RIO DE JANEIRO: TRABALHO E SOCIEDADE - Ano 2 - Nº 4 EDUCAÇÃO DAS ELITES NO BRASIL: A BÉLGICA NÃO EXISTE CRESO FRANCO* Na virada de 2001 para 2002, foram divulgados os resultados iniciais do Pro- grama Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), uma iniciativa da OCED que reuniu 29 países membros e três países convidados: Brasil, Rússia e Letônia. Já foi noticiado que o Brasil ficou bastante aquém dos demais países. Para que se possa ir além de ‘rankings educacionais’ e tirar as lições que o PISA oferece é importante levar em conta que a avaliação classificou os alunos testando em seis níveis de habilidade em leitura. Os dois níveis inferiores correspondem a habilidades básicas, relacionadas a localização de informações, compreensão e interpretação de texto em contextos bastante simples. Já os dois níveis mais elevados correspondem a habilidades que permitem compreender textos complexos, freqüentemente envolvendo relações entre argumentos e informações apresentadas em gráficos ou diagramas; ou a habilidades que permitem a compreensão significativa de textos que fazem uso de recursos estilísticos típicos da relação entre leitura e experiência estética. O PISA avaliou estudantes de 15 anos de idade, independentemente da série em que os alunos se encontravam. Na maior parte dos países da OCDE, alunos de 15 anos estão no ensino médio; já no Brasil, 42% dos alunos testados estavam na 7ª e 8ª série do Ensino Fundamental. O modo como a série cursada afeta os resultados do PISA pode ser inferido da comparação entre as tabelas 1 e 2 , que indicam o percentual de alunos de diferentes países nos diversos níveis de habilidade. A Tabela 1 refere-se a todos os alunos; já a Tabela 2 inclui apenas os alunos com pelo menos 9 anos de estudo, o que no Brasil corresponde a estar cursando o Ensino Médio. Para comodidade de leitura, compara-se apenas a situação de quatro países. Na Tabela 1 destaca-se: o alto percentual de alunos brasileiros e mexicanos nos níveis inferiores de habilidade em leitura; os bons e homogêneos resultados dos estudantes da Coréia do Sul; e o resultado fortemente heterogêneo dos alunos americanos. Já a comparação da Tabela 1 com a Tabela 2, na qual estão indicados os percentuais de alunos com 9 ou mais anos de escolaridade, indica que praticamente não há alteração nos resultados dos EUA e da Coréia do Sul. TABELA 1 Percentual de Alunos nos Diversos Níveis de Habilidade em Leitura ABAIXO DO NÍVEL 1 NÍVEL 1 NÍVEL 2 NÍVEL 3 NÍVEL 4 NÍVEL 5 23 32 28 13 3 1 Coréia do Sul 1 5 19 39 31 6 EUA 6 12 21 27 21 12 16 28 30 19 6 1 Brasil * Professor do Departamento de Educação da PUC-Rio. AGOSTO DE 2002 México Fonte: Base de dados do PISA 2000 (disponível em www.pisa.oecd.org). IETS 13 RIO DE JANEIRO: TRABALHO E SOCIEDADE - Ano 2 - Nº 4 TABELA 2 Percentual de Alunos com Nove Anos de estudo nos Diversos Níveis de Habilidade em Leitura Brasil ABAIXO DO NÍVEL 1 % NÍVEL 1 % NÍVEL 2 % NÍVEL 3 % NÍVEL 4 % NÍVEL 5 % 1 10 30 35 19 5 Coréia do Sul 1 5 19 39 31 6 EUA 5 11 21 28 22 13 10 26 34 22 7 1 México Fonte: Base de dados do PISA 2000 (disponível em www.pisa.oecd.org). Isso não é de se estranhar, já que quase todos os jovens de 15 anos cursam o correspondente ao ensino médio nos países mencionados. No caso brasileiro e mexicano, há redução sensível do percentual de alunos nos níveis mais baixos de habilidade em leitura. Muito embora ainda haja diferença expressiva entre os resultados do Brasil e do México e os dos demais países mencionados, há uma diminuição da diferença entre os países. Em parte, essa redução da diferença decorre da comparação entre grupos de alunos mais homogêneos em termos de escolarização – todos cursam o ensino médio; em parte, a redução da diferença decorre de maior homogeneidade socioeconômica, já que o atraso escolar no Brasil e no México atinge mais fortemente os mais pobres. O impacto da origem social dos alunos e do atraso escolar no rendimento dos estudantes já é conhecido há bastante tempo. Essa não é a contribuição relevante do PISA para a educação brasileira. Por isso, proponho a seguinte pergunta: o que acontecerá se compararmos grupos de alunos ainda mais homogêneos? Será que a diferença entre os