para o fortalecimento da instituição, não para a sua
realização pessoal”.
A família eudemonista mostra que a entidade familiar é local onde os mais
profundos sentimentos e estruturas pessoais se formam e onde direitos são
exercidos, em consonância com a dignidade da pessoa humana e a afetividade. Os
133
133
professores Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk discorrem sobre a
relação entre o eudemonismo e a dignidade da pessoa humana como princípios :
Trata-se do princípio eudemonista, diretamente derivado do princípio da
dignidade da pessoa humana. A ‘felicidade’ coexistencial objetivada pelo
princípio eudemonista não é, por óbvio, ‘produzida’ por meio da lei, como a
estabilidade artificial imposta pela perspectiva que valorava as funções
institucionais da família como superiores às funções pessoais. O objetivo,
aqui, ao contrário, é instrumental: prestar assistência para propiciar que os
sujeitos, livremente, busquem essa felicidade que, por coexistencial, não
ignora o outro. (FACHIN; PIANOVSKI RUZYK, 2011, p. 22-23).
Os autores ressaltam que a dignidade da pessoa humana na família é
propiciada pela coexistência pautada pela busca da felicidade que supera os desejos
individuais. A coexistência com afeto possibilita a convivência em família sem que
existam cenários de opressão e imposição da vontade de um em detrimento das
vontades dos demais.
Considerando os propósitos da família eudemonista, os autores supracitados
entendem que “a configuração jurídica da família prescinde de características
tradicionais, como a coabitação, a existência de filhos, a prática de relações
sexuais, sendo a comunhão do afeto sinônimo de comunhão de vida”. (FACHIN;
PIANOVSKI RUZYK, 2006, p. 265). Desse modo, admite-se como entidade familiar
a ora estudada, pois a Família Solidária – assim denominada pela professora Ana
Carla Harmatiuk Matos – “trata-se daquelas realidades de convívio com esforço
mútuo para a manutenção de pessoas que têm em comum a necessidade premente
de auxiliar-se” (MATOS, 2008, p. 45). Há fuga das características tradicionais da
família, aquelas que preponderavam no conceito de família transpessoal.
Esse modelo de família também pode ser denominado de “irmandade
socioafetiva”, havendo a possibilidade de até mesmo identificar a
“posse
de
estado de irmãos” entre os que a compõem, sendo irrelevante, portanto, a
existência de laços biológicos.
A Família Solidária volta-se à proposta democrática de proteção dos
vulneráveis e do estímulo à convivência familiar onde pessoas em situação
semelhante constroem laços de ajuda mútua, conquistam sua autonomia.
O capítulo 4 do presente trabalho abordará alguns casos em que é possível
identificar a existência da referida entidade familiar para os grupos de idosos,
pessoas com deficiência e famílias monoparentais que contam com a cooperação
para minimizar sua situação de vulnerabilidade.
134
134
3 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA FAMÍLIA SOLIDÁRIA
Conforme a exposição das páginas anteriores, a ideia que circundava a
família para o ordenamento jurídico brasileiro até meados do século XX seguia
predominantemente
um
modelo
transpessoal,
hierarquizado,
patrimonial,
heterossexual e patriarcal. O cenário se alterou aos poucos com o nascer de novas
concepções de funções da família como local de construção da pessoa em
coexistência afetiva.
A Família Solidária, como traçado no item 2.3, insere-se no contexto da
família eudemonista e, para uma compreensão do que isso significa, propõe-se o
estudo de alguns princípios jurídicos que a fundamentam e se aplicam imediata e
diretamente. O insigne professor italiano Norberto Bobbio define o que são
princípios gerais:
Os princípios gerais são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou
generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípio leva a
engano, tanto que é velha questão entre juristas se os princípios gerais são
normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como
todas as outras. [...] Se são normas aquelas das quais os princípios gerais
são extraídos, não se vê por que não devam ser normas também eles: se
abstraio da espécie animal obtenho sempre animais, e não flores ou
estrelas. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados
é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um
caso. (BOBBIO, 1995, p. 158-159).
Para o autor, princípios são normas que devem nortear a função do
legislador e do aplicador do produto legislativo. Elas se voltam à regulação da
conduta humana, estruturando e dando coesão ao sistema jurídico de determinada
sociedade, sendo, portanto, normas que, como tais, contêm “regras e valores de
caráter universal” (PEREIRA, 2013, p. 93). Isso significa dizer que princípios só
serão princípios se inexistirem exceções a seus conteúdos.
Transferindo a discussão para o cenário específico da sociedade brasileira, é
cediço que o sistema de regras positivas não é suficiente para abranger todos os
fatos que se referem à proteção da dignidade da pessoa humana e é função do
hermeneuta buscar fontes do Direito que alcancem esse objetivo. O professor
Rodrigo
da
Cunha
Pereira
aponta
que
princípios
jurídicos
constróem
a
fundamentação de decisões judiciais quando insuficientes as normas positivas:
A jurisprudência brasileira passou a aplicar diretamente os princípios aos
casos concretos, de modo a atribuir ao julgado, de acordo com os
parâmetros hermenêuticos e valorativos existentes na sociedade e inscritos
na Constituição e com a inevitável interferência da subjetividade na
objetividade. É com este rico material que se tornou possível construir o
conteúdo normativo dos princípios e, por conseguinte, aplicá-los diretamente
às relações interprivadas. (PEREIRA, 2013, p. 38).
135
135
Assim,
por
serem
uma
das
fontes
do
Direito,
aplicáveis
direta
e
imediatamente às relações interprivadas com o objetivo de alcançar a dignidade da
pessoa humana, é necessário discorrer sobre alguns princípios – uns expressos,
outros não expressos – que fundamentam o presente objeto de estudo: a Família
Solidária. Nas páginas que seguem, serão trazidas algumas questões que permeiam
os princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade, liberdade,
pluralidade das formas de família e afetividade.
Não é pretensão de o presente trabalho monográfico discorrer sobre cada
um desses princípios de forma exaustiva. Serão apresentadas algumas das
discussões doutrinárias latentes e, principalmente, será lançada luz
à sua
adequação ao estudo da Família Solidária.
3.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Um dos fundamentos da Constituição da República de 1988 é a dignidade da
pessoa humana, prevista no inciso III de seu artigo 1º, dispositivo esse que a prevê
nos seguintes termos: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa
humana”.
É na filosofia de Immanuel Kant onde se encontra a compreensão sobre o
conteúdo da dignidade. No Brasil, o desenvolvimento de uma definição doutrinária
do que seria compreendido por “dignidade da pessoa humana” é traçada por Ingo
Sarlet, o qual discorre:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva
de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham
a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres
humanos. (SARLET, 2007, p. 62).
Sendo o ser humano um fim em si mesmo, já que a ele é inerente à
dignidade, passa-se a pensar a dignidade da pessoa humana no Direito de Família
sob a perspectiva da coexistência e cumprimento de deveres que preservam a
dignidade de cada um, inclusive dos membros de uma relação em família. Luiz
Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk ressaltam que:
a preservação e a promoção da dignidade da pessoa humana passam, pois,
pela disciplina das relações concretas de coexistencialidade. É nessa
dimensão que se dá a concretização do princípio da dignidade, que, a seu
turno é tarefa do Estado, ‘de todos e de cada um’. O espaço privado é, por
136
136
isso, inequivocamente, lugar fértil e propício à incidência do princípio.”
(FACHIN; PIANOVSKI RUZYK, 2011, p. 4-5).
Assim, o âmbito da tutela da dignidade da pessoa humana deve repercutir
na coexistência combinada com a realização de cada pessoa dentro da relação
familiar, sem opressões entre si. A visão do professor Gustavo Tepedino indica a
correlação do Direito de Família com o Estado brasileiro e seu compromisso de
proteger o ser humano:
[...] a dignidade da pessoa humana alcançada pelo artigo 1º, inciso III, da
Constituição Federal, a fundamento da República, dá conteúdo à proteção da
família atribuída ao Estado pelo artigo 226 do mesmo texto maior: é a
pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento
finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as
normas do direito positivo, em particular, aquelas que disciplinam o direito
de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo social.
(TEPEDINO, 2001, p. 328).
No capítulo 2, foram expostas as funções da família em momento inicial das
codificações ocidentais até o nascer de sua concepção eudemonista. As funções da
família sofreram mudanças em meio a crises e movimentos evolutivos e
revolucionários, sociais e culturais para cada vez melhor proteger a pessoa
humana, conforme afirma a jurista Rosana Fachin:
Os princípios constitucionais, calcados na valorização da pessoa humana,
trazem uma nova ordem de valores insculpidos na Constituição e visam à
realização integral da pessoa. Essa realização significa a plena dignidade da
pessoa humana e, como princípio central, o Direito de Família encontra-o
como pedra basilar: amor, afeto e solidariedade conformam e amoldam a
família constitucional. Nessa linha, o dever de mútua assistência decorre da
solidariedade e compreende um dos pilares daquilo que se pode valorar
como princípio da dignidade da pessoa humana. (FACHIN, 2001, p. 81,
grifos nossos).
Ora, dentro da proteção da pessoa humana, a tutela dos mais vulneráveis
demanda maior atenção do Direito. Nesse sentido, a Família Solidária exerce o
papel de mitigação da situação de vulnerabilidade que muitas pessoas enfrentam
em decorrência de sua idade, condição econômica ou outras, pois ao se unirem
para construção da convivência em socioafeitividade, observa-se a consequente
proteção da Dignidade da pessoa humana.
3.2 O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE
Assim como o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da
solidariedade é um dos fundamentos da Constituição da República Brasileira,
previsto no inciso I de seu artigo 3º: “Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
137
137
A noção de que o indivíduo existe enquanto coexistir amolda-se à
solidariedade familiar. A autora Maria Celina Bodin de Moraes expõe algumas
compreensões sobre a Solidariedade:
Fato social, virtude, vício, pragmatismo e norma jurídica são os diferentes
significados do termo. Do ponto de vista jurídico [...] a solidariedade está
contida no princípio geral instituído pela Constituição de 1988 para que,
através dele se alcance o objetivo da “igual dignidade social.” O princípio
constitucional da solidariedade identifica-se, assim, com o conjunto de
instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos,
em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou
marginalizados. (MORAES, 2001, p. 8, grifos nossos.
Logo, mitigado o individualismo e trazida à superfície a solidariedade como
princípio jurídico, tem-se, no Direito de Família, o nascimento de institutos que a
concretizam, verbi gratia, os Alimentos para idosos (artigos 11 a 14 do Estatuto do
Idoso, Lei nº 10.741/2003) e para crianças (artigo 22 do Estatuto da Criança e do
Adolescente).
Maria Celina Bodin de Moraes entende ser a solidariedade um fato social, já
que o ser humano não pode ser concebido como um ser isolado, somente sendo
possível enxergá-lo em sociedade. Divide-se Solidariedade como objetiva e como
subjetiva. A primeira “decorre da necessidade imprescindível da coexistência”, já “a
solidariedade como valor deriva da consciência racional dos interesses em comum,
interesses esses que implicam, para cada membro, a obrigação moral de não fazer
aos outros o que não deseja que lhe seja feito.” (MORAES, 2001, p. 4).
Além
das
dimensões
objetiva
e
subjetiva
da
Solidariedade,
Paulo Luiz Netto Lôbo a identifica em duas outras dimensões: “a primeira, no
âmbito interno das relações familiares, em razão do respeito recíproco e dos
deveres de cooperação entre seus membros; a segunda, nas relações do grupo
familiar com a comunidade, com as demais pessoas e com o meio ambiente em que
vive”. (LÔBO, 2008, p. 10).
A ideia de reciprocidade compõe a solidariedade, mas não é bastante, pois
também deve ter como fim a igualdade entre os que compõem a relação e as
pessoas externas a ela.
O princípio da solidariedade promove a responsabilidade do Estado, da
sociedade e da família em proteger não somente a entidade familiar, mas também
os que nesta são mais vulneráveis. Paulo Luiz Netto Lôbo complementa: “O
macroprincípio da solidariedade perpassa transversalmente os princípios gerais do
direito de família, sem o qual não teriam o colorido que os destacam, a saber, o
princípio da convivência familiar, o princípio da afetividade, o princípio do melhor
interesse da criança. ” (LÔBO, 2008, p. 5).
138
138
Como decorrência desse princípio, é possível identificar a partir da leitura do
texto constitucional o dever de proteção do grupo familiar, previsto no artigo 226, a
proteção à criança e ao adolescente, em conformidade com o artigo 227 e a
proteção de pessoas idosas prevista no artigo 230 da Constituição da República.
No âmbito da Família Solidária – cuja nomenclatura apresentada pela autora
Ana Carla Harmatiuk Matos (2008, p. 35-48) já indica sua relação com o princípio –
os seus membros a formam com o objetivo de cooperação e suprimento de
necessidades em conjunto.
Nessa entidade familiar, o dever de cuidado derivado da solidariedade entre
seus membros é latente, ante a responsabilidade existente um pelo outro, que se
concretiza desde a convivência socioafetiva até a divisão de deveres, como o de
pagar despesas com serviços de saúde. Observa-se que a Solidariedade aliada ao
Afeto constrói o vínculo familiar por permitirem o desenvolvimento afetivo e
coexistencial dos que o compõem.
3.3 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Outro princípio geral do ordenamento jurídico brasileiro que norteia a
Família Solidária é o princípio da igualdade. Esse é previsto no preâmbulo, no artigo
5º e em demais dispositivos da Constituição Federal de 1988. O aludido princípio
parte do pressuposto de que existem diferenças entre sujeitos e contextos, mas
que elas não podem justificar privilégios ou preferências que não sejam consoantes
aos preceitos eleitos constitucionalmente.
O referido princípio, sob a ótica de Celso Antonio Bandeira de Mello (2010,
p. 9-10), deve ser considerado sob um duplo aspecto: o de igualdade na lei e
perante a lei. Esta diz respeito à igualdade formal, enquanto aquela à igualdade
material. Sobre essa distinção, o professor Rodrigo da Cunha Pereira ensina (2013,
p. 169-170) que “O princípio da igualdade e da diferença pressupõe a igualdade
formal, isto é, perante a lei, e a igualdade material, que é o direito à equiparação
mediante a redução das desigualdades”.
Hoje, pela leitura do artigo 226 em conjunto com os princípios da
dignidade da pessoa humana e da liberdade, é possível interpretar que no Direito
de Família contemporâneo, prevalece a existência de igualdade entre os membros
das famílias e o tratamento igual entre entidades familiares.
O respeito às diferenças existentes uns nos outros se vincula intimamente
a tratamento de igualdade material. Essa não implica simplesmente em uma
igualdade
formal,
mas
em
uma
igualdade
substancial,
que
considera
as
peculiaridades de cada pessoa e de cada entidade familiar, conforme leciona Paulo
Luiz Netto Lôbo:
139
139
A igualdade e seus consectários não podem apagar ou desconsiderar as
diferenças naturais e culturais que há entre as pessoas e entidades. Homem
e mulher são diferentes; pais e filhos são diferentes; criança e adulto ou
idoso são diferentes; a família matrimonial, a união estável, a família
monoparental e as demais entidades familiares são diferentes. Todavia, as
diferenças não podem legitimar tratamento jurídico assimétrico ou desigual,
no que concernir com a base comum dos direitos e deveres, ou com o
núcleo intangível da dignidade de cada membro da família. (LÔBO, 2011, p.
67).
Dessa forma, e pensando na Família Solidária, não se pode exigir para o
reconhecimento dessa o mesmo grau de publicidade exigido para comprovação de
uma união estável entre homem e mulher, já que aquela situação pode dizer
respeito a idosos ou pessoas com deficiência que têm dificuldade de locomoção e,
portanto, não têm meios de vir a público com a mesma assiduidade que um casal.
A existência de posse de estado de irmãos, em que a verificação do modo que um
convivente trata o outro e como esse tratamento é notado, é determinante para
constatar a existência de vínculo de parentesco parabiológico.
A partir do exposto, conclui-se ser possível haver tratamento desigual
entre entidades familiares, desde que observados os interesses protegidos pela
Constituição Federal de 1988.
3.4 O PRINCÍPIO DA LIBERDADE
O autor Conrado Paulino da Rosa (2013, p. 43) destaca que o princípio da
liberdade apresenta duas vertentes quando incidente no estudo do Direito de
família: “liberdade da entidade familiar, diante do Estado e da sociedade, e
liberdade de cada membro diante dos outros membros e diante da própria entidade
familiar”.
Quanto à liberdade da entidade familiar diante do Estado, uma questão
relevante para o Direito de Família decorre das formas que a família pode
apresentar e do interesse do Estado em intervir ou não para protegê-la.
A liberdade se insere na escolha dos membros da família em mantê-la e
nela conviverem de acordo com os interesses e peculiaridades individuais, desde
que no espírito de solidariedade, cooperação e afetividade. Ao público, cabe tutelar,
sem interferir ostensivamente na família para que essa continue a ser o espaço de
liberdade e desenvolvimento do ser humano. Rodrigo da Cunha Pereira evidencia o
que interessa ao Estado na relação familiar:
Ao garantir ao indivíduo a liberdade por intermédio do rol de direitos e
garantias contidos no art. 5º, bem como de outros princípios, [a Constituição
Federal] conferiu-lhe a autonomia e o respeito dentro da família e, por
conseguinte, assegurou a sua existência como célula mantenedora de uma
sociedade democrática. Isto sim, é que deve interessar ao Estado (PEREIRA,
2013, p. 183).
140
140
Previsão legal que se coaduna com o apresentado pelo doutrinador
mencionado é a constante no artigo 1.513 do Código Civil Brasileiro: “É defeso a
qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida
instituída pela família”. Isto é, frize-se, o legislador foi claro em não permitir que o
Estado direcione as pessoas a seguirem um modelo de família estanque ou que
interfira positivamente na relação familiar decorrente do exercício da Liberdade,
desde que essa relação esteja em consonância com os demais princípios
constitucionais, como da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.
Além dessa primeira perspectiva, ainda há a liberdade de cada um dos
membros da família diante dos demais e diante da própria entidade familiar. De
acordo com Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, (2011, p. 322-323) a função da
família reside no espaço de “autoconstituição coexistencial”.
Como visto no capítulo 2 do presente trabalho, de acordo com o Direito de
Família correspondente ao Código Civil Brasileiro de 1916, embora prevalecesse o
pensamento liberal, de que tudo o que não estivesse vedado por lei poderia ser
realizado pelo indivíduo, persistia o pensamento de que só era família aquela
derivada do casamento entre homem e mulher. As demais configurações sociais,
como a hoje chamada união estável, mas que à época era denominada de
“concubinato puro”, eram entidades familiares de “segunda classe” 1.
O inciso II do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Ora, a
partir de tal previsão constitucional, aliada ao previsto no artigo 1.513 do Código
Civil, conclui-se que há a liberdade negativa das pessoas em escolherem o modo
que melhor lhes aprouver para viver em família de modo a potencializar a
dignidade da pessoa humana em relação de coexistência autoevidente.
Como as duas vertentes da Liberdade na família se interligam, é
importante frisar que em que pese a liberdade negativa de não restringir a
formação de entidades familiares que fujam do rol do artigo 226 da Constituição
Federal, há situações que demandam a atuação estatal, especialmente em que haja
condição de vulnerabilidade.
O Estado, justamente por ter como fundamento a dignidade da pessoa
humana, não pode fechar os olhos para abusos e, portanto, deve atuar positiva e
pontualmente.
Pela Família Solidária, permite-se que pessoas em situação de fragilidade
convivam e compartilham a vida para evitar sua institucionalização e reduzir a
necessidade de intervenção estatal.
1
Cita-se Carlos Alberto Bittar, que defendeu ser o casamento o único modo de formação de família.
BITTAR, C. A. Direito de Família. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 10-11.
141
141
Verifica-se, nesse caso, que a aludida entidade familiar permite o exercício
da liberdade substancial, para além da autonomia privada e que garanta um
conjunto mínimo de capacidades a serem exercidas pelas pessoas que a compõem.
O professor Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, ao realizar o estudo sobre a Liberdade
“substantiva”, isto é, a “liberdade como efetividade”, concluiu que quanto mais
ampla essa for, tanto mais será o conjunto de capacidades de uma pessoa: “ O
conjunto de funcionamentos que uma pessoa consegue realizar compõe seu
conjunto
capacitório,
ou
seja,
a
capacidade
de
alguém
é
medida
pelos
funcionamentos que ela pode realizar efetivamente. Assim, tão maior será a
liberdade efetiva de uma pessoa quanto maior for o seu conjunto capacitório”
(PIANOVSKI RUZYK, 2011, p. 58).
O propósito da Família Solidária é ampliar as capacidades dos que a
compõem, permitindo, dessa forma, o exercício de demais liberdades e a
manutenção de um mínimo existencial, conforme se verá no decorrer deste
trabalho.
Assim, ressalta-se que não pode ser entendida como função do Estado
apresentar um rol taxativo de formas que as entidades familiares possam assumir.
Isso obstaria o reconhecimento de efeitos de formações familiares que fogem da
tríade do artigo 226 da Constituição Federal e, por conseguinte, não se atenderia o
ideal de Eudemonismo, tampouco a garantia de liberdades substanciais de pessoas
consideradas mais vulneráveis.
3.5 O PRINCÍPIO DA PLURALIDADE DAS FORMAS DE FAMÍLIA
Tendo em vista os princípios e direitos à igualdade e à liberdade de
constituição de entidades familiares em observância à dignidade da pessoa
humana, à solidariedade e à igualdade entre os membros da família, impende
apresentar a discussão sobre a admissão das pluralidades de formas de família no
ordenamento jurídico brasileiro. O reconhecimento de entidades familiares pelo
artigo 226 da Constituição Federal de 1988 é objeto de debate doutrinário e
jurisprudencial. O dispositivo refere-se expressamente ao casamento, à união
estável e à comunidade monoparental.
A questão levantada pela doutrina decorre da cogitação sobre a existência
ou não de entidades familiares implícitas ao texto constitucional.
O doutrinador Rodrigo da Cunha Pereira posiciona-se contrariamente à
existência de uma norma de clausura no texto constitucional sobre a família. O
presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) defende que a vida
precede a lei e, ao mencionar os estudos do psicanalista Jacques Lacan, enriquece
a perspectiva lançada:
142
142
A vida como ela é vem antes da lei jurídica. Jacques Lacan, em 1938,
demonstrou em seu texto A família (publicado no Brasil com o nome
Complexos familiares) a dissociação entre família como fato da natureza e
como um fato cultural, concluindo por essa última vertente. Ela não se
constitui apenas de pai, mãe e filho, mas é antes uma estruturação psíquica
em que cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função, sem
estarem necessariamente ligados biologicamente. Desfez-se a ideia de que a
família se constituiu unicamente, para fins de reprodução e de legitimidade
para o livre exercício da sexualidade. (PEREIRA, 2013, p. 193, grifos
nossos).
O trecho realçado resume em termos a virada de Copérnico que essa
interpretação da Constituição Federal de 1988 promoveu para o Direito de Família
brasileiro. Para essa corrente, família não mais se volta à mera função de
reprodução e formação de prole: é vista de forma renovada pelo Direito e exige
para tantas novas formas de identificação.
A discussão não se limita aos manuais doutrinários. Os precedentes 1 dos
tribunais superiores brasileiros se pronunciam sobre o assunto e em decisões
paradigmáticas trazem delineamento da pluralidade das entidades familiares em
casos concretos. Exemplo recente e de grande repercussão é o da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 4.277, que reconheceu a união homoafetiva como entidade
familiar. Em seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski fundamenta:
Com efeito, a ninguém é dado ignorar – ouso dizer – que estão surgindo,
entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família
patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemente, para os
fins de procriação, outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto,
e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da felicidade, o bem
estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes. (STF,
2011, p. 717).
O Poder Legislativo não se exime de abordar o tema. No projeto de lei nº
6.583/2013, proposto pelo Deputado Federal Anderson Ferreira (Partido da
República- Pernambuco), pretende-se criar o Estatuto da Família. A Câmara dos
Deputados colocou em enquete em seu sítio eletrônico 2 a discussão sobre a
elasticidade do conceito de família, já que o referido projeto de lei institui o
Estatuto da Família e dispõe em seu artigo 2º o que é considera ser família: “Para
os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir
1
2
Ressalta-se que o termo precedente não se confunde com jurisprudência.
Esse
segundo
termo, no entanto, não é empregado de modo acertado, conforme leciona o doutor Luiz Edson Fachin:
“Jurisprudência é método. A palavra jurisprudência deve corresponder ao resultado de compreensão
dos sentidos sobre determinado campo jurídico, propostos pela doutrina e explicitados nos
julgamentos por meio de entendimentos consolidados que, emergindo nos tribunais, se projeta na
cultura jurídica no país. [...] Não se pode focar apenas o papel do juiz, pois precedente não se
confunde com jurisprudência. O que existe entre nós é um conjunto de precedentes elevados ao
patamar de teses, ou colocados, em certos assuntos, no âmbito de um recurso especial repetitivo ou
até mesmo de uma eventual súmula, mas isso não tem dado estabilidade e segurança jurídica que se
espera de uma verdadeira jurisprudência” (FACHIN, 2014, p. 5).
A pesquisa pode ser consultada no seguinte sítio eletrônico: <http://www2.camara.leg.br/agenciaapp/listaEnquete>.
143
143
da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável,
ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
A enquete apresentada pela Casa Legislativa contava no final do mês de
maio de 2014 com 1.074.846 (um milhão, setenta e quatro mil, oitocentos e
quarenta e seis) votos, tendo como título: “Conceito de núcleo familiar no Estatuto
da Família” e questionando os participantes da votação da seguinte forma: “Você
concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre
homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?”. Como o
próprio portal informa, embora a pesquisa não seja vinculante, tampouco os dados
gerados tenham valor científico, há a proposta de promover a interação com os
usuários. Os índices apresentados pela enquete mostram que 62,61% (673.038
votos) dos participantes concordam com o conceito do artigo 2º do referido projeto
de lei, 37,02% (397.900 votos) exteriorizaram opinião contrária e 0,37% (3.956
votos) indicaram não ter opinião formada.
Denota-se que a pluralidade das entidades familiares desperta no Brasil
diferentes opiniões na doutrina, nas decisões judiciais e na própria sociedade.
A partir do proposto no artigo 2º do referido projeto de lei, verifica-se que
há membros do Poder Legislativo brasileiro de posicionamento conservador, que
desconsideram fundamentos e princípios da Constituição da República Brasileira.
Isso porque uma lei em tais termos dificulta o reconhecimento de famílias que
fogem do “padrão” heterossexual e tradicional, como é o caso da Família Solidária,
bem como das famílias recompostas, das famílias simultâneas, das uniões entre
pessoas do mesmo sexo, das famílias unipessoais, dentre outras.
O reconhecimento dessas entidades familiares não explícitas e a proteção
das pessoas que as integram é tarefa de interpretação do julgador, que deve
preservar os postulados constitucionais em detrimento de produtos legislativos que
possam restringir direitos por conta de parlamentares com pensamento retrógrado.
