Por que o transexual não pode ser vítima de estupro? Cláudia Regina da Rocha Loures1 Sumário: 1. Introdução - 2. Do princípio da dignidade da pessoa humana - 3.Sobre o aspecto penal - Da liberdade sexual - 4. Conclusão - Referências 1. Introdução O transexualismo talvez seja, ainda nos dias atuais, o tema mais polêmico devido ao preconceito e a falta de informação da sociedade. Principalmente as pessoas mais religiosas refletem uma parcela desse preconceito, pois não aceitam o aspecto psicológico do ser humano, somente o físico, ou seja, se embasam para excluir da sociedade aqueles que não apresentam os padrões sociais exigidos. No universo complexo da transexualidade, há, na verdade, uma transposição na correlação do sexo anatômico e psicológico, isto é, para o transexual masculino há a convicção de pertencer psiquicamente ao sexo feminino, porém possui genitais masculinos. O transexualismo tem uma alteração na psique, pois é caracterizado pela inconformidade de que o sexo biológico é um e o sexo psicológico é outro. Isto acarreta ao indivíduo transexual um desconforto perante a sociedade, visto que, muitas vezes a dor e o sofrimento são tão grandes, pois se sentem presos a um corpo que não condiz com sua realidade e estado emocional. O transexual masculino para o feminino é aquele que sofre uma dicotomia físicopsíquica, possuindo um sexo físico, distinto de sua conformação sexual psicológica. Há um descompasso entre o sexo anatômico e o psíquico, pois o transexual acredita ter nascido 1 Pós-graduanda em Direito Público e Privado pela Universidade Estácio de Sá - UNESA, em Convênio com a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ, formada pela EMERJ e pelas Faculdades Integradas Bennett - FIB, Advogada no Estado do Rio de Janeiro. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 1 num corpo que não corresponde ao gênero por ele exteriorizado social, espiritual, emocional e sexualmente. É, por isso, que a grande maioria dos transexuais, no intuito de adequar o sexo biológico com o psíquico, busca após um período de tempo de tratamento hormonal e psicológico, realizar a cirurgia para a troca de sexo. Nesse caso, a cirurgia de mudança de sexo; redesignação do estado sexual; redesignação morfológica; ablação ou também conhecido como vaginoplastia, que é uma cirurgia que remove os testículos e a parte interna do pênis, usando as partes para feitura da vagina, pode se apresentar como um modo necessário para a conformação de seu estado físico e psíquico. Depois de realizada a cirurgia, o transexual enfrentará problemas jurídicos, pois a aparência física é de um sexo e os documentos civis de outro. Para evitar maiores constrangimentos perante a sociedade, o transexual busca, o Poder Judiciário para, regularizar sua situação, com a modificação, em seus documentos, do prenome e do sexo para o feminino, isto é, procura adequar o sexo psíquico e físico com o sexo jurídico. A partir de 1997, o Conselho Federal de Medicina - CFM, através da Resolução nº. 1.482/972, passou a aceitar a realização da operação de mudança de sexo, em hospitais universitários ou públicos, em indivíduos que apresentam a síndrome transexual. A síndrome é reconhecida, segundo a Resolução, pelo desconforto no tocante ao sexo anatômico natural, pelo desejo expresso de eliminar os genitais masculinos, e pela permanência do distúrbio de forma contínua e consistente, desde que ausentes outros transtornos mentais. Para a operação de transgenitalização, é necessário, ainda, que o paciente, seja maior de 21 anos e que esteja em acompanhamento por dois anos por uma equipe multidisciplinar. A cirurgia de adequação do sexo é de natureza terapêutica, pois o transexual não quer simplesmente mudar de sexo, mas apenas a genitália externa, adequando-a ao sexo psicológico. Posteriormente, foi editada a Resolução nº. 1.652/023, que revogou a Resolução nº. 1.482/97, autorizando a realização da cirurgia de mudança de sexo, independentemente de autorização judicial, em casos de transexualismo comprovado, fixando rígidos critérios para ser realizada como a necessidade do paciente ser maior de 21 anos, de não possuir características físicas inapropriadas para a cirurgia, devendo ter diagnóstico médico de transgenitalismo, indicando o cabimento da cirurgia, após uma avaliação minuciosamente 2 Encontrado 18/10/2006. 3 idem no site http://www.portalmedico.org.br/php/pesquisa_resolucoes.php?portal=. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica Acessado em 2 realizada por uma equipe multidisciplinar constituída por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social durante o período mínimo de dois anos. Convém ressaltar que o transexual não se confunde com o homossexual ou com o travesti, cada um possui a sua peculiaridade. Heleno Cláudio Fragoso, fez uma distinção entre o homossexualismo com o transexualismo e o travestismo e assevera em seu parecer datado de 17 de outubro de 1978 que: [...] Entende-se por transexualismo uma inversão da identidade psicossocial, que conduz a uma neurose reacional obsessivo-compulsiva, que se manifesta pelo desejo de reversão sexual integral.[...] O transexualismo não se confunde com o homossexualismo.[...] Os homossexuais convivem com o próprio sexo e estão certos de pertencer a ele. Os costumes e vestuários próprios do sexo masculino não os agridem psicologicamente, embora alguns prefiram uma aparência bizarra e excêntrica, afetada e efeminada. Outros, ao contrário, desejam uma aparência máscula, cultivando atributos masculinos (barba, bigode, costeletas) e vestuário adequado. Os transexuais, ao contrário, sentem-se como indivíduos “fora do grupo” desde o início, não participando com espontaneidade e integração do ambiente por eles freqüentado. Por seu turno, os travestis, de um modo geral, podem levar vidas duplas, apresentando-se ora como indivíduos do sexo masculino, ora travestidos. Há uma “tolerância” em relação a ambos os comportamentos em que há predominância de um ou de outro por um período variável, às vezes de certa maneira cíclica ou temporária, ocasional. Do travesti difere o transexual fundamentalmente no desejo compulsivo de reversão sexual, 4 que os travestis não apresentam, e no comportamento mais feminino . Dessa forma, o transexual é indivíduo de personalidade completamente diferente do homossexual. Enquanto que este está perfeitamente identificado com a sua condição, aquele – alma feminina encarcerada em corpo masculino – apresenta uma tal inconformidade que procura livrar-se da loucura ou do suicídio submetendo-se a operação de mudança de sexo que é irreversível. Em conformidade com tudo que foi dito, para aquele transexual masculino que possui psique feminina, que fez a cirurgia de redesignação do sexo e, perante o Poder Judiciário, tem a autorização para modificar seu nome no registro civil de pessoas naturais para nome e sexo feminino, pode-se concluir que estamos diante de uma relativização do sexo, ocorre assim, o aparecimento de uma nova mulher. Há, na jurisprudência, julgados como o do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – TJ/RJ, que concederam para o transexual operado a modificação do seu prenome e sexo para o feminino. Seguem abaixo as seguintes Ementas: 4 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Revista dos Tribunais, ano 70, v. 545, p. 300-301, mar. 1981. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 3 5 Apelação Cível 2005.001.01910 da Quarta Câmara Cível, cujo Relator foi o Desembargador Luis Felipe Salomão, julgado em 13/09/2005. TRANSEXUALISMO REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO RETIFICACAO MUDANÇA DE PRENOME MUDANÇA DO SEXO Apelação. Registro Civil. Transexual que se submeteu à cirurgia de mudança de sexo, postulando retificação de seu assentamento de nascimento (prenome e sexo). Adequação do registro `a aparência do registrando que se impõe. Correção que evitara repetição dos inúmeros constrangimentos suportados pelo recorrente, além de contribuir para superar a perplexidade no meio social causada pelo registro atual. Precedentes do TJ/RJ. Inexistência de insegurança jurídica, pois o apelante manterá o mesmo número do CPF. Recurso provido para determinar a alteração do prenome do autor, bem como a retificação para o sexo feminino. Sobre o mesmo assunto, foi abordado o seguinte entendimento em outra Câmara Cível do nosso Tribunal: 6 Apelação Cível 2002.001.16591 da Décima Sexta Câmara Cível, cujo Relator foi o Desembargador Ronald Valladares, julgado em 25/03/2003. REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO MUDANÇA DO SEXO RETIFICAÇAO Apelação. Registro civil. Retificação do registro de nascimento em relação ao sexo. Passando, a pessoa portadora de transexualismo, por cirurgia de mudança de sexo, que importa na transmutação de suas características