UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DE PROFESSORES E SUA PERCEPÇÃO
A RESPEITO DA PRÁTICA PEDAGÓGICA∗
Dra. Miriam Cardoso Utsumi
Geusa Garcia dos Santos
Centro Universitário Moura Lacerda
E-mail:[email protected]
RESUMO
Com o objetivo de investigar se as propostas dos Parâmetros Curriculares
Nacionais eram conhecidas e utilizadas pelos professores em sua prática
pedagógica, foram entrevistadas três professoras de uma escola de Ensino
Fundamental da rede pública de ensino de uma cidade do Interior do Estado de São
Paulo. Pela entrevista, descobriu-se que a escola classificava os alunos da 1ª. série
do Ensino Fundamental, a partir de testes de alfabetização, em classes de nível
forte, médio e fraco a fim de, teoricamente, poder acompanhar o ritmo de cada turma
e melhorar o rendimento. Entretanto, as observações na sala de aula tida como fraca
e a análise dos Planos de Curso das três turmas evidenciou que os alunos da sala
considerada fraca não eram submetidos a uma proposta diferenciada, ao contrário,
utilizavam o mesmo material apostilado, não tinham acesso a materiais de
manipulação considerados importantes pelos PCNs para a construção dos
conhecimentos, além de serem acompanhados pela professora com o menor nível
de instrução comparado com o das outras duas professoras. A entrevista permitiu
verificar que apesar das professoras terem afirmado que utilizavam os PCNs, a
prática pedagógica parecia divergir das sugestões do mesmo: não se mobilizava os
conhecimentos prévios dos alunos, não se contextualizava os conteúdos e se
responsabilizava a família pelas dificuldades de aprendizagem dos mesmos. Quando
indagadas de que forma utilizavam os PCNs responderam que a apostila utilizada
∗
Produção vinculada ao Grupo “Currículo, História e Poder”
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seguia os objetivos desse documento. As autoras acreditam que Cursos de
Formação, inicial ou continuada, que ensinassem os professores a serem
profissionais reflexivos poderiam contribuir para diagnóstico, reconhecimento e
mudança de práticas inadequadas, além do gerenciamento da formação continuada
dos educadores.
Palavras-chave: formação de professores, práticas pedagógicas, educação
fundamental, dificuldades de aprendizagem.
INTRODUÇÃO
Aprender a ensinar e a se tornar professor são processos pautados em diversas
experiências e modos de conhecimento – que são iniciados antes da preparação
formal, que prosseguem ao longo desta e que permeiam toda a prática
profissional vivenciada. (Mizukami e outros, 2003, p. 47)
Ou ainda,
É um processo complexo que envolve fatores afetivos, cognitivos, éticos, de
desempenho, entre outros (Cole e Knowles, como citados em Mizukami e outros,
2003, p. 48)
Dessa forma, o conceito de formação do professor está relacionado ao de
aprendizagem permanente, que considera os saberes e as competências do ofício
de professor como resultados não só da formação profissional e do exercício da
docência, mas também de aprendizagens realizadas ao longo da vida, dentro e fora
da escola, que constituem segundo alguns autores a cultura profissional dos
professores.
Imbernón, Veenman (como citados em Mizukami e outros, 2003), Zeichner
(1993) entre outros autores, vêm afirmando que o papel da formação inicial seria o
de fornecer um bom suporte para os professores atuarem na profissão. Algo como,
auxiliá-los a construir um conhecimento pedagógico especializado, que se
constituiria no início da socialização profissional e da assunção de princípios e
regras práticas.
Aprender a ser professor, não é, portanto, tarefa que se conclua após estudos de
um aparato de conteúdo e técnica de transmissão deles. É uma aprendizagem
que deve se dar por meio de situações que sejam efetivamente problemáticas, o
que exige o desenvolvimento de uma prática reflexiva competente. Exige ainda
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que, além de conhecimentos, sejam trabalhadas atitudes, as quais são
consideradas tão importantes quanto os conhecimentos. (Mizukami e outros,
2003, p. 12)
De uma forma geral, os estudos sobre formação de professores (Arlarcão,
1986; Marques e Utsumi, 2003; Perrenoud, 2002; Zeichner, 1993) parecem apontar
para a necessidade de uma formação para o ensino reflexivo. Apesar das diferenças
teóricas e metodológicas com que o tema é abordado pelos diversos autores, as
idéias sobre o ensino reflexivo, que de certa forma, foram impulsionadas pelos
estudos de Donald Schön, aglutinam as preocupações com a experiência pessoal e
com a prática na formação e no desenvolvimento profissional de professores.