A doutrina de Paulo Lôbo auxilia o trabalho do hermeneuta ao apresentar
três critérios para constatação de entidades familiares: a afetividade, a estabilidade
e a ostensibilidade. O primeiro, “como fundamento e finalidade da entidade, com
desconsideração do móvel econômico”; o segundo como elemento que exclui
“relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de
vida”; e o último exigindo como “pressuposto uma unidade familiar que se
apresente assim publicamente” (LÔBO, 2011, p. 81).
Levando em conta tais critérios, conclui-se ser possível a verificação de
entidades familiares em contextos plurais.
Já que não é possível nomear ou listar no artigo 226 da Constituição
Federal todas as possibilidades existentes ou futuras de formação familiar, tais
critérios possibilitam identificar entidades familiares. Rodrigo da Cunha Pereira
144
144
expõe que “basta lembrarmos que irmãos vivendo juntos, avós e netos, constituem
família e, no entanto, esta forma de família não está ali numerada”. (PEREIRA,
2013, p. 194).
A Família Solidária surge da relação entre pessoas que vivem em vínculo
socioafetivo, que prescinde da consanguinidade, mas que não pode ser descartado
como entidade familiar.
3.6 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
A fim de possibilitar o reconhecimento de entidades familiares não
expressas no texto constitucional, promove-se uma reflexão sobre as questões que
circundam a afetividade. Seu reconhecimento como princípio jurídico proporciona a
tutela da dignidade da pessoa humana, com consequente realização individual
dentro do que se reconhece como família.
Primeiramente, sobre a eleição da afetividade como critério de identificação
de entidades familiares, relevantes são as observações de José Fernando Simão, as
quais servem de base para responder o questionamento de “qual seria o afeto
correspondente à existência de uma entidade familiar?”. Simão oportuniza uma
visão interdisciplinar entre Direito e Psicanálise, afirmando:
[...] afeto, segundo a Psicanálise, decorre da noção de afetar, conviver, criar
laços. Afeto não se opõe ao ódio, pois o ódio é uma manifestação do afeto.
Afeto se opõe à indiferença. [...] O afeto, para ter importância, exige o alter.
Afeto em potência tem nenhum significado. Afeto que interessa ao Direito é
aquele que se transforma em relação humana, seja ela relação jurídica ou
metajurídica. (SIMÃO, 2014, p. 38, grifos nossos).
Admite-se que o afeto é conceito ligado a subjetivismos, mas como
negritado no excerto, o afeto que interessa ao Direito é que se transforma em
relação humana, jurídica e nisso se inclui a família. A afetividade com o desenvolver
dos estudos doutrinários recebeu status de princípio pela doutrina de Paulo Luiz
Netto Lôbo, o qual o conceitua com as acertadas palavras:
[Afetividade] é o princípio que fundamenta o direito de família na
estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia
sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico. Recebeu grande
impulso dos valores consagrados na Constituição de 1988 e resultou da
evolução da família brasileira, nas últimas décadas do século XX, refletindose na doutrina jurídica e na jurisprudência dos tribunais. O princípio da
afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais
fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da
solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência
familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam
a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família. (LÔBO, 2011,
70-71).
145
145
Cumpre anotar que existem outras duas correntes doutrinárias que
discutem a aprovação da afetividade como princípio jurídico. Ricardo Calderón
didaticamente apresenta as três posições prevalentes:
Atualmente é possível distinguir as principais correntes doutrinárias em três:
a primeira sustenta expressamente a afetividade como princípio jurídico do
direito de família, a segunda reconhece a importância do afeto para a
família, mas o restringe à categoria de valor relevante (sem qualificá-lo
como princípio); e a terceira repele explicitamente a perspectiva
principiológica no trato da afetividade e argumenta, ainda, que o afeto não
deve ser objeto do Direito. (CALDERÓN, 2013, p. 289).
A primeira corrente que Calderón sintetiza é a defendida por Paulo Lôbo e
demais doutrinadores brasileiros, tais como Maria Helena Diniz e José Fernando
Simão. A segunda perspectiva, que reconhece a importância do afeto, mas não o
admite como princípio é articulada por Eduardo de Oliveira Leite e Arnoldo Wald.
Finalmente, a terceira visão é a trazida por Gustavo Tepedino, que afirma “Nos
escombros da desconstituição da família inexistem certamente amor e afeto – que,
de resto, não se constituem em princípios jurídicos e, por isso mesmo, carecem de
força coercitiva” (TEPEDINO, 2005, p. iv).
Apesar dos contrapontos, a afetividade, seja como princípio, seja como
sentimento humano jurígeno, é indispensável para a noção de família eudemonista.
O doutor Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk em sua obra “Institutos fundamentais do
direito civil e liberdade (s)” explana:
Se é certo que o “ser” da família não encontra no afeto, mesmo
contemporaneamente, seu único cimento, a compreensão de que ele é um
dos elementos mais relevantes de conformação estrutural das comunidades
familiares traz relevantes subsídios para uma nova configuração de um
“dever-ser” da família que apreende a relevância da afetividade, de modo
coerente com uma “repersonalização” dessas relações.
Pode-se entender que essa compreensão diferenciada sobre uma família que
não encontra fundamento em si mesma – e com funções vinculadas à sua
própria reprodução –, mas, sim, busca seu fundamento na formação de
vínculos de afeto – e, nessa medida, abre-se a novas possibilidades
funcionais, sendo compreendida, inclusive, como meio no qual as pessoas
buscam sua felicidade coexistencial –, constitui o que se costuma denominar
de família eudemonista. (PIANOVSKI RUZYK, 2011, p. 326).
Para a doutrina filiada a primeira corrente, a afetividade é princípio
constitucional
implícito,
que
atinge
todas
as
entidades
familiares
e
suas
configurações.
A professora Maria Berenice Dias notou que o princípio da afetividade
também não é explícito no texto do Código Civil Brasileiro de 2002, o que levou à
seguinte observação:
O Código Civil também não utiliza a palavra afeto, ainda que, em alguns
dispositivos, se possa entrever esse elemento para caracterizar situação
merecedora de tutela. Invoca somente o laço de afetividade como elemento
indicativo para a definição da guarda do filho quando da separação dos pais
146
146
(CC 1.584 parágrafo único). Ainda que com grande esforço seu consiga
visualizar na lei a elevação do afeto a valor jurídico, mister é reconhecer que
tímido mostrou-se o legislador. (DIAS, 2007, p. 68).
O Direito objetiva a afetividade para mais bem utilizar o termo. Assim
como o fenômeno pelo que passou a “Boa-fé” para ser referida como princípio no
direito privado (especialmente no direito do consumidor), Paulo Lôbo identifica uma
“afetividade objetiva”, que independe da constatação profunda e subjetiva da
existência de afeto como sentimento entre os membros da relação familiar.
O professor Calderón aprofunda a tese de Lôbo e faz referência a “fatos
signo-presuntivos da afetividade” (CALDERÓN, 2013, p. 312-313). Embora afirme
não serem estanques os delineamentos desses fatos, o autor demonstra a
possibilidade de identificá-los como “signo-presuntivos”. A doutora Ana Carla
Harmatiuk Matos apresenta algumas das características objetivamente observáveis
da afetividade nas relações familiares:
é dentro da família que os sujeitos oferecem e recebem suporte psicológico,
fazem companhia uns aos outros nas atividades privadas e sociais; há
auxílio econômico mútuo, com o consequente amparo nas adversidades
financeiras; ocorre a divisão das atribuições necessárias no atendimento da
casa, da alimentação e das demais atividades cotidianas; verifica-se o apoio
de um para conceder a possibilidade de desenvolvimento profissional ao
outro; há troca de afetividade entre os parceiros e entre eles e os filhos,
bem como comum se torna a divisão das tarefas de socialização das
crianças. Estes fatores estão presentes nos diversos modelos de entidades
familiares. (MATOS, 2011, p. 139).
Como será à frente melhor explicitado, no cenário da Família Solidária é
possível identificar os ditos fatos signo presuntivos de afetividade objetivamente
por meio da divisão de gastos, como despesas hospitalares e de medicamentos,
mas também por atos de companheirismo e responsabilidade uns pelos outros.
Logo, para o Direito é relevante dar ênfase à dimensão objetiva da
afetividade, pois a partir dela surge o desdobramento do cumprimento de deveres
familiares. Não deixa de ser relevante sua dimensão subjetiva, pois se refere à
essencialidade da proteção da dignidade da pessoa humana em sentir-se em
família.
Tendo em vista a concepção de família eudemonista, a afetividade pode ser
o elo preponderante para a identificação da entidade familiar, pouco importando a
existência de laços de sangue ou a verdade registral para o “sentir-se família”.
A existência de fatos signo presuntivos de afetividade identifica a incidência
do princípio. Na Família Solidária, a existência de afetividade e a aplicação dessa
como princípio geral é determinante para a identificação como entidade familiar não
explícita no texto constitucional e como família eudemonista.
147
147
4 A FAMÍLIA SOLIDÁRIA OU “IRMANDADE SOCIOAFETIVA”
Os capítulos 2 e 3 estruturam o que se propõe realizar nessa etapa.
Apresentada a família como conceito sociológico inapreensível aprioristicamente,
mas cujas funções dadas pela legislação brasileira desde o Código Civil de 1916 até
os dias atuais são discutíveis, bem como expostos os princípios que estruturam a
Família Solidária, parte-se para o estudo específico sobre essa entidade familiar,
também denominada “Irmandade Socioafetiva”.
Deve-se ressaltar que essa família, de acordo com a autora Ana Carla
Harmatiuk Matos, tem por propósito a união de pessoas em situação similar de
vulnerabilidade que, dessa forma, passam a conviver suprindo necessidades físicas
em meio de socioafetividade e coexistência. Conrado Paulino da Rosa (2013, p. 68)
observa que a Família Solidária pode ser formada em decorrência do “alto custo da
manutenção
da
moradia
nos
grandes
centros
urbanos
[...]
[o
que]
tem
impulsionado a criação de núcleos familiares que também podem ser chamados de
‘irmandade’”.
Tendo por premissas a afetividade, a dignidade e o desenvolvimento da
pessoa humana por meio da constituição da família, não se pode atrelar esse
fenômeno a formas pré-definidas.
O exercício de hermenêutica do texto constitucional deve ser feito de forma
sistemática, conciliando a leitura do artigo 226 com os fundamentos (artigo 1º) e
objetivos fundamentais (artigo 3º) da República Federativa do Brasil. Logo,
concilia-se a existência e a proteção de entidades familiares com os fundamentos
da cidadania e da dignidade da pessoa humana e a finalidade de construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, onde o bem de todos é promovido, sem
preconceitos e desigualdades que inferiorizem uns aos outros.
De mesma forma, a entidade familiar e o modo pelo qual é exteriorizada
também não podem representar inferiorização, nem serem fontes de discriminação.
Como já abordado no Capítulo 3, a pluralidade das entidades familiares é princípio
aplicado diretamente com o propósito de potencializar o tratamento isonômico e,
conforme
o
doutor
Rodrigo
da
Cunha
Pereira,
a
interpretação
do
texto
constitucional deve ser pautada pela tutela dos vínculos familiares formados pelo
afeto:
A hermenêutica do texto constitucional e, sobretudo, da aplicação do
princípio da pluralidade das formas de família, sem o qual se estaria dando
um lugar de indignidade aos sujeitos da relação que se pretende seja
família, tornou-se imperioso o tratamento tutelar a todo grupamento que,
pelo elo do afeto, apresente-se como família, já que ela não é um fato da
natureza, mas da cultura. Por tratamento tutelar entenda-se o
reconhecimento pelo Estado que tais grupamentos não são ilegítimos e,
portanto, não estarão excluídos do laço social. (PEREIRA, 2013, p. 195,
grifos nossos).
148
148
Admite-se, no Direito de Família contemporâneo, a existência de entidades
familiares não constituídas pelo vínculo sanguíneo, mas por relações de afeto entre
duas ou mais pessoas com o objetivo comum de constituir família e reduzir a
condição de vulnerabilidade que todos ou alguns de seus membros se encontram.
No âmbito infraconstitucional, há legislações que se coadunam com a visão
do Direito de Família dos dias atuais. Um primeiro dispositivo é o artigo 5º, inciso II
da Lei nº 11.340/2006, que, apesar de ter como objeto principal a criação de
mecanismos para coibir a violência doméstica, traz noção sobre família, a qual é
“compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa” (grifos nossos).
A expressão em negrito, em interpretação sistemática, convoca o resgate
do disposto no artigo 1.593 do Código Civil Brasileiro, que por sua vez define o que
seja o parentesco: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de
consanguinidade
ou
de
outra
origem”.
A
Família
Solidária
se
adéqua
da
interpretação desses dispositivos, já que é composta por pessoas que se
consideram aparentadas por outra origem, que não a biológica. Nessa entidade
familiar, também conhecida por “irmanada” ou “irmandade”, seus membros, apesar
de não compartilharem a mesma genética, nem terem sido criados no mesmo
núcleo familiar, são unidos por sentimento fraternal da solidariedade e buscar a
vida em comunhão, que pode configurar até mesmo a “posse de estado de irmãos”.
A doutora Ana Carla Harmatiuk Matos se reporta à Família Solidária nos seguintes
termos:
[...] Trata-se daquelas realidades de convívio com esforço mútuo para a
manutenção de pessoas que têm em comum a necessidade premente de
auxiliar-se. Como exemplo mencionam-se as pessoas de terceira idade que,
em razão da ausência da possibilidade de seus parentes atendê-los, acabam
encontrando em pessoas com as mesmas características um modo de
conviver “como se família fossem”. (MATOS, 2008, p. 45).
Os exemplos apontados pela autora são os de idosos que convivem
dividindo despesas, pessoas com deficiência que adaptam casas, contratam
profissionais da saúde e suprem demais necessidades comuns, coabitando em “alto
grau de solidariedade mútua”, além de famílias monoparentais, como de mães ou
pais sem companheiros, que se unem com outras em mesma situação para convívio
solidário
que
busca
suprir
necessidades
para
o
desenvolvimento
de
seus
respectivos filhos. Todos esses exemplos são amalgamados pela relação de afeto e
cooperação entre seus participantes.
Tendo em vista os exemplos propostos, parte-se para a análise de cada
uma das possibilidades hipotéticas lançadas para apontar de que modo é verificável
a existência da Família Solidária.
149
149
4.1 IDOSOS
Antes
de
analisar
propriamente
a
Família
Solidária
ou
Irmandade
constituída por idosos, algumas informações são relevantes para esclarecer o
contexto em que surge essa entidade familiar. Um desses dados é o referente ao
envelhecimento da população, que é fenômeno mundial e traz preocupações a
governos e a entidades internacionais. A Assembleia das Nações Unidas realizou em
2002 a 2ª Assembleia Mundial sobre Envelhecimento, na Itália, com o objetivo de
discutir o assunto e buscar medidas a serem convertidas em políticas públicas que
visassem atender os idosos em todo o mundo.
No Brasil, a definição legal para idosos está inserida no artigo 2º da Política
Nacional do Idoso, Lei nº 8.842/1994: “considera-se idoso, para todos os efeitos
desta lei, a pessoa maior de 60 anos de idade”.
O presente trabalho monográfico tomou por parâmetro conceitual o aludido
critério legal, tendo em vista sua objetividade e que é inesgotável a discussão
sociológica e psicológica sobre o tema da categorização de pessoas como “idosas”1.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística nos
resultados da Tábua completa de mortalidade (IBGE-b), a expectativa de vida do
brasileiro no ano de 2012 alcançava a média de 74,6 anos, sendo que as mulheres
teriam a expectativa de viver 78,3 anos, enquanto os homens, 71 anos. A melhoria
dos índices de desenvolvimento humano do país influi no envelhecimento da
população e, consequentemente, exige do Estado e da sociedade preparação para
atender as necessidades desses brasileiros.
Uma resposta a esse cenário foi a promulgação do Estatuto do Idoso, Lei
nº 10.481/2003, o qual complementou as previsões da Constituição Federal de
1988 acerca da proteção e direitos dessas pessoas. O artigo 230, caput, do texto
constitucional prevê que o amparo aos idosos é dever da família, da sociedade e do
Estado: “Art. 230. Família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as
pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua
dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
O aumento da população idosa, além de trazer impacto à sociedade e aos
orçamentos da seguridade social, também reflete em novas formas de famílias.
1
150
A visão do estudioso da área da saúde Renato Veras problematiza a legislada: “São considerados
idosos aqueles indivíduos que ultrapassam os 60 anos de idade. No entanto, é difícil caracterizar uma
pessoa como idosa utilizando como único critério a idade. Além disso, neste segmento conhecido como
terceira idade estão incluídos indivíduos diferenciados entre si, tanto do ponto de vista socioeconômico
como demográfico e epidemiológico”. (VERAS, 2004, p. 150).
150
Cada vez mais diferentes gerações convivem em um mesmo lar, dividindo deveres
e responsabilidades de uma geração para com a outra.
Alguns filhos e netos contratam profissionais “cuidadores de idosos”, ou
gerontólogos, para acompanhar a saúde física e mental de seus pais e avós
diariamente. Taisa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá (2013, p.
848) afirmam que “a profissionalização do cuidado do idoso em substituição ao
cuidado familiar não significa o abandono dos idosos por seus familiares. É, antes,
um imperativo da vida moderna”.
No entanto, há filhos, netos e demais familiares que não buscam essa
solução e, vendo aqueles que outrora administravam a família adentrarem a
terceira idade, os internam em asilos ou instituições similares, quando não apenas
os condenam à tristeza e ao sofrimento da violência ou do abandono.
A convivência familiar e comunitária é direito fundamental preconizado ao
idoso no artigo 227 da Constituição Federal e, diante do panorama do Direito de
Família Contemporâneo, pode-se pensar em diferentes modelos de família que não
somente a formada pelo matrimônio ou por união estável, pois nem sempre esses
modelos se aplicam a pessoas idosas. Sob a proposta da Família Solidária, tem-se
que idosos, que já vivem juntos há décadas, ou que foram vítimas de abandono e
estão sós, podem formar uma entidade familiar.
Por mais que seja importante a interação entre gerações, não é fato inédito
que pessoas idosas, amigas de longa data, acabem por residir em conjunto no final
da vida. Deve-se ter em mente que família é o lugar onde deve haver
socioafetividade, solidariedade e comunhão de vida. Família não se resume a laços
de sangue, podendo muito bem ser admitida entidade familiar formada por laços de
afeto construídos pela convivência.
A afetividade pode ser notada, nesses casos com a preocupação da saúde e
o cuidado exercido pelos conviventes entre si, o que pode ser exemplificado com a
contratação de profissionais de saúde para tratamento domiciliar.
Como a Família Solidária é implícita ao texto constitucional, há o desafio de
assegurar seu reconhecimento pleno e proteção de seus efeitos. Os seus membros
acabam por buscar socorro em mecanismos já reconhecidos para outras entidades
familiares, como é o exemplo do ajuizamento de ação declaratória de união estável
a fim de assegurar efeitos para os membros da entidade familiar. Para que esse
estudo fique mais completo, é imprescindível a análise de dois casos concretos: um
primeiro trazido pelo parecer dos professores Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo
Pianovski Ruzyk, publicado no 388º volume da Revista Forense e, um segundo,
apresentado por um precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
O primeiro consistia em um questionamento apresentado pelo patrono de
três senhoras que buscavam judicialmente a declaração de vínculo de parentesco
151
151
constituído por socioafetividade. Em 1943 as três senhoras conheceram um senhor,
com quem estreitaram vínculo de amizade e o meio social em que viviam
reconhecia os quatro como irmãos. Décadas depois, estando os amigos com
avançada idade, o idoso faleceu sem deixar descendentes e os únicos parentes
consanguíneos localizados eram primos com os quais o de cujus sequer mantinha
contato.
As conviventes sobreviventes, em meio à ação judicial por meio da qual
buscavam o reconhecimento do vínculo de parentesco socioafetivo, formularam o
referido
parecer,
que
entendeu
pela
viabilidade
de
admissão
de
vínculo
parabiológico a ensejar parentesco, além de identificar no caso a “posse de estado
de irmãos”.
Já o segundo caso, com dados e deslinde mais detalhados é o do acórdão
de 2005 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no que julgou a Apelação Cível
nº 7001.206.7096. Um idoso havia ajuizado ação declaratória de união estável com
sua cunhada, que falecera em 2002. Os herdeiros da senhora falecida interpuseram
recurso de Apelação ao tribunal após sentença de primeiro grau favorável ao autor,
alegando que entre os cunhados não havia indícios suficientes que configurassem
união estável, mas meramente uma situação de “amizade”. No caso, o cunhado
fora casado com a irmã da falecida por mais de cinquenta anos e os três idosos
viveram na mesma residência por décadas.
No voto do relator, desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, consta que
houve produção de prova oral em que o enfermeiro que prestou atendimentos às
duas irmãs recebia o pagamento por seus serviços diretamente do marido,
demandante da ação declaratória. A esposa do Recorrido faleceu em março de
1994 e até o falecimento da cunhada em maio de 2002, o viúvo e essas
continuaram a viver no mesmo lar (TJ-RS, 2005, p. 3-5). Isto é, por oito anos os
dois cunhados idosos conviveram, cuidando e amparando um ao outro, constituindo
família. De acordo com as provas produzidas ao longo do processo, a Sétima
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou por unanimidade o
provimento do Recurso de Apelação interposto pelos herdeiros da cunhada. No
entanto, a Corte não entendeu que a entidade familiar formada pelos idosos era
como uma união estável propriamente dita, mas como uma relação familiar de
companheirismo e comunhão de vida com afeto e solidariedade: “Por todo o
exposto, resta incontroverso que H. e N., após a morte de sua esposa, mantiveram
a coabitação preexistente, mas com as características necessárias à formação de
uma entidade familiar unidos por laços de afeto, solidariedade e companheirismo
em etapa já avançada da vida que mantiveram juntos” (TJ-RS, 2005, p. 5, grifos
nossos).
152
152
Ora, a partir do elaborado até o momento neste trabalho acadêmico,
conclui-se que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul apreciou um caso de
Família Solidária formada por pessoas idosas.
Partindo-se para a análise dos casos, retomam-se os critérios apresentados
por Paulo Luiz Netto Lôbo a fim de identificar a existência de entidade familiar
implícita ao artigo 226 da Constituição Federal.
A Família Solidária formada por pessoas idosas será identificada e
devidamente reconhecida com a estabilidade da relação, isto é, não se deve
considerar meramente o lapso temporal pelo qual os membros da família convivem,
mas se a relação tem como objetivo se manter indefinidamente. Poderia ser
possível provar a estabilidade com a existência de contas bancárias conjuntas, pela
contratação pelos idosos dos mesmos profissionais da saúde no endereço em
comum. No caso da decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, antes
mesmo de a esposa do demandante falecer, já havia estabilidade na entidade
familiar composta pelos cônjuges e a irmã de um deles. No entanto, com o
falecimento do cônjuge virago, perdurou a convivência entre os cunhados, que
abriram
conta
poupança
como
cotitularidades,
dividiram
despesas
e
responsabilidades entre si, sendo mencionado no voto do Relator que em nota fiscal
de prestação de serviços de um hospital em 1998, constava como responsável pelo
demandante da ação a sua cunhada. Por outro lado, no caso que originou o parecer
previamente citado, os idosos conviveram por décadas se tratando no âmbito
interno da relação e no meio social como irmãos.
A ostensibilidade, ou publicidade, poderá ser verificada pelo conhecimento
social de que aquelas pessoas que convivem o fazem “como se família fosse”. Ou
seja, amigas de longa data que a vida acabou por agraciar com a convivência na
terceira idade podem se tratar como se irmãs fossem no meio social em que vivem.
De acordo com o caso concreto trazido pelo Acórdão do Tribunal de Justiça sulriograndense, a existência de fotos dos idosos juntos em eventos sociais (festa de
15 anos) também auxiliou no reconhecimento da publicidade da relação.
Já a afetividade é verificada pelo objetivo da proteção mútua da dignidade
das pessoas que integram esse meio familiar. Esse critério de Paulo Lôbo pode ser
adequadamente aplicado ao se notar que as pessoas que fazem parte da Família
Solidária expressam atos de cooperação entre si, em elementos de afetividade
objetiva, elucidada por Ricardo Lucas Calderón (capítulo 3, item 3.6). No caso dos
sujeitos do segundo caso apresentado, a nota fiscal, já mencionada, além da
existência de conta poupança tendo ambos como titulares, são pontos que
demonstram o objetivo de cuidado e solidariedade entre si.
Assim, feita a análise desses dois casos, resta a conclusão da adequação
da relação entre os idosos à Família Solidária, bem como a possibilidade de ser
153
153
reconhecido o vínculo de parentesco parabiológico, se verificados os elementos da
“posse de estado”. Nesse caso, o reconhecimento de vínculo parabiológico pode ser
determinante para efeitos sucessórios, já que pode acontecer de um grupo de
idosos restar em situação de instabilidade ao ver o proprietário da casa em que
habitam falecer, sem deixar herdeiros e sem ter feito testamento. A questão dos
efeitos da Família Solidária será mais bem tratada no item 4.4 deste Capítulo. Por
ora, se propõe delinear a Família Solidária para os casos de pessoas com deficiência
e da união de famílias monoparentais.
4.2 PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
No concernente às pessoas com deficiência, ao se abordar o tema da
formação de entidade familiar formada por elas, deve-se pontuar que a presente
monografia tem como foco principal as pessoas com deficiência e civilmente
capazes. Um estudo que abranja também as realidades de famílias em que um dos
membros seja pessoa com deficiência que a debilite para os atos da vida civil não é
objeto do presente trabalho, por ser tema amplo a ser debatido e melhor estudado
em outras oportunidades. Algumas considerações sobre as pessoas com deficiência
devem ser tecidas, antes de abordar especificamente a “irmandade socioafetiva”.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com base nos dados
decorrentes do Censo Demográfico realizado em 2010, apresentou a porcentagem
de pessoas com deficiência no Brasil. As perguntas formuladas se voltaram para
identificar pessoas com deficiência visual, auditiva, motora e mental ou intelectual.
Conforme os dados, 45.606.048 (quarenta e cinco milhões, seiscentos e seis mil e
quarenta e oito) brasileiros declararam estarem com uma dessas deficiências, o que
corresponde a 23,9% da população brasileira no período (IBGE-a, 2010, p. 72-73).
A pesquisa também demonstrou que 67,7% das pessoas com deficiência no Brasil
são idosos, enquanto 24,9% têm idade compreendida entre 15 e 64 anos e os
outros 7,5% têm até 14 anos (IBGE-a, 2010, p. 75). Da população residente na
região Sul do Brasil, 22,5% são de pessoas com deficiência.
