02/03/2013 Ele não desceu da cruz Bento XVI se torna papa emérito, em uma renúncia como nunca houve na história da Igreja Por um momento, na manhã do dia 27 de fevereiro de 2013, o universo pareceu girar em torno da Terra, como acreditavam os antigos em sua ignorância astronômica belamente imortalizada em versos por Dante Alighieri. O verdadeiro ato final da renúncia do papa foi tão glorioso quanto simples. Tão inesperado quanto aguardado. Um papa que abandona a Barca de Pedro sob os aplausos de uma multidão de 100000 fiéis, os olhos de milhões de telespectadores e o choro de cardeais, bispos e padres — não importa, aqui.Se as lágrimas de alguns eram de crocodilo. E que continua papa, agora emérito, seu título oficial. Poderia ter sido da sacada central da basílica,a mesma em que Joseph Ratzinger surgiu como pontífice, em 19 de abril de 2005, ou da janela do apartamento papal. Mas foi do palco normalmente montado às quartas-feiras, como se aquela fosse uma audiência pública comum, que ele saudou, foi saudado, abençoou e foi abençoado. Disse Bento XVI: "Houve dias de sol e também momentos em que as águas estavam agitadas e o vento soprava em sentido contrário, como em toda a história da igreja. Mas eu sempre soube que naquela barca está o Senhor e sempre soube que a barca da Igreja não é minha, não é nossa, mas é Sua". O recado, sempre na forma de metáfora teológica, foi dado à Cúria que o traiu. Na sequência, veio a resposta a quem o acusou de "descer da Cruz": "Não volto à vida privada, a uma vida de viagens, encontros, recepções, conferências. Mas permaneço, de maneira diferente, junto ao Senhor Crucificado. Não tenho mais o poder de ofício para o governo da Igreja, mas em serviço da oração permaneço, por assim dizer, no recinto de Pedro". No dia 28, pouco antes de embarcar de helicóptero rumo ao palácio de verão na cidade de Castel Gandolfo, onde permanecerá recluso nos próximos dois meses (ou três, dependendo do ritmo das reformas no convento em que ele morará definitivamente, no Vaticano), diante dos 100 cardeais já presentes em Roma para o conclave. Bento XVI protagonizou outro instante surpreendente na história milenar do catolicismo. Ainda ocupante do Trono de Pedro, ele afirmou: "Entre vocês, no Colégio Cardinalício, está também o futuro papa, ao qual desde hoje prometo a minha incondicional reverência e obediência". Os cardeais ficaram perplexos, visto que um pontífice, mesmo em seus derradeiros minutos, é o chefe supremo da Igreja. Não é a primeira vez que um papa renuncia, mas jamais houve circunstância igual a esta. A lição de moral revolucionária a uma Cúria corrupta no bolso, no corpo e na alma não deveria passar em branco no próximo pontificado — inclusive porque o papa emérito estará ao lado, como um vigia divino incontornável, mesmo se enclausurado e em silêncio obsequioso. Uma das questões é saber se a renúncia de Bento XVI, o único recurso de um octogenário debilitado para tentar promover uma limpeza na Igreja, não criará um precedente que resulte em seu contrário. Ou seja, a dessacralização dos pontífices que virão a seguir e a cristalização de um poder ainda maior dos cardeais que os circundam. O raciocínio é que, se um papa pode deixar o cargo como Bento XVI ele já não estará imune a pressões de dentro ou de fora da instituição, da mesma maneira que um alto executivo de uma multinacional. Em período de sede vacante, a Igreja passa a ser administrada pelo camerlengo, Tarcisio Bertone, e pelo decano dos cardeais, Angelo Sodano. Entregar a administração do Vaticano, ainda que por uma semana, a Bertone é mais ou menos como emprestar a um Al Capone a chave do cofre de Fone Knox. Ele está por trás do lamaçal financeiro que tragou o banco central da Igreja, e tenta sobreviver como secretário de Estado no próximo pontificado. A revista semanal Panorama revelou em sua última edição que Bertone, depois do roubo dos documentos papais que o comprometiam, mandou grampear os telefones de um sem-número de prelados, para ter moedas de troca caso peçam o seu solidéu. Indagado a respeito, o portavoz do Vaticano, Federico Lombardi, confirmou que houve escutas, mas todas legais e em defesa da Igreja. Grampear telefones, contudo, não parece ser um atributo conferido por Deus. A última decisão de Bento XVI foi dar aos cardeais a possibilidade de adiantar o conclave. No início desta semana, quando começam as congregações gerais, a data será anunciada. Prevê-se que eles se tranquem na Capela Sistina — atualmente em varredura levada a cabo pela Guarda Suíça — entre os dias 10 e 12 de março. Os americanos procuram adiar a data ao máximo, porque, antes, querem estabelecer soluções de compromisso que garantam maior transparência à Cúria. Encontram a oposição dos italianos do aparato burocrático do Vaticano, que usam o argumento de que uma demora prolongada na escolha do pontífice tem o potencial de agravar a crise por que passa a Igreja. Bertone e Sodano, antes adversários irreconciliáveis, aparentemente andam se aproximando. Se for verdade, e não apenas jogo de cena, está em curso o abafamento dos escândalos que originaram a saída de Bento XVI. Na semana passada, ainda, o conclave sofreu uma baixa, depois que se anunciou que o cardeal escocês Keith 0"Brien não virá a Roma. 0"Brien abusou sexualmente de jovens nos anos 80. Caso nada mude até o conclave, dos 115 eleitores, serão quatro os cardeais acusados de condutas impróprias. Nem o Espírito Santo está livre de más companhias. ? adicionada no sistema em: 03/03/2013 12:16