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Crônica Fisiológica
Lívia dos Santos Pereira
2º lugar no Concurso de Crônicas Machado de Assis
Foi ontem. Mais um dia. Levantou, às cinco da manhã, o jovenzinho, e foi pra rua entregar
os jornais na caloi aro 20 que já não era mais a mesma. Três sacos cheios de outros saquinhos
iam pendurados no guidão da bicicleta.
Rapaz já bem conhecido nos bares da sua amada Itaguaí. Freqüentador assíduo dos
banheiros.
Matéria do dia: “A Crise do dólar”. “O que é que eu tenho a ver com isso?”, pensou. E
continua a entrega. Jornal zunindo nas varandas.
Depois de tanta entrega, rua de terra, rua de asfalto, paralelepípedo tem que ter o cafezinho
no bar do seu Inês (não teve culpa, o coitado, de ter esse nome... promessa da mãe). Discussão já
àquela hora da manhã!? Não se falava em outra coisa: a crise.
Estacionou seu veículo na calçada e adentrou. Nem pediu nada. Só sentou no banco alto em
frente ao balcão. Saindo o cafezinho!
A discussão acalorada aquecia o café e seus neurônios. E não tinha jeito: irritação era
banheiro na certa! Desceu do seu banquinho e lá se foi pelo corredor, em busca do alívio.
Aquele era seu templo. Amigo das ruas, não havia tempo pra passar em casa. A tarde ainda
o esperava, nas praias de Mangaratiba, com os biscoitos de polvilho. Pensando nisso, abriu a
porta. Nenhuma das três cabinas estava desocupada. Esperou, mas a impaciência agravava seu
estado.
“Encarecer os pacotes ou não?”, pensa enquanto espera. Não sabe fazer contas dessas que
os economistas fazem, então não chega a grandes conclusões sobre o aumento do preço de sua
mercadoria.
Sai um senhor ajeitando as calças. Até que enfim! Nem espera. Quase o atropela e entra
finalmente em seu recinto. Ritual: afrouxa o cinto, senta e... momento de refletir, pensar na vida.
Em quê? Ah, não dá mais tempo! Vamos embora, rapaz!
Retorna pelo mesmo corredor.
– Tá aqui, seu Inês, o dinheiro do café.
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– Ô, rapaz! Cê me deu setenta centavos!
– É.
– Mas tá R$. 1,40!!!
– Anh!?
– É a crise. Afetou o pão.
– Mas eu não pedi pão coisíssima nenhuma! E o senhor não vende pão!
– Mas compro. Aumentei o café pra pagar o pão que eu vou ter que comprar pra levar pra
casa.
– É um roubo! Toma logo! Não volto mais aqui!
Sai chateado, inspirando forte. Voltaria ao banheiro pra refletir, desanuviar... Ficou
nervoso, né? Intestino sensível demais. Mas conseguiu se controlar. Pegou a bicicleta e a estrada.
Até chegar ao “outro emprego” já teria decidido. E decidiu: “Melhor aumentar o polvilho.
De R$. 1 pra R$. 2. Se o freguês não aceitar faço um abatimento, mas não volto pra R$. 1, de
jeito nenhum!” E ele tinha ainda o jornal do dia. Ele sempre reservava um. Poderia usar como
prova.
Depois de muita estrada, praia à vista! E precisou mesmo da prova.
– Só R$. 2. Vai querer só um mesmo? – pergunta ao freguês.
– Quero mais não. Muito caro!
– Tá aqui, ó! Não lê jornal, não? Crise do dólar... – mostrando a matéria.
– Deixa eu ver...
– Ó...
– É. Tá bom, mas não dá pra abaixar um pouquinho?
– R$. 1,80.
– Tá. Vou querer. Mas, só um mesmo.
Não foi tão bem-sucedido com outros fregueses. Não vendeu tanto quanto antes. Já de tarde
ainda tinha um cheio, dos três sacos que levara. Bateu desespero. Banheiro de quiosque por perto.
E lá foi ele. Encostou a caloi no quiosque e sentou no trono. Ouvia as ondas de lá de dentro. Isso
o acalmou. A esperança voltou. “Será que ninguém entende de economia?” Tentaria ser mais
convincente nas vendas.
Abriu a porta, cheio de fé e biscoitos. Cadê a bicicleta!? Vai o malandro, mais ou menos
doze anos, pedalando. Seu instrumento de trabalho indo embora.
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Foi atrás do prejuízo. Correndo. Aparece a polícia. Como foi que percebeu tão rápida a
confusão!? Nunca tinha visto nada acontecer em anos de trabalho. Mas, em tempos de crise, as
coisas só pioram...
– Parando aê! Polícia! Polícia! – grita o policial, correndo atrás dos dois.
– Pega lá, seu polícia! Sou eu o ladrão não! Ó o cara com a minha caloi! – o vendedor
correndo e ofegante.
– Parado! Quer roubar a caloi do garoto!?
– Eu nada... – já cansado.
Polícia correndo atrás da vítima. Vítima do garoto, vítima da polícia, vítima de mais uma
crise. Tá muito longe o garoto. Vai “em cana” o dono dos biscoitos. Por que mesmo? Ah, deve
ser por conta da tal crise. Coitado do PM. Deve estar com a cabeça nos EUA...
Delegacia. Vai ter de explicar porque estava tentando furtar a “magrela do garoto”. Pediu ao
policial pra trocar a ligação telefônica por uma visita ao banheiro, afinal, não tinha família, muito
menos advogado. Pedido concedido. O policial o acompanhou. Ficou esperando na porta.
“Quanta “literatura” nas paredes! Cadê a privada!? Ah, tá... Atrás daquele murinho. Sem
porta esse banheiro.”, ele nunca tinha freqüentado o lavabo de uma delegacia.
Ritual feito. Pensou no dia. A história da crise. Era verdade mesmo. E ele entendeu o que
tinha a ver com tudo aquilo: semana passada um gringo pagou o polvilho com uma nota de um
dólar. Resolveu então acabar com sua crise: tirou a nota do bolso, olhou, olhou e sentiu o peso
inútil do mundo em suas mãos. Tinha a solução pra toda essa balbúrdia: dobrou a nota, antes
procurou o papel, mas não havia mesmo por ali, então percebeu que era mais um sinal pra que
resolvesse tudo. Limpou a sujeira com o dólar, jogou na lixeira e puxou a descarga. Depois dessa
atitude louvável notou-se o respeito do policial por ele. Fez questão de acompanhar o vendedor
até a porta, mas não sem antes apertar suas mãos e comprar um pacote de biscoito. A R$1, é
claro.
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