Tendo em vista esses números, e com a cautela de considerar que a
pesquisa não forneceu uma divisão de pessoas civilmente incapazes ou capazes,
conclui-se que quase um quarto da população brasileira é composto por pessoas
com deficiência. O modo como essas pessoas se organizam e vivem em família é
variado. João B. Cintra Ribas aborda a questão da reação que muitas famílias
apresentam diante da deficiência de um de seus membros:
Uma família não tem a ideia de que um membro poderá um dia sofrer um
acidente que o faça deficiente. A palavra deficiente adquire uma conotação
negativa. Deficiente será aquele membro que dará sempre muito trabalho,
que viverá encostado às custas da família. Pode ser que o deficiente
congênito ou adquirido seja realmente portador de uma limitação ou
154
154
incapacidade grave. Porém, enorme parte dos casos é passível de
reabilitação a ponto de se conseguir que, mesmo com graves lesões, uma
pessoa deficiente leve uma vida independente e até com contribuições para
a família e para a sociedade. (RIBAS, 1994, p. 52-53).
Além das questões internas às famílias de pessoas com deficiência, há
também questões sociais, temas de discussão em âmbito nacional e internacional.
A Convenção Internacional sobre Pessoas com Deficiência reconheceu em
seu preâmbulo a situação de vulnerabilidade das pessoas com deficiência e a
necessidade do tratado para potencializar a tutela da dignidade dessas pessoas.
Nota-se a partir do documento que os princípios que o regem voltam-se à
promoção da autodeterminação, liberdade, independência e desenvolvimento das
pessoas com deficiência. O tratado aponta a importância do trabalho de
conscientização das famílias e, em seu artigo 23, dispõe sobre o “Respeito ao lar e
a família”, consignando que os Estados deverão assegurar os direitos de livre
estabelecimento da família e ao planejamento familiar. Tendo tal documento o
status de Emenda à Constituição, deve-se reconhecer a possibilidade de livre
formação de família pelas pessoas com deficiência, sendo a Família Solidária uma
das formas que pode adotar.
O estudioso Romeu Kazumi Sassaki aponta em sua obra três conceitos que
denomina
“inclusivistas”,
são
eles
os
de:
autonomia,
independência
e
empowerment. O primeiro “é a condição de domínio no ambiente físico e social,
preservando ao máximo a privacidade e a dignidade da pessoa que a exerce. [...]”,
o segundo “é a faculdade de decidir sem depender de outras pessoas, tais como:
membros da família ou profissionais especializados” e o terceiro é “o processo pelo
qual uma pessoa, ou um grupo de pessoas, usa o seu poder pessoal inerente à sua
condição [...] para fazer escolhas e tomar decisões, assumindo assim o controle de
sua vida” (SASSAKI, 1997, p. 36-38).
Tomando os sentidos propostos por Sassaki, depreende-se que apesar de
todos se coadunarem com o princípio da liberdade, não são sinônimos entre si. A
autonomia e a independência nessa perspectiva não se confundem, pois uma
pessoa com deficiência pode não ter autonomia no ambiente físico em que se
encontra, no entanto, ser independente para tomar suas decisões. A Família
Solidária permite justamente tanto a autonomia, quanto a independência dessas
pessoas.
Embora não haja decisões judiciais sobre essa forma que a Família
Solidária pode assumir, é possível que pessoas na mesma situação adaptem casas
e contratem serviços de home care em mútua cooperação.
Os membros da Família Solidária formada por pessoas com deficiência
podem trabalhar, codividindo despesas para a manutenção da vida em comum,
155
155
tendo a Seguridade Social papel importante ao pagar auxílio para a renda das
pessoas que não conseguem inserir-se no mercado de trabalho.
Sobre os papéis da sociedade e do Estado na conquista da autonomia, o
professor Sassaki, ao levar em conta os movimentos reivindicatórios nos Estados
Unidos em 1972 e no Brasil a partir de 1988, expõe: “O estilo de vida independente
é fundamental no processo de inclusão, pois com ele as pessoas portadoras de
deficiência terão maior participação de qualidade na sociedade, tanto na condição
de beneficiários dos bens e serviços que ela oferece como também na de
contribuintes ativos no desenvolvimento social, econômico, cultural e político da
nação.” (SASSAKI, 1997, p. 53),
Ao observar fatores como os levantados por esses movimentos e,
concomitantemente, presenciar o desejo de seus filhos se tornarem independentes,
três mães de pessoas com deficiência no estado do Rio de Janeiro se uniram para a
construção do Instituto “JNG” (João, Nicolas e Gabriella) com a finalidade de prover
a pessoas com deficiência intelectual a possibilidade de viver com independência e
com o suporte necessário para tanto. O caso do trabalho do Instituto “JNG” 1 não se
enquadra perfeitamente ao caso de Família Solidária, mas é indicativo de um passo
importante para o estímulo da independência e autonomia dessas pessoas, que
podem trabalhar dignamente, prover suas necessidades e viver em núcleos de
irmandade socioafetiva.
A afetividade, nesse caso, é identificada em seu aspecto objetivo pelo
cuidado empenhado entre os conviventes, através da compra de medicamentos,
responsabilidade pelo pagamento de serviços de saúde e auxílio na adaptação da
residência de acordo com as necessidades dos membros com deficiência.
A estabilidade pode ser constatada, do mesmo modo que nas famílias
compostas por pessoas idosas, com a existência de contas bancárias conjuntas,
pela contratação dos mesmos profissionais da saúde no domicílio em comum e,
ainda, pela adaptação da casa de acordo com as necessidades da pessoa, obra que
tem a tendência de ser permanente.
Por fim, a ostensibilidade é verificada por passeios realizados em conjunto
ou presença em diversos eventos sociais. Esse critério não pode ser exigido com
rigor,
pois
muitas
vezes
a
autonomia
espacial
dessas
pessoas
pode
ser
comprometida em razão de suas limitações.
O mais importante, no entanto, é o sentimento de “sentir-se em família”,
em lar onde a pessoa com deficiência possa livremente se desenvolver e sentir-se
digna, em conformidade com os preceitos de autodeterminação e independência,
1
156
O projeto do Instituto pode ser observado no seguinte sítio eletrônico:
<http://jngprojetosinclusao.org.br/web/>.
156
previstos na Convenção Internacional sobre Pessoas com Deficiência e nos
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, solidariedade, Liberdade,
afetividade e igualdade.
A inexistência de vínculos biológicos não pode ser empecilho para o
reconhecimento da entidade familiar existente, sendo a socioafetividade e a
comunhão de vida os laços que ensejam o reconhecimento da família e de efeitos
dela decorrentes. A seguir, interessante observar um terceiro modo de Família
Solidária.
4.3 FAMÍLIAS MONOPARENTAIS: “NÓS, OS MEUS E OS SEUS”
Outra forma de Família Solidária cogitada é a formada por duas ou mais
famílias
monoparentais.
Essas,
quando
individualmente
consideradas,
são
entidades familiares explícitas no texto constitucional. No entanto, se duas famílias
monoparentais, isto é, dois pais ou duas mães e seus respectivos descendentes, se
unem para residir em um só lar, codividir despesas, afeto e vivências em família,
vislumbra-se a formação de uma Família Solidária pela aferição de posse de estado
de irmãos.
O parágrafo 4º do artigo 226 da Constituição Federal dispõe como entidade
familiar a “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. A
definição doutrinária decorrente da interpretação do dispositivo é encontrada em
diversos autores.
Paulo
Luiz
Netto
Lôbo
as
conceitua
e
ressalta
que
nas
famílias
monoparentais há saliência da relação de poder familiar e estado de filiação:
Pode ter causa em ato de vontade ou de desejo pessoal, que é o caso
padrão da mãe solteira, ou em variadas situações circunstanciais, a saber,
viuvez, separação de fato, divórcio, concubinato, adoção de filho por apenas
uma pessoa. Independentemente da causa, os efeitos jurídicos são os
mesmos, notadamente quanto ao poder familiar e ao estado de filiação. [...]
(LÔBO, 2011, p. 87-89).
Desse modo, diversas podem ser as causas de formação de uma família
monoparental, podendo decorrer da liberdade de casais se desunirem, pela viuvez,
pela adoção unilateral (artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente), pela
reprodução humana assistida (Capítulo II, item 2 da Resolução nº 2013/2013 do
Conselho Federal de Medicina), dentre outros motivos nem um pouco nobres, como
a violência doméstica e a gravidez precoce não planejada.
Considerando-se o conceito de família monoparental para a lei e para a
doutrina, cogita-se, por exemplo, que amigas, por razões diversas, unam-se com a
finalidade de proporcionar melhor desenvolvimento de seus filhos.
157
157
Giorgio Agamben em seu ensaio denominado “Amizade” (2009, p. 92)
discorre sobre o sentimento e a comunhão de experiências que dele decorre “Os
amigos não condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto): eles
são com-divididos pela experiência da amizade. A amizade é condivisão que
precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir,
a própria vida.” Assim, amigas ou amigos podem ser “com-divididos” pela
experiência de relacionar-se em família para a construção de uma vida mais digna.
A condição de vulnerabilidade econômica dessas entidades familiares –
considerando-se como um dos fatores principais a infeliz diferença salarial existente
entre homens e mulheres que exercem as mesmas funções e que grande parte das
famílias monoparentais tem como chefe a figura feminina – se adéqua à proposta
da Família Solidária, qual seja, a constituição de entidade familiar por fortes laços
de afeto e solidariedade que permitam a vida em comum.
Como visto no início do presente capítulo, o custo de vida nos grandes
centros urbanos vem crescendo e por vezes há dificuldade de mães solteiras e
chefes de família prover o mínimo a seus filhos menores de idade, ou maiores e
dependentes econômicos.
Uma triste realidade brasileira, constatada principalmente em famílias
monoparentais de baixa renda em que a guarda permanece com a mãe, é a
desqualificação profissional da genitora, tendo em vista que desde o início da união
estável, do casamento ou mesmo de uma gravidez na adolescência, a mulher deixa
de estudar para cuidar exclusivamente dos filhos e da casa.
Destarte, é possível reconhecer a existência de famílias monoparentais que
se unem e se organizam de forma que uma das mães possa trabalhar fora e a outra
cuidar dos filhos de ambas, evitando a institucionalização das crianças em centros
educacionais precocemente. A professora Ana Carla Harmatiuk Matos vislumbra a
hipótese:
Ainda se poderiam mencionar as iniciativas de aproximação de famílias
monoparentais – geralmente mulheres solteiras, viúvas ou divorciadas com
a guarda de seus filhos –, as quais unem-se, até mesmo coabitando, de tal
modo que pelo auxílio mútuo consigam continuar inseridas no mercado de
trabalho e atendendo às necessidades das crianças, evitando-se, destarte, a
necessidade da precoce institucionalização das crianças (em creches, préescolas, entre outras). (MATOS, 2008, p. 46).
A observação da professora de Direito Civil da Universidade Federal do
Paraná sobre a institucionalização de crianças desde muito cedo em instituições de
ensino deve ser objeto de atenção. A educação e precoce institucionalização de
crianças e adolescentes no Brasil e no mundo ocidental pode provocar o sentimento
de abandono que estigmatiza a pessoa por toda a sua vida. O papel da família em
evitar esse efeito é determinante.
158
158
A mestra em Ciências Sociais Aplicadas Virginia de Souza fez estudo no
município
de
Ponta
Grossa
acerca
das
famílias
monoparentais
e
suas
vulnerabilidades a partir dos Centros Municipais de Educação Infantil, doravante
CMEIS, nos anos de 2007 e 2008. Tais instituições são voltadas ao atendimento de
crianças com idade entre 0 (zero) e 6 (seis) anos provenientes de famílias de baixa
renda. Foram coletados dados de 34 (trinta e quatro) chefias de famílias
monoparentais que tinham filhos que frequentavam os CMEIS. Da amostra de
famílias monoparentais, 88,2% eram chefiadas por mulheres, enquanto somente
11,8% por homens (SOUZA, 2008, p. 62-63). A pesquisadora constatou a
existência de redes de apoio e de solidariedade que auxiliam pais e mães chefes de
famílias monoparentais. Nessas redes, tias, avós, amigas, padrinhos, madrinhas e
até mesmo vizinhos auxiliam os pais e mães na criação dos filhos e na manutenção
financeira.
Tais redes de solidariedade e de apoio auxiliam a minimizar a situação de
vulnerabilidade em que se encontram as pessoas envolvidas. A mestra Virginia de
Souza observa uma diferença entre a ajuda buscada pelos homens e pelas
mulheres na condição de chefes dessas famílias “tanto o homem numa condição
monoparental como a mulher utilizam a rede de apoio e de solidariedade. Porém,
os homens utilizam esses serviços (ajuda) nos cuidados com a prole, e a mulher,
no cuidado com a prole e na manutenção financeira e da família [...]” (SOUZA,
2008, p.139).
Considerando esse cenário, a coabitação de famílias monoparentais para
prover o sustento de seus filhos e, em cooperação, educá-los, não foge da
realidade brasileira.
Para reconhecimento da Família Solidária que se apresenta dessa forma,
mais uma vez, remete-se aos critérios de Paulo Lôbo.
A afetividade é denotada objetivamente pela união dessas pessoas com a
finalidade de, solidariamente, auxiliar umas às outras na criação e educação de
seus filhos, sendo o cuidado e atenção às crianças e adolescentes um indicativo de
afeto. A presença em reuniões escolares de ambas as mães ou pais, o revezamento
em buscar as crianças na escola, dentre outras situações que demonstram a divisão
de responsabilidades entre os adultos que antes formavam família monoparental
indica fatos signo presuntivos de afetividade, não podendo ser negada a existência
de família.
A estabilidade pode ser verificada pela coabitação dessas pessoas, pela
matrícula das crianças e adolescentes em uma só instituição de ensino, pelo
pagamento de contas em nome de um e de outro pai ou mãe.
Por fim, a ostensibilidade é critério averiguado pela publicidade da entidade
familiar no meio social. Diferentemente dos idosos e pessoas com deficiência, no
159
159
caso de Família Solidária formada por comunidades monoparentais, não há
obstáculos na exteriorização da relação familiar. A cultura do “apadrinhamento” é
vista com naturalidade no Brasil, que traça laços de afeto público entre as pessoas
envolvidas – pai/mãe, padrinho/madrinha, afilhado/afilhada –, sendo mais um
indicativo de publicidade da Família Solidária.
4.4 CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA SOLIDÁRIA
Após observar alguns modos pelos quais a Família Solidária ou “Irmandade
Socioafetiva” pode se manifestar, é chegado o momento de analisar juridicamente
de que modo pode ser reconhecida sua constituição.
Um modo de ajudar no reconhecimento e proteção de entidades familiares
não explícitas no texto constitucional é evidenciar que houve cooperação,
convivência, ostensibilidade da relação, afeto e estabilidade na relação dos
conviventes.
Embora para alguns casos concretos – como o apontado no parecer dos
professores Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk – a “posse de
estado” seja uma solução para comprovação de que houve na Família Solidária um
vínculo socioafetivo que ensejou o parentesco entre os conviventes, é exercício do
estudioso do Direito propor outros mecanismos de reconhecimento e consequente
tutela de entidades familiares não explícitas no rol do artigo 226 da Constituição
Federal.
Outros países de tradição jurídica continental buscam soluções para
proteger as diferentes formas que relações de convivência familiar podem
manifestar. Ressalta-se que não é pretensão do presente trabalho fazer um estudo
detalhado
de
direito
comparado,
apenas
trazer
algumas
características
de
legislações de outros países que trazem soluções peculiares no Direito de Família
para determinadas questões.
A França instituiu a lei de Parceria Civil, denominada “Pacte Civil de
Solidarieté1”, representada pela sigla “PaCs” (Anexo I), na última década do século
XX. Conforme o artigo 515-1 do Código Civil Francês, “Un pacte civil de solidarité
est un contrat conclu par deux personnes physiques majeures, de sexe différent ou
de même sexe, pour organiser leur vie commune” 2. Sua positivação foi precedida
1
2
160
Em tradução livre: Parceria Civil de Solidariedade.
Em tradução livre: Um pacto civil de solidariedade é um contrato celebrado por duas pessoas físicas
maiores, de sexos diferentes ou do mesmo sexo, para organizar a vida em comum.
160
por diversos projetos1 com o escopo de regular a vida comum entre duas ou mais
pessoas.
O pacto civil de solidariedade proíbe sua celebração por pessoas com
parentesco em linha direta e colaterais até 3º grau (artigo 515-2) e, ainda, prevê
para os que optam em viver em conjunto, o compromisso em darem apoio moral e
assistência mútua um ao outro, havendo liberdade de ampliação da ajuda material.
Observa-se no caso francês a preocupação com os efeitos patrimoniais da
união civil no artigo 515-4, o qual estabelece que os conviventes sejam
solidariamente responsáveis perante terceiros pelas dívidas decorrentes das
necessidades da vida cotidiana, exceto se tratarem-se de gastos manifestamente
excessivos. Além disso, há preocupação no diploma francês de que os conviventes
convencionem um regime de bens.
Mesmo que a legislação mereça alguns reparos cogitados pela doutrina
francesa, há que se admitir que o “PaCS” é um exemplo de inclusão e proteção de
entidades familiares que fogem dos padrões tradicionais. Há quem defenda no
Brasil a celebração de um pacto civil com o escopo de regular as relações de
convivência, como a verificada na Família Solidária. Silvio Neves Baptista (2008, p.
443) entende que o pacto civil de solidariedade pode ser celebrado no Brasil com a
classificação de “contrato atípico ou inominado”, embora possa ser muito
semelhante ao “contrato de convivência” para união estável.
Além do exemplo francês, há ainda a legislação do estado da Catalunha, na
Espanha, que amplia as possibilidades de organização de formações sociais
equiparadas a família. São raras as fontes doutrinárias brasileiras que trazem
aspectos do Código Civil da Catalunha (CCCat), o qual trata das denominadas
situações de “convivência de ajuda mútua”.
A presente monografia busca apresentar alguns aspectos dessa legislação,
a partir da leitura do trabalho das catedráticas de Direito Civil da Universidad
Autónoma de Barcelona, Maria Del Carmen Gete-Alonso y Calera, Maria Ysàs
Solanes e Judith Solé Resina. Na terceira edição do manual “Derecho de Familia
Vigente em Cataluña”, as autoras explicam que em seu país tais relações não são
consideradas família em sentido estrito, mas recebem tratamento jurídico incluído
no Direito de Família:
La relación de convivencia que, como enseguida se estudia, tiene origem
voluntario o factual, pese a que no alcanza la condición jurídica de família sí
debe considerarse incluída em el âmbito del Derecho de Familia, ya que
afecta a la esfera personal de relación de la persona. Ha de nortarse que en
lo referente a determinadas medidas y prestaciones sociales, el art. 3 LAF
considera situación equiparada a la familia la derivada de estas convivencias
1
Contrat de partenariat civil, de 1990; Contrat d’union civile (CUC), de 1992; Contrat d’union sociale
(CUS), de 1997; Contrat d’union civile et sociale (CUCS), de 1997.
161
161
de ayuda mutua1. (CALERA; RESINA; SOLANES, 2013, p. 25-26, grifos
nossos).
Como se nota, na legislação catalã, essas relações não são consideradas
entidades familiares, embora recebam tratamento equiparado. De acordo com o
manual de Derecho de família vigente em Cataluña, das autoras supramencionadas,
a “convivência de ajuda mútua” é conceituada como: “ Situación en la que se
encuentran dos o más personas, mayores de edad, entre las que no existe
parentesco en la línea recta que por medio de um contrato o por el transcurso de
un período de dos años desarollan su vida en una misma vivienda habitual y
comparten con voluntad de permanencia y ayuda recíproca lós gastos comunes o el
trabajo domestico”2. (CALERA; RESINA; SOLANES, 2013, p. 26).
Como se depreende, assim como a lei francesa, a legislação catalã não
permite que parentes em linha reta componham a relação. Aspecto interessante
que se nota é a possibilidade dada pela lei de que, na falta de um pacto entre os
conviventes, haja comprovação de que transcorreu um período de dois anos de
desenvolvimento da vivência em solidariedade. Outra característica relevante é que
as partes pactuantes devem ser maiores de idade, além de não poderem ter uma
relação familiar concomitante (como um vínculo matrimonial não dissolvido) e,
ainda, há delimitação a um número máximo de quatro pessoas para a formação da
relação de convivência mútua (conforme artigos 240-2.1 a 240-3 do Código Civil da
Catalunha).
O modo de constituição da convivência de ajuda mútua na Catalunha não é
expresso na lei, mas as doutrinadoras Calera, Solanes e Resina entendem que há
lugar para o contrato com escritura pública, assim como pela constituição de forma
tácita pelo transcurso de dois anos de convivência, pela imposição legal do artigo
240-3 do Código Civil da Catalunha: “Article 240-3 – Constitució: Les relacions
convivencials d’ajuda mútua es podem constituir en escriptura pública, a partir de
la qual tenen plena efectivitat, o pel transcurs d’um període de dos anys de
convivència.”3
A prova do transcurso desse período pode ser realizada por todos os meios
admitidos em direito. No caso de haver um pacto com escritura pública, o conteúdo
1
2
3
162
Em tradução livre: A relação de convivência que, como a seguir se estuda, tem origem voluntária ou
factual, embora não alcance a condição jurídica de família deve ser considerada incluída no âmbito do
Direito de Família, já que afeta a esfera pessoal da relação do indivíduo. Nota-se que no referente a
determinadas medidas e prestações sociais, o art. 3 LAF considera situação equiparada à família a
derivada dessas convivências de ajuda mútua.
Em tradução livre: Situação na que se encontram duas ou mais pessoas, maiores de idade, entre as
quais não existe parentesco na linha reta que por meio de um contrato ou pelo transcurso de um
período de dois anos desenvolvem sua vida em uma mesma vivência habitual e compartem com
vontade de permanência e ajuda recíproca os gastos comuns ou o trabalho doméstico.
Em tradução livre: Constituição - As relações de convivência de ajuda mútua podem se constituir em
escritura pública, a partir da qual têm plena efetividade, ou pelo transcurso de um período de dois
anos de convivência.
162
poderá versar sobre a convivência habitual, o que se tem para compartilhar, com
vontade de permanência e ajuda mútua, especialmente no que diz respeito a
gastos comuns ou trabalho doméstico, ou ambos os temas. O manual de Direito de
Família da Catalunha consultado apontou que a forma de contribuição dos
conviventes pode ser em dinheiro ou através da ajuda no trabalho doméstico.
Por fim, no que se refere às características da “convivência de ajuda
mútua”, são apontados os efeitos da extinção da relação, que decorre por mútuo
acordo dos conviventes, denúncia unilateral ou pela morte de um dos membros.
Feitas as considerações sobre o pacto civil de solidariedade francês e sobre
a relação de convivência mútua catalã, retorna-se à Família Solidária ou
“Irmandade Socioafetiva” brasileira.
Em
uma
perspectiva
de
mitigar
a
vulnerabilidade
de
famílias
monoparentais, idosos e deficientes e tendo em vista o alto custo de vida nas
cidades brasileiras, surgem relações de cooperação e solidariedade entre sujeitos
que por si têm grande afeto.
Embora não haja legislação semelhante no Brasil, a ideia central da
Parceria Civil de Solidariedade e da Convivência de Ajuda Mútua propostas pelas
leis francesa e catalã, respectivamente, podem lançar luz às entidades familiares
implícitas ao texto constitucional.
O doutor Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, como já mencionado no capítulo
3, item “3.4”, entende que a expressão jurídica da família tem como função “o
exercício, a proteção e a promoção de liberdade (s)” (PIANOVSKI RUZYK, 2011, p.
333). O eudemonismo constitucional tem como finalidade proteger juridicamente
cada pessoa que compõe a família, não sendo relevante saber qual o modelo em
que se insere ou de que forma há a constituição da entidade familiar, mas sim
quais são as liberdades vividas por essas pessoas:
A liberdade na família, seja ela qual for, quando exercida, não se reduz a
uma expressão pontual de autonomia privada que se constitui em um dado
momento genésico a que se pode, no caso do casamento, denominar de
negócio jurídico.
Essa liberdade é mais ampla: é a liberdade que se vive, na qual se
constroem compromissos recíprocos que não cabem normalmente em um
contrato ou em um pacto, mas que constituem no comportamento que forja
a vida comum. Exercer a liberdade com caráter normativo não é só
contratar: é também viver a liberdade (positiva) em relação, e dela poder
extrair posições juridicamente sustentáveis e oponíveis. (PIANOVSKI RUZYK,
2011, 334-335).
Como já ressaltado, no caso da Família Solidária, está-se diante não do
mero exercício da autonomia privada, mas do exercício de uma liberdade
substantiva, ou efetiva, que, considerando a realidade da sociedade brasileira – de
seus idosos, famílias monoparentais e pessoas com deficiência – garante um
mínimo, patrimonial e existencial, que garanta o próprio exercício de demais
163
163
liberdades. O exemplo do convívio de pessoas com deficiência em Família Solidária
retrata com maior evidência o exercício das liberdades mais básicas pelos membros
que convivem em autonomia coexistencial.
É possível
que haja futuramente uma
maior influência das ideias
provenientes das legislações estrangeiras na brasileira. O que se ressalta é que a
formação familiar no Brasil se dá de modo mais informal e espontâneo, o que pode
obstar a tutela de seus efeitos, por conta da dificuldade em provar a existência da
entidade familiar quando finda.
Poder-se-ia mitigar a função constitutiva da entidade familiar pelo pacto
civil –tal como é na lei francesa – e trabalhar com uma noção mais semelhante ao
já existente pacto de união estável.
Assim, considerando que a constituição da Família Solidária se dá de modo
informal e, visando a manutenção de seus efeitos, é possível cogitar a celebração
de pactos civis para meramente organizar alguns aspectos do convívio.
O tema da constituição da Família Solidária é amplo e carece de discussão
doutrinária, assim como o tema dos efeitos decorrentes de sua dissolução.
O tema ainda carece de estudo aprofundado e de análise de casos
concretos, especialmente dos que surjam de precedentes de tribunais brasileiros.
Embora haja legislações estrangeiras que já admitam a existência de entidades
familiares ou relações de convivência equiparadas a entidades familiares, nota-se
que, no Brasil, o assunto sequer é discutido com amplitude na doutrina, o que
obsta trazer demais efeitos decorrentes da dissolução da ora denominada Família
Solidária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pluralidade das entidades familiares permite que famílias não explícitas
no texto da Constituição Federal de 1988 sejam reconhecidas e tuteladas. A Família
Solidária aparece como família que foge da tríade do artigo 226 da Constituição
Federal e tem como finalidade a redução dos níveis de vulnerabilidade que alguns
grupos de pessoas enfrentam.
Como família eudemonista, tem o objetivo de proteger a Dignidade da
Pessoa Humana e seu desenvolvimento em espaço de coexistência com respeito e
solidariedade. Os princípios de direito que lançam luz sobre a Família Solidária são
o da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da igualdade, da liberdade, da
pluralidade das formas de família e da afetividade.
Verifica-se da análise do precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, no Capítulo 4, item 4.1, que a Família Solidária pode existir pela união de
pessoas idosas que convivem para fazer companhia um ao outro, nutrindo
164
164
sentimento mútuo de afeto e responsabilidade, sem querer significar uma união
estável ou como se cônjuges fossem, mas sim como “irmãos de vida”. Ainda, diante
do parecer dos professores Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, é
relevante a possibilidade de reconhecer o vínculo socioafetivo existente entre os
conviventes como ensejador de vínculo de parentesco “parabiológico”, após
verificados os elementos do “tratactus” e “fama” ou “reputatio” e em conformidade
com a interpretação decorrente do artigo 1.593 do Código Civil Brasileiro.