De acordo com Zeichner (1993)
Reflexão também significa o reconhecimento de que o processo de aprender a
ensinar se prolonga durante toda a carreira do professor e de que,
independentemente do que fazemos nos programas de formação de professores
e do modo como o fazemos (...) só podemos preparar os professores para
começarem a ensinar. (...) [os cursos e os formadores devem ter como meta]
ajudar os futuros professores a interiorizarem, durante a formação inicial, a
disposição e a capacidade de estudarem a maneira como ensinam e de a
melhorar com o tempo, responsabilizando-se pelo seu próprio desenvolvimento
profissional. (p. 17)
Esse desenvolvimento profissional dos professores é o que vem sendo
chamado de formação continuada. De acordo com Mizukami e outros (2003),
analistas têm mostrado que a formação inicial vem sendo cada vez mais
desqualificada e substituída pela formação continuada.
Entretanto, segundo esse autores, ao longo dos últimos anos vem se
questionando a eficácia dessa formação continuada, usualmente baseada em
cursos de curta duração (30 a 180 horas), para mudanças efetivas na prática
pedagógica dos professores. Os autores apontam, ainda, que no máximo esses
cursos modificam o discurso do professor sobre as práticas.
Talvez, porque como afirma Dewey o modo como cada professor vê a
realidade serve de barreira, impedindo-o de reconhecer e experimentar pontos de
vista alternativos. (Dewey, como citado em Zeichner, 1993, p.18)
Candau (como citado em Mizukami e outros, 2003) defende a necessidade
de se construir uma nova concepção de formação continuada em que se desloque o
lócus desta formação para a própria escola de Ensino Básico e que se articule as
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diferentes dimensões da docência: aspectos técnicos, científicos, políticos-sociais,
psicopedagógicos, ideológicos e ético-culturais.
Neste sentido, a prática reflexiva como uma prática social (Zeichner, 1993),
pode ajudar a formação continuada do grupo de professores na unidade escolar,
pois na medida em que se discutem os problemas, as práticas e os condicionantes
desta, cada membro do grupo apóia o desenvolvimento e transformação do outro e
de si próprio.
Entretanto, de acordo com Dewey (como citado em Zeichner, 1993), a
ação reflexiva requer dos professores três atitudes, a saber:
-
abertura de espírito para o reconhecimento das causas dos conflitos;
-
responsabilidade,
que
implica
a
consideração
cuidadosa
das
conseqüências de sua prática nos auto-conceitos, desenvolvimento intelectual e vida
de seus alunos;
-
sinceridade para reconhecer que podem ser parte do problema e da
solução.
A reflexão serviria para o grupo tomar consciência de uma determinada
situação que incomoda, fazer o diagnóstico e reconhecimento das causas e,
elaborar estratégias de ação. Contudo, a reflexão por si só, não garante a
transformação das práticas, como afirma Zeichner (1993), nalguns casos, uma maior
intencionalidade pode solidificar e justificar práticas de ensino nocivas para os
estudantes. (p. 50)
Dentro do contexto escolar, é comum o professor se deparar com alguns
alunos que não aprendem. Partindo do pressuposto de que o indivíduo desenvolve
suas estruturas cognitivas na sua interação com o meio, buscando sempre por meio
da adaptação um equilíbrio mais amplo (Dolle, 1995), há que se considerar que o
professor tem um papel muito importante para colaborar com o desenvolvimento
intelectual dos alunos, em especial, daqueles que por algum fator ou impedimento
não conseguem aprender como os outros.
Diante do fracasso do aluno, alguns professores ao invés de analisarem e
refletirem sobre as causas desse impedimento, que certamente contribuiria para o
traçado de novas ações e intervenções, ficam procurando “problemas” nos alunos
tirando de si a sua parcela de responsabilidade.