sexuais, de ficar acolhida a pretensão de retificação do registro civil, para adequá-lo `a realidade existente. A constituição morfológica do individuo e toda a sua aparência sendo de mulher, alterado que foi, cirurgicamente, o seu sexo, razoável que se retifique o dado de seu assento, para "feminino", no registro civil. O sexo da pessoa, já com o seu prenome mandado alterar para a forma feminina, no caso concreto considerado, que é irreversível, deve ficar adequado, no apontamento respectivo, evitando-se, para o interessado, constrangimentos individuais e perplexidade no meio social. As retificações no registro civil são processadas e julgadas perante o Juiz de Direito da Circunscrição competente, que goze da garantia da vitaliciedade, e mediante processo judicial regular. A decisão monocrática recorrida não contém nulidade insanável. Preliminares rejeitadas. Recurso, quanto ao mérito, provido, para ficar modificado, parcialmente, o julgado de 1º grau. Dessa forma, a problemática do transexualismo vem suscitando grande interesse pela sua indiscutível atualidade passando a integrar a pauta dos psicólogos e dos nossos tribunais, pois o sexo não pode mais ser considerado apenas como um elemento fisiológico, portanto, geneticamente determinado e, por natureza, imutável. 2. Do princípio da dignidade da pessoa humana 5 6 Apelação Cível 2005.001.01910. Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br . Acesso em: 18/05/2006. Apelação Cível 2002.001.16591. Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br . Acesso em: 18/05/2006. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 4 A problemática do indivíduo transexual é muito tormentosa, pois além de não aceitar o seu aspecto físico que não harmoniza com o psíquico, tem que enfrentar aqueles que não o aceita e, também, o coloca às margens da sociedade considerando-o como pessoa indigna de qualquer respeito. Um indivíduo, pelo fato de integrar o gênero humano, já é detentor de dignidade. Esta é a qualidade ou atributo inerente a todos os homens, decorrente da própria condição humana, que o torna credor de igual consideração e respeito por parte de seus semelhantes. Constitui a dignidade um valor universal, não obstante as diversidades sócio-culturais dos povos. A dignidade pressupõe, contudo, a igualdade entre os seres humanos. E é a partir da ética que se extrai o princípio de que os homens devem ter os seus interesses igualmente considerados, independentemente de raça, gênero, capacidade ou outras características individuais. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental que está consagrado no inciso III, do artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, por sua vez, atua como sendo uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. A dignidade não é algo que alguém precise postular ou reivindicar, pois decorre da própria condição humana que pode exigir não a dignidade em si, porque este cada indivíduo já a traz consigo, mas respeito e proteção a ela. O princípio da dignidade humana, com toda a sua carga valorativa, também atua como critério interpretativo do inteiro teor do ordenamento constitucional. Relaciona-se, de forma mais próxima com duas categorias de direitos que são os direitos da personalidade e os direitos fundamentais. O princípio da dignidade humana como direito fundamental, constitui valor-guia de toda a ordem jurídica, caracterizando-se indispensável à ordem social. Entende Ingo Wolfgang Sarlet que: O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direito e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 5 dignidade da pessoa humana e esta, por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. (SARLET, 2001, p. 59). A dignidade humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, pode ser definida como um conjunto de direitos e deveres que, agregados, vão compor o quadro de valores do ser humano. A pessoa é um bem a ser protegido pelo Estado e a dignidade é o seu valor, a base lógica dos direitos do homem, em que pressupõe como condição primária à vida, a integridade física e psíquica, a liberdade, a igualdade e a segurança. O respeito à dignidade humana, não constitui ato de generosidade, mas dever de solidariedade que significa um pacto pelo qual as pessoas se obrigam uma pelas outras e cada uma por todas. 