No caso de pessoas com deficiência, não se localizou precedente apreciado
pelo Poder Judiciário, no entanto, projetos como o do Instituto JNG – “João, Nicolas
e Gabriela” – apontam a busca por autonomia e independência dessas pessoas
cujas liberdades mais básicas, como de locomover-se com autonomia ou ter acesso
a locais públicos de modo facilitado, são obstadas por sua condição física ou
intelectual, agravada pelo descaso do poder público e de particulares, inclusive
familiares.
As redes de solidariedade, estudadas pela mestra em Ciências Sociais
Virginia Souza, demonstram que, ao menos na amostra do município paranaense
de Ponta Grossa, famílias monoparentais de baixa renda se unem para divisão de
despesas e tarefas domésticas em prol da educação de seus filhos, ante o alto
custo de vida urbano.
Em todos os casos, o que há em comum é a amizade e afeto nutrido entre
essas pessoas que verdadeiramente manifestam sentimento fraternal entre si. Essa
relação, que transcende o texto legal, pode ser mais bem tutelada pela celebração
de pactos civis de solidariedade que, como visto a partir das experiências da França
e
da
região
espanhola
da
Catalunha,
permitem
que
pessoas
sem
laços
consanguíneos formem entidade familiar.
Diante desse cenário, verifica-se que a Família Solidária tem o condão de
ampliar a liberdade substantiva, ou liberdade como efetividade, de pessoas em
situação de vulnerabilidade que vivem nessa relação familiar.
O presente estudo de modo algum pretendeu esgotar a temática da Família
Solidária. Embora essas sejam as conclusões finais desta monografia, apresentam
introdução a uma entidade familiar pouco estudada no Brasil, mas que se coaduna
com a realidade de muitos brasileiros (como destacado no trabalho, não é inédita a
verificação de pessoas idosas sem vínculos de parentesco coabitarem, cuidando um
do outro e alimentando sentimento de fraternidade até o final da vida, ou de mães
ou pais solteiros que vivem com demais em mesma situação para prover o
desenvolvimento dos filhos com dignidade e conforto).
Há necessidade de pesquisa aprofundada sobre essa e demais entidades
familiares implícitas – o que não é sinônimo de inexistentes – na academia e
doutrina brasileiras. Estudos interdisciplinares e de direito comparado podem
165
165
futuramente
permitir
o
aprofundamento
do
assunto,
propor
soluções
de
reconhecimento e proteção a essas entidades familiares e, principalmente, às
pessoas que por meio delas coexistem em socioafetividade.
166
166
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170
170
Doutrina
O Dano Moral no Casamento por Infração Grave aos
Deveres Conjugais
Fabia Larissa Almeida Cerqueira1
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo examinar a possibilidade da
aplicação do instituto do dano moral no casamento por infração grave aos deveres
conjugais de fidelidade recíproca; vida em comum, no domicílio conjugal; mútua
assistência; sustento, guarda e educação dos filhos; respeito e considerações
mútuos previstos no artigo 1566 do Código Civil brasileiro. Inicialmente, apresenta
algumas noções acerca do direito de família. Traça uma análise sobre o instituto do
casamento e sobre os deveres impostos aos cônjuges. Faz-se, também, uma breve
apreciação das regras da responsabilidade civil, apresentando as espécies e seus
pressupostos e inclina-se ao estudo do dano moral, apresentando um panorama
sobre a sua admissibilidade nas relações familiares. Após, põe-se a um exame
acerca da aplicação do instituto do dano moral nas relações conjugais, buscando
identificar hipóteses de infração grave em que seria cabível a indenização. Em
casos específicos, a pesquisa concluiu pela possibilidade de tal aplicação, desde que
verificada a infração grave, no caso concreto.
Palavras-Chave: CASAMENTO. DANO MORAL. DEVERES CONJUGAIS. INFRAÇÃO.
DIREITO DE FAMÍLIA. RESPONSABILIDADE CIVIL.
ABSTRACT: This is study aims to examine the possibility of applying the institute
for moral damages in marriage by severe infringement of conjugal duties of fidelity
mutual; common life, on marital domicile; mutual assistance; support, custody and
education of children; mutual respect and consideration provided for in article 1566
of the Brasilian Civil Code. Initially, presents some notions of family law, provides
an analysis on the institution of marriage and the duties imposed on spouses. It
also makes a brief assessment of liability rules, with the species and its
presuppositions and leans to the study of moral damages presenting an overview
about admissibility in family relationships. After goes down to an examination on
the implementation of the institute of moral damages in marital relations, seeking
to identify the chances of a serious offense to the conjugal duties that would be
applicable to indemnification. In specific cases, the research concluded that the
possibility of such application, provide that verified serious infraction in this case.
Keywords: MARRIAGE. MATERIAL DAMAGE. CONJUGAL DUTIES. VIOLATION.
FAMILY LAW. CIVIL RESPONSIBILITY.
SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO 2. NOÇÕES ACERCA DO DIREITO DE FAMÍLIA 2.1
PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA 2.1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana 2.1.2 Os Princípios da Liberdade e da Igualdade 2.1.3 Princípios
da
Afetividade e Facilitação da Dissolução do Casamento 2.1.3.1 O
Princípio
da
AfetividadE 2.1.3.2 Princípio da Facilitação da Dissolução do Casamento 2.2 O
1
Segundo colocado no concurso de monografias "Aloysio Maria Teixeira" na categoria acadêmico
171
171
INSTITUTO DO CASAMENTO 2.2.1 Noções Conceituais 2.2.2 Natureza Jurídica 2.2.3
Finalidade 2.3 DEVERES CONJUGAIS 2.3.1 Dever de Fidelidade 2.3.2 Dever
de
Vida em Comum, no Domicílio Conjugal 2.3.3 Dever de Mútua Assistência 2.3.4
Dever de Sustento, Guarda e Educação dos Filhos 2.3.5 Dever
de
Respeito
e
Considerações Mútuos 2.3.6 Deveres Implícitos 3. O INSTITUTO DO DANO MORAL
3.1 Definição 3.2 Configuração do Dano Moral Indenizável 3.3 Consolidação
da
Reparabilidade do Dano Moral no Direito Brasileiro 3.4 Natureza Jurídica da
Reparação 4. DO CABIMENTO DO DANO MORAL POR INFRAÇÃO GRAVE AOS
DEVERES CONJUGAIS 4.1 DA INFRAÇÃO AO DEVER DE FIDELIDADE 4.2 DA
INFRAÇÃO AO DEVER DE VIDA EM COMUM, NO DOMICÍLIO CONJUGAL 4.3 DA
INFRAÇÃO AO DEVER DE MÚTUA ASSISTÊNCIA 4.4 DA INFRAÇÃO AO DEVER DE
SUSTENTO, GUARDA E EDUCAÇÃO DOS FILHOS 4.5 DA INFRAÇÃO AO DEVER DE
RESPEITO E CONSIDERAÇÃO MÚTUOS 4.6 DA INFRAÇÃO AOS DEVERES
IMPLÍCITOS 4.7 AS SEVÍCIAS 4.8 A PRESCINDIBILIDADE DE DISSOLUÇÃO DO
CASAMENTO PARA O CABIMENTO DA REPARAÇÃO 4.9 A NÃO CONFIGURAÇÃO DO
DANO PELA SIMPLES EXTINÇÃO DO VÍNCULO AFETIVO. 5 CONCLUSÃO 6.
REFERÊNCIAS
172
172
1.INTRODUÇÃO
Afirmou Aristóteles que “as primeiras uniões entre pessoas, oriundas de
uma necessidade natural, são aquelas entre seres incapazes de existir um sem o
outro, ou seja, a união da mulher e do homem”. Sabe-se que sendo oriunda de
uma necessidade natural, essa primeira união entre as pessoas possui extrema
relevância e é inerente ao ser humano enquanto ser social por natureza. Assim,
devido a essa importância tanto para a sociedade quanto para os sujeitos que
‘compõem tais vínculos, o Estado sempre buscou regulá-la detalhadamente.
A relação conjugal é constituída pelo afeto, marcada por sentimentos e
expectativas das mais variadas, contudo é também uma relação jurídica da qual
decorre direitos e deveres. Diante dessa importância e da singularidade da relação
conjugal, o Direito cuidou de estabelecer na lei, vários de seus aspectos, desde sua
possibilidade, constituição, formas, espécies, impedimentos, efeitos patrimoniais e,
como não poderia deixar de ser, impôs deveres a ambos os cônjuges.
Há, portanto, que se atentar ao regular cumprimento destes deveres. O
casamento, a rigor, deverá observar os deveres de fidelidade recíproca; vida em
comum, no domicílio conjugal; mútua assistência; sustento, guarda e educação dos
filhos; respeito e considerações mútuos estabelecidos no artigo 1566 do Código
Civil brasileiro. De modo que a infração grave a estes deveres também deve ser
regulada pelo Direito, principalmente quando causar danos a um dos cônjuges.
Esta é a proposta do presente trabalho, a de buscar a aplicação do
Instituto do dano moral no casamento de forma a responsabilizar o cônjuge infrator
pelos danos morais ocasionados ao cônjuge lesado quando decorrentes de infração
grave aos deveres do artigo 1566 do Código Civil. Utilizando-se, para tal, das
regras da responsabilidade civil.
No
intuito
de
desenvolver
tal
linha
de
pensamento,
parte-se
do
pressuposto de que o direito de família e a responsabilidade civil possuem suas
bases arraigadas na Constituição, a qual determina os fundamentos e princípios
orientadores das relações sociais. Dentre tais preceitos encontram-se a valorização
do ser humano enquanto ser dotado de dignidade, preceito, este, que contribuiu
para a consolidação do instituto do dano moral.
Diante
disso,
busca-se
fazer
uma
análise
do
direito
de
família,
destrinchando sua importância para a sociedade e discorrendo sobre os princípios
constitucionais aplicáveis a este ramo do direito civil. Aborda-se acerca do instituto
do casamento e, especificadamente, sobre os deveres impostos aos cônjuges
quando da sua constituição.
É necessário um estudo para compreender em quais situações, diante da
infração grave aos deveres conjugais, será aplicável o instituto do dano moral. O
presente tema, O dano moral no casamento por infração grave aos deveres
173
173
conjugais, consiste em relevante pesquisa, cuja fundamentação se assenta nos
parâmetros da doutrina especializada nos ramos envolvidos, bem como nas
previsões legislativas que integram ordenamento jurídico pátrio.
Importante ressalvar, de logo, que não se trata de uma tentativa de
monetarização das relações conjugais, e sim de uma compensação ao cônjuge que
suportou
um
dano
moral
provocado
pelo
outro,
bem
como
de
gerar
a
responsabilização do cônjuge infrator. O método utilizado foi o dialético, envolvendo
análise de textos e obras correlatas bem como estudo jurisprudencial, legislativo e
o meio eletrônico, via internet, que auxiliou o trabalho de pesquisa, para alcançar
os objetivos pretendidos.
A tentativa é de demonstrar que na relação conjugal, em certas situações,
diante do caso concreto, é amplamente possível e pertinente a condenação em
danos morais. Pretende-se apontar quando há uma infração grave aos deveres
conjugais para demonstrar que, quando identificado, in concreto, que esta infração
gerou danos morais a um dos cônjuges, será possível a condenação em danos
morais, com vistas a reparar o dano suportado, responsabilizar o infrator e, por
consequência, estimular a observância e cumprimento dos deveres conjugais.
2 NOÇÕES ACERCA DO DIREITO DE FAMÍLIA
O direito de família é o ramo do direito civil mais diretamente voltado para
o próprio ser humano. Ele trata da primeira e principal forma de relação social, pois
cada pessoa existe, inicialmente, em um ambiente familiar, sendo ali constituído o
primeiro agrupamento humano.
Só após existir em uma família, seja ela consangüínea ou afetiva, é que a
pessoa se projeta na sociedade, criando outras relações. Dentre essas surge a
relação conjugal que enseja uma nova família através do casamento ou da união
estável.
O casamento é uma das formas predominantes de constituição da família,
merece total proteção jurídica e nesse sentido, o direito cuidou de instituir deveres
conjugais a serem observados pelos cônjuges. Embora se trate de vínculo afetivo, é
indispensável à observância desses deveres que devem ser entendidos não apenas
como uma imposição legal, e sim como a forma mais adequada de convivência
harmônica, de respeito aos direitos do outro e de manutenção do afeto.
A violação grave a esses deveres conjugais, que acarrete dano a um dos
indivíduos
integrantes
da
relação
conjugal,
nos
remete
à
hipótese
de
responsabilidade civil ainda que no âmbito do direito de família. Contudo, antes de
adentrarmos na questão acerca da possibilidade desta inter-relação entre,
174
174
especificadamente, o instituto do dano moral e o casamento, faz-se necessário um
estudo mais aprofundado acerca do direito de família e do casamento.
A família constitui o próprio meio de formação do individuo, pois que
instrumento de formação da sua personalidade, e desse modo, a base da
sociedade. É o que, de forma expressa, prevê o artigo 226 da Constituição Federal,
ao considerar a família a estrutura básica social, in verbis: “Art. 226 – A família,
base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” 1
Nesse mesmo sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem
(XVI-3) traz a seguinte previsão: “A família é o núcleo natural e fundamental da
sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.” 2
No dizer de Tânia da Silva Pereira: “A família é o primeiro agente
socializador do ser humano”3.
E Giselda Hironaka sustenta
não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou qual a espécie de
agrupamento familiar a que ele pertence – o que importa é pertencer ao seu
âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar
sentimentos, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu
projeto de felicidade.4
Ensina Antunes Varela, citado por Rui Stoco, que “a família é o núcleo
familiar primário mais importante que existe, antecede o Estado e decorre de uma
profunda e transcendente necessidade do ser humano.” 5
Contudo, é interessante referir-se às relações entre os vários membros da
família sem tentar apresentar, de forma definitiva, um conceito de família. Isto
porque, não é coerente identificar a família como aquela que decorre pura e
simplesmente do casamento.
Sendo assim, é possível considerar a família como uma instituição jurídica
e social, decorrente do casamento ou da união estável, que surge da sociedade
conjugal, de fato e/ou de direito, cujo vínculo de parentesco, seja natural ou civil,
deve ser considerado.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 out. 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 12 jul. 2014.
2
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia Geral. Resolução nº 217 A (III), de 10 de
dezembro de 1948. Declaração universal dos direitos humanos. Paris: 1948. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-DireitosHumanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html>. Acesso em: 12 jul. 2014.
3
PEREIRA, p. 151apud DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed., rev., atual. e
ampl.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 28.
4
HIRONAKA, p. 8apud DIAS, op. cit., p. 27.
5
VARELA apud STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 8. ed.,
rev., atual. e ampl., com comentários ao Código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1065.
1
175
175
2.1 PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA
Os princípios são fontes do direito, são normas jurídicas que permitem a
exegese jurídica e possibilitam uma maior aproximação entre o direito e a idéia de
justiça. Devido ao conteúdo axiológico que carregam, “os princípios são normas que
tem a função de fundamento normativo para a tomada de decisão, são deveres de
otimização aplicáveis em vários graus segundo as possibilidades normativas e
fáticas”1.
São vários os princípios que norteiam o direito de família. É difícil
quantificar ou tentar especificar todos eles. No entanto, importa discorrer
brevemente sobre alguns destes que, consagrados pela nossa Carta Magna,
permeiam o direito de família, especificamente na contemporaneidade, onde se
verifica diversas mudanças e inovações.
Neste sentido, discorreremos sobre
os princípios constitucionais da
liberdade, da dignidade da pessoa humana e da igualdade, que, no dizer de
Berenice Dias, são “verdadeiros mandatos de otimização que constitucionalizaram o
direito civil.”2
2.1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Positivado no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, este principio é
fundamental ao nosso ordenamento jurídico, principalmente por estarmos diante de
um Estado Democrático de Direito. Trata-se de “verdadeiro macro princípio
constitucional no qual se concretizam direitos fundamentais e do qual se
desdobram subprincípios ou princípios implícitos” 3.
É base para a comunidade familiar, que tem como “pedra angular” o afeto
e a felicidade de seus membros, “isto porque a família só faz sentido para o Direito
a partir do momento em que ela é veículo funcionalizador da promoção da
dignidade dos seus membros.”4
Para Sumaya Pereira,“a família passou a ter o papel funcional de servir de
instrumento de promoção da dignidade da pessoa humana. Passou a ser tutelada
como instrumento de estruturação e desenvolvimento da personalidade dos sujeitos
que a integram.”5
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., rev.
São Paulo: Malheiros, 2005, p. 27.
2
DIAS, 2013, p. 60.
3
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 19. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2011. v. 5, p. 55.
4
Ibid., p. 56.
5
PEREIRA apud PEREIRA, op. cit., p. 53.
1
176
176
A vida em família é válida até o momento em que proporciona, no seio
desta, uma vida digna a cada um dos seus membros, onde haja o respeito aos
direitos da personalidade de cada integrante, como, por exemplo, a honra (art. 5º,
X da CF), intimidade (art. 5º, X e LV da CF), vida privada (art. 5º, XII da CF),
liberdade (art. 5º caput da CF), enfim, às características e sentimentos de cada um.
2.1.2 Os Princípios da Liberdade e da Igualdade
Estão consagrados no artigo 5º, caput da Constituição, onde a Carta Magna
cuidou de assegurar que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade”1.
O princípio da liberdade é facilmente percebido no âmbito do direito de
família quando se fala na faculdade que, salvo os casos de impedimento, todo
indivíduo possui, de livremente constituir uma comunhão de vida familiar através
do casamento ou união estável, bem como ao direito de deixar de constituí-la.
O princípio constitucional da igualdade, assegurado no caput do artigo 5º
da Constituição Federal e reafirmado no inciso I deste, enfatizou que homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações (CF 5º I).
Adentrando o direito de família, a Constituição Federal estabeleceu em seu
artigo 226, parágrafo 5º que: “Os direitos e deveres referentes à sociedade
conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.” 2Consagrando
assim, o princípio da igualdade jurídica dos cônjuges e companheiros, assegurandolhes, portanto, igualdade de direitos e deveres. 3 Por força deste princípio, os
deveres conjugais foram igualmente estabelecidos de forma recíproca.
2.1.3 Princípios da Afetividade e Facilitação da Dissolução do Casamento
Ademais, vale destacar os princípios da afetividade e facilitação da
dissolução do casamento. Não são princípios explícitos na Constituição Federal,
mas, incontestavelmente, decorrem das garantias e proteções ali asseguradas.
2.1.3.1 O Princípio da Afetividade
BRASIL, 1988.
Ibid.
3
Código Civil de 2002, artigo 1511:“O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na
igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. Cf. Id., 2002b.
1
2
177
177
Este princípio é de extrema relevância, visto que o afeto é o pilar das relações
familiares, notadamente da relação matrimonial. No casamento e principalmente na
união estável não há consangüinidade, o afeto é quem dá inicio a relação e é o que
a sustenta. A comunhão plena de vida prevista em lei e naturalmente esperada da
relação matrimonial só pode ocorrer de fato, se houver afeto, afinal “cessado o
afeto, está ruída a base de sustentação da família”1.
O que marca o direito de família é a socioafetividade, embora nem sempre
tenha
sido
assim,
hoje
os
vínculos
afetivos
merecem
aceitação
social
e
reconhecimento jurídico. Conforme defende Berenice Dias, “a família e o casamento
adquiriram novos perfis, voltados muito mais a realizar os interesses afetivos e
existenciais de seus integrantes”2. “Essa é a concepção eudemonista da família, que
progride à medida que regride o seu aspecto instrumental”3.
2.1.3.2 Princípio da Facilitação da Dissolução do Casamento
O casamento era tido como vínculo indissolúvel e o Estado buscava
preservá-lo, entendendo que a manutenção do casamento era a melhor forma de
obter uma sociedade mais regular. “A tônica era o interesse de ordem pública, mais
prevalente do que o interesse dos próprios cônjuges, que não merecia maior
atenção.”4
Contudo, a Constituição Federal em 1988 trouxe em seu artigo 5º,
parágrafo 6º a seguinte previsão: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo
divórcio”5,
estipulando,
assim,
o
princípio
da
facilitação
da
dissolução
do
casamento.6 Reconheceu-se a liberdade do indivíduo de casar-se e de não manterse casado.
A partir de então diversas alterações no que tange à regulamentação do
divórcio ocorreram no sentido de efetivar esse principio. “A Lei nº 11.441/07
autorizou a dissolução consensual do casamento em via administrativa, por
escritura pública lavrada em cartório, quando não houvesse interesse de incapaz” 7.
A nova Lei do divórcio, a Emenda Constitucional 66/2010, alterou o texto do § 6º
do art. 226 da Constituição Federal que passou prevê que: “o casamento civil pode
ser dissolvido pelo divórcio”8. .
Esta Emenda, também conhecida como “PEC do amor”, intitulou o divórcio
FARIAS apud DIAS, 2013, p. 28.
DIAS, 2013, p. 74.
3
OLIVEIRA;MUNIZ apud DIAS, op. cit., p. 74.
4
DIAS, 2013, p. 155.
5
BRASIL, 1988.
6
Ibid.
7
Ibid., loc. cit.
8
BRASIL, op. cit.
1
2
178
178
como único meio de extinção do matrimônio, derrubando um dos maiores
paradigmas deste direito, o da indissolubilidade do casamento.
Diante disso, entende-se que prevalece no atual direito de família
brasileiro, o princípio da facilitação da dissolução do casamento. E, de acordo com a
doutrina mais avançada, afastou-se a idéia de cônjuge culpado e buscou-se tutelar
a liberdade e dignidade dos indivíduos.
2.2 O INSTITUTO DO CASAMENTO
2.2.1 Noções Conceituais
O Código Civil brasileiro reserva 110 artigos para tratar do casamento,
mas, não traz nenhuma definição acerca deste instituto. Desse modo, são diversas
as tentativas de conceituação do casamento apresentadas por doutrinadores
brasileiros. Alguns apresentam uma noção mais clássica e conservadora, outros
uma noção mais relacionada com as modificações da família contemporânea.
Na concepção clássica de Lafayette Rodrigues Pereira, “o casamento é um
ato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente se unem para sempre, sob
promessa recíproca de fidelidade no amor e da mais estreita comunhão de vida” 1.
Tem-se, nesta concepção, uma visão contratualista do casamento, em que se
valoriza o caráter solene do instituto e a indissolubilidade do vínculo.
Muitos
doutrinadores
apresentavam
um
conceito
que
restringia
o
casamento à união de um homem com uma mulher com o intuito de uma
comunidade de existência, como se lê na definição de van Wetter 2.
Esta noção restrita foi superada em 2011 pela jurisprudência dos Tribunais
Superiores, quando em decisão do Recurso Especial 1.183.378 a 4ª Turma do STJ
no Rio Grande do Sul decidiu que não há óbices legais à celebração de casamento
entre pessoas do mesmo sexo.3 A partir de então, passou-se a considerar válido o
casamento entre pessoas do mesmo sexo, o denominado casamento homoafetivo.
Um conceito mais atento às modificações da família contemporânea,
desassociado da idéia de indissolubilidade ou diferença de sexos entre os cônjuges,
foi o trazido por José Lamartine C. de Oliveira e Francisco José F. Muniz, pois para
estes doutrinadores, “o casamento tanto significa o ato de celebração do
PEREIRA apud PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 16. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 5, p. 52.
2
WETTER apud PEREIRA, op. cit., p. 53.
3
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.183.378/RS. Relator: Min. Luis Felipe
Salomão.4. Turma. Brasília, 25 out. 2011. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 1. fev. 2012b.
Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=109902
1&num_registro=201000366638&data=20120201&formato=PDF>. Acesso em: 28 maio 2014.
1
179
179
matrimônio como a relação jurídica que dele se origina: a relação matrimonial. O
sentido da relação matrimonial melhor se expressa pela noção de comunhão de
vidas, ou comunhão de afetos”1.
Cristiano Chaves de Farias defende que é preciso apartar o casamento da
idéia de procriação, visto que para ter filhos não é preciso casar, e o casamento é
“comunhão plena de vida entre pessoas humanas”2, independente da procriação. O
autor sustenta também que, não se pode enxergar no casamento a feição de sua
indissolubilidade, pois, conforme expressa previsão constitucional (CF, art. 226, §
6º)3, o casamento pode ser dissolvido por vontade de um ou de ambos os
cônjuges.
Apesar desses contornos não há um conceito exato, objetivo e unicamente
válido, menos ainda um conceito imutável. O direito se adéqua aos fatos, estes
antecedem o direito e, obviamente, que no casamento também é assim.
2.2.2 Natureza Jurídica
Há três teorias diferentes acerca da definição da natureza jurídica do
casamento, a primeira apresenta uma concepção contratualista do instituto; a
segunda o vê como uma instituição social; a terceira é mista, entende que há no
casamento, um caráter contratual, bem como institucional.
A concepção clássica e também individualista foi aceita pelo racionalismo
jus naturalista do século XVIII e penetrou, com o advento da Revolução Francesa,
no Código francês de 1804, influenciando a Escola Exegética do século XIX e
sobrevivendo até nossos dias da doutrina civilista.4
Esta concepção prioriza a livre disposição de vontade dos nubentes quando
da constituição do vínculo, o consentimento necessário para a sua formação, que
sendo recíproco e manifesto por sinais exteriores dariam eficácia e validade ao
casamento. Assim, o casamento é entendido como um contrato civil regido pelas
regras comuns a todos os contratos.
A concepção institucionalista ou supra individualista, defendida pelos
elaboradores do Código Civil italiano de 1865 e escritores franceses como Haurion e
Bonnecas5, vê o casamento como uma instituição social, regido por regras de
ordem pública, em que os nubentes manifestavam sua vontade apenas em relação
OLIVEIRA; MUNIZ apud DIAS, 2013, p. 155.
FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 188.
3
Artigo 226,§ 6º:”O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Cf.BRASIL, 1988.
4
PEREIRA, LIMA, RODRIGUES apud DINIZ, 2007, p. 38.
5
GONÇALVES, 2013, p. 41.
1
2
180
180
a aderi-lo e ao cônjuge escolhido e uma vez constituído o casamento, refletir-se-ia
uma situação jurídica, cujos efeitos e contornos estariam pré-fixados em lei.
Maria Helena Diniz1 afirma que a concepção institucionalista sofreu
algumas variações, pois alguns civilistas passaram a vislumbrar o casamento como
um contrato especial ou sui generis, em razão dos seus efeitos peculiares e das
relações específica que cria.
A terceira teoria surgiu como resultado da polêmica entre as duas
primeiras (contratual e institucional), tornando-se mista e eclética. Tal teoria
reconhece o elemento vontade e o une ao elemento institucional, considerando o
casamento um ato complexo por ser ao mesmo tempo um contrato e instituição.