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Nos últimos anos, avaliações educacionais como o Sistema de Avaliação
da Educação Básica - SAEB, Sistema de Avaliação de Rendimento do Estado de
São Paulo - SARESP e Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM têm evidenciado
que os alunos apresentam desempenho baixo, e por conseguinte pode-se afirmar
que não possuem os conhecimentos que seriam desejáveis para as séries que
freqüentam. (Utsumi, 2003)
De acordo com Baroni (1990) alguns fatores que contribuem para que os
alunos apresentem lacunas e defasagem de aprendizagens que os levam ao
fracasso escolar, seriam:
-
o relativo despreparo da escola para atender o aumento do contingente
da população que atualmente tem acesso à escola;
-
complexidade cada vez maior do universo de conhecimentos que deve
ser desenvolvido com os alunos;
-
a competição que a escola sofre com outros meios de informação,
notadamente a televisão;
-
a discrepância, muitas vezes ressaltada e discutida, entre o conteúdo
escolar e cotidiano do aluno;
-
o despreparo do professor frente às mudanças rápidas e demandas
diversificadas que caracterizam a sociedade moderna;
-
a ênfase excessiva na formação técnica e na transmissão de um
conteúdo acabado em detrimento de uma formação crítica, que valorize o processo
de aprender;
-
As características individuais do aprendiz no que se referem ao ritmo e
peculiaridades de seu desenvolvimento cognitivo, emocional, lingüístico, psicomotor
e social.
O professor deve ser um profissional que considera a evolução do aluno
dentro de uma perspectiva dinâmica, ou seja, as dificuldades apresentadas pelo
indivíduo em algum momento ou processo de aprendizagem não pode ser vista
como uma entidade fixa, sem possibilidade de reversão. Deve-se oferecer uma
forma de relação melhor e diferente daquela a que o indivíduo está acostumado, a
fim de que sua evolução retorne ao curso normal.
A busca dessa relação melhor e diferente pode ser potencializada por uma
prática reflexiva coletiva, em que todos os professores desse aluno com dificuldades
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de aprendizagem podem oferecer informações e sugestões que colaborarão para a
elaboração de estratégias com maiores possibilidades de êxito.
De acordo com Alarcão (1986), o professor reflexivo é aquele capaz de ler
todos os sinais que estão a sua volta, interpreta, observa, compreende melhor o
outro, escuta, sente, pára, reflete, respira e age de forma transformada.
Acredita-se que a relação positiva entre a prática e a teoria seja obtida com
o pensamento reflexivo, onde o professor é capaz de fazer julgamentos acertados,
revendo, analisando, modificando e selecionando o que é realmente melhor a um
ensino de qualidade, tornando, suas ações reflexivas e acertadas.
Com o objetivo de subsidiar práticas pedagógicas de melhor qualidade o
governo federal apresentou os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (Brasil,
1998) que postula algumas ações e posturas que julga-se serem adequadas para o
desenvolvimento intelectual do indivíduo.
Entretanto, como o currículo prescrito muitas vezes é interpretado e
executado de forma diferente, às vezes até contraditória, na prática, julgou-se
interessante verificar se professores das séries iniciais conheciam e utilizavam os
PCNs no seu dia a dia. E em caso afirmativo, de que forma eles incorporam os
postulados desse documento à sua prática.
MÉTODO
Foram realizadas observações indiretas, por meio da análise documental
do Plano de Curso, das apostilas utilizadas pela escola e dos Parâmetros
Curriculares Nacionais de 1ª. a 4ª. série (Brasil, 1998). Também foram feitas
observações diretas intensivas por meio de entrevistas e observação da prática
pedagógica da professora da turma tida como fraca.
SUJEITOS
A presente pesquisa foi realizada com três professores das primeiras
séries do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal de uma cidade do
interior do Estado de São Paulo.
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MATERIAL
Um roteiro de entrevista contendo 11 questões sobre a formação dos
professores, percepção de sua prática pedagógica, conhecimento e utilização da
proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
PROCEDIMENTO
A coleta de dados desenvolveu-se durante os meses de maio e junho de
2003. Após entrevistar os três professores, em momentos distintos no Horário de
Trabalho Pedagógico Coletivo – HTPC, optou-se por realizar as observações da
prática da professora que lecionava para a turma considerada fraca, por acreditar
que na prática da mesma poderiam emergir mais elementos inovadores e
concordantes com os preconizados nos PCNs.
Foram realizadas observações em três aulas da referida professora e
consultados os Planos de Ensino das três professoras.
