UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA
CURSO: Formação Básica
DISCIPLINA: Antropologia da Religião
3ª UNIDADE
ANÁLISES ANTROPOLÓGICAS DO FENÔMENO RELIGIOSO
Professor José Lisboa Moreira de Oliveira
Introdução
Nesta última parte do conteúdo da nossa disciplina, além de estudar a religião como sistema
de representação e como sistema cultural, queremos nos deter sobre o tema da cultura religiosa brasileira. A seguir podemos encontrar vários elementos que vão nos ajudar a compreender essa questão. Na primeira parte do texto abordaremos o tema da religião como sistema de representação e
como sistema cultural. Entre outras coisas falaremos da relação e da diferença entre sagrado e profano, da religiosidade e da religião, da magia e do sincretismo religioso. Na segunda parte trataremos
a questão da cultura religiosa brasileira.
Para falar sobre a cultura religiosa brasileira começaremos apresentando a situação no momento atual, visto que se constatou um aumento significativo da religiosidade em nosso país no final