Para Rouast2 o casamento seria um ato complexo, contrato na sua formação e
instituição no seu conteúdo.
Importa frisar, não haver que se falar em vontade dos nubentes, por
exemplo, quanto à extensão dos direitos e deveres dos cônjuges, nem em relação
aos efeitos do casamento, a forma de dissolução do vínculo ou reconhecimento dos
filhos. Estas regras têm natureza cogente, são de ordem pública, “tem o objetivo
de dar a família uma organização social moral compatível com as aspirações do
Estado e a natureza permanente do homem, definidas em princípios insculpidos na
Constituição Federal e nas leis civis”3.
Acerca desta discussão sobre a natureza jurídica do casamento, Berenice
Dias4 diz ser descabido tentar identificar o casamento com institutos que tenham
por finalidade exclusivamente questões de ordem obrigacional, pois o casamento é
negócio jurídico bilateral que não está afeito a teoria dos atos jurídicos. É regido
pelo direito de família, diferenciando dos demais negócios de direito privado,
também por ser o envolvimento afetivo o gerador do desejo de constituir família.
2.2.3 Finalidade
Diversas são as finalidades já atribuídas ao casamento, dentre elas a
finalidade de procriação e educação dos filhos, de legalização das relações sexuais
ou de satisfação sexual, de constituição da família legítima e atribuição do nome do
cônjuge, e do nome do cônjuge aos filhos, bem como a de legalização do estado de
fato. Hoje, no entanto, grande parte dos doutrinadores entende que a finalidade
principal do casamento é a de estabelecer uma comunhão plena de vida.
DINIZ, 2007, p. 39.
PLANIO; RIPERT apud DINIZ, op. cit., p. 40.
3
Ibid., p. 44.
4
DIAS, op. cit., p. 157, grifos do autor.
1
2
181
181
Nesta senda, afirma Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que: “a
finalidade precípua do casamento é o estabelecimento de uma comunhão de vida,
não se prestando a fins específicos que podem, ou não, estar presentes nas mais
diferentes relações de casamento”,1“a finalidade do casamento é estabelecer uma
comunhão de afetos”2.
2.3 DEVERES CONJUGAIS
O Código Civil de 2002 apresenta diversas normas reguladoras do
casamento, e em meio a toda regulamentação legal, impõe aos cônjuges deveres
recíprocos, “reclamados pela ordem pública e interesse social, e que não se medem
em valores pecuniários”3.
Estes deveres estão listados no artigo 1566 do Código Civil 4, e são: o dever
de fidelidade recíproca; dever de vida em comum, no domicílio conjugal; dever de
mútua assistência; dever de sustento guarda e educação dos filhos; dever de
respeito e considerações mútuos. Todos estes deveres devem ser exercidos,
conforme prevê o artigo 226, § 5º da Constituição Federal 5, em igualdade por
ambos os cônjuges.
Insta frisar que o rol do artigo 1566 não é taxativo, “pois a vida conjugal
pode exigir outros deveres entre os consortes para que seja possível e viável, no
tempo, a consolidação da vida em comum” 6.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald defendem que os deveres
recíprocos entre os cônjuges são estabelecidos para que se aperfeiçoe a plena
comunhão de vida instalada entre eles. Mas, a infração destes deveres não atinge
a existência, validade ou eficácia do casamento. Está mais vinculado à idéia de
violação da boa-fé objetiva, podendo ser hipótese de causa de pedir em ações de
indenização por danos morais, questão objeto desse trabalho.
2.3.1 Dever de Fidelidade
O dever de fidelidade, previsto no inciso I do artigo 1566 do Código Civil,
decorre diretamente da tentativa do Estado de manter uma base familiar
FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 192.
Ibid., p.193.
3
PEREIRA, MONTEIRO apud DINIZ, op. cit., p. 127.
4
Código Civil brasileiro, artigo 1566: “São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca;II –
vida em comum, no domicílio conjugal;III – mútua assistência;IV – sustento, guarda e educação dos
filhos;V – respeito e consideração mútuos.” Cf. BRASIL, 2002b.
5
Artigo 266, §5º:“Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo
homem e pela mulher.” Cf.BRASIL, 1988.
6
Ibid., loc. cit.
1
2
182
182
estruturalmente monogâmica, “consiste no dever de cada cônjuge de abster-se de
praticar relações sexuais com terceiro.”1.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho2, defendem que a
fidelidade é (e jamais deixará de ser) um valor juridicamente tutelado, e, tanto o é,
que fora exigido como dever legal decorrente do casamento. Sustentam que a sua
violação, independente da dissolução da sociedade conjugal, poderá trazer
conseqüências jurídicas, inclusive indenizatórias.
A infração ao dever de fidelidade se configura com o adultério. Nas
palavras de Maria Helena Diniz, essa infração e, portanto, o adultério, constitui
ilícito civil e indica falência da moral familiar, desagregando a vida familiar.
Importante dizer que, “para que se configure o adultério (ilícito civil) basta uma só
transgressão ao dever de fidelidade por parte do marido ou da mulher (RT,
181:221); não se exige, portanto, a continuidade de relações carnais com
terceiro”3.
Para uma parte da doutrina, “o adultério só se caracteriza pela conjunção
carnal”4, os demais atos sexuais são considerados injúria grave. Contudo, outra
parte da doutrina sustenta que essa compreensão restrita é inadmissível, pois o
dever de fidelidade há de ser atrelado à lealdade e entendido de forma ampla.
Nesta corrente de pensamento, defende Maria Helena Diniz5, não ser
apenas o adultério (ilícito civil) que viola o dever de fidelidade recíproca, mas
também, atos injuriosos que pela sua licenciosidade, com a acentuação sexual,
quebram a fé conjugal. Esta autora apresenta como exemplos: o relacionamento
homossexual, namoro virtual, inseminação artificial heteróloga não consentida, etc.
Em relação à infidelidade virtual, que surge das relações formadas e
mantidas pela internet sem o contato físico, Maria Helena Diniz a aponta como
exemplo de infração ao dever conjugal, já Maria Berenice Dias sustenta que sua
prática não implica em violação ao dever de fidelidade recíproca, pois a “imposição
do dever de fidelidade simplesmente visa a impedir a concepção de prole
ilegítima”6.
2.3.2 Dever de Vida em Comum, no Domicílio Conjugal
DIAS, op. cit., p. 146.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito de família :
as famílias em perspectiva constitucional. 4. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. v. 6, p. 289.
3
DINIZ, 2007, p. 146.
4
CARVALHO NETO apudFARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 303.
5
DINIZ, op. cit., p. 148.
6
DIAS, op. cit., p. 275.
1
2
183
183
O dever de vida em comum, no domicilio conjugal, segundo do rol do art.
1566 do Código Civil, é também chamado de dever de coabitação. Para a doutrina
mais antiga, este dever engloba a convivência dos cônjuges sob o mesmo teto e
também o débito conjugal, entendido como o dever dos nubentes de manter
relações sexuais.
Lopez Herrera e Antônio Chaves1 entendem que este dever de coabitação
traduz-se tanto no imperativo de viverem juntos os consortes quanto o de
prestarem, mutuamente, o débito conjugal.
Sustenta Álvaro Villaça de Azevedo:
um cônjuge tem o direito sobre o corpo do outro e vice-versa, daí os
correspondentes deveres de ambos, de cederem seu corpo ao normal
entendimento dessas relações intímas, não podendo, portanto, inexistir o
exercício sexual, sob pena de restar inatendida essa necessidade fisiológica
primária, comprometendo seriamente a estabilidade da família. 2
O exercício sexual seria uma conseqüência natural da plena comunhão de
vida, uma forma de manter a estabilidade da família e a procriação. Excluindo-se
práticas que atentassem contra a integridade física do outro, é como entende Maria
Helena Diniz.3
Ocorre que, a prática de relações sexuais no casamento é algo que envolve
o afeto, não podendo ser imputada por lei como uma obrigação a ser regularmente
observada, cuja inobservância acarrete conseqüências jurídicas ou viole o próprio
matrimônio. Entender assim é inobservar o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, bem como os direitos da personalidade das partes.
Não pode um cônjuge dispor sobre o corpo do outro mais do que o seu
titular, sobrepondo-se à vontade deste, figurando como se credor fosse de um
débito conjugal. Impor a prática de relação sexual aos cônjuges é uma invasão da
vida privada do casal, pois haveria de se regular os aspectos desta “obrigação”,
como, por exemplo, os limites para a sua exigibilidade. Da mesma forma, haveria
de se analisar a possibilidade do marido obrigar sua esposa a praticar atos sexuais
e vice-versa, bem como a possibilidade de reparação de danos pela abstinência.
Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,4 também não
pode o dever de vida em comum (no domicílio conjugal) ser entendido como o de
obrigatoriedade
de
viverem
sobre
o
mesmo
teto.
Considera-se
que
uma
obrigatoriedade neste sentido afetaria a liberdade dos cônjuges de poder dispor
sobre a vida em comum, sendo que isto envolve o planejamento dos cônjuges
LOPEZ HERRERA apud DINIZ, 2007, p. 130.
AZEVEDO apud DINIZ, op. cit., p. 130.
3
DINIZ, op. cit., p. 149.
4
FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 306.
1
2
184
184
acerca de suas vidas, aos projetos e perspectivas para o casal e as decisões acerca
de como viverem “juntos” respeitando suas respectivas vontades.
É plenamente possível que os indivíduos que formam um casal optem por
viver em locais diferentes sem, contudo, deixarem de ter comunhão de vida. A
respeito disto, tem-se a súmula 382 do STF 1 prevendo que a vida em comum no
domicílio conjugal não é indispensável para a configuração da união estável.
Ocorre que, este não é um entendimento unânime na jurisprudência, para
Caio M. S. Pereira e Flávio Tartuce: “as núpcias instauram entre os cônjuges a vida
em comum no domicílio conjugal, pois o matrimônio requer coabitação, e esta, por
sua vez, exige comunidade de existência.”2
Maria Helena Diniz defende que o dever de vida em comum no domicílio
conjugal só haveria de ser afastado em casos excepcionais, cujas circunstâncias
realmente o impossibilitasse, pois, segundo a autora, trata-se de dever de ordem
pública sem o qual não existe o casamento
Para a autora e os demais que compartilham deste entendimento, a
coabitação consiste na vida dos cônjuges no mesmo local e o abandono voluntário
do lar, sem justo motivo durante um ano contínuo, reveste-se de caráter injurioso,
autorizando, por isso, o pedido de indenização por dano moral e de separação
judicial.3
2.3.3 Dever de Mútua Assistência
Previsto no inciso III do artigo 1566 do CC, este dever abrange aspectos
morais e materiais, o compromisso de atendê-lo é publicamente firmado na própria
cerimônia de casamento, com a promessa feita pelos cônjuges, nesta ocasião, de
respectivamente se amarem e respeitarem, tanto na alegria quanto tristeza, na
pobreza e na riqueza, na saúde e na doença.
A comunhão plena prevista no artigo 1511 do CC4 está intimamente ligada
ao dever de mútua assistência. No dizer de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald 5
essa mútua assistência é justificável a partir da idéia da comunhão de vida e é
forma específica de materialização da solidariedade social (familiar) abraçada como
princípio da República pelo art. 3º da Lex Fundamentalis.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 382. A vida em comum sob o mesmo teto,“more uxorio”,
não é indispensável à caracterização do concubinato. Diário da Justiça, Brasília, 8 maio 1964.
Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumula/anexo/Sumula_do_STF__1_a__736.pdf>.
Acesso em: 12 jul. 2014.
2
PEREIRA; TARTUCE apud DINIZ, 2007, p. 145.
3
DINIZ, op. cit., p. 151.
4
Código Civil Brasileiro, artigo 1511:”O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na
igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. Cf. BRASIL, 2002b.
5
FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 309.
1
185
185
Tendo por base o princípio da solidariedade, a mútua assistência deve
perdurar até depois de dissolvido o matrimônio. É o que efetivamente se verifica na
previsão de pensão alimentar devida pelo cônjuge que tem condições de prestar
este auxílio ao cônjuge que dela necessita para viver. “O dever de assistência
transborda os limites da vida em comum e se consolida na obrigação alimentar
para além da dissolução do casamento.”1
É um dever inerente ao casamento. Caio M. S. Pereira afirma ser um dever
que o casamento gera e que:
não se concretiza no fornecimento apenas dos elementos matérias de
alimentação e vestuário, que são óbvios. Inscrevem-se aí ainda a assistência
moral, o amparo nas doenças, a solidariedade nas adversidades, como ainda
o desfrute dos prazeres da vida na conformidade das posses e da educação
de um e de outro.2
No dizer de Maria Helena Diniz, esses deveres abrangem os implícitos de
sinceridade, zelo, honra e dignidade do cônjuge e da família.
2.3.4 Dever de Sustento, Guarda e Educação dos Filhos
O dever de sustento, guarda e educação dos filhos foi imposto tanto pelo
Código Civil ao tratar dos deveres conjugais, artigo 1566, IV, quanto pela
Constituição em seu artigo 2273e pelo artigo 4º do Estatuto da Criança e do
Adolescente.4
Consiste na verdade, em um dever individual dos pais para com os filhos,
não necessariamente vinculado ao casamento, vez que se o casamento for
dissolvido, não interferirá na necessária observância deste dever, ao contrário,
permanece o dever de guarda e educação dos filhos, independente da guarda
judicial, por exemplo. É um encargo de ambos os cônjuges em atenção ao princípio
da isonomia, sendo que cada cônjuge deve sustentar e educar o filho na medida da
sua real possibilidade.
Neste sentido, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho consideram
que esse dever sofre de um equívoco em sua localização, pois a sua origem não
DIAS, 2013, p. 277.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. v. 5, p. 173.
3
Artigo 277: ”É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldadee opressão.” Cf.BRASIL, 1988.
4
Artigo 4º:”É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com
absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária”. Cf. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.Dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>.
Acesso em: 12 jul. 2014.
1
2
186
186
deriva da condição de casado, mas sim da condição de pais. Ratificando tal
entendimento, Caio M. S. Pereira1 denomina-os como deveres para com a prole.
Entretanto, a inobservância da obrigação de cuidar integralmente dos filhos
(que deveria projetar conseqüências, apenas, no que se refere ao relacionamento
entre pai e filho, especificamente em relação ao poder familiar) pode autorizar a
imputação de culpa, sem prejuízo de eventual sanção penal, conforme os artigos
2442 e 2643·, ambos do Código Penal e de eventual perda ou suspensão do poder
familiar (CC, arts. 1.6374 e 1.6385), salienta Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald.6
2.3.5 Dever de Respeito e Considerações Mútuos
O respeito e a consideração são devidos em qualquer relação social, todos
os indivíduos merecem respeito, e isso é ainda mais imprescindível quando numa
relação entre pessoas que se uniram, por afeto, na busca de uma realização
pessoal, de um futuro em comum e de constituir uma família. Nesta senda, tem-se
que o respeito e considerações mútuos são essenciais ao matrimônio, são o
corolário da comunhão plena de vida.
Este dever que estava contido dentro do dever de mútua assistência no
Código Civil de 1916, fora destacado como inciso V do artigo 1566 no Código Civil
de 2002. Baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges e inspira-se,
como afirma Carlos Roberto Gonçalves7, na dignidade da pessoa humana, que não
é um simples valor moral, mas um valor jurídico, tutelado no art. 1º, III da CF 8.
Incluem-se neste dever de respeito mútuo e considerações recíprocas:
PEREIRA, 2002, p. 175.
Art. 244: “Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18
(dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos,
não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia
judicialmente acordada, fixada ou majorada deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou
ascendente, gravemente enfermo: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a
dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.” Cf. BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial [dos] Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, 31
dez. 1940a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso
em: 12 jul. 2014.
3
Código Penal brasileiro, art. 246: ”Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em
idade escolar: Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa.”. Cf. Ibid.
4
Código Civil brasileiro, art.1637: ”Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a
eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o
Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus
haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.” Cf. BRASIL, 2002b.
5
Código Civil brasileiro, art.1638: “Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:I –
castigar imoderadamente o filho;II – deixar o filho em abandono;III – praticar atos contrários à moral
e aos bons costumes;IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente”. Cf. Ibid.
6
FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 309.
7
GONÇALVES, 2013, p. 197.
8
Artigo. 1º, inciso III: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:III: a dignidade da pessoa humana;”. Cf. BRASIL, 1988.
1
2
187
187
além da consideração social compatível com o ambiente e com a educação
dos cônjuges, o dever, negativo, de não expor um ao outro vexames e
descrédito. É nesta alínea que se pode inscrever a “infidelidade moral”, que
não chega ao adultério por falta de concretização das relações sexuais, mas
que não deixa de ser injuriosa.1
Acerca deste dever, vale o dizer de Carlos Roberto Gonçalves: “O respeito
à honra e à dignidade da pessoa impede que se atribuam fatos e qualificações
ofensivas e humilhantes aos cônjuges, um ao outro, tendo em vista a condição de
consortes e companheiros de uma comunhão plena de vida. ”2 No entanto,
violações a este dever são recorrentes, principalmente quando os cônjuges figuram
como partes em litígios judiciários.
2.3.6 Deveres Implícitos
Como dito anteriormente, o rol do artigo 1566 do Código Civil não é
taxativo, pois a vida conjugal pode exigir a observância de outros deveres. Assim, a
doutrina nominou os deveres matrimoniais que não estão expressos em lei como
“deveres implícitos”. Estes são os deveres que, como ensina Caio Mário da Silva
Pereira,
se distinguem dos atos de cortesia ou de assistência moral, dentre os quais
se destacam: o dever de sinceridade, o de respeito pela honra e dignidade
própria e da família, o dever de não expor o outro cônjuge a companhias
degradantes, o de não conduzir a esposa a ambientes de baixa moral.3
Sendo que
o grau de educação, a sensibilidade dos cônjuges, a religiosidade, de um ou
do outro, são alguns dos aspectos a considerar, diante das circunstâncias
objetivadas nos procedimentos judiciais em que se cogite de sopesar o
relacionamento conjugal.4
No intuito de averiguar a possibilidade de responsabilização civil por dano
moral nas relações matrimoniais decorrente de infração grave aos deveres
conjugais, cumpre-se tratar sobre o instituto do dano moral, avaliando alguns
pontos ligados à: sua configuração, natureza jurídica e hipóteses de cabimento.
3. O INSTITUTO DO DANO MORAL
3.1 DEFINIÇÃO
Sabe-se que o dano é pressuposto da responsabilidade civil e que
inexistindo,
impossibilita
qualquer
pretensão
indenizatória.
Tendo
adquirido
extrema relevância, face ao reconhecimento do homem enquanto “ser moral por
1
2
3
4
188
PEREIRA, 2002, p. 176.
GONÇALVES, 2013, p. 197.
PEREIRA, 2002, p. 176.
Ibid., loc. cit.
188
excelência”1, o dano moral, em um conceito positivo, pode ser entendido como a
violação ao direito a dignidade.
Alguns
doutrinadores
o
define
de
forma
negativa,
como
sendo
a
“contraposição do dano patrimonial” . Assim faz Aguiar Dias, que apresentando
2
uma concepção negativa da expressão, afirma: “quando ao dano não correspondem
às características de dano patrimonial, estamos em presença do dano moral.” 3
Neste sentido, Pontes de Miranda ensina: “dano patrimonial é o dano que atinge o
patrimônio do ofendido; dano não patrimonial é o que, só o atingindo como ser
humano, não lhe atinge o patrimônio.”4
Criticas há à definição negativa do dano moral. Yussef Said Cahali, citando
Dalmartello, aduz que este critério distintivo à base da exclusão revela-se
insatisfatório defendendo ser mais razoável caracterizar o dano moral pelos seus
próprios elementos; portanto, “como a privação ou diminuição daqueles bens que
têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranqüilidade de
espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra
e os demais sagrados afetos”5.
Maria Celina Bodin de Morais também apresenta um conceito positivo e
explica que a reparação do dano moral é a contrapartida do princípio da dignidade
humana; “é o reverso da medalha”6.
3.2 CONFIGURAÇÃO DO DANO MORAL INDENIZÁVEL
Carlos Roberto Gonçalves7 sustenta que os contornos e a extensão do dano
moral devem ser buscados na própria Constituição, especificamente, no art. 5º,
incisos V e X (acima citados), e no art 1º, inciso III. 8 Para Gonçalves, o julgador
não deve se afastar das diretrizes nela traçadas, sob pena de considerar pequenos
incômodos e meros desprazeres como dano moral.
Neste sentido, prevalece o entendimento de que o direito não deve
procurar
indenizar
o
mero
aborrecimento,
irritação,
desentendimento
ou
sensibilidade exacerbada.
CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.
17.
2
Ibid., p. 19.
3
DIAS apud CAHALI, op. cit., p. 19.
4
MIRANDA apud CAHALI, op. cit., p. 19.
5
DALMARTELLO, 1933, p. 55 et seq. apud CAHALI, 2011, p. 19.
6
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 132.
7
GONÇALVES, 2012, p. 492.
8
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a
dignidade da pessoa humana;”. Cf. BRASIL, 1988.
1
189
189
De fato, não é qualquer embaraço que pode ensejar o dano moral. Só deve
ser reputado como dano moral, a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que,
fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do
individuo, causando-lhe aflições, angustias e desequilíbrio em seu bem-estar, sendo
que estas só poderão ser consideradas dano moral quando estiverem por causa
uma agressão à dignidade de alguém, sustenta Sergio Cavalieri Filho.1
3.3 CONSOLIDAÇÃO DA REPARABILIDADE DO DANO MORAL NO DIREITO
BRASILEIRO
O primeiro Código Civil brasileiro, que entrou em vigor em 1916, fez
algumas referências a reparabilidade do dano moral em seu artigo 79 (“Se a coisa
perecer por fato alheio à vontade do dono, terá esta ação, pelos prejuízos contra o
culpado”) e 159 (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou
imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o
dano”2).
Contudo, à época, vigorava a irreparabilidade do dano moral, este era
admitido apenas em situações excepcionais, previstas expressamente em lei. Desse
modo, “até relativamente pouco tempo atrás, entendia-se como contrário à moral
e, portanto, ao Direito, todo e qualquer pagamento indenizatório em caso de lesão
de natureza extrapatrimonial se esta se delineava unicamente como sofrimento” 3.
Com o passar do tempo, no entanto, tornou-se insustentável tolerar que,
ao ter um direito personalíssimo seu atingido, ficasse a vítima irressarcida, criandose um desequilíbrio na ordem jurídica, na medida em que estariam presentes o ato
ilícito e a lesão a um direito (da personalidade), por um lado, e a impunidade, por
outro, esclarece Maria Celina Bodin Morais.4
A situação se consolidou com a promulgação da Constituição Federal de
1988 que, consagrou de forma expressa, em no mínimo dois incisos do artigo 5º, a
reparabilidade do dano moral no direito brasileiro, ipsis literis:
Art. 5º...
Inciso V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além
da indenização por dano material, moral ou à imagem;
Inciso X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação.5
1
2
3
4
5
190
CAVALIERI FILHO, 2010, p. 87.
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil. Diário Oficial [da] República dos
Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, 5 jan. 1916. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 12 jul. 2014.
MORAES, 2003, p. 145.
MORAES, op. cit., p. 148.
BRASIL, 1988.
190
Desse modo, restou superada a discussão e inquestionável o cabimento de
indenização por dano moral. A reparação da lesão a interesse extrapatrimonial foi,
inclusive, elevada ao status de “Direitos e Garantias Fundamentais”.
Neste sentido, o legislador ordinário, por meio do Código Civil brasileiro
expressamente reconheceu a reparabilidade dos danos morais, em seu artigo 186,
literis: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito.”1
3.4. NATUREZA JURÍDICA DA REPARAÇÃO
Acerca da natureza jurídica da reparação por danos morais tem-se
entendido, hoje, que ela representa uma compensação, ainda que pequena pela
tristeza inflingida injustamente a outrem. 2
A indenização por danos morais tem um caráter compensatório para a
vítima, sancionatório para o causador do dano, e pedagógico para a sociedade, pois
almeja compensar ao ofendido e gerar um desestímulo ao agressor e demais
membros da sociedade.
Não se trata de pagar um preço pela dor que o outro sofreu, e sim num
modo de amenizar as conseqüências jurídicas da lesão ocasionada. Pois, sem
dúvida, não há como reparar a dor, a mágoa ou sofrimento, não há um preço que
possa
ser
atribuído
a
estas.
A
reparação
consistirá,
na
realidade,
numa
compensação ao ofendido.
Segundo Yussef Said Cahali,
a reparação se faz através de uma compensação, e não de um
ressarcimento; impondo ao ofensor a obrigação de pagamento de certa
quantia de dinheiro em favor do ofendido, ao mesmo tempo em que agrava
o patrimônio daquele, proporciona a este uma reparação satisfativa.3
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho sustentam que haveria
ainda o efeito psicológico da reparação, que seria o de prestigiar genericamente o
respeito ao bem violado.4
4 DO CABIMENTO DO DANO MORAL POR INFRAÇÃO GRAVE AOS DEVERES
CONJUGAIS
Id., 2002b.
GONÇALVES, 2012, p. 496.
3
CAHALI, 2011, p. 38.
4
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p. 124.
1
2
191
191
É dizer popular que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a
colher”. Talvez esta frase, enquanto costumeira, tenha justificado a tolerância à
existência de abusos nas relações conjugais. É cada vez mais recorrentes notícias
de crimes passionais (violação imputável da norma penal a que o agente é
impulsionado por uma paixão violenta e irreprimível, o ciúme)1, em que o fim ou
mera fragilidade e inconstância da relação, acirrada pelo ciúme, “justifica” (enseja)
o homicídio de um dos cônjuges pelo outro.
Fato que, em relação a este crime incide a pena do direito penal, contudo,
percebem-se constantes agressões entre cônjuges, também graves, de total
desrespeito a própria pessoa humana e nítida violação aos deveres legais impostos
a ambos os cônjuges, (art. 1566 do CC) 2 que não necessariamente são tutelados
pela esfera penal e permanecem aceitas e toleráveis pela sociedade, pelo Estado e
pelo direito.
Mas, o direito tende a atentar-se para essas questões. É o que se verifica
na doutrina e jurisprudência e o que será demonstrado neste estudo. De certo,
inexiste motivo para que a relação entre cônjuges seja livre da interferência estatal
no que tange à responsabilização pela infração grave aos deveres expressos no
art.1566 do CC, bem como aos deveres implícitos cuja observância é indispensável
à vida conjugal. Pelo que se percebe, há uma forte tendência à modificação de uma
realidade que imuniza o cônjuge infrator.
Em 2002 foi editado o Projeto de Lei n. 6.960, atual PL n. 699/ 2011, de
autoria do deputado Arnaldo Faria de Sá, pretendendo incluir um § 2º ao art. 927
do Código Civil, com o seguinte texto: “Os princípios de responsabilidade civil
aplicam-se também às relações de família”3. Contudo, o parecer do deputado
Vicente Arruda rejeitou a proposta, sob o argumento de que a inclusão do referido
parágrafo visava explicitar o óbvio. O deputado afirmou que não restam dúvidas
acerca da aplicabilidade dos princípios de responsabilidade civil às relações de
família. Sustentou
que a
referida
proposta
já
parece vigente
através
da
interpretação da norma do art. 186 do novo CC .
