Os três caminhos do novo presidente
Ricardo Seitenfus
Resumem-se em três as opções que apresentam-se para o exercício do
poder do novo governo : a « gaúcha », a « chavista » e a « democrática ». É
certo que a dimensão da extraordinária vitória pessoal de Lula, como enfatiza
o realista José Dirceu, foi maior do que o PT e transcendeu a esquerda. Mas os
números das urnas são inequívocos e indicam que além de não dispor da
maioria no Parlamento, o Presidente enfrenta uma oposição que recolheu a
quase totalidade dos governos estaduais.
Estas
condições
adversas
impõem
uma
escolha
difícil
ao
novo
Mandatário. Como governar e estar à altura das promessas e compromissos
assumidos, se as condições impostas pelo eleitor são contraditórias e
inviabilizam o exercício efetivo do poder no plano federal ?
O primeiro caminho possível seria repetir a experiência do PT na
administração gaúcha que ora finda. Ela seria marcada pela escolha de uma
equipe coesa, originária de setores claramente ideológicos em detrimento de
outros mais abertos e, sobretudo, a aplicação de uma estratégia de
enfrentamento com os derrotados e seus aliados. Nesta situação, haveria
dupla rejeição : por um lado, dentro do próprio PT, elas não seriam
contempladas
com
responsabilidades
governamentais
e,
por
outro,
externamente, a oposição, majoriária no Congresso, seria menosprezada em
seu papel de representante de uma parte ponderável do eleitorado.
O maniqueísmo desta visão simplista dividiria politicamente a sociedade
em uma guerrilha verbal sem fim, onde a visão « bushiana » do Bem e do Mal
sobreporia-se à racionalidade e ao espírito público. Assim, os acertos
administrativos do governo gaúcho foram suplantados pelos erros políticos
cometidos, tendo como conseqüência a derrota eleitoral de outubro.
A segunda via possível consistiria na imitação do populismo chavista. O
raciocínio é lógico e desdobra-se em duas fases. Num primeiro momento,
aproveitando o calor da vitória, muda-se a Constituição com o apoio do
eleitorado, manobra facilitada pela desorganização e inércia da oposição.
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Apresentada como entrave à realização da vontade popular, a Constituição
seria moldada à imagem do Presidente. Não olvidemos que o auto-golpe e a
ditadura constitucional integram o impressionante arsenal político latinoamericano.
Num momento posterior, frente à reorganização de uma oposição
conduntente, seria feito um apelo à pressão das ruas. Este chamamento ao
protagonismo popular se materializaria por
manifestações, comícios e
passeatas consideradas como demonstrações de uma democracia viva e
participante.
A
violência
ocuparia
seu
espaço
e
o
adversário
politico
transformar-se-ia no inimigo que deve ser abatido. Ante-sala de todos os
perigos, em particular do maior entre eles, a guerra civil, o apelo ao auxílio do
povo foi tentado, inutilmente, em nossa história recente, por Jânio e Jango.
Dividido entre a frustração gaúcha e o perigo venezuelano, o Presidente
Lula escolheu uma via inovadora e surpreendente para muitos : o caminho da
democracia e do diálogo. Tal escolha reflete-se na formação de seu gabinete,
que vai além da simples engenharia politica. Ela alcança o patamar superior do
interesse do Estado, contemplando, ao mesmo tempo, a expectativa de seu
amplo leque eleitoral. Neste sentido, o primeiro mandatário age como
estadista, não fazendo o tradicional corte entre a estatégia utilizada para
vencer as eleições e a aplicada para o exercício do poder.
Qualquer uma das outras alternativas comprometeria fatalmente o futuro
do projeto petista. Por essa razão, enganam-se aqueles que apontam a
« grande mudança » do discurso do PT. Muito aquém de seu programa, se o
novo governo reduzir a corrupção e a promiscuidade público/privado, se for
eficiente nas políticas sociais, se consolidar canais permanentes de participação
da sociedade civil organizada, e se reformular a política externa brasileira, já
estará lançando as bases da consagração do projeto petista num futuro
próximo, com muito maiores chances de realizar as reformas de fundo que
almeja.
Claro está que Lula não pode chamar a todos os setores para compor o
governo. A imperiosa necessidade do dissenso define os limites da estratégia
escolhida pois não existe democracia sem oposição. Todavia, isso não impede
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que personalidades marcadas pela sua atuação pública e não integrantes de
setores onde a política fez-se profissão, venham compor o ministério.
Algumas figuras extraordinárias da inteligência, da dedicação à causa
pública e do empreendendorismo brasileiros como Luiz Fernando Furlan,
Marina
Silva,
Celso
Amorim,
Henrique
Meirelles
e
Roberto
Rodrigues,
constituem unanimidade entre todos aqueles que percebem que os interesses
da administração do país encontram-se além dos embates movidos pelos
espíritos de capela e pelos conchavos partidários.
O fato de que tais figuras emblemáticas estão dispostas à contribuir para
que surjam novos tempos compensa a aridez do caminho. Certamente a trilha
escolhida é a mais íngreme e a que apresenta as maiores dificuldades. No
entanto, ela é fiel ao que nós, eleitores, esperávamos que trilhasse, pois é a
única que, ao espelhar com fidelidade a vontade das urnas, concede condições
objetivas para enfrentar os graves problemas nacionais.
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 54, doutor em relações internacionais pelo Instituto de
Altos Estudos Internacionais, Genebra. Professor titular da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor, entre outros, do Manual das
Organizações Internacionais, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003, 3a. edição.
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