3. Sobre o aspecto penal – da liberdade sexual No estupro, crime contra a liberdade sexual, o bem jurídico que se quer proteger é a liberdade e a autodeterminação da mulher, observado o seu direito de dispor do uso de seu corpo no exercício pleno de sua sexualidade. É configurado na legislação como ato de constranger que significa compelir, forçar, obrigar a mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Então, indaga-se o seguinte questionamento desse artigo científico: Por que o transexual não pode ser vítima de estupro? Uma vez que, com a redesignação morfológica, passa a possuir cavidade vaginal? A razão desse artigo científico é de sustentar uma mudança na interpretação da expressão “mulher”, dando–lhe um sentido mais amplo, isto é, deve ser, também, considerada mulher aquela que possui todas as funções psíquicas femininas, que tenha feito a redesignação de sexo, modificado o nome e sexo para o feminino no registro civil de pessoas naturais em decorrência de determinação judicial. Deve haver uma modificação na interpretação da expressão “mulher”, por haver um novo conceito jurídico. A interpretação nada mais é do que o processo lógico que procura estabelecer a vontade contida na norma jurídica. Interpretar é desvendar o conteúdo da norma. (NORONHA, 2001, p. 72). Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 6 Qualquer indivíduo que não entende a complexidade de uma pessoa que possui um distúrbio psíquico, que um transexual tem de não aceitar o sexo do qual nasceu não se harmonizando com o sexo de sua psique, responderia que não pode ser vítima de estupro porque não é mulher. Ora, qual o sexo que deve prevalecer? Aquele que é rejeitado pelo indivíduo transexual, ou aquele que domina o ser em sua plenitude? Por isso, que muitos transexuais fazem a cirurgia de vaginoplastia para adequar o sexo da qual a mente, a psique pertence. Não se trata simplesmente de uma cirurgia para mudar de sexo, o transexual reclama que a colocação de sua aparência física fique em concordância com seu verdadeiro sexo. Para melhor explicação sobre o problema vale a pena ler o depoimento de um transexual, candidato à alteração de identidade realizada em março de 20047 Não é fácil conviver com isso, algo que não consigo entender de onde vem. Mas chegou para mim e me tomou conta. Espero que minha vida caminhe daqui para adiante, para que eu consiga estudar e crescer como uma pessoa livre, sem que me coloquem em dúvida ou suspeita de ser alguém anormal ou de estar encenando alguma coisa que não sou. O fato é que, com a cirurgia, a pessoa transexual passa a ter dignidade, isto é, passa a sentir definitivamente como uma verdadeira mulher. Dessa forma, deve ser interpretada a expressão “mulher” de forma mais ampla, ou seja, abrangendo as mulheres que nasceram e as quais se tornaram mulheres graças à intervenção cirúrgica cuja identidade nova fora adquirida através de um devido processo legal reconhecido pelo Poder Judiciário. O entendimento doutrinário deverá mudar para esse sentido, em razão do princípio da personalidade e da dignidade da pessoa humana, sendo este um dos princípios fundamentais da Constituição Federal. Infelizmente, a doutrina pouco fala sobre o assunto referente ao transexual, submetido à cirurgia de redesignação de sexo, por entender ser homem e jamais uma mulher. Só se faz menção a essa interpretação literal da expressão “mulher” indicada no tipo penal do artigo 213 do Código Penal e, havendo o delito, o crime praticado será de atentado violento ao pudor porque há na relação entre agressor e vítima pessoas do mesmo sexo. Interpreta-se que o “sujeito passivo é somente a mulher, pois apenas esta pode ser obrigada a realizar cópula vagínica”. (CAPEZ, 2005, p.5). 7 SOUZA, Carlos Alberto Crespo. Transexualismo: diagnóstico, tratamento e alteração jurídica da identidade genérica. Artigo encontrado no site http://www.polbr.med.br/arquivo/artigo0404.htm . Pesquisa realizada no site http://www.google.com.br . Acesso em: 13/05/2006. