Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Gestão de crises na esfera governamental: nada a repetir, a não ser inteligência, empenho e bom senso Márcio de Matos Souza "No regime democrático, todo partido devota todas as energias para demonstrar que os demais partidos não têm competência para governar. E todos eles estão certos." Henry Louis Mencken As Relações Públicas, como outras atividades, padecem de um mal crônico: a aplicação, por parte de seus agentes, de modelos estanques, muitas vezes limitados, para todas as situações que se apresentam. Chama a atenção, por exemplo, a utilização de alguns "paradigmas" para o gerenciamento de crises no âmbito das RRPP Governamentais. Atualmente, o Brasil vem passando por uma séria crise política e, não raro, a imprensa, a oposição e até mesmo alguns aliados têm apontado falhas gritantes na estratégia governista de administração da controvérsia. É impossível não admitir que, para a percepção pública média, a atuação do Planalto tem se revelado lenta e, em alguns momentos, até atabalhoada. Todavia, ao propor soluções para essa conjuntura, precisamos levar em conta o seguinte: não é prudente aplicar à esfera governamental a conceituação corrente "do que sempre devemos fazer para enfrentar uma crise". Primeiro ponto a se considerar: qualquer governo democrático se estabelece dentro do contexto das disputas partidárias. Esta razão, por si só, imprime características muito peculiares à forma de se reagir a situações de crise políticas (gerir). É ingênuo supor que uma instância de poder deve ceder a toda exigência que emana de outra esfera política constituída. Ou seja, como já se disse muito por aí, um governo não pode fazer o "jogo da oposição" o tempo todo (grosso modo, entenda-se por "jogo da oposição" explicar publicamente qualquer denúncia - mesmo infundada - que aparecer). Nas situações de crise política, por sua vez, não só a oposição exerce pressão sobre o governo. A sociedade desempenha papel determinante e a imprensa, como poder paralelo e instrumental dos cidadãos para vigiar a ação política, tem função indispensável, embora também precise ser legitimada pela opinião pública. 1 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Sublinhei a palavra legitimada propositalmente. Construir legitimação consiste, dentre outras coisas, em contornar controvérsias que comprometam moralmente uma organização e que possam servir para arrebatar - ou manipular - a massa. A imprensa, no entanto, não está acima do bem e do mal, pois nela também coexiste o conflito público X privado. Aqui, é válido ressaltar o brilhante raciocínio do jornalista Walter Falceta Jr, em seu artigo "Como assassinar um presidente sem derramar sangue", publicado na edição 342 do Observatório da Imprensa (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod= 342JDB003). Nele, o autor discute a atuação da mídia na desconstrução da imagem de Lula. "Se o mandatário exibe humildade, é fraco. Se mostra determinação, é arrogante. Se aceita, é um títere incapaz. Se articula, é um falangista ensandecido. Se explica, é porque admite culpa. Se cala, é porque oculta o delito. Quando se recolhe, é indolente. Quando constrói, é populista demagogo. Quando sustenta o sistema, é um vendido. Quando o modifica, é um desmiolado irresponsável". Portanto, não se pode desqualificar totalmente a estratégia do Palácio do Planalto de tentar "blindar" (preservar) o presidente. Na correlação de forças (sociedade, imprensa, governo, legislativo) os papéis e estratégias de legitimação são variados e cada um tem as suas armas específicas. A complexidade do universo político De acordo com a sociologia, Lula é um líder carismático e, como tal, bem diferente de alguns administradores que costumam assumir o comando de uma grande empresa. Ele se insere na mesma categoria de outros presidentes e líderes populares. Não há nessa linhagem, necessariamente, um traço acentuado de racionalismo (sobretudo no nível da fala). Senão, vejamos: em um momento de crise extrema (Segunda Guerra Mundial), o que disse Winston Churchill em um de seus discursos mais famosos? "Não tenho nada para prometer a vocês a não ser sangue, suor e lágrimas." Há algum sentido de objetividade aqui? Obviamente não. No entanto, como se sabe, a intenção de comover e mobilizar os ingleses foi plenamente alcançada pela eficácia retórica do ex-primeiro ministro britânico. Por isso, cobrar que o presidente brasileiro tenha uma atitude racional-com-respeito-a-fins é simplório, além de subestimar o potencial de "falar com as massas" que Lula