4
Importa mencionar que, no direito alienígena, especificamente na França,
cuja legislação no dizer de Carlos Roberto Gonçalves, muito se aproxima da nossa,
JUSBRASIL. Crime passional. [S.l.]: 2014a. Páginas de busca por tópicos. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/topicos/292452/crime-passional>. Acesso em: 21 jun. 2014.
2
Código Civil brasileiro, art. 1.566. “São deveres de ambos os cônjuges:I – fidelidade recíproca;II – vida
em comum, no domicílio conjugal;III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos
filhos; V – respeito e consideração mútuos.” Cf. BRASIL, 2002b.
3
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.960, de 2002: (Do Sr. Ricardo Fiuza). Dá nova
redação aos artigos 2º, [...] e 2045 da Lei nº. 10.406 de 10 de janeiro de 2002, que "Institui o Código
Civil”, acrescenta dispositivos e dá outras providências. Brasília: 12 jun. 2002a. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=A86182238DE98C42AA
7C06B1D2475BE1.proposicoesWeb2?codteor=50233&filename=PL+6960/2002>. Acesso em: 13 jul.
2014.
4
ARRUDA apudDINIZ, 2013, p. 219.
1
192
192
há muito tempo se admite, tranquilamente, a ação de responsabilização entre
homem e mulher, como procedimento autônomo ou como pedido adicional ao
pedido de alimentos, em conseqüência da cessação do dever de socorro por culpa
do cônjuge demandado.1
Maria Helena Diniz defende que a dissolução da sociedade ou do vínculo
conjugal pode acarretar dano moral e patrimonial e adverte ainda que a pretensão
condenatória visando à reparação de dano moral e material pode ser feita através
da reconvenção em ações de separação e divórcio.2
Nesse sentido, Mário Moacyr Porto disserta que a ação de responsabilidade
civil entre marido e mulher fundamenta-se no artigo 159 (hoje, art. 186 do Código
Civil) e é independente da ação que visa à dissolução litigiosa da sociedade
conjugal e ao chamado “divórcio-sanção”. Sendo cumuláveis os pedidos, podendo
ser formulados na mesma demanda (CPC, art. 292).3
O direito à reparação independe da natureza jurídica do casamento. Como
se pôde observar, a teoria mista e eclética da natureza jurídica do casamento
considera-o como um ato complexo de caráter contratual e institucional. Em sendo
assim, entende-se que não se trata de uma responsabilidade civil contratual e que
a culpa não há de ser absolutamente presumida com o só descumprimento dos
deveres assumidos.
Diante do fato concreto, a culpa civil obedecerá tanto à teoria da culpa pelo
descumprimento de contrato, como a responsabilidade civil aquiliana, tomando de
empréstimo os princípios, teorias e conceitos de culpa do Direito Civil. Insta frisar
que mais do que um descumprimento de determinado contrato, tem-se o
descumprimento da própria lei.
Entendimento favorável a admissibilidade do dano moral nas relações
conjugais é também o apresentado por Rolf Madaleno4, este autor sustenta que
eram os tempos em que a estrutura hierarquizada da família, marcada pelo domínio
do marido, chefe e provedor da sociedade conjugal, bem como o temor pelo perigo
de proliferação de demandas triviais e o aumento dos conflitos judiciais familiares,
justificava a imunidade ressarcitória entre os esposos.
Compartilhando deste entendimento, ensina Yussef Said Cahali que:
não há dúvida de que o cônjuge agredido em sua integridade física ou moral
pelo outro tem contra este ação de indenização, com fundamento no art.
927 do CC, sem embargo de representar aquela ofensa uma causa que
legitima uma separação judicial.5
1
2
3
4
5
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 4. ed., rev. São Paulo:
Saraiva, 2009. v. 4, p. 67.
Ibid., loc. cit.
PORTO apudGONÇALVES, op. cit., p. 67/68.
MADALENO, 2010, p. 481.
CAHALI, op. cit., p. 589.
193
193
Alguns doutrinadores, no entanto, são contrários a aplicação do instituto do
dano moral ao casamento. Alma Maria Rodríguez Guitian, citada por Madaleno, por
exemplo, sustenta que “A legislação civil já prevê sanções próprias diante da culpa
conjugal na falência do matrimônio e a única conseqüência jurídica da quebra de
algum dever nupcial seria sua absorção como causa da separação judicial. ”1
Tal entendimento, data vênia, parece desarrazoado por dois motivos.
Primeiro porque para o cônjuge que descumpre algum dos deveres conjugais, não
necessariamente
a
separação
figurará
como
sanção.
Na
verdade,
muito
provavelmente, a separação atingirá mais o cônjuge inocente, que além de
suportar os danos morais a que o outro deu causa, terá de lidar com o difícil
processo de separação. Assim, a separação não tem o escopo de afastar a
responsabilidade pelos danos sofridos, não há razão para tal imunidade.
Em segundo lugar, porque não mais se discute culpa no divórcio e a
própria sobrevivência do instituto da separação, após a Emenda 66/2010, é
questão controversa entre os doutrinadores brasileiros.
Percebe-se, porém, que Alma Maria Rodríguez Guitian é contrária a
indenização apenas em parte, pois embora defenda que o simples descumprimento
de um dever conjugal pode não ser indenizável e que sua admissão poderia afetar a
paz familiar, acarretando uma indesejável multiplicação de pleitos judiciais, esta
autora, citada por Madaleno, afirma também que “a ocorrência de um dano em
concreto a causar séria lesão a direito fundamental de familiar, seja ele moral ou
patrimonial, não pode ser afastado da apreciação judicial e do ressarcimento
pecuniário”2.
Assim,
Guitián
apresenta
algumas
hipóteses
por
ela
consideradas
reparáveis:
os danos a saúde, causados pela infidelidade, com o risco contágio por
doenças venéreas ou pela AIDS; pelos danos a integridade física e psíquica
provocados pelos maus tratos durante a convivência; os danos à honra, com
os casos de infidelidade.3
Vale esclarecer que, não é a reparação do dano que irá afetar a paz
familiar, esta paz foi atingida quando ocorreu o próprio descumprimento do dever
matrimonial. Ademais, não é admissível que um direito deixe de ser assegurado, ou
que um dano deixe de ser reparado, ou, ainda, que o próprio instituto do dano
moral seja afastado sob o escopo de se evitar demandas judiciais.
1
2
3
194
GUITIÁN, 2009, p. 25 apudMADALENO, op. cit., p. 479.
GUITIÁN, 2009, p. 25 apudMADALENO, 2010, p. 482.
Ibid., loc. cit.
194
Admitir isto constitui nítida ofensa aos princípios e garantias constitucionais
primordiais, como por exemplo, ao princípio da dignidade da pessoa humana e do
acesso a justiça, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito.”1Este é um direito assegurado, de forma
plena, a todos os cidadãos, conforme art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal.
4.1 DA INFRAÇÃO AO DEVER DE FIDELIDADE
Em novembro de 2013, teve repercussão no Estado da Bahia, a
condenação de uma mulher, pela Justiça do município de São Gonçalo dos Campos,
a pagar uma indenização por danos morais ao ex-marido, no valor de R$ 50.000,00
(cinqüenta mil reais). O motivo da condenação teria sido o desconhecimento do excônjuge de uma traição ocorrida há mais de 20 anos, bem como de que a filha
registrada por ele na época (em decorrência da presunção de paternidade na
constância do casamento) era, na realidade, filha de outro homem.
Embora não tenha sido possível o acesso aos autos, visto que o processo
corre em segredo de Justiça, tem-se notícia de que o cônjuge traído ingressou com
ação negatória de paternidade, cumulada com pedido de indenização por danos
morais contra a ex-esposa. Com a realização do exame de DNA e a comprovação
de que não era pai biológico da filha que registrara há mais de duas décadas como
sua, o juiz julgou procedente a ação, para determinar a retirada do nome do autor
da certidão de nascimento da moça e o pagamento da indenização por danos
morais.2
No aludido caso, tem-se além da violação clara aos deveres implícitos de
respeito e sinceridade, uma grave violação ao dever de fidelidade fundamentando a
decisão prolatada. Tem-se a concretização, pela jurisprudência, do que o presente
trabalho defende, ou seja, da quebra de uma imunidade injustificável àqueles que
infringem gravemente os deveres conjugais.
Observa-se que o dano moral foi reconhecido tanto por conta do adultério
quanto pelo fato do ex-marido ter, em decorrência da conduta da mulher,
reconhecido a paternidade de uma filha que não era sua.
1
2
Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes, inciso XXXV – a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Cf. BRASIL, 1988.
BAHIA: mulher é condenada a pagar R$ 50 mil por esconder que filha era de outro homem. Correio,
Salvador, 30 maio 2014. Disponível em: <http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/bahiamulher-e-condenada-a-pagar-r-50-mil-por-esconder-que-filha-era-de-outrohomem/?cHash=306cb2adb530bea54f099595e1935c43>. Acesso em: 23 jun. 2014.
195
195
Na realidade, historicamente, variando-se de acordo com o local, o
costume e a religião, o adultério sempre foi reprimido e punido. Embora o adultério
por parte da mulher sempre tenha sido punido com mais severidade.
Nos dias atuais, contudo, a infração ao dever de fidelidade é comum e
amplamente tolerada pela sociedade. Mas é preciso lembrar que tal conduta fere o
próprio casamento, quebra a confiança e muitas vezes o afeto, abala o cônjuge
comprometido e consiste em desrespeito tanto à pessoa do outro, quanto a uma
determinação legal.1
De certo, ninguém pode pretender impedir a infração, e nem é isto o que
se defende. Afinal, o direito não tem como impedi-la nem mediante expressa
vedação legal. No entanto, há de se compensar a dor daquele que suportou os
danos morais, há de se responsabilizar civilmente o infrator e há de se defender a
lisura do casamento, instituto de extrema importância para o direito e para a
sociedade.
Contrário a esta reparação, o doutrinador Luiz Felipe Haddad afirma que:
“por mais que esta
conduta
cause reprovação, no
terreno ético-religioso,
principalmente quando ostensiva e eivada de arrogância e deboche, não gera
efeitos outros, senão o da dissolução da sociedade conjugal por culpa do cônjuge
ofensor”2.
José de Aguiar Dias, citado por Stoco, em contrapartida, defende ser
incontestável o dano moral que o adultério acarreta e que, “em presença dele, a
admissibilidade da ação reparatória não pode sofrer objeção, ainda que por parte
dos que se negam a reconhecer a reparabilidade do dano moral” 3.
Rui Stoco adverte que na França a jurisprudência formada na primeira
metade do século passado foi, aos poucos, firmando entendimento no sentido de
que o cônjuge, que suportou danos em virtude de infração aos deveres conjugais,
“tem direito, além de pleitear o divorcio, também à indenização pelos danos
sofridos, desde que não sejam decorrentes do próprio divórcio” 4.
O dever de fidelidade é imposto por lei e embora o direito não tenha o
poder de impedir a traição, o descumprimento não pode está imune de
responsabilização civil. Por mais que o adultério seja algo bastante recorrente, sua
previsibilidade não é motivo para afastar a compensação dos danos suportados pelo
traído.
Madaleno afirma ainda que, os defensores da preservação da paz familiar
são contrários a responsabilização genérica dos arts. 186 e 927 no casamento ou
1
2
3
4
196
Art.1566, I do Código Civil: “São deveres de ambos os cônjuges: fidelidade recíproca”. BRASIL, 2002b.
HADDAD apudCAHALI, 2011, p. 589.
DIAS, 1960, p. 15 apud STOCO, op. cit., p. 907.
STOCO, op. cit., p. 907.
196
união estável, sob o argumento de que “constitui-se uma temeridade para a
harmonia familiar a monetarização da quebra dos relacionamentos” 1.Ocorre que
este argumento fere o próprio instituto do dano moral, sabe-se que a indenização
não visa transformar a dor em pecúnia, ou pagar um preço pela dor, e sim um
abrandamento, uma compensação pela dor sofrida.
Não se trata de uma monetarização do fim do relacionamento, até porque
não é este o fato que enseja eventual indenização. Como já dito, o instituto do
dano moral consolidou-se no direito brasileiro e, também, é cabível na hipótese de
violação ao dever de fidelidade, pois o adultério, ainda que não mais seja ato típico
ensejador de punição civil ou pena criminal, não deixa de ser um ilícito civil, apto a
ensejar o dever de reparação.
Ademais, ainda em relação à violação ao dever de fidelidade, agora sob
outro aspecto, vale frisar que a acusação infundada de adultério legítima o acusado
a exigir reparação pelos danos morais advindos da acusação. Foi como julgou a 9ª
Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, vejamos:
a acusação infundada de adultério, feita pelo cônjuge varão à ex-mulher,
quando já passados mais de dez anos da separação do casal, sujeitando a
prole advinda do casamento a exame de DNA e a demanda anulatatória do
registro civil, comprovando-se a paternidade e a temeridade da acusação
(animus nocendi), como sendo ato ilícito, legitima-se a esposa acusada, a
buscar reparação por dano moral.2
Importante dizer, também, que o (a) amante não responde civilmente face
ao cônjuge traído, isto porque, quem tem o dever de fidelidade é o cônjuge
adúltero. Não há sequer necessidade de se conhecer a pessoa do (a) amante na
averiguação da responsabilidade civil do cônjuge infiel, pois foi este cônjuge quem
feriu a confiança do outro e os compromissos firmados pelo matrimônio.
Não é admissível que o cúmplice responda, principalmente se o consorte
não for responsabilizado. Nesse sentido, afirma Alma Maria Rodríguez Guitián não
ser concebível que o terceiro que se intromete na vida conjugal possa ser acionado
por dano moral.3 Apesar disso, há a tese de solidariedade do amante pela maneira
maliciosa de agir.
No que tange a infidelidade virtual, há divergência acerca de as relações
mantidas por meio virtual serem consideradas violação ao dever de fidelidade. Para
parte da doutrina, devido à falta de contato físico, não há violação, e o adultério só
1
2
3
MADALENO, 2010, p. 480.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 9. Câmara. Porto Alegre, 28
nov. 2001, RJTJRS 213/213 apudCAHALI, 2011, p. 592.
GUITIÁN apudMADALENO, 2010, p. 480.
197
197
se caracteriza pela conjunção carnal sendo os demais atos sexuais apenas injúria
grave.1
Seguindo essa corrente, não haveria de se falar em ressarcimento por
dano moral em decorrência das relações firmadas e mantidas exclusivamente pela
internet ainda que estas relações venham a se apresentar como íntimas ou se
revestir de intensidade e compromisso, mesmo que por conta delas o cônjuge
adúltero esteja traindo a confiança e lealdade do seu consorte, ou, privando-se da
companhia do seu consorte ao destinar sua atenção ao companheiro virtual.
Não parece razoável tal entendimento. Ainda que a vedação legal à prática
de atos sexuais fora do casamento, em sua essência, tenha o escopo de impedir a
concepção de prole ilegítima, a lealdade, a confiança e o respeito ao direito do
outro são valores a serem observados dentro do matrimônio. Desse modo,
entende-se que, embora na infidelidade virtual não haja o contato físico, este não é
imprescindível para a configuração de violações a estes valores. Por ser um dever
atrelado à lealdade, parece mais coerente entender de forma ampla a violação ao
dever de fidelidade, abrangendo nesta a infidelidade virtual.
Por fim, vale concluir que nem todo caso de descumprimento do dever de
fidelidade gera indenização, esta dependerá da demonstração do dano em cada
caso concreto. Mas, a infração ao dever de fidelidade conjugal é fundamento
bastante para sustentar condenação de cônjuge adúltero.
4.2 DA INFRAÇÃO AO DEVER DE VIDA EM COMUM, NO DOMICÍLIO CONJUGAL
O dever de vida em comum, no domicílio conjugal consiste num dever de
coabitação e se traduz tanto no imperativo de viverem juntos os consortes quanto o
de prestarem mutuamente o débito conjugal.2 Contudo, há divergência quanto à
obrigatoriedade dos cônjuges viverem juntos sob o mesmo teto bem como, quanto
à obrigatoriamente terem de se relacionar sexualmente.
Assim, cabe aqui tratar acerca da possibilidade de se pleitear indenização
por danos morais quando houver abandono do lar sem justo motivo ou quando
houver a recusa na prestação do débito conjugal.
Para alguns juristas o abandono do lar reveste-se de caráter injurioso e
autoriza o pedido de indenização por dano moral 3·, pois, havendo recusa de viver
em comum, o abandonado poderá pleitear indenização por dano moral e requerer a
separação judicial.4
CARVALHO NETO apud FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 303.
LOPEZ HERRERA apud DINIZ, 2007, p. 130.
3
DINIZ, op. cit., p. 151.
4
DINIZ, 2007, p. 151.
1
2
198
198
O abandono do lar por mais de um ano é hipótese inconteste de
indenização por dano moral. O cônjuge abandonado merece ser indenizado porque
sofre com o abandono, por ser tratado com desrespeito e descaso. Trata-se de um
desrespeito tanto à pessoa do cônjuge quanto aos princípios matrimoniais, aos
compromissos firmados e à própria família. Pode-se inferir então que, tem-se neste
uma violação grave ao dever de vida em comum, no domicílio conjugal e tal
violação induz ao fim da relação de forma ofensiva e repreensível.
Todavia, nem todo afastamento do lar pode ser considerado abandono. O
fiel cumprimento do dever de “viverem juntos sob o mesmo teto” pode ser
relativizado em situações excepcionais, em decorrência, por exemplo, de doença
que obrigue o afastamento (para o tratamento ou para evitar contágio), de
exercício de profissão, encargos públicos, dentre outras. Estas hipóteses hão de ser
admitidas
quando
estiverem
revestidas
de
necessidade,
temporaneidade
e
concordância de ambos os cônjuges. Ou seja, deve existir uma real necessidade,
deve ser por um determinado período de tempo e os cônjuges devem concordar.
Importa que os cônjuges decidam juntos acerca do não cumprimento deste
dever. É imprescindível que para eles tal infração não represente uma ameaça à
estabilidade do casamento, embora isto seja um pouco imprevisível. Independente
do afastamento físico e de estarem impossibilitados de prestarem o débito conjugal,
os consortes podem reafirmar entre si o compromisso de sustentarem uma relação
respeitosa e a devida atenção aos valores e princípios matrimoniais.
Desse modo, entende-se que a infração grave ao dever de vida em comum
no domicilio conjugal, no que tange em viver juntos, ocorre e enseja indenização
quando configurar-se abandono do lar. Ou seja, quando um dos cônjuges, por
simples liberalidade e por longo período de tempo, sair do local em que vivem.
Em relação ao débito conjugal, entende-se que, embora as relações
sexuais sejam inerentes ao casamento, é preciso levar em consideração o caráter
íntimo destas relações. Mesmo que a ausência do exercício sexual abale o
matrimônio e até lhe gere uma instabilidade, não poderá o Direito torná-lo exigível
perante a justiça. É inadmissível uma invasão jurídica que considere a recusa do
débito conjugal fundamento para indenização em danos morais. Nesta senda, a
hipótese de indenização em danos morais por abstinência sexual é afastada.
Sob outro prisma, vale citar que a tentativa forçada, ainda que dentro do
casamento, é indenizável. É possível tipificar como estupro condutas que violem a
integridade física do outro quando, valendo-se da condição de casado, o cônjuge
usa da força para praticar relações sexuais. Neste sentido, o sadismo erótico e a
prática sexual anormal ou vexatória que viole princípios morais ou integridade física
199
199
são, também, hipóteses de cabimento de indenização por dano moral, como aponta
Maria Helena Diniz.1
4.3 DA INFRAÇÃO AO DEVER DE MÚTUA ASSISTÊNCIA
O dever de mútua assistência tem por base o princípio da solidariedade. O
instituto compreende tanto a assistência moral ou imaterial quanto a assistência
material. A assistência moral é ampla e consiste numa solidariedade que deve está
presente em todos os aspectos da vida em comum e em todos os momentos
visando à proteção aos direitos da personalidade do outro.
Há divergência acerca de esta assistência imaterial ser ou não um dever
por conta do caráter moral que a reveste. Contudo, a assistência está prevista em
lei como um dever e é inadmissível uma restrição interpretativa da norma para
aplicá-la apenas às questões materiais. Além disso, entende-se que a assistência
moral envolve o auxílio, a solidariedade, o zelo num momento de doença (dever de
socorro) e estes são essenciais à vida em comum, bem como inerentes a própria
relação conjugal.
A assistência material consiste no dever de auxílio ou ajuda financeira. É
exigível quando se está diante da necessidade de um dos cônjuges e possibilidade
econômica do outro. Levam-se em consideração as condições econômicas e sociais
do casal e envolve a devida comunhão de esforços na luta da vida.
A infração ao dever de assistência, tanto material quanto imoral, pode
provocar danos morais e fazer surgir a pretensão indenizatória. Ensina Maria
Helena Diniz que “a violação do dever de assistência constitui injúria grave, que
pode dar origem à ação de responsabilidade civil por dano moral.”2 Em relação ao
dever de assistência material, devido ao seu caráter alimentar, tem-se uma
responsabilidade civil objetiva.
Importa salientar que a solidariedade entre os cônjuges subsiste mesmo
depois de extinta a sociedade conjugal e se concretiza por meio da obrigação
alimentar, sendo que permanece mesmo diante da demonstração de culpa pela
separação. Insta frisar que obrigação alimentar não obsta a indenização por dano
moral, pois a primeira não visa à responsabilização do cônjuge infrator nem a
reparação dos danos. Assim, não têm o mesmo objeto e, portanto, não se excluem.
4.4 DA INFRAÇÃO AO DEVER DE SUSTENTO, GUARDA E EDUCAÇÃO DOS FILHOS
1
2
200
DINIZ, 2013, p. 218-219.
DIAS, 2013, p. 133.
200
O dever de sustento, guarda e educação dos filhos é de cada consorte para
com os seus filhos e exigível independentemente da constância do casamento.
Deriva da condição de pai ou de mãe e não da condição de cônjuge, até porque
muitas pessoas têm filhos sem ter constituído matrimônio.
Contudo, embora tratar-se de um dever individual e intransferível, quando
uma das partes se omite, a outra fica sobrecarregada nas obrigações para com a
prole. Assim, quando o dever for infringido por um dos pais e em função disto o
outro venha a “assumir” todas as responsabilidades em total ausência de divisão
das obrigações, surgirá para o que as assumiu o direito de ser ressarcido pelos
danos que esta sobrecarga provocou.
Devido ao descaso do cônjuge faltoso, configurado no descumprimento
deste dever, o cônjuge presente acaba tentando suprir a falta do outro e fica
integralmente responsável pelo sustento e educação dos filhos. Indiscutivelmente a
situação de sobrecarga provoca danos morais que, quando demonstrados deverão
ser ressarcidos. Portanto, admissível a responsabilização do infrator.
Sobre outro aspecto, salienta-se que em sendo um dever legal imposto a
ambos os pais e independente do casamento ou de quem tenha a guarda judicial,
não poderá um dos cônjuges tentar afastar o filho da presença do outro nem criar
embaraços ao seu cumprimento.
Se um deles considerar necessário o afastamento deve buscar o poder
judiciário, por possuir competência para determiná-lo. Mas, se ao contrário, incorre
em ato ilícito no sentido de impedir o cumprimento do presente dever e em
decorrência disto causar danos ao outro, caberá a responsabilização civil.
4.5 DA INFRAÇÃO AO DEVER DE RESPEITO E CONSIDERAÇÃO MÚTUOS
O dever de respeito e consideração mútuos foi imposto de forma autônoma
apenas no Código Civil de 2002, em seu artigo 1566, inciso V. Indiscutivelmente, a
relação entre cônjuges deve ser pautada na adequação e respeito exigíveis em toda
e qualquer relação humana, posto que envolve uma comunhão de vida, uma
intimidade e privacidade, assim, quando a infração a este dever consistir em
infração grave a dignidade do outro, ensejará responsabilização civil.
A infração grave pode se dá por inúmeras formas, mas é evidenciada, por
exemplo, quando os cônjuges se valem de qualificações ofensivas e humilhantes,
um ao outro, em litígios judiciários. Tal infração também é notória na injúria grave
por meio de conduta desonrosa devido à solidariedade de honras decorrente do
casamento.
201
201
4.6 DA INFRAÇÃO AOS DEVERES IMPLÍCITOS
Em sendo assim, a infração grave aos deveres conjugais implícitos também
possibilita a responsabilização civil. Sem dúvida, diante do caso concreto, analisarse-á a realidade social e econômica dos cônjuges para fins de configuração da
infração e eventual responsabilização, mas o dano decorrente da ausência da
sinceridade exigível na relação, da ofensa a dignidade do cônjuge ou de sua família,
dentre tantas outras hipóteses, há de ser reparado.
4.7 AS SEVÍCIAS
As sevícias podem ser entendidas como os
maus-tratos, consistentes em ofensas físicas violentas ou flagelações
infligidas a alguém, ou falta intencional de proteção e assistência à sua
pessoa, por parte do agente, sob cujo poder ou autoridade ela se encontra e
que com esse procedimento revela crueldade e torna insuportável a vida em
comum. É praticada ordinariamente pelo marido, pelo pai ou mãe, tutor ou
curador.1
Nesse sentido, é inconteste que os maus tratos, os atos de crueldade,
tortura ou espancamento, quando praticados tanto pelo marido quanto pela esposa
trará responsabilização civil, sem exclusão da penal. É uma das situações em que a
indenização compensatória e sancionatória resta evidente, isto porque consiste em
violação a integridade física do cônjuge e, embora não seja uma violação direta aos
deveres elencados no art. 1566, comporta condenação em danos morais.
4.8 A PRESCINDIBILIDADE DE DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO PARA O CABIMENTO
DA REPARAÇÃO
Para que seja configurado o dano moral entre cônjuges, não é necessária a
separação. Existindo a conduta ilícita, o nexo causal e a demonstração do dano
moral, surgirá à possibilidade de aplicação dos princípios da responsabilidade civil e
de reparação dos danos independente da subsistência da sociedade conjugal.
Embora a continuidade da relação depois de marcada por um conflito judicial seja
de difícil visualização, quando ocorrer, não afastará a pretensão indenizatória.
1
202
JUSBRASIL. Sevícia. [S.l.]: 2014b. Páginas de busca por tópicos. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/topicos/297502/sevicia>. Acesso em: 21 jun. 2014.
202
A reconciliação entre os consortes não é apta a afastar a responsabilização
civil e nem mesmo a influenciar ou suspender o andamento de eventual demanda
reparatória existente entre eles, a menos que este seja à vontade inconteste deles.
Acerca disto, Yussef Said Cahali afirma:“o cônjuge agredido tem ação
indenizatória contra o outro, independente da dissolução da sociedade conjugal, ou
mesmo depois desta.”1 Portanto, entende-se que a dissolução do casamento não é
imprescindível à ação reparatória entre os cônjuges.