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 7 Pode-se dizer que a doutrina majoritária entende que se a vítima de violência sexual com conjunção carnal for um transexual haverá a prática de atentado violento ao pudor, porque o transexual não é mulher e, somente a mulher poderá ser o sujeito passivo desse crime. Partindo dessa premissa, só seria aceitável esse entendimento acerca do transexual que não fez a vaginoplastia, mas para aquele que fez a redesignação de sexo não pode ser aceita essa interpretação, uma vez que possui a cavidade vaginal. No Código Penal, o estupro está tipificado no artigo 2138 que diz: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, entende-se por conjunção carnal a cópula vagínica. No crime de estupro, tutela-se a liberdade sexual da mulher, ou seja, de não ser forçada violentamente a manter conjunção carnal com quem ela não quer. A doutrina majoritária entende que: A conjunção carnal é somente a cópula vagínica, ou seja, a introdução do pênis na cavidade vaginal da mulher. Não se compreendem nesse conceito outras formas de realização do ato sexual, considerados coitos anormais, por exemplo, a cópula anal, oral. Tais atos sexuais poderão constituir o crime de atentado violento ao pudor. Desse modo, aquele que constrange outrem, do mesmo sexo ou não, a praticar com ele ato libidinoso diverso da conjunção carnal pratica o crime do art. 214. (CAPEZ, 2005, p.2) Conforme Álvaro Mayrink ao mencionar sobre o transexual entende: A cópula deve ser entendida como resultado de uma relação heterossexual de conjunção carnal entre órgãos sexuais masculinos e femininos. Cuida-se de crime próprio, pois só o homem pode ser sujeito ativo, não se admitindo a possibilidade excepcional da mulher figurar no pólo ativo. Fica excluído o transexual, ainda que operado e com outro nome no registro civil, mas constante a ressalva de que se trata de transexual, pois a norma fala em mulher (pessoa do sexo feminino). (MAYRINK, 2001, p. 1418) E conclui que: O estupro é o mais grave dos crimes contra a liberdade sexual porque é o que mais intensamente lesiona a liberdade e a autenticidade da expressão da atividade sexual da mulher. A conduta típica consiste em constranger mulher à conjunção carnal. A conjunção carnal no sentido legal é a cópula que deve ser entendida como o resultado de uma relação heterossexual de conjunção carnal entre órgãos sexuais masculinos e femininos. (MAYRINK, 2001, p.1420) O crime do artigo 214 do Código Penal é o atentado violento ao pudor que consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. O objeto jurídico tutela-se a liberdade sexual da mulher e do homem, uma vez que a lei faz referência à prática de atos libidinosos 8 BRASIL. Código Penal - Código Processual Penal – Constituição. 8. ed. São Paulo: RT, 2006. p.369. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 8 diversos da conjunção carnal, pode manifestar-se de diversas formas, até mesmo sem o contato de órgãos sexuais. Há o entendimento doutrinário quanto ao atentado violento ao pudor que: “o bem jurídico protegido é a liberdade sexual do homem e mulher, indiferentemente, ao contrário do que ocorre no crime de estupro, que protege exclusivamente esse direito de pessoa do sexo feminino”. (BITENCOURT, 2004, p. 236). Portanto, prevalece que somente a mulher pode sofrer a violência do crime de estupro, haja vista que o tipo penal menciona constranger “mulher” à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça. Todavia, o transexual que se submete à cirurgia de vaginoplastia adquire um órgão feminino construído, então por que não poderia ser vítima de estupro? Alguém pode até questionar que mesmo havendo uma cavidade vaginal constituída por cirurgia, não poderá esse transexual ser considerada mulher por não ter ovários e jamais poder procriar. Ora, isso seria um absurdo porque existem mulheres naturais que são estéreis ou por outros problemas de saúde tiraram seus ovários e, por não poderem procriar, serão consideradas menos mulheres do que aquelas que podem procriar? Não teria nenhum sentido. Na mencionada Apelação Cível julgada pelo Desembargador Ronald Valladares enfrenta sobre essa questão e esclarece que : [...] o não possuir ovários e o não poder procriar o recorrente, não deve ser causa impeditiva de ser considerado pessoa do sexo feminino, pois, ao contrário, como ficariam definidas as mulheres que passaram por cirurgias 9 de extração dos ovários . Assim sendo, o único doutrinador que aborda sobre esse assunto mais especificamente ao que se refere ao transexualismo é o GRECO (2006, p. 530 - 531), entende que: [...] se houver determinação judicial para a modificação do registro de nascimento, alterando-se o sexo do peticionário, teremos um novo conceito de mulher, que deixará de ser natural, orgânico, passando, agora, a um conceito de natureza jurídica, determinado pelos julgadores. E conclui que: [...] aquele em que passou a ser reconhecido judicialmente como do sexo feminino, na hipótese de ser violentado sexualmente, ocorrendo a penetração na neovagina, o fato poderá ser classificado como estupro. Dessa forma, para os transexuais que se submeteram à cirurgia de modificação de sexo não seria correta aquela interpretação doutrinária, uma vez que tornaram fisicamente mulheres com a cirurgia, além de possuírem a psique feminina, a modificação do prenome e 9 Apelação Cível 2002.001.16591, da Décima Sexta Câmara Cível, julgado em 25/03/2003. p.5. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 9 sexo para o sexo feminino no registro civil e, além do mais, se houver uma violência sexual tipificada no artigo 213 do CP, haverá a conjunção carnal porque há cavidade vaginal. A conduta delitiva do autor do crime de estupro é de constranger à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça uma mulher, então, o dolo, a vontade do agente está em obter conjunção carnal que é a cópula vagínica e para que ocorra a cópula vagínica deve existir uma cavidade vaginal. Por essa razão deve-se fazer uma interpretação ampla da expressão mulher, haja vista que está, atualmente, ocorrendo uma relativização do sexo, uma vez que os próprios Tribunais de Justiça estão compreendendo que o transexual trata-se de um ser feminino. A interpretação da expressão “mulher” no crime de estupro deverá ser ampliada para a transexual que fez a redesignação morfológica, uma vez que o dolo do sujeito ativo para a prática do delito é, repito, de estuprar, constranger a vítima mediante violência ou grave ameaça à conjunção carnal, sendo essa à vontade e intenção, o sujeito ativo desse delito, deverá ser punido pelo crime do qual teve a intenção de cometer que é o estupro e não atentado violento ao pudor como interpreta a doutrina. No estupro o elemento subjetivo geral é o dolo, constituído pela vontade consciente de constranger a vítima, contra a sua vontade à prática de conjunção carnal. Um ponto interessante é que alguns países da Europa como a França e Portugal, unificaram os crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um crime só, isto é, qualquer violação a liberdade sexual será tipificado como estupro. No Código Penal pátrio, há a separação dos tipos penais, isto é, se houver conjunção carnal há o crime de estupro, ou caso haja ato libidinoso diverso da conjunção carnal há o delito de atentado violento ao pudor. Nosso legislador afastou os denominados atos contra natura separando a cópula vaginal, em que o sujeito passivo só pode ser a mulher, do coito oral e anal, que tonificam o injusto de atentado violento ao pudor, pois não são órgãos genitais. É o ponto de maior discussão nas reformas penais em relação aos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual realizadas em alguns países. Situa-se na unificação dos conceitos de conjunção carnal e ato libidinoso (coito vaginal, anal e oral), partindo do princípio de que inexiste distinção entre a ilicitude do fato com relação ao local da penetração realizada sem o consentimento da vítima, constituindo a conjunção carnal, sendo indiferente o sexo do sujeito passivo. Tal orientação é adotada pelo Código Penal francês, que entrou em vigor em 1º de março de 1994, no sentido de que a violação é definida como todo o ato de penetração sexual, de qualquer natureza, cometido sobre outra pessoa mediante violência, constrangimento, ameaça ou surpresa.[...] O Código Penal português dá alargamento ao conceito de violação, que passou a abranger, além da cópula e do coito anal, também o coito oral, seguindo a orientação do Código Penal francês e por ter entendido que as violações da liberdade sexual da vítima são igualmente intensas e estigmatizantes. (MAYRINK, 2001, p. 1.413-1.414) Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 10 Por fim, esses países europeus resolveram de uma forma inteligente uma controvérsia doutrinária. Qualquer ato que afronte a liberdade sexual de uma pessoa deve ser considerado como uma violação grave tipificada como estupro, independente do local da penetração realizada, sem o consentimento da vítima. 