efetivamente possui. Exigir que ele utilize o procedimento padrão - leia-se pronunciamento oficial - dos 2 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br líderes empresariais que se vêem às voltas com crises é puro reducionismo, porque exclui outras variáveis complexas do jogo político. Diferentemente das empresas comuns, que, em geral, são administradas por tecnocratas, a presidência de um Estado é uma instituição com numerosas redes de contato e, portanto, com intrincados sistemas de relações com os públicos. Lula, como já se verificou no seu último pronunciamento à nação, não é um bom orador formal. Ou alguém acha que ele demorou tanto a falar por simples comodismo? Cada um tem a sua especialidade. Goste-se ou não, é o que acontece. George Bush também difere do padrão gerencial que se exige para um "alto executivo" e, no entanto, foi reeleito de forma acachapante para presidir a maior democracia do planeta. Segundo ponto: a estratégia de se distanciar do "olho do furacão". Quando na explosão do caso Mônica Lewinsky, o primeiro gesto do presidente Bill Clinton foi negar todo e qualquer envolvimento com a ex-estagiária da Casa Branca. Durante boa parte do "Sexgate", o próprio presidente optou por refutar "a marca de batom na cueca" que tanto interessava aos correligionários do partido republicano. Num primeiro momento, Clinton negou tudo com veemência e foi defendido por sua mulher, Hillary. ''Para mim, o caso Lewinsky parecia somente outro cruel escândalo construído por oponentes políticos'', contou a ex-primeira dama em sua biografia "Living History" (História Viva). Mesmo sendo algo específico da vida pessoal de Clinton, seu envolvimento com Mônica Levinsky foi utilizado pela direita protestante para destruir a reputação moral do presidente. Não se iludam, RPs, o jogo de bastidores que envolve as contendas políticas é pesado e, muitas vezes, desleal. Nele, o chefe do executivo deve atuar como magistrado, delegando as investigações para os órgãos competentes e se posicionando acima do calor das disputas. Terceiro: a confirmação de um crime político, como qualquer outra forma de crime, pressupõe investigação séria e embasamento legal. Portanto, diferentemente de um desastre ambiental, quando o mínimo que um executivo pode fazer é assumir a responsabilidade e reparar os danos provocados, o presidente não pode se colocar como fiador de supostos atos ilícitos dos seus subordinados (sim, é possível que alguém do terceiro escalão da república atue sem o consentimento do chefe do executivo). Assumir erros alheios certamente implicaria na admissão, mesmo que parcial, de culpa (o famoso crime de responsabilidade). E culpa, nesses casos, resulta em distensões muito mais dolorosas e traumáticas do que uma "simples" dança das cadeiras corporativas. 3 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Portanto, não sejamos apressados: o gabinete de administração da crise do governo Lula está, sim, atento a tudo o que está acontecendo. De longe, e sem o devido aprofundamento, eu faria a seguinte avaliação: Lula é um líder carismático (com todas as qualidades e defeitos que esse valor congrega). Preservá-lo e pô-lo em contato com as massas é muito mais interessante do ponto de vista político (sabe-se lá quantas pesquisas qualitativas estão sendo feitas para avaliar o resultado das aparições de Lula pelo interior do país). Em outra frente, para dar uma resposta mais racional à mídia, aos agentes econômicos, aos formadores de opinião e mesmo à classe média, são convocados os "gestores" do governo (como aconteceu com o ministro Antônio Palocci, que buscou acalmar o mercado na entrevista coletiva do dia 21/08). Como se vê, é um modelo híbrido, contingencial, muito diferente do que propõem os manuais de administração de crises para organizações privadas. Seu valor só poderá ser verdadeiramente comprovado com o tempo. Sua ética também requer outro tipo de análise. Ao fim, vale registrar: no universo político, mais do que em qualquer outro, as relações de poder se evidenciam de forma muito complexa e acirrada, exigindo respostas que, muitas vezes, diferem daquelas que consideramos "testadas" e infalíveis. Para citar este trabalho copie as linhas abaixo trocando o X pela data que acessou esse trabalho: SOUZA, Márcio de Matos. Gestão de crises na esfera governamental: nada a repetir, a não ser inteligência, empenho e bom senso [online] - Disponível na internet via WWW URL: http://www.rpbahia.com.br/trabalhos/paper/textos/gestao_de_crises_na_esfera_governamental.pdf - Capturado em XX/XX/200X. 4