Campanhas de Incentivo à Amamentação: a imposição do modelo ideal de maternidade Suyane Oliveira Tavares; Cristina Saling Kruel; Catheline Rubim Brandolt; Danielle da Costa Souto & Elaine Ramos Bitelbron Centro Universitário Franciscano - UNIFRA Introdução O conceito de amamentação envolve questões culturais e significados que refletem grandes conflitos emocionais para mãe, pois esta se depara com estímulos externos, como da família, da sociedade e ao mesmo tempo, com um sentimento de culpa caso não possa amamentar ou opte por não realizá-la. No decorrer da história a prática da amamentação sofreu mudanças influenciadas pelas crenças, evoluções sociais e descobertas sobre o tema. Atualmente, pode-se perceber que as campanhas nacionais de incentivo a amamentação enfatizam muito a necessidade desta prática como forma combatente da desnutrição infantil, tendo como foco a saúde da criança. Considerando tais aspectos, o presente estudo tem por objetivo revisar teoricamente a história das campanhas de incentivo a amamentação, proporcionando uma discussão acerca do impacto psicológico de tais campanhas para a mulher. As campanhas de incentivo a amamentação e as repercussões psicológicas para a mulher Aproximadamente na década de 1980, publicou-se pela primeira vez estudos que comprovavam a importância de amamentar exclusivamente, sem qualquer outro líquido, levando à menor risco de morbidade e mortalidade (POPKIN; ADAIR; AKIN; BLACK; BRISCOE; FLIEGER, 1990; VICTORIA et al., 1987 citados por TOMA; REA, 2008). Esses estudos, assim como outros realizados em diversos países, forneceram novas bases para a reformulação de políticas internacionais, particularmente da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Essas novas diretrizes recomendam que as crianças sejam amamentadas de forma exclusiva até os seis meses e, que após este período, gradativamente se inicie a alimentação complementar mantendo a amamentação até pelo menos os dois anos de idade (REA; CATTANEO, 2002). No Brasil, em 1981, o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, conjugando ações nas áreas da saúde, comunicação e educação, em articulação também com a sociedade civil. A estratégia básica era a do incentivo a amamentação , divulgando-se os benefícios da mesma para o bebê, as campanhas tinham slogans como: “Aleitamento materno: seis meses que valem uma vida”, “Amamente: a saúde de seu filho depende de você”, todas elas com vistas à redução da mortalidade infantil (OLIVEIRA; SOUZA; SANTOS; CAMACHO, 2010). Kitzinger (1984) citada por Oliveira, Souza, Santos e Camacho (2010) expõe que a amamentação, enquanto um processo psicossexual, deve proporcionar satisfação e estar baseada na confiança. A amamentação estabelece uma relação íntima, corporal, de conhecimento e reconhecimento mútuo, entre a mãe e o bebê. O recém-nascido, que por ocasião do parto passou por uma ruptura, volta a estar ligado à mãe, não mais pelo cordão umbilical, mas pelo contato peitoboca, ambos os órgãos que provocam prazer sexual, e também pelo contato pele a pele, fonte de calor e segurança. Ainda de acordo com a autora citada acima, expõe-se que a medicalização da gestação e do nascimento leva a mulher a acreditar que é perigoso confiar no funcionamento do seu organismo, produzindo assim, um efeito de alienação da mulher em relação ao próprio corpo. Essa perda da autoconfiança tende a se refletir também no processo de amamentação, levando a uma insegurança quanto à sua capacidade de amamentar. No ano de 1991, foi criada a WABA (World Alliance for Breastfeeding Action), que lançou a cada ano um tema para debate por ocasião da “Semana Mundial da Amamentação”. Os temas de alguns anos, como o do ano de 1995 foram: “Amamentação fortalece a mulher”, e de 1996: “Amamentação: responsabilidade de todos”. Esses buscaram mostrar a amamentação como um ato de força e prazer para a mulher, resgatando que esta não é a única responsável pelo sucesso ou insucesso da amamentação, e enfatizando a importância do apoio social (AMIN, 1996 citado por OLIVEIRA; SOUZA; SANTOS; CAMACHO, 2010). Pode-se dizer que as estratégias de promoção e incentivo a amamentação têm tido bons resultados, importantes para a manutenção da amamentação exclusiva e conseqüente prevenção do desmame precoce. Dentre essas estratégias, é importante citar a “Iniciativa Hospital Amigo da Criança”, criada em 1992, pela UNICEF e OMS. O principal objetivo dessa iniciativa era mobilizar os funcionários de hospitais e maternidades a seguir condutas e rotinas adequadas à prática da amamentação . Para obter o título de “Hospital Amigo da Criança”, a instituição deveria cumprir dez passos de incentivo a amamentação, sendo que o décimo é encorajar a formação de grupos de apoio à amamentação, para onde as mães devem ser encaminhadas logo após a alta do hospital ou ambulatório (VANNUCHI; MONTEIRO; REA; ANDRADE; MATSUO, 2004). Os dez passos propostos para esse incentivo também