4. Conclusão Diante de tudo que foi exposto, existem caminhos que podem ser percorridos. O caminho mais rápido seria uma mudança na interpretação da doutrina pátria em aceitar que há, nos dias atuais, uma relativização do sexo. Os doutrinadores têm que se sensibilizar com a realidade dessa situação e ampliar seus horizontes jurídicos para aceitarem que há uma mudança na sociedade e, que a interpretação da norma seja no sentido de que o transexual operado está inserido no conceito de “mulher” expresso no artigo 213 do Código Penal brasileiro. Pode-se constatar que já ocorre nos Tribunais de Justiça, uma mudança de interpretação, uma vez que determinam a necessidade da alteração do registro civil de pessoas naturais para o sexo feminino de acordo com o aspecto físico que o indivíduo apresenta, evitando, assim, constrangimentos individuais e perplexidade no meio social. O Poder Judiciário tem que ser independente e ter a coragem de inovar, de enfrentar os tabus e de reconhecer a realidade dos fatos que estão aparecendo à sua porta, adequando a eles a legislação existente. O outro caminho seria mais longo, isto é, deverá ocorrer uma reforma urgente no Código Penal brasileiro – parte especial, para se adequar à realidade e as transformações da sociedade. A legislação penal, principalmente no que concerne aos crimes contra a liberdade sexual poderiam ser modificados em conformidade à realidade social ampliando a expressão “mulher” para “qualquer mulher”, ou simplesmente a suprimindo, no delito de estupro. Por outro lado, como outra solução para a reforma do código penal, que unifique os tipos penais dos crimes contra a liberdade sexual por entender que as violações existentes no delito do estupro e do atentado violento ao pudor, conjunção carnal e ato libidinoso, por serem crimes intensos e afrontosos para qualquer individuo, devam estar num mesmo tipo penal, considerar unicamente como estupro, conforme está ocorrendo nos países europeus como a França e Portugal. Depende, portanto, de uma nova interpretação da norma jurídica e vontade política. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 11 A interpretação da norma jurídica não deve ficar estática, deve acompanhar as mudanças que ocorrem na sociedade, para adequar o fato em conjunto com a norma jurídica e os princípios. Não são as leis que mudam a realidade. É a realidade que muda as leis, assim como, a interpretação jurídica. Diante disso, aos transexuais que se submeteram à cirurgia de vaginoplastia, caso sofram violência com conjunção carnal, devem ser respeitados quanto a sua aparência física e psíquica, tratando-os com dignidade, ou seja, aceitando-os como uma nova mulher. Referências BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2004. v.4. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Código penal - Código processual penal - Constituição. 8. ed. São Paulo: RT, 2006. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial: dos crimes contra os costumes e dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359-H). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v.3. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resoluções, 1.482/97 e 1.652/02. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/php/pesquisa_resolucoes.php?portal=. Acesso em: 18 out. 2006. COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. 5. ed. atual. e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2001. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Transexualismo: conceito: distinção do homossexualismo. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 70, v. 545, p. 300-301, mar. 1981. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Niterói, RJ: Impetus, 2006. v. iii. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 12 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. 6. ed. atualizada por Adalberto José Q.T.de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 1. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Civil nº 2002.001.16591. Apelante: Carlos Alberto da Silva de Albuquerque. Relator: Desembargador Ronald Valladares. Diário Oficial, Rio de Janeiro, 08/04/2003, p. 29. Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br . Acesso em: 18 maio 2006. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Civil nº 2005.001.01910. Apelante: Wanderson Obeid Nascimento. 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Todos os artigos devem vir acompanhados de uma autorização expressa do autor para publicação do material, enviada pelo correio eletrônico, em arquivos específicos. Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 89, p.01-14, fev./mar, 2008 www.presidencia.gov.br/revistajuridica 13