países tenderá a diminuir ainda mais? A Tabela 3 explora esta situação, comparando as elites socioeconômica de diversos países. Em média, selecionou-se os 25% dos alunos de maior nível socioeconômico de cada país. Nos países relativamente mais pobres selecionou-se menor percentual de alunos – por exemplo, 7% de alunos brasileiros e mexicanos; em países mais ricos, selecionou-se mais de 25% dos alunos. O critério foi o de selecionar alunos com situação social comparável. Tipicamente, esses alunos têm pais com educação superior, a família possui computador e outros bens de consumo duráveis, acesso à Internet e a bens e atividades culturais, há enciclopédia em casa e os jovens possuem um lugar tranqüilo e apropriado para estudo. No Brasil, esse aluno tipicamente estuda em escolas particulares. A Tabela 3 sintetiza o resultados para diversos países. Na Tabela 3 destaca-se o baixo percentual de alunos brasileiros e mexicanos nos níveis mais elevados de habilidade. A análise volta, portanto, a enfatizar a diferença entre os países. Observe-se que isso não pode ser imputado à série que os alunos freqüentam; nem à privação econômica ou social. Afinal, estamos focalizando alunos que representam a elite socioeconômica brasileira. Algo de muito errado parece estar acontecendo com a educação no Brasil. E o problema agora não está na repetência, na escola pública ou na qualidade da educação oferecida para a maioria dos jovens. Meus colegas especialistas em 14 IETS AGOSTO DE 2002 RIO DE JANEIRO: TRABALHO E SOCIEDADE - Ano 2 - Nº 4 TABELA 3 Percentual de Alunos de Nível Socioeconômico e Cultural Elevado nos Diversos Níveis de Habilidade em Leitura ABAIXO DO NÍVEL 1 % NÍVEL 1 % NÍVEL 2 % NÍVEL 3 % NÍVEL 4 % Brasil 3 Coréia do Sul 0 NÍVEL 5 % 14 25 37 16 5 1 10 34 45 10 Espanha 1 4 15 35 36 10 EUA 1 5 14 26 29 24 Fed. Russa 2 7 23 30 24 9 França 1 2 11 29 38 19 México 2 7 26 34 24 3 Portugal 1 3 13 34 37 11 Fonte: Base de dados do PISA 2000 (disponível em www.pisa.oecd.org). leitura insistem que o problema relaciona-se com o que a grande maioria das escolas brasileiras se propõem a ensinar. No âmbito da avaliação da OCDE, Leitura não é um rótulo conveniente para dar conta das diversas línguas nacionais dos países participantes. Leitura é uma metacompetência – uma chave para novas aprendizagens – que precisa ser desenvolvida solidariamente pelas áreas de língua nativa, de Matemática, de Ciências, de História, e pelas demais áreas de estudo. Essa concepção privilegia o ensino contextualizado, em oposição à ênfase em aspectos normativos e de nomenclatura. Essas idéias não são novas no Brasil (aliás, creio que seja idéia que teve uma de suas origens no Brasil, no âmbito dos movimentos de educação popular da década de 1960). Universidades, secretarias estaduais e municipais e o MEC têm programas que enfatizam a leitura na concepção acima delineada. Mas o que os resultados do PISA nos mostram é que ainda há muito o que fazer para tornar esses programas efetivos no cotidiano da escola. Em um mundo integrado e competitivo, não tirar as lições que estão diante de nós terá um custo enorme. Durante a década de 1990, o Brasil fez avanços expressivos na educação básica. Foi implantado um sistema de financiamento da educação que estimula municípios, estados e a União a trabalharem na ótica da inclusão social. Isso já tem reflexo em alguns indicadores sociais. Mas o que o PISA sinaliza é que há problemas onde não esperávamos: com as exceções de praxe, a boa escola brasileira não é uma boa escola no mundo globalizado. Aprender essa lição é imprescindível. De pouco adiantará melhorar os indicadores educacionais do país e descobrir, no futuro, que nossa educação não enfatiza as habilidades demandadas contemporaneamente. Por mais duro que possa parecer, talvez a consciência de que a educação das elites seja tão dramaticamente deficiente ajude-nos a encarar de frente o conjunto de nossos problemas educacionais e a oferecer aos professores condições favoráveis para que tenhamos educação de qualidade para todos. Afinal, se em educação o lado Bélgica do Brasil não existe – ou, se existe, tem as dimensões de Andorra -, não podemos ser Belíndia. AGOSTO DE 2002 IETS 15