ANÁLISE DOS DADOS
Os sujeitos da amostra possuíam em média 11 anos de magistério (desviopadrão = 2,94 anos), sendo que duas professoras possuíam o Curso de Pedagogia
e uma, a que lecionava para a classe considerada fraca, estava em formação,
possuindo apenas o Curso Magistério.
A despeito de todas as críticas que se faz sobre classes homogêneas,
poder-se-ia acreditar que a opção da escola por esse critério de formação de classes
indicaria um desejo de trabalhar de forma diferenciada, com um professor melhor
preparado, com esses alunos a fim de fazê-los compreender os conceitos que numa
classe heterogênea teriam dificuldade de acompanhar. Entretanto, o que se
observou é que a classe mais fraca foi entregue ao professor com o menor nível de
formação e as três turmas utilizavam o mesmo material apostilado, parecendo não
haver justificativa para a separação dos alunos.
Os PCNs (Brasil, 1998) explicitam a importância de não se rotular o aluno
que apresenta condições de aprendizagem diferente, preconizando que a escola
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deve adaptar suas estratégias e procedimentos para que atenda a todos sem
classificá-los como fracassados.
Os objetivos propostos pelo citado documento concretizam as intenções
educativas em termos das capacidades que devem ser desenvolvidas pelos alunos
ao longo da escolaridade. Essas capacidades são de ordem cognitiva, física, afetiva,
de relação interpessoal e inserção social, ética e estética, tendo em vista uma
formação ampla.
Para garantir o aprendizado e desenvolvimento dessas capacidades é
preciso considerar que nem todas as pessoas têm os mesmos interesses ou
habilidades, nem aprendem da mesma maneira, o que muitas vezes exige uma
atenção especial por parte do professor a um ou outro aluno, para que todos
possam se integrar no processo de aprender. A partir do reconhecimento das
diferenças existentes entre pessoas, fruto de processo de socialização e do
desenvolvimento individual, será possível conduzir um ensino pautado em
aprendizados que sirvam a novos aprendizados.
Ao serem questionadas sobre os motivos que as levaram a escolher a
profissão de professor, uma das professoras revelou que não gostava da idéia de
ser professor, tendo feito o Curso de Formação por insistência da mãe, entretanto,
atualmente era uma apaixonada pelo que fazia. As outras duas relataram que desde
criança gostavam de brincar de escolinha.
Cabe ressaltar que os motivos levantados pelas entrevistas não pareceram
suficientes e relevantes para a escolha da profissão docente. Como assevera
Perrenoud (2002)
um profissional deve reunir competências de alguém que elabora conceitos e
executa-os: ele identifica o problema, apresenta-o, imagina e aplica uma solução
e, por fim, garante seu acompanhamento. (...) ele deve construí-la [a solução do
problema] constantemente ao vivo. (p. 11)
As justificativas para a escolha da profissão remetem à idéia que ‘para ser
professor basta gostar de criança’, esquecendo-se ou relegando a um segundo
plano a grande quantidade de conhecimentos e competências que esse profissional
precisa mobilizar para desenvolver sua prática no cotidiano escolar.
As propostas dos PCNs que parecem evidenciar uma preocupação do
Ministério da Educação brasileira com a prática pedagógica dos professores, de
maneira que aquela leve em consideração os conhecimentos prévios dos alunos,
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materiais de manipulação que contribuem para a construção dos conhecimentos, a
contextualização dos conteúdos entre outras, não são verdadeiramente conhecidas
ou estudadas pelos professores da amostra.
Eles revelaram, nas entrevistas, que conheciam os PCNs porque haviam
‘visto bem’ num Curso Preparatório que haviam freqüentado para prestarem o
Concurso de Professores de 2001, mas que nas reuniões de HTPC eles não haviam
discutido ou estudado esse documento, como evidencia a fala que se segue:
‘a Coordenadora apenas xerocou da Revista Nova Escola para a gente ler em
casa, no começo do ano, mas nunca foi discutido não’.
De fato, nos dois momentos em que as reuniões de HTPC foram
acompanhadas, observou-se que nelas prioritariamente eram discutidos os eventos
dos quais a escola estava participando. Alguns professores que manifestavam
interesse em conversar sobre problemas que estavam enfrentando com alunos que
já haviam sido diagnosticados, por profissional especializado, como tendo distúrbios
de aprendizagem, não eram incentivados a discutirem estratégias a adotar com
esses alunos, pois a Coordenadora mudava de assunto.