estão ancoradas em outra questão, que está situada para além das vantagens que a amamentação propicia ao lactente, que, na perspectiva biológica, considera que toda mulher é capaz de produzir leite em quantidade e qualidade necessária ao desenvolvimento adequado do seu filho. Para que isso ocorra, é necessário que os níveis hormonais estejam adequados e que haja uma retirada eficiente de leite das mamas (LAMOUNIER, 1996). Ainda segundo mesmo autor, no intuito de reforçar ainda mais a importância do desenvolvimento de ações em favor da amamentação, os passos trazem a destaque aspectos de interesse para a mulher, tais como a redução da hemorragia pós-parto, por intermédio da contração uterina, diminuição da ocorrência de anemias, devido ao atraso menstrual e à redução do risco de câncer mamário e ovariano. Entretanto, muitas vezes, por questões culturais, o fato de a mulher não ter amamentado faz com que a denominem mãe desnaturada, o que aumenta, em demasia, o sentimento de culpa da mulher. A ação básica de saúde requer estratégias direcionadas quanto à tomada de consciência da importância da amamentação. Vivendo em um país em desenvolvimento, com alto índice de mortalidade infantil, muitas vezes causada pela alimentação inadequada na primeira infância, acarretando na desnutrição, baixa resistência orgânica e, conseqüentemente, quadros infecciosos irreversíveis, aos quais a não amamentação é apontada como uma das causas. É importante não associar a falta do leite humano com a questão da desnutrição infantil, pois o não acesso a outras fontes alimentares e alternativas é que promovem a desnutrição nas crianças (REA; CATTAENO, 2002). Várias campanhas foram veiculadas pela mídia escrita e falada devido ao desmame precoce, porém isso tem surtido pouco efeito na promoção da amamentação . No V Encontro Nacional do Aleitamento Materno foi apresentado uma exposição histórica de inúmeros pôsteres, em seus tamanhos originais e de vários países. Após várias análises feitas, concluiu-se que, para uma promoção eficaz da amamentação, é necessário um trabalho interdisciplinar entre os profissionais de marketing e consultores de amamentação (TOMA; REA, 2008). As razões alegadas pelas mães para o desmame ou introdução de outros alimentos podem ser agrupadas por área de responsabilidade: deficiência orgânica da mãe, problema com o bebê, atribuição da responsabilidade à mãe e influência de terceiros. Isso demonstra que não existem causas isoladas para estabelecer o curso da amamentação, mas, sim, uma relação de fatores associados entre a mãe, o recém-nascido e o contexto em que eles se encontram (REA; CUKIER, 1988). (RELER) Baseando-se na afirmação de que o ato de amamentar, além de ser biologicamente determinado, é sócio-culturalmente condicionado, tende a se sobrepor a determinação sociocultural à determinação biológica. Nesse processo, a conscientização é insuficiente para se explicar um comportamento coletivo, sendo que a amamentação ou a recusa raramente é um ato individual e consciente, estando preso à aprovação do seu grupo social (SILVA, 1990). Essa atitude é percebida por meio do levantamento histórico realizado quanto aos motivos que levaram as mulheres ao desmame precoce. Em 1838, na Alemanha, valorizou-se o leite de vaca por ser mais rico em proteína do que o leite humano. Em 1856, descobriu-se o método de produzir leite condensado, um leite que poderia ser conservado e estéril. Já em 1872, verificaram que o leite condensado não auxiliava no desenvolvimento da criança, pois apresentava baixo teor de gordura e nesse mesmo ano, inicia-se orientação alimentar por intermédio de formulações individuais. Em 1883, desenvolveu-se a evaporação do leite de cabra e o estudo da composição do leite humano. No final do século XIX, houve o destaque de firmas americanas por produzirem o substituto do leite materno (REA, 1990). O ato de amamentar foi herdado culturalmente e influenciado pela família e pelo meio social em que as pessoas vivem (estímulos culturais, costumes, crenças e tabus). No decorrer da história, várias campanhas foram veiculadas pela mídia escrita e falada, devido ao desmame precoce. No fim do século XVIII, aclamou-se pelo amor materno como um valor natural e social que era favorável à espécie e à sociedade. Nessa campanha empenharam-se profissionais, como médicos, moralistas e administradores, com os seguintes discursos: econômico, para conscientizar a mulher da importância dos seres humanos como defesa militar e braços trabalhadores; filosófico, que projetava idéias de felicidade e igualdade que as mulheres atingiriam com a amamentação, e intermediário, onde as mulheres seriam responsáveis pelo bom desenvolvimento da nação. Criou-se então, uma nova imagem de mãe-mulher, a atenção dela deveria estar voltada ao bebê e à criança (BADINTER, 1985). No entanto, isso surtiu pouco efeito na promoção da amamentação. A mulher foi enclausurada em seu papel de mãe, sob