4.9 A NÃO CONFIGURAÇÃO DO DANO PELA SIMPLES EXTINÇÃO DO VÍNCULO
AFETIVO
É importante ressaltar que a simples extinção do vínculo afetivo não
configura dano moral indenizável. É como disserta Carlos Roberto Gonçalves,
carece de fundamento legal, o pedido de indenização por dano moral fundado no
simples fato da ruptura conjugal.2
E não poderia ser diferente. Como já foi dito em capítulo anterior, ambos
os cônjuges são livres para constituir e deixar de constituir o matrimônio e o Direito
não pode punir alguém que, por cessado o afeto mantedor da relação, decide
separar-se.
Contudo, se esta separação provocar dano moral a um dos cônjuges e este
for demonstrado, poderá surgir a pretensão indenizatória. É como ensina
Gonçalves: “provado, no entanto, que a separação, provocada por ato injusto do
outro cônjuge, acarretou danos, sejam materiais ou morais, além daqueles já
cobertos pela pensão alimentícia (sustento, cura, vestuário e casa), a indenização
pode ser pleiteada”3.
Assim, entende-se que a só dissolução do matrimônio não fundamenta a
ação indenizatória. Isto porque, quando extinto o afeto, não poderá o direito, por
via indireta, ser contrário à extinção do vínculo matrimonial, muito menos
pretender punir alguma das partes por isto.
Mesmo que a dissolução da sociedade conjugal seja desagradável e
frustrante para algumas pessoas, o dano moral indenizável não decorre da pura e
simples separação, e sim, das situações em que, concomitante a esta, houver
infração grave aos deveres conjugais.
CONCLUSÃO
CAHALI, 2011, p. 589.
GONÇALVES, 2009, p. 66.
3
GONÇALVES, 2009, p. 66.
1
2
203
203
No presente artigo, buscou-se estudar a possibilidade de aplicação do
instituto do dano moral no casamento por infração grave aos deveres conjugais. Ao
observar as peculiaridades do instituto do dano moral, percebeu-se que em face de
um dano e demais pressupostos da responsabilidade civil, surgirá a pretensão de
responsabilização do agente causador do dano.
Nota-se que a admissibilidade da reparação por danos morais consolidouse com a Constituição de 1988, de maneira tal que não restringiu a sua
aplicabilidade, assim, é cabível em todas as relações humanas, inclusive na relação
conjugal.
Diante de todo o exposto e analisado, é possível concluir que, embora o
casamento seja uma relação marcada pelo afeto e por sentimentos mais diversos,
os danos morais decorrentes de violações graves aos deveres dispostos no art.
1566 do Código Civil merecem ser tutelados. Percebe-se que estes deveres são
impostos por lei e visam resguardar o respeito aos compromissos assumidos pelo
matrimônio, o respeito entre os cônjuges, e conseqüentemente, a lisura do
matrimônio.
Ademais,
é
importante
explicar
que
fora
considerado
o
caráter
compensatório e sancionatório da indenização por danos morais, partindo-se do
pressuposto de que esta visa compensar o ofendido, amenizar a tristeza que lhe
fora inflingida injustamente e gerar um desestímulo ao agressor.
Não há, portanto, motivo para imunizar a relação conjugal das regras da
responsabilidade civil. Ao contrário, é razoável que se possa responsabilizar o
cônjuge que ao inobservar a lei e os princípios que regem o casamento, infringir
gravemente os deveres conjugais, bem como compensar o cônjuge que suportou o
dano decorrente da infração.
Os deveres conjugais são extremamente importantes ao casamento,
pilares da própria relação e essenciais à solidez do instituto. Deste modo, carecem
da tutela do Estado, conclamam pela interferência deste no sentido de atribuir
consequências ao seu descumprimento.
Desse modo, no que tange a infração grave ao dever de fidelidade concluise que:
a) cabe o dano moral pela prática de adultério;
b) é admissível a reparação do cônjuge que, por conta da presunção de
paternidade dos filhos havidos no casamento, assume a paternidade de
criança concebida em relação adulterina da esposa;
c) a acusação infundada de adultério legítima o acusado a exigir reparação
pelos danos morais advindos da acusação;
d) muito embora na infidelidade virtual não haja o contato físico este não é
imprescindível à configuração da violação ao dever de fidelidade;
204
204
e) o (a) amante não responde civilmente face ao cônjuge traído, mas se
admita a solidariedade do amante pela maneira maliciosa de agir;
f) nem
todo
caso
de
descumprimento
do
dever
de
fidelidade
gera
indenização, esta dependerá da demonstração do dano em cada caso
concreto.
Quanto a infração grave ao dever de vida em comum, no domicílio conjugal a
pesquisa aponta que:
a) o abandono do lar reveste-se de caráter injurioso e autoriza o pedido de
indenização por dano moral, mas nem todo afastamento do lar pode ser
considerado abandono;
b) o fiel cumprimento do dever de vida em comum, no domicílio conjugal,
quanto ao imperativo “viver juntos”, pode ser afastado em situações
excepcionais, quando houver necessidade, temporaneidade e consenso
entre os cônjuges;
c) no que tange ao débito conjugal, considerou-se o caráter íntimo dessas
relações e entendeu-se por descabida a hipótese de indenização em danos
morais por abstinência sexual;
d) a tentativa forçada de manter relação sexual, ainda que dentro do
casamento, é indenizável.
Sobre a infração grave ao dever de mútua assistência, conclui-se que:
a) tanto em relação a assistência moral quanto a imaterial, a infração pode
provocar danos morais e fazer surgir a pretensão indenizatória;
b) a responsabilidade civil será objetiva em relação ao descumprimento do
dever de assistência material, pois envolve um direito alimentar;
c) a obrigação alimentar não obsta a indenização.
No que tange à infração grave ao dever de sustento, guarda e educação dos
filhos, entende-se que:
a) quando um dos cônjuges se omite, o outro fica sobrecarregado nas
obrigações para com os filhos e terá direito a indenização pelos danos
decorrentes desta sobrecarga;
b) não poderá um dos cônjuges tentar afastar o filho da presença do outro
nem criar embaraços ao cumprimento deste dever, de modo que a pratica
de ato ilícito neste sentido pode ensejar dano moral.
Mediante a exposição revelou-se também, o cabimento do dano moral por
infração grave ao dever de respeito e considerações mútuos, bem como por
205
205
infração aos deveres implícitos, quando houver ofensa à dignidade do outro.
Esclareceu-se ainda que, as sevícias pode ensejar responsabilização.
Conclui-se também que, a dissolução do casamento não é imprescindível à
ação
reparatória
entre
os
cônjuges,
ou
seja,
a
indenização
é
cabível
independentemente da ruptura do vínculo. Por fim, foi exposto que o dano não
ocorre com a simples extinção da sociedade conjugal.
Assim, é necessário que o Direito brasileiro considere a possibilidade de dano
moral no casamento de modo que coíba graves infrações aos deveres conjugais.
Dessa forma, nada impede que novas proposições possam ser oferecidas,
através de novas pesquisas, bem como da análise específica de casos concretos,
quando poderão ser apreciadas novas hipóteses de descumprimento que acarrete
condenação entre cônjuges, de modo a atingir uma aplicação mais coerente das
normas jurídicas.
É preciso esclarecer que, com a característica inovadora e dinâmica das
relações sociais e do direito, não será possível esgotar todas as situações de
descumprimento dos deveres conjugais em que a condenação em danos morais
pode ocorrer, uma vez que o que se defende no presente trabalho é que toda vez
que os deveres conjugais restarem gravemente violados e esta violação gerar
danos, poderá o operador do direito socorrer-se das normas da responsabilidade
civil aplicáveis ao caso.
206
206
REFERÊNCIAS
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violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo
Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 8 ago. 2006. Disponível
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Tribunais, 2011.
209
209
Doutrina
Código de Defesa do Consumidor x Convenção de
Montreal: qual ordenamento jurídico aplicar para garantir
os direitos dos usuários de transporte aéreo internacional
Claudia de Sá Cardoso Schkrab1
Resumo: O artigo enfocará a dificuldade dos aplicadores do direito ao enfrentar a
busca do consumidor brasileiro pelo ressarcimento após sofrer prejuízos
decorrentes de viagens internacionais. O assunto é rico em bibliografia, vez que
trata-se de tema tormentoso que atormenta os jurisconsultos há longa data, razão
pela qual não navegaremos em mares tranqüilos, pelo contrário, sofreremos com
fortes tempestades. Inicialmente, situaremos o leitor no universo jurídico, partindo
do Direito Civil até chegarmos ao embrião do tema: responsabilidade civil do
transportador aéreo. Para isso utilizaremos manuais jurídicos que têm como
objetivo dar uma visão panorâmica e didático-pedagógica da matéria, sob análise.
Não se perquire aprofundamento teórico, vez que nesse ponto estamos
ambientando o leitor ao tema, em sede de direito interno. A doutrina esta dividida
basicamente em duas grandes correntes doutrinárias com entendimentos
antagônicos. Desta sorte, mister se faz estabelecer parâmetros de utilização das
normas, sendo que o utilizado terá como enfoque o direito do usuário. Em um
segundo momento perseguiremos a origem e evolução da responsabilidade civil do
transportador aéreo no âmbito nacional e internacional. O tema não poderia ser
abordado sem esse retrocesso histórico para colocar o leitor no momento da edição
das convenções internacionais possibilitando a compreensão das motivações de
cada ordenamento jurídico que rege a matéria.
Por fim chegaremos ao ponto nodal do trabalho, quando enfrentaremos o conflito
aparente de normas. No final do trabalho apresentaremos a conclusão da pesquisa
e um posicionamento sobre a matéria. A importância do estudo está na
transformação sofrida pela aviação que deixou de ser um luxo da elite da
população, mormente no mundo atual, globalizado, em que as distâncias são
minimizadas.
Palavras-chave:
Direitos
do
passageiro.
internacional.Ordenamento jurídico aplicável
1
210
Transporte
Terceira colocada no concurso de monografias "Aloysio Maria Teixeira”, na categoria acadêmico
210
aéreo
I – INTRODUÇÃO
Esta pesquisa busca definir qual norma será aplicada para disciplinar a
responsabilidade civil no transporte aéreo internacional, através da pesquisa do
posicionamento da doutrina e jurisprudência.
A importância do esclarecimento da dúvida está no fato de que a aviação
com o passar dos anos, transformou-se em um importante meio de transporte de
passageiros, considerado seguro (segundo meio de transporte mais seguro,
perdendo apenas para o elevador) e eficiente, o que atraiu um grande número de
usuários.
Mas, nem sempre foi assim.
No início a aviação era um negócio de risco, com dificuldade para atrair
investidores, por esta razão foram elaborados tratados e convenções internacionais
que protegiam o setor em formação para possibilitar a abertura de mercado.
Em 1929, com o objetivo de uniformizar a regulamentação internacional do
setor, foi editada a Convenção de Varsóvia, que previa indenização restrita aos
usuários.
Em
1999,
em
Montreal,
a
OACI
–
Organização
de
Aviação
Civil
Internacional - um órgão da ONU realizou uma nova convenção que substituiu o
sistema
varsoviano,
caminhando
para
o
equilíbrio
de
interesses
entre
transportadores e usuários.
Hoje, o panorama da aviação aérea internacional é completamente distante
do seu início, transformou-se em um negócio lucrativo, que envolve interesses de
Estados estrangeiros, passageiros de diversas nacionalidades e companhias aéreas
que alcançam várias partes do planeta.
Dessa forma, é mister que se estabeleçam regras a serem utilizadas no
caso de algo no contrato de transporte dar errado.
O primeiro ponto a se definir na busca da solução é determinar qual a
natureza do transporte aéreo, isto é, se o transporte é doméstico ou internacional.
Nesse momento é importante trazer a definição de alguns conceitos
necessários á compreensão da investigação.
Iniciaremos com a definição de contrato de transporte 1 “contrato de
transporte é o contrato pelo qual alguém se vincula, mediante retribuição, a
transferir de um lugar para outra pessoa ou bens.”
1
Pontes de Miranda apud GONÇALVES, Carlos Roberto Aspectos Relevantes do Contrato de Transporte e
da Responsabilidade Civil do Transportador. Revista Autônoma de Direito Privado, Curitiba: Juruá, nº
3, abr./jun.2007, fls.59.
211
211
Pontes de Miranda apud GONÇALVES, Carlos Roberto Aspectos Relevantes
do Contrato de Transporte e da Responsabilidade Civil do Transportador. Revista
Autônoma de Direito Privado, Curitiba: Juruá, nº 3, abr./jun.2007, fls.59.
Por transporte aéreo internacional, temos o artigo 1º, alínea 2ª, da
Convenção de Montreal que estabelece:
“o contratado pelas partes, cujo ponto de partida e destino, haja ou não
interrupção ou transbordo, estejam situados no território de dois Estados
distintos, que sejam participantes da referida Convenção, ou no território de
apenas um Estado, participante da Convenção, desde que prevista escala no
território de qualquer outro Estado, ainda que não seja este integrante da
Convenção.”
A sua caracterização esta no ponto de partida ou destino sejam de países
diferentes.
Assim, através da pesquisa e do estudo da questão pode-se concluir que
há, ainda, uma grande divergência quanto à norma que deve ser aplicada.
Daí advém a necessidade de analisarmos a hierarquia de normas, sua
aplicabilidade e a ponderação de interesses e, por fim chegarmos à conclusão da
pesquisa.
Como primeira questão norteadora temos:
De
que
maneira
a
responsabilidade
civil
do
transportador
aéreo
internacional de passageiros está inserida no Direito Brasileiro?
Inicialmente, iremos nos situar na legislação pertinente, no âmbito interno.
Assim, examinaremos o Direito Civil mais especificamente a responsabilidade civil
contratual, seguindo para a responsabilidade do transportador e alcançando a
responsabilidade civil pelo transporte aéreo internacional de passageiros.
Continuaremos a jornada perguntando:
Qual foi a origem da responsabilidade civil do transportador aéreo e sua
evolução no âmbito nacional e internacional?
O estudo da origem é fundamental para entendermos onde está a ligação
entre os dois ordenamentos jurídicos passíveis de aplicação e posteriormente o
porquê
das
diferentes
correntes
doutrinárias
defenderem
posicionamentos
antagônicos.
No âmbito nacional, a responsabilidade civil pelos danos oriundos da
navegação aérea era regulada pelo Código Civil, em seguida vieram o Código
Brasileiro do Ar de 1938, o novo Código Brasileiro do Ar de 1967, culminando com
o Código Brasileiro de Aeronáutica de 1986, os quais possuem disciplina igual à da
Convenção de Varsóvia.
212
212
A Constituição Federal de 1988, alterou o panorama jurídico nacional
aproximando-o da realidade. As novidades alcançaram a responsabilidade civil do
transportador aéreo.
Desta
forma,
o
sistema
varsoviano
de
responsabilidade
civil
do
transportador aéreo, passou a ser questionado pelos operadores do direito, vez que
para alguns era incompatível com a atual Carta Magna.
No âmbito internacional, temos a convenção de Montreal, cujo papel é de
modernizar os critérios de indenização pré-estabelecido na Convenção de Varsóvia.
Nesse momento da pesquisa seremos capazes de esclarecer o seguinte
questionamento:
Existe um conflito de normas na aplicação da responsabilidade do
transportador aéreo?
Em regra, encontramos conflitos aparentes na legislação interna de um
país. No caso sob exame, a doutrina está dividida em duas correntes com
entendimentos diametralmente opostos.
Assim, a pergunta seguinte só poderia ser: qual o ordenamento jurídico
aplicável? sendo certo que a resposta dependerá de extensa análise das questões
anteriores.
Para alcançar o intento da pesquisa e resolver as questões norteadoras,
deve-se lançar mão de objetivos específicos, alcançados ao longo da construção da
pesquisa.
A pesquisa se justifica pela relevância social, uma vez que cresce a cada
dia o transporte aéreo de passageiros e com o aumento dos vôos, eleva-se também
os riscos corridos pelos usuários.
Nesse caso, a importância do artigo está no fato de que se trata de um
direito de cunho social e aplicação no dia/dia dos usuários, sendo certo que, como
todo direito, é a tradução dos anseios e da realidade social do seu tempo.
Ademais, é importante ressaltar que o acréscimo dos danos aos usuários
geram um número cada vez maior de ações no judiciário, o que por si só já
justificaria o tema do artigo, além do que trata-se de fonte de pesquisa para o
exercício do cargo de assessoria ao órgão julgador da 2ª instância do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, o qual desempenho.
Dentro do universo do transporte aéreo, várias questões podem suscitar
prejuízos para o usuário como: extravio de bagagem, overbooking, atraso ou
cancelamento de vôos, etc.
A aviação, como é cediço, depende das condições meteorológicas e das
condições operacionais dos aeroportos. Fatores adversos decorrentes do clima e
dos equipamentos de auxílio à navegação aérea podem ser determinantes.
213
213
A atividade aeronáutica, atualmente, conta com avançada tecnologia e com
grandes empresas, prestando um de serviço em massa, o que acarreta a
necessidade da proteção destes pelo ordenamento jurídico.
214
214
II – A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO BRASILEIRO
2.1. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Inicialmente devemos compreender o que é a responsabilidade civil e para
tal precisamos de alguns conceitos básicos.
Em singelas palavras, a responsabilidade surge da violação de um dever
jurídico preexistente (obrigação) e gera o dever de reparar o dano.
Ocorre que a responsabilidade civil pode ser contratual ou extracontratual
dependendo se o dever jurídico preexistente violado decorre de contrato ou de lei,
respectivamente.
Na responsabilidade contratual já existe relação jurídica entre as partes, ao
contrário da responsabilidade extracontratual, onde é o fato danoso que estabelece
esse laço, segundo Aguiar Dias1.
A doutrina pondera que é importante diferenciar que, em regra, na
responsabilidade contratual, a culpa é presumida (ou seja, a vítima só tem que
demonstrar o inadimplemento da obrigação), salvo se se tratar de obrigação de
meio em que a culpa será provada, que é a regra na responsabilidade
extracontratual e subjetiva, onde cabe a vítima fazer a prova da culpa.
Sobre responsabilidade civil extracontratual é oportuno trazer a lição do
Des.Sergio Cavalieri Filho2, segundo o qual:
“Sempre que quisermos saber quem é o responsável teremos que identificar
aquele a quem a lei imputou a obrigação, porque ninguém poderá ser
responsabilizado por nada sem ter violado dever jurídico preexistente. ”
2.1.1 ORIGEM
Há controvérsias sobre a origem da responsabilidade contratual, entretanto
a doutrina leciona que foram os juristas franceses, na época da revolução
industrial, os responsáveis pelo seu ressurgimento nos tempos modernos.
Na época eram comuns os acidentes nas indústrias e nos meios de
transporte, devido a falta de preparo para a função.
O objetivo dos juristas franceses foi evitar que as vítimas tivessem que
provar a culpa do empregador ou transportador pautados na pré-existência de uma
relação jurídica entre as partes, onde a obrigação já lhes é conhecida.
1
2
AGUIAR DIAS apud CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004. p.148
Ibid., p. 275
215
215
2.1.2 CONCEITO
O muitas vezes citado Cavalieri, leciona que1 “ é infração a um dever
especial estabelecido pela vontade dos contraentes, por isso decorrente de relação
obrigacional preexistente” e mais a diante completa52 “todas as vezes que o dever
jurídico violado tem a sua fonte em um contrato, em um negócio jurídico pelo qual
o próprio devedor se obrigou, teremos a responsabilidade contratual.”
2.1.3 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Registra o insigne professor Cavalieri que são necessários 3 pressupostos:
a existência de um contrato válido entre o devedor e o credor; a inexecução do
contrato; dano e relação de causalidade entre este e o inadimplemento.
Se o contrato possuir alguma causa de invalidade, não se forma e
consequentemente não produz efeito, não gera obrigação e muito menos
indenização.
Com relação ao segundo requisito, ele está presente porque quando o
devedor descumpre o contrato, faz nascer uma nova obrigação que se coloca no
lugar da primeira. No feliz registro do professor Aguiar Dias 3,“obrigação de reparar
o prejuízo conseqüente à inexecução da obrigação assumida.”
É importante lembrar que o caso fortuito e a força maior afastam a
responsabilidade do devedor, nos termos do artigo 393 do Novo Código Civil.
E por fim, o artigo 403, do Novo Código Civil dispõe que deve existir uma
relação direta e imediata entre a inexecução e o dano.
3.1. RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
3.1.a CONTRATO DE TRANSPORTE
O Código Civil de 1916 não fez referência ao contrato de transporte porque
seu projeto foi elaborado por Clóvis Beviláqua, próximo da virada para o século XX,
quando o transporte coletivo ainda encaminhava.
Em 1912, foi editado o Decreto nº 2.681, mais conhecido como Lei das
Estradas de Ferro, a primeira legislação que tratou da responsabilidade do
transportador.
Inicialmente,
destinava-se
apenas
aos
conflitos
surgidos
no
transporte envolvendo estradas de ferro, porém, em razão da sua atualização para
1
2
3
216
Ibid., p.276.
Ibid., p.278.
AGUIAR DIAS apud CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004. p.281.
216
a época, foi utilizada, analogicamente, para solucionar questões referentes ao
transporte terrestre, até ser revogada pelo Novo Código Civil.
É importante lembrar
que foi
a doutrina francesa que reviveu a
responsabilidade contratual, com o objetivo de facilitar a situação jurídica dos
passageiros já que, não precisa mais provar a culpa do transportador, que possui o
dever de levar o passageiro, são e salvo, ao seu destino.
De acordo com Cavalieri, apesar do artigo 17, do supracitado Decreto, falar
em culpa presumida, a responsabilidade do transportador em relação aos
passageiros era objetiva, vez que não permitia ao transportador provar que não
teve culpa. Só poderia afastar a responsabilidade com as causas de exclusão do
nexo
causal,
sendo
certo
que
se
fosse
culpa
presumida
para
afastar
a
responsabilidade bastaria provar que não agiu com culpa.
Esse é o posicionamento do Novo Código Civil, nos termos do artigo 734.
3.1.1. CARACTERÍSTICAS DO CONTRATO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
Trata-se de contrato de adesão, vez que as cláusulas já estão previamente
definidas quando da aceitação pelo passageiro. É ainda consensual, bilateral,
oneroso, comutativo, não formal e possui cláusula de incolumidade, nos
dizeres de Cavalieri1. 9 Ibid., p.29.
3.1.2. RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR AÉREO
3.1.3 BREVE HISTÓRIA DA AVIAÇÃO
O autor Paulo Henrique de Souza Farias leciona2 que,
no mundo, o primeiro voo com decolagem, em máquina voadora mais
pesada que o ar, com meios próprios e controlado, ocorreu em outubro de
1906, no campo de Bagatelle, na França, com a aeronave chamada 14 bis,
efetuado pelo brasileiro Alberto Santos Dumont.
Mais a frente completa que as primeiras viagens aéreas regulares foram
realizadas durante a primeira Guerra Mundial, pelo
postal.
serviço
de comunicação
3
O transporte aéreo no Brasil teve início em 1927 porém, apenas no período
entre 1940 e 1960 é que houve uma expansão no setor.
1
2
3
CAVALIERI FILHO ,op. cit., p. 294.
FREITAS, Paulo Henrique de Souza. Responsabilidade Civil no Direito Aeronáutico. 1. ed. São Paulo :
Juarez de Oliveira, 2003.p.27.
Ibid., p.29.
217
217
A modernização das aeronaves na década de 60 ajudaram a reduzir os
custos, porém limitou os serviços às cidades maiores. Apenas, a partir de 1975 foi
criado um sistema de transporte regional.
O número maior de aeronaves aliado ao fluxo de viagens aumentou o risco
de acidentes.
O Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, já
falecido, Fernando Celso Guimarãres, aduz que1,
“[...]Nos primórdios da aviação comercial, quando a tecnologia aeronáutica
mal deixara o berço, engatinhando nas pranchetas dos primeiros expertos
da engenharia aérea, para se lançar à aventura das viagens pelos ares, a
elevação do home às alturas, por meio de engenhocas e equipamentos que
até aos menos desavisados pareciam contrariar as leis da natureza, envolvia
riscos de toda ordem, capazes mesmo de desestimularem os espíritos mais
aventureiros. ”
O Departamento de Aviação Civil já divulgou que com um crescimento de
7% ao ano, no transporte aéreo, em 2010 ocorrerá um grave acidente aéreo, a
cada 10 ou 15 dias.
2.2.4. TRANSPORTE AÉREO INTERNO
A responsabilidade civil pelos danos oriundos da navegação aérea era
regulada pelo Código Civil, por força do art. 84 do Decreto nº 16.983, 1925, que
aprovou o primeiro Regulamento para os Serviços Civis de Navegação Aérea. Após,
veio o Código Brasileiro do Ar de 1938 (Decreto-Lei nº 483, de 08.06.1938),
sobreveio o novo Código Brasileiro do Ar de 1967 (Decreto-Lei nº 32, de
18.11.1966), culminando com o Código Brasileiro de Aeronáutica de 1986 (Lei nº
7.565, de 19 de dezembro de 1986), que estabelece no artigo 215 o que é
transporte interno2: “Considera-se doméstico e é regido por este Código todo
transporte em que os pontos de partida, intermediário e de destino estejam
situados em território nacional.”
O artigo 22, XI, da Constituição Federal, estabelece que é privativo à União
legislar sobre trânsito e transporte3.
De acordo com Cavalieri1, o Código Brasileiro de Aeronáutica possui duas
peculiaridades: a presunção
1
2
3
218
GUIMARÃES apud FREITAS, Paulo Henrique de Souza. Responsabilidade Civil no Direito Aeronáutico. 1.
ed. São Paulo : Editora Juarez de Oliveira, 2003.p.133.
UCHÔA, André. Responsabilidade civil do transportador aéreo: tratados internacionais, leis especiais e
código de proteção e defesa do consumidor.Rio de Janeiro: Renovar, 2002.p.13.
FREITAS, Paulo Henrique de Souza. Responsabilidade Civil no Direito Aeronáutico. 1. ed. São Paulo :
Juarez de Oliveira, 2003.p. 96.
218
de responsabilidade não poderá ser elidida por fortuito interno ou externo e
nem em fato exclusivo de terceiro. Apenas a culpa exclusiva do passageiro ou seu
estado de saúde precário podem afastar a responsabilidade do transportador aéreo
nacional.
Nos termos dos artigos 246 e 257, do Código Brasileiro de Aeronáutica, a
responsabilidade é tarifada. A justificativa é a viabilização do serviço aéreo sob
pena de quebra das empresas aéreas.
Cavalieri sustenta que o Código de Defesa do Consumidor derrogou esses
dispositivos vez que essas empresas são prestadoras de serviço público, logo tem
responsabilidade objetiva integral (artigo 22 e § único do Código de Defesa do
Consumidor) e devem respeitar o regime de indenização integral previsto nos
artigos 6º, I e VI, 25 do Código Consumerista.