Verificou-se, por meio das entrevistas, que devido ao uso do material
apostilado, que na capa se dizia de acordo com os PCNs, as professoras
acreditavam que utilizavam a proposta do documento, em momentos oportunizados
dentro da apostila. O discurso das professoras parecia indicar o reconhecimento da
importância da proposta oficial e, o desconhecimento de seu verdadeiro uso
funcional.
O Plano de Ensino de acordo com as professoras era elaborado, como
programado pelo calendário escolar, no início do ano. Como pôde ser observado,
era idêntico para as turmas consideradas fraca, média e forte.
Essa classificação ocorria após os alunos realizarem uma prova contendo
vários exercícios de alfabetização que duravam dois dias para serem desenvolvidos.
Segundo as professoras a classificação possibilitava um trabalho mais funcional e
com melhor rendimento.
Entretanto, o que se observou foi que, as turmas recebiam indistintamente
o mesmo material apostilado, de acordo com as professoras, porque essa era a
proposta da escola e eram submetidos ao mesmo Plano de Curso. Mas elas
pareciam acreditar que a ‘homogeneização’ das turmas era positiva porque ‘cada
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classe acompanhava o seu ritmo, ficando a turma fraca por último a terminar o
programa bimestral’.
Lembrando-se que os PCNS sugerem uma série de práticas que poderiam
contribuir para o trabalho pedagógico com as crianças que apresentam dificuldades
de aprendizagem, observou-se que no Plano de Curso das professoras, haviam
pontos que refletiam algumas propostas dos mesmos, tais como a previsão da
realização de atividades em grupo, da utilização de rótulos e propagandas, da
construção de textos pelos alunos a partir de figuras, ou ainda, da utilização de jogos
e material de manipulação para a construção do conhecimento.
Contudo, a observação de como as atividades da apostila eram realizadas
ou estavam propostas evidenciavam uma divergência com o Plano de Curso e com
as proposições dos PCNs.
A apostila utilizada pelos alunos poderia ser considerada muito técnica,
alguns textos eram muito longos para crianças da 1ª. Série do Ensino Fundamental,
outros exigiam um grau elevado de interpretação, tendo sido observado que a
estratégia das crianças tidas como fracas era a de não fazer nada e depois copiar as
respostas corretas que a professora passava na lousa. Os alunos que não copiavam
a resposta da lousa, tinham anotado em seus cadernos a frase “não quis fazer”.
Nas três aulas observadas não se verificou uma preocupação da
professora em mobilizar o interesse dos alunos pelas atividades, ou aproveitar os
conhecimentos prévios dos mesmos para motivá-los a realizar alguma atividade. A
prática comum era a de ler uma atividade da apostila e dizer o que as crianças
deveriam fazer. As crianças que queriam fazer a atividade faziam, e boa parte das
outras, ou por não querer ou por não entender o que deveria ser feito, ficava
aguardando a resposta ser colocada na lousa.
Apesar de no Plano de Curso constar que se utilizaria Material Dourado
nas aulas de Matemática e Alfabeto Móvel nas de Língua Portuguesa, não havia
Material Dourado na escola e havia apenas dois jogos de Alfabeto Móvel,
impossibilitando a montagem de palavras pelas crianças, ou mesmo pela professora.
Observou-se
a
inexistência
de
outros
materiais
de
manipulação,
comprados ou construídos a partir de sucata, para o trabalho com o grupo de 23
crianças com dificuldades de aprendizagem. Entretanto, na entrevista, a professora
expressou claramente que as dificuldades dos alunos eram creditadas aos seus
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pais, frases como ‘sem a ajuda da família, não é possível’, ‘também com os pais que
eles têm, vai esperar o que desses alunos?’ eram usadas freqüentemente para
justificar a ausência de alguma prática mais adequada por parte dela.
A professora afirmou que fazia uma reflexão da sua prática, observando os
acontecimentos da sala de aula e tentando mudar o que não deu certo. Entretanto,
vários trechos de sua fala, evidenciam que a reflexão dela, muito provavelmente
servia para corroborar a prática dela, ao invés de transformá-la.