pena de condenação moral, caso não exercesse adequadamente sua função. Atualmente, ocorre novamente o deslocamento da responsabilidade, enfoca-se a atenção à criança exercida pelo binômio pai e mãe (ICHISATO; SHIMO, 2002). Críticas às campanhas de incentivo a amamentação são feitas, pois a maioria é dirigida às mulheres de classes sociais baixas devido o alto índice de mortalidade infantil nessa camada social. A mulher é responsabilizada pelo desconhecimento da técnica da amamentação, desmame precoce e a desnutrição. As campanhas têm se constituído em estratégia simplificada para reduzir mortalidade infantil em nível de atenção primária (JAVORSKY; CAETANO, VASCONCELOS, LEITE; SCOSHI, 2004). Em estudo realizado por Nakano (1996), com um grupo de mães, pode-se perceber que o conteúdo das campanhas em prol a amamentação se encontrou cristalizado no imaginário das mesmas, apesar de lhes faltarem palavras e termos científicos para que as expressem. As mães reforçam que a amamentação é centrada na criança e de valor incomparável, sendo forte combatente da morbidade infantil. Ao assumirem isso, fica instituída como obrigação materna a amamentação, que se constitui como fator assegurador do bem-estar físico e emocional da criança e com ela a da economia da nação. Nesse sentido, a mulher se torna cúmplice da própria opressão, pois assume para si toda a responsabilidade, desconsiderando a existência de outros fatores que podem desencadear o adoecimento infantil. Nakano (1996) também relata em seu estudo que é possível comparar o discurso de algumas mães com os escutados em meados do século XVIII. Sobre isso, Silva (1990) relata que neste período era depositada na mãe toda a culpa de todos os insucessos que pudessem vir do filho, em função da não amamentação adequada. A construção de gênero feminino na nossa sociedade é medida por vários discursos do século passado, e embora se apresentem novas percepções, acabouse por construir um corpo feminino reprodutor, normatizado e culpado. A cobrança social à mulher para que amamente seus filhos tem se valido de comprovações cientificas que realçam o valor do leite humano para um melhor desenvolvimento biopsicossocial da criança, ficando estabelecido de certa forma que amamentar faz parte da natureza da mulher. As principais razões relatadas pelas mães para a introdução de outros alimentos que não o leite humano na alimentação da criança antes dos quatro meses de vida, estão relacionadas a insegurança materna frente a sua capacidade de alimentar seu filho, a atribuição de responsabilidade à mãe quanto aos cuidados com a criança, bem como a influência de terceiros — por meio de orientações, conselhos, pressão exercida sobre a lactante, dentre outros (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002; KING, 2001; ISHISATO; SHIMO, 2002). De acordo com King (2001), as verdadeiras razões que levam as mulheres ao desmame precoce e as dificuldades de amamentação são falta de apoio de outras mulheres, falta de apoio dos serviços de saúde e pressões da vida moderna em zona urbana. Neste manual também pode ser observado o quanto a questão da amamentação é voltada somente para o bem-estar da criança, sendo que se surgem eventuais problemas com a mãe durante, ou antes, da amamentação, são ressaltados aspectos como a questão nutricional ou perda de confiança na capacidade alimentar do seu leite. O principal argumento dos profissionais de saúde na construção da prática da amamentação diante da mãe é a crença da amamentação como um ato biológico e natural, o que acaba negligenciando seus aspectos sociais (SILVA, 2001; ARANTES 1995). Considerações Finais Através deste estudo pode-se fazer uma reflexão acerca do percurso histórico das campanhas de incentivo a amamentação. Muitas vezes, essas campanhas utilizam idéias e imagens referentes a uma visão utópica do amamentar, pois desconsideram as dificuldades inerentes ao ato de amamentar. Sendo assim as campanhas trazem um estereótipo de “mãe perfeita”, “mãe que só ama porque amamenta”, uma idéia muito romantizada da prática da amamentação. Através do presente estudo também é possível fazer uma reflexão sobre o julgamento negativo que a sociedade faz diante da mulher que não amamenta. Certamente, tal apreciação está atrelada as campanhas de incentivo a amamentação veiculadas para população em geral e que podem reafirmar a idéia de que a experiência da maternidade é dependente da amamentação. A partir do que foi exposto, deve-se atentar para o papel do psicólogo junto ao Ministério da Saúde. Seria muito importante que esta profissional pudesse auxiliar na construção de campanhas que possam esclarecer sobre a importância da amamentação, enfatizando não somente a saúde da criança, mas também pensando na saúde psicológica da mãe e os desafios da amamentação. . Referências ARANTES, C. I. S. Amamentação – visão das mulheres que amamentam. 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