O mestre, mais adiante sustenta que, o Código de Defesa do Consumidor é
posterior ao Código Brasileiro de Aeronáutica e por serem ambas leis nacionais o
primeiro deve prevalecer. Ademais, continua o professor 2.
“ [...]ao assim fazer, disciplinou não só aquilo que ainda não estava
disciplinado como, ainda, alterou a disciplina que já existia em leis especiais,
vale dizer concentrou em um único diploma a disciplina legal de todas as
relações contratuais e extracontratuais do mercado de consumo brasileiro.”
É importante lembrar que nos casos de dolo ou culpa grave do
transportador, dispõe o artigo 248, do Código Brasileiro de Aeronáutica que a
responsabilidade deixa de ser limitada e passa a ser regida pelo direito comum.
2.2.5 TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL
2.2.5.1.CONCEITO
O Código Brasileiro de Aeronáutica, estabelece no artigo 1º3,
“O Direito Aeronáutico é regulado pelos tratados, Convenções e Atos
Internacionais de que o Brasil seja parte, por este Código e pela legislação
complementar.”
Juan A. Lena Paz4, conceitua Direito aeronáutico internacional,
“Como o que pode ser caracterizado pelo conjunto de normas
convencionadas pelos Estados, para dar regras à navegação aérea
internacional e às relações jurídicas, públicas e privadas.”
O aludido mestre leciona que5,
1
2
3
4
5
op. cit., p. 326
Ibid, p.327.
FREITAS, Paulo Henrique de Souza. Responsabilidade Civil no Direito Aeronáutico. 1. ed. São Paulo :
Editora Juarez de Oliveira, 2003.p.54.
PAZ apud FREITAS, Paulo Henrique de Souza. Responsabilidade Civil no Direito Aeronáutico. 1. ed. São
Paulo : Editora Juarez de Oliveira, 2003.p37.
Ibid, p.38
219
219
Considera-se "transporte aéreo internacional" o contratado pelas partes,
cujo ponto de partida e destino, haja ou não interrupção ou transbordo,
estejam situados no território de dois Estados distintos, que sejam
participantes da referida Convenção, ou no território de apenas um Estado,
participante da Convenção, desde que prevista escala no território de
qualquer outro Estado, ainda que não seja este integrante da Convenção
(art. 1º, alínea 2ª da Convenção de Montreal).
Há duas correntes sobre à validade dos tratados internacionais. A primeira
é a corrente dualista segundo a qual só se aplica o Direito internacional, quando
recepcionado no Direito interno. Não existe conflito vez que não são diferentes.
Já a teoria monista, defende um sistema único e se divide em 3 correntes:
nacionalistas, que defendem a hierarquia superior do direito interno em razão da
Constituição Federal.
Os internacionalistas são da opinião contrária devendo prevalecer a norma
internacional sob pena de descrédito do Estado.
Por
fim
os
jusnaturalistas
que
pregam
o
desprezo
de
ambos
os
ordenamentos em prol do Direito natural.
2.2.5.2. EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO
No início da aviação, havia muita resistência por parte dos investidores em
função dos riscos que a nova atividade oferecia. Por essa razão foram elaborados
tratados e convenções internacionais, para possibilitar a abertura do promissor
mercado.
- Convenção de Varsóvia
Em
1929,
responsabilidade
foi
das
elaborada
empresas
a
Convenção
aéreas,
com
o
de
Varsóvia,
objetivo
de
pioneira
na
uniformizar
a
regulamentação internacional do setor, consagrou um sistema de responsabilidade
civil limitada, responsabilidade contratual subjetiva das empresas transportadoras,
com culpa presumida e inversão do ônus da prova.
O Sistema de Varsóvia tinha como cerne a indenização célere, mas
limitada, superável, apenas quando houvesse dolo ou culpa grave. Foi criado para
atenuar a responsabilidade e a carga indenizatória do transportador. Proteção ao
setor e não ao usuário
Os prejuízos, devem ser indenizados de acordo com os limites constantes
da tabela de valores pré-determinada pelos tratados internacionais, salvo se
comprovar caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima .
220
220
Após a Segunda Guerra Mundial houve um aumento do transporte aéreo
internacional
e
consequentemente
de
acidentes.
Surgiu
a
necessidade
da
atualização dos valores indenizatórios do Sistema de Varsóvia.
Os EUA denunciaram, em 1965, a Convenção de Varsóvia. Foi o primeiro
cisma do Sistema de Varsóvia. Em seguida aconteceram outras reações.
O sistema de Varsóvia sofreu várias emendas, dentre elas o Protocolo de
Haia, em 1955 e o Protocolo de Guatemala, de 1971, seguidos pelos protocolos
Adicionais de Montreal nos 1, 2, 3 e 4 de 1975, os quais converteram o FrancoOuro ou Poincaré para os Direitos Especiais de Saque (moeda escritural criada pelo
FMI, utilizada como reserva dos Estados), culminando com a Convenção de
Montreal, em 28 de maio de 1999.
- Convenção de Montreal
Em 28 de Maio de 1999, reunidos na sede da Organização de Aviação Civil
Internacional (OACI), em Montreal, 582 representantes de 118 Estados e 11
organizações internacionais preparavam-se para a Convenção para a Unificação de
Certas Regras para o Transporte Aéreo Internacional com o objetivo (art. 55 e em
seu preâmbulo) de modernizar e consolidar os diversos instrumentos integrantes do
Sistema de Varsóvia, através da adoção de um instrumento único, uniforme e
passível de ratificação.
Só poderia entrar em vigor no sexagésimo (60º) dia a contar do depósito
do trigésimo (30º) instrumento de ratificação pelos Estados (art. 53).
Vale lembrar que a nova legislação só entrou em vigor, no Brasil, após ser
promulgada pelo Decreto 5.910, de 27 de setembro de 2006 só podendo ser
aplicada quando ratificada pelos países de origem e de destino do vôo. Caso
contrário, vale o Sistema de Varsóvia.
- Da responsabilidade civil do transportador na convenção de Montreal
- Inovações:
Entre as inovações da Convenção de Montreal, destaca-se a criação do
sistema dúplice de responsabilidade, além da modificação do critério de avaliação,
no caso do extravio de bagagens
Assim nos casos de morte ou lesão corporal, a responsabilidade do
transportador é considerada objetiva até o limite de US$ 120.000. Na parte que
superar esse valor, é subjetiva.
Assim a convenção de Montreal simplificou e modernizou os documentos de
transporte; aumentou os limites de responsabilidade em caso de atraso no
transporte de passageiros destruição, perda ou atraso no transporte de; criou um
221
221
mecanismo automático para a revisão de limites; estabeleceu o pagamento
adiantado em caso de acidente, para assistência imediata, em conformidade às
exigências da lei nacional, dedutível do quantum outorgado a posteriori a título de
indenização;
- Benefícios para o usuário:
Atualizou os limites de responsabilidade civil, com a aceitação de revisões
periódicas;
permitiu a
estipulação contratual
de limites mais elevados de
compensação ou, até mesmo de responsabilidade ilimitada, e possibilitou a
antecipação de pagamentos compensatórios às vítimas de sinistros aéreos.
Outra inovação da Convenção de Montreal é a previsão de dois níveis de
compensações. Um é o pagamento compulsório, que deve ser feito imediatamente
depois do acidente, mediante comprovação dos danos -- ao contrário do que
acontece hoje, quando qualquer quantia só é paga mediante demanda judicial ou
quando a empresa operadora concorda em pagar o valor acordado entre as partes.
O segundo nível de indenização se baseia na presunção de culpa da transportadora,
sem que haja limite de responsabilidade.
A Convenção de Montreal também inova quanto às jurisdições nas quais
poderão tramitar os processos. Pelas regras que ainda vigoram no Brasil, as vítimas
e respectivas famílias só podem recorrer na jurisdição onde residem, desde que a
empresa aérea opere no local.
Pelo novo sistema, a nacionalidade do passageiro não importa para fins de
fixação dessa jurisdição, mas, sim, o local de sua residência ou domicílio no
momento do acidente. Além disso, também serão considerados para efeito de
jurisdição o local do domicílio da empresa aérea, o local da matriz ou filial da
empresa; local de contratação do bilhete de passagem e, finalmente, o local de
destino do vôo contratado pela vítima do sinistro.
2.2.6 CONFLITO APARENTE DE NORMAS
O
Brasil
ratificou
os
diversos
tratados
internacionais
acerca
da
responsabilidade civil do transportador aéreo, internalizando suas disposições
mediante publicação de Decreto presidencial.
No entanto normas legislativas internas foram criadas limitando, e até
retirando, privilégios outorgados pela normatização internacional, mediante a
expansão dos direitos da parte vulnerável da relação jurídica de consumo.
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor - CDC (Lei nº 8.078/1990),
editado em observância ao direito fundamental consagrado no art. 5o, XXXII da
Carta Constitucional, consagrou o princípio da restitutio in integrum (reparação
222
222
integral dos danos sofridos), calcada na responsabilidade objetiva (independente de
culpa, bastando a demonstração do nexo de causalidade entre o serviço prestado e
o dano ocasionado), sempre que houver prejuízos decorrentes de uma relação de
consumo.
Isso acabou por gerar um aparente conflito de normas entre os regimes
jurídicos interno (CDC) e internacional (Convenção de Montreal), no que se refere à
responsabilidade
civil
consumerista. Passou
do
a
transportador
aéreo
comunidade jurídica a
decorrente
de
uma
relação
questionar a incidência da
Convenção Internacional ou do diploma interno de proteção e defesa do consumidor
, havendo posição de ambos os lados. Na realidade, não se discute a supremacia de
uma norma sobre outra, e sim a aplicabilidade da norma nacional mais recente
naquilo que for contrária ao tratado, ou a sua aplicabilidade de forma subsidiária à
norma internacional, no que esta for vaga.
Paulo Henrique de Souza Freitas já definia que a maior divergência
existente sobre o tema está em se estabelecer se será aplicada as Convenções
Internacionais, o Código Brasileiro de Aeronáutica, o Código Civil ou o Código de
Defesa do Consumidor.
Sustentam os defensores da aplicabilidade do Código Cosumerista que a
indenização limitada dos tratados são inconstitucionais vez que impõem um risco
não criado ao consumidor. Antonio Herman V.Benjamin, citado por Paulo Henrique
de Souza Freitas, disciplina que,
“[...] no que tange a limitação da responsabilidade civil, tanto a Convenção,
como o Código Brasileiro de Aeronáutica padecem de doença incurável,
posto que de fundo constitucional. O resultado é que havendo relação
jurídica de consumo, o Código de Defesa do Consumidor aplica-se,
inteiramente, ao transporte aéreo, doméstico ou internacional, na medida
em que, tacitamente (por incompatibilidade) – (Lei de Introdução ao Código
Civil, art.2º, inc. 1º)revogou ele os privilégios estatutários da indústria,
principalmente quando garante, como direito básico do consumidor a efetiva
prevenção e reparação dos danos patrimoniais e morais, individuais,
coletivos e difusos.”
Nessa linha, é imprescindível trazer à colação o Informativo nº525,
referente ao Recurso Especial nº 1.202.013, de São Paulo, Relatora Ministra Nancy
Andrighi, julgado em, 18 de junho de 2013, bem como o Informativo nº 0490
referente ao Recurso Especial nº1.281.090, de São Paulo, Relator Ministro Luis
Felipe Salomão, julgado em, 07 de fevereiro de 2012 ambos, pelo Superior Tribunal
de Justiça, in verbis:
Terceira Turma
DIREITO DO CONSUMIDOR. PRAZO DE PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DE
RESSARCIMENTO POR DANOS DECORRENTES DA QUEDA DE AERONAVE.
É de cinco anos o prazo de prescrição da pretensão de ressarcimento de
danos sofridos pelos moradores de casas atingidas pela queda, em 1996, de
aeronave pertencente a pessoa jurídica nacional e de direito privado
prestadora de serviço de transporte aéreo. Isso porque, na hipótese,
verifica-se a configuração de um fato do serviço, ocorrido no âmbito de
relação de consumo, o que enseja a aplicação do prazo prescricional previsto
no art. 27 do CDC. Com efeito, nesse contexto, enquadra-se a sociedade
223
223
empresária no conceito de fornecedor estabelecido no art. 3º do CDC,
enquanto os moradores das casas atingidas pela queda da aeronave,
embora não tenham utilizado o serviço como destinatários finais,
equiparam-se a consumidores pelo simples fato de serem vítimas do evento
(bystanders), de acordo com o art. 17 do referido diploma legal. Ademais,
não há dúvida de que o evento em análise configura fato do serviço, pelo
qual responde o fornecedor, em consonância com o disposto do art. 14 do
CDC. Importante esclarecer, ainda, que a aparente antinomia entre a Lei
7.565/1986 — Código Brasileiro de Aeronáutica —, o CDC e o CC/1916, no
que tange ao prazo de prescrição da pretensão de ressarcimento em caso de
danos sofridos por terceiros na superfície, causados por acidente aéreo, não
pode ser resolvida pela simples aplicação das regras tradicionais da
anterioridade, da especialidade ou da hierarquia, que levam à exclusão de
uma norma pela outra, mas sim pela aplicação coordenada das leis, pela
interpretação integrativa, de forma a definir o verdadeiro alcance de cada
uma delas à luz do caso concreto. Tem-se, portanto, uma norma geral
anterior (CC/1916) — que, por sinal, sequer regulava de modo especial o
contrato de transporte — e duas especiais que lhe são posteriores
(CBA/1986 e CDC/1990). No entanto, nenhuma delas expressamente revoga
a outra, é com ela incompatível ou regula inteiramente a mesma matéria, o
que permite afirmar que essas normas se interpenetram, promovendo um
verdadeiro diálogo de fontes. A propósito, o CBA regula, nos arts. 268 a
272, a responsabilidade do transportador aéreo perante terceiros na
superfície e estabelece, no seu art. 317, II, o prazo prescricional de dois
anos da pretensão de ressarcimento dos danos a eles causados. Essa norma
especial, no entanto, não foi revogada, como já afirmado, nem impede a
incidência do CDC quando evidenciada a relação de consumo entre as partes
envolvidas. Destaque-se, por oportuno, que o CBA não se limita a
regulamentar apenas o transporte aéreo regular de passageiros, realizado
por quem detenha a respectiva concessão, mas todo serviço de exploração
de aeronave, operado por pessoa física ou jurídica, proprietária ou não, com
ou sem fins lucrativos. Assim, o CBA será plenamente aplicado, desde
que a relação jurídica não esteja regida pelo CDC, cuja força
normativa é extraída diretamente da CF (art. 5º, XXXII). Ademais,
não há falar em incidência do art. 177 do CC/1916, diploma legal reservado
ao tratamento das relações jurídicas entre pessoas que se encontrem em
patamar de igualdade, o que não ocorre na hipótese. REsp 1.202.013-SP,
Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/6/2013.
Quarta Turma
RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE AÉREO. PRESCRIÇÃO. CONFLITO
ENTRE O CBA E O CDC
In casu, busca-se saber qual o prazo de prescrição aplicável à pretensão
daquele que alegadamente experimentou danos morais em razão de
acidente aéreo ocorrido nas cercanias de sua residência. Em 2003, a
recorrida ajuizou ação objetivando indenização por danos morais contra a
companhia aérea ora recorrente, noticiando que, em 1996, o avião de
propriedade desta caiu a poucos metros de sua casa. Alegou que o acidente
acarretou-lhe incapacidade para continuar trabalhando em seus afazeres
domésticos durante longo período, em razão do abalo psicológico gerado
pelo acidente. O juízo singular julgou extinto o feito com resolução de
mérito, ante o reconhecimento da prescrição, aplicando ao caso o prazo
bienal previsto no art. 317, II, do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA). O
tribunal de justiça aplicou a prescrição vintenária prevista no CC/1916,
anulando a sentença e determinando novo julgamento. Sobreveio o REsp, no
qual sustenta a recorrente, em síntese, omissão no acórdão recorrido e
prescrição da pretensão indenizatória do autor, seja pela aplicação do prazo
bienal previsto no CBA seja pela aplicação quinquenal prevista no CDC. A
Turma entendeu que não se aplica o prazo geral prescricional do CC/1996,
por existirem leis específicas a regular o caso, entendimento sufragado no
REsp 489.895-SP. Apesar de o terceiro – vítima do acidente aéreo – e o
transportador serem, respectivamente, consumidor por equiparação e
fornecedor, o fato é que o CDC não é o único diploma a disciplinar a
responsabilidade do transportador por danos causados pelo serviço
prestado. O CBA disciplina também o transporte aéreo e confere especial
atenção à responsabilidade civil do transportador por dano tanto a
passageiros quanto a terceiros na superfície. Não obstante isso, para além
da utilização de métodos clássicos para dirimir conflitos aparentes entre
normas, busca-se a força normativa dada a cada norma pelo ordenamento
constitucional vigente, para afirmar que a aplicação de determinada lei – e
não de outra – ao caso concreto é a solução que melhor realiza as diretrizes
insculpidas na lei fundamental. Por essa ótica hierarquicamente
superior aos métodos hermenêuticos comuns, o conflito entre o CDC
224
224
e o CBA – que é anterior à CF/88 e, por isso mesmo, não se
harmoniza em diversos aspectos com a diretriz constitucional
protetiva do consumidor – deve ser solucionado com prevalência
daquele (CDC), porquanto é a norma que melhor materializa as
perspectivas do constituinte no seu desígnio de conferir especial
proteção ao polo hipossuficiente da relação consumerista. Assim, as
vítimas de acidentes aéreos localizadas em superfície são
consumidores por equiparação (bystanders), devendo ser a elas
estendidas as normas do art. 17 do CDC, relativas a danos por fato
do serviço. De qualquer modo, no caso em julgamento, a pretensão da
autora está mesmo fulminada pela prescrição, ainda que se aplique o CDC
em detrimento do CBA. É que os danos alegadamente suportados pela
autora ocorreram em outubro de 1996, tendo sido a ação ajuizada somente
em maio de 2003, depois de escoado o prazo de cinco anos a que se refere
o art. 27 do CDC. Diante dessa e de outras considerações a Turma deu
provimento ao recurso. Precedente citado: REsp 489.895-SP, DJe
23/4/2010. REsp 1.281.090-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado
em 7/2/2012.
Cumpre destacar que o artigo 7º do Código de Defesa do Consumidor 1
estabelece que os tratados ou convenções internacionais só serão aplicáveis quando
aumentam os direitos dos consumidores nunca para suprimi-los.
Antes do advento da Convenção de Montreal (1999) existia ainda o
argumento de que os tratados ao serem ratificados possuem força de lei ordinária
podendo ser revogado por lei posterior. In casu, o Código de Defesa do
Consumidor, que é de 1990, teria revogado à Convenção de Varsóvia/Haia
respectivamente de 1929 e 1955.
A professora Cláudia Lima Marques, confirma que não existe mais a
superioridade do Tratado sobre a Constituição e leciona que o conflito entre a lei
interna e externa continua.
O mestre Eduardo Arruda Alvim elenca que fazem parte dessa corrente
Nelson Nery Jr.,Rosa Maria B.B. de Andrade Nery, Antônio Herman V. Benjamin e
Carlos Roberto Gonçalves.
Defendendo posição diametralmente oposta
Luis Camargo Pinto de
Carvalho aponta que os povos cultos limitam a responsabilidade do transportador
aéreo por tratados internacionais. Ademais, trata-se de lei (Código Brasileiro de
Aeronáutica) especial.
Este também é o entendimento de José da Silva Pacheco, segundo o qual o
tratado prevalece sobre a lei interna.
Art. 7º - Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções
internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos
expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios
gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.
Parágrafo único - Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação
dos danos previstos nas normas de consumo.
1
225
225
Arnaldo Susseking, Ricardo Alvarenga e José Gabriel Assis de Almeida, por
sua vez defendem a preponderância do Direito internacional sobre o Direito
nacional sendo que o último aduz que,
“[...] só é possível haver transporte aéreo internacional no Brasil porque o
Estado Brasileiro subscreveu e ratificou a Convenção de Varsóvia e outros
tratados internacionais que disciplinam o tráfico aéreo internacional, e
assim, comprometeu a respeitar esses tratados, e por isso... o Brasil não é
livre ( como não o são os demais Estados signatários) para regular
diferentemente do estabelecido nesses tratados, a matéria da
responsabilidade civil emergente de transporte aéreo internacional.”
O Código de Defesa do Consumidor não pode ser aplicado a fato ocorrido
no estrangeiro. Para o aludido autor o Código Brasileiro de Aeronáutica só será
aplicado na omissão da convenção.
Para esses autores o país que adere a um tratado internacional, está
obrigado a cumpri-lo sob pena de por em risco a subsistência da navegação aérea e
conseqüente responsabilidade na esfera internacional.
Outro argumento utilizado a favor da limitação é que o risco deve ser
repartido com o usuário, sendo certo que trata-se de pessoa de condição
econômica privilegiada que aceita o risco em troca da velocidade do transporte.
Elio Monnerat Solon Pontes1 19, afirma que,
“[...]
é lamentável que, por inadvertência ou sumário desconhecimento, a
Suprema Corte de qualquer país se aventure a sobrepor-se à ordem jurídica
internacional, mediante a banalização de normas de caráter internacional
livre, consciente, formal e espontaneamente acolhidas pelos poderes
constituídos competentes e incorporadas definitivamente, ao direito positivo
de qualquer país, admitido sua derrogação ou abrogação sem prévia
denúncia dos atos de que se originam.”
Para Paulo Henrique de Souza Freitas, não há inconstitucionalidade no
tratado que limita a indenização no transporte aéreo vez que decorrente de acordo
bilateral de vontade entre passageiro e transportador aéreo. Ademais, com a
responsabilidade limitada o transportador aéreo pode programar-se para eventuais
indenizações.
Antes do advento da Convenção de Montreal (1999) o posicionamento dos
juristas do Direito aeronáutico era de que o critério correto a ser adotado era o da
especificidade, vez que o Código de Defesa do Consumidor, é norma de caráter
geral ao passo que os tratados são normas especiais. Dessa forma, norma geral
não revoga norma especial.
1
226
PONTES apud FREITAS, Paulo Henrique de Souza. Responsabilidade Civil no Direito Aeronáutico. 1. ed.
São Paulo : Editora Juarez de Oliveira, 2003.
226
Atualmente, vários desses argumentos não podem mais ser utilizados vez
que a Convenção de Montreal é posterior ao Código de Defesa do Consumidor.
Apesar disso, prevalece a aplicação do Código Consumerista sob o fundamento de
que este foi editado em observância a direito fundamental consagrado no artigo 5º,
XXXII, da Constituição da República. Ademais, a indenização limitada, mantida na
Convenção
de
Montreal
é inconstitucional
por
impor
risco
não
criado
ao
consumidor. Não se pode esquecer do artigo 7º do Código do Consumidor.
Ademais, o argumento do risco repartido não tem mais lugar no mundo de
conglomerados das empresas aéreas.
Não se pode olvidar que a proteção e a defesa do consumidor são
princípios constitucionais, que afastam a hipótese de aplicação da responsabilidade
limitada.
Cumpre ressaltar que o Egrégio Supremo Tribunal Federal tem interpretado
a questão do aparente conflito de normas de forma a atribuir ao transportador
aéreo a responsabilidade objetiva, não suprimindo nem mesmo as hipóteses de
caso fortuito e força maior. Igualmente, tem adotado o princípio da reparação na
extensão integral do dano sofrido, consagrando a aplicação do Código de Defesa do
Consumidor aos casos de responsabilidade civil do transportador aéreo e afastando
a Convenção de Montreal, em relação ao tema.
Segundo entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal no RE
nº 80.004/SE, a Constituição da República se sobrepõe aos tratados e convenções
ratificados pelo Brasil, os quais se integram ao ordenamento jurídico pátrio com a
mesma força de leis infraconstitucionais.
Desta forma, a convenção de Montreal é incompatível com o regime de
defesa e proteção do consumidor instituído pela constituição.
Com relação à jurisprudência, os Tribunais dos Estados já viam aplicando o
Código de defesa do consumidor . No STJ, havia divergência jurisprudencial entre a
3ª e 4ª turmas, que formam a 2º Seção de Direito Privado.
A 3ª Turma já decidia no sentido da aplicação do Código de defesa do
consumidor. O STJ, manifestou entendimento confirmando a aplicação do Código
consumerista 36
O mundo mudou, razão pela qual devemos olhar novamente para as
companhias aéreas e afastar a imagem da ousadia dos primeiros inventores. Hoje
vemos conglomerados econômicos e empresas lucrativas, ao passo que vai longe o
tempo em que era compreensível admitir a divisão do prejuízo com o passageiro.
CONCLUSÃO
A primeira questão norteadora (De que maneira a responsabilidade civil do
transportador
aéreo
internacional
de
passageiros
está
inserida
no
Direito
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Brasileiro?)
foi
abordada
através
do
panorama
apresentado
no
tópico
Responsabilidade civil e o Direito Brasileiro, onde conceituamos a responsabilidade
civil e a dividimos em contratual e extracontratual, tendo sido apresentada a
origem e seus pressupostos . Após, aprofundamos para a responsabilidade do
transportador, relembrando o que é o contrato de transporte de passageiros e quais
são suas características para finalmente chegarmos na responsabilidade do
transportador aéreo. Antes, porém foi apresentada a história da aviação e da
legislação brasileira sobre o tema.
Neste ponto respondemos a segunda questão norteadora: Qual foi a
origem da responsabilidade civil do transportador aéreo e sua evolução no âmbito
nacional e internacional?
Com a terceira questão (Existe um conflito de normas na aplicação da
responsabilidade do transportador aéreo?) caminhamos para o ápice do trabalho.
Apresentamos as duas correntes que abordam o tema e, por fim, nos
posicionamos pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor, mesmo após a
assinatura da Convenção de Montreal, sob o fundamento da base constitucional do
Código, aliado a inconstitucionalidade da indenização limitada, com fulcro no artigo
7º, do Código Consumerista. O Código Consumerista é o diploma mais adequado à
realidade atual e à linha principiológica constitucional brasileira, na medida em que
expande os direitos da parte vulnerável na relação jurídica de consumo, restando
afastada, por conseguinte, a aplicação das ultrapassadas normas internacionais, no
que se refere à responsabilidade civil do transportador aéreo.
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REFERÊNCIAS
CAVALCANTI, André Uchôa. Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo:
tratados internacionais, leis especiais e Código de Proteção e Defesa do
Consumidor. 1.ed.Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004.
FREITAS, Paulo Henrique de Souza. Responsabilidade Civil no Direito Aeronáutico.
1. ed. São Paulo : Editora Juarez de Oliveira, 2003.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Aspectos Relevantes do Contrato de Transporte e da
Responsabilidade Civil do Transportador. Revista Autônoma de Direito Privado,
Curitiba: Juruá, nº 3, abr./jun.2007.
PACHECO, José da Silva. Da nova Convenção sobre o Transporte Aéreo
Internacional de 28 de maio de 1999.Revista Brasileira de Direito Aéroespacial . Rio
de Janeiro: Disponível em WWW.sbda.org.br.Acesso em 12 jan,2009.
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