A professora ao justificar porque não utilizava fatos trazidos pelos alunos
para motivá-los para a aula, afirmou que vários dos alunos eram filhos de
presidiários, logo recebiam influências negativas das famílias. ‘Na segunda-feira,
querem falar sobre a cadeia [provavelmente porque iam visitar os pais no final de
semana], também vai esperar o que desses alunos?’.
Não se observou traços de afetividade e respeito considerados
fundamentais nas relações professor-aluno (Brasil, 1998; Utsumi e Mendes, 2000),
ao contrário, a professora emitia julgamentos preconceituosos até sobre o corte de
cabelo dos alunos, que era praticamente raspado, afirmando que pelo corte já dava
para perceber o que os alunos seriam no futuro, fazendo referência ao corte de
cabelos dos presidiários.
Ao comentar sobre algum aluno com dificuldades de aprendizagem ou
problemas familiares, a professora apontava a criança com o dedo, sem se acanhar
com o fato da criança estar vendo ou ouvindo os comentários que estavam sendo
feitos sobre ela. E quando aparecia algum funcionário da escola, ela fazia questão
de repetir seus comentários: ‘Ah, estava aqui contando para fulana, que ciclano
(apontando para algum aluno) ...’ , parecia que sentia uma certa necessidade de que
todos soubessem como era a sala dela, os alunos que ela tinha. Talvez até, para
justificar o rendimento da turma e a sua prática pedagógica.
Em seu discurso a professora exaltava como agia de forma inovadora.
Segundo ela, fazia uma avaliação contínua dos alunos, por meio dos exercícios que
dava em classe e das duas provas com conteúdo da apostila que aplicava no
bimestre. Entretanto as observações de sua prática em sala de aula mostraram que
seu comportamento não condizia com a sua fala. Em alguns momentos, ela não
conseguia lidar com a classe e gritava descontroladamente com as crianças.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos dados evidenciou que o discurso dos professores da amostra
era distante de sua prática pedagógica como encontrado por Micotti (1998).
A classificação das turmas com a finalidade de facilitar o trabalho
pedagógico e melhorar o rendimento, na prática não ocorria. Os alunos
considerados mais fracos, tinham poucos incentivos para construírem os
conhecimentos que os tornariam aptos a evoluírem para as turmas média ou forte.
Na verdade, a prática pedagógica do professor parecia contribuir para que eles
permanecessem na condição de incapazes de aprender.
A afirmação dos professores sobre conhecerem bem os PCNs devido a um
curso preparatório para o concurso de professores e que eles não realizavam
estudos ou discussões nos HTPCs parecem indicar duas coisas: que eles não
conheciam de fato a importância daquelas propostas, apenas incorporaram o
discurso para serem aprovados no Concurso e, o baixo interesse em discutir
estratégias ou ações conjuntas que pudessem contribuir para a minimização das
dificuldades de aprendizagem de alguns alunos.
Zeichner (1993) assevera que a reflexão coletiva sobre as práticas
pedagógicas funciona como uma formação continuada para os professores, pois um
apóia o desenvolvimento do outro, além de se conscientizarem que todos enfrentam
dificuldades semelhantes no exercício da docência.
Essa reflexão, como afirma Perrenoud (2002) deveria servir para
transformar as práticas pedagógicas. Entretanto, alguns professores, às vezes para
se protegerem do julgamento de outros professores utilizam a reflexão para justificar
práticas inadequadas como no caso da professora da classe considerada fraca,
desta amostra.
Bons Cursos de Formação, como preconizam diversos pesquisadores
(Zeichner, 1993; Perrenoud, 2002; Mizukami e outros, 2003; Marques e Utsumi,
2003) deveriam contribuir para que os futuros professores se tornassem
profissionais reflexivos, com capacidade de diagnosticar e intervir nas situações de
aprendizagem, sentindo-se parte do problema e da solução.
Finalmente, reforçando a importância das transformações das práticas
pedagógica, transcreve-se o alerta, que se segue:
6928
(...) a prática excessiva que a usura do tempo torna repetitiva e rotineira, faz o
conhecimento cada vez mais tácito, inconsciente e mecânico, levando o professor
ao erro de reproduzir automaticamente sua aparente competência, empobrecendo
seu pensamento, tornando-o insensível às peculiaridades da ação pedagógica e
levando-o a cometer erros que não tem mais a capacidade de detectar. (Marques
e Utsumi, 2003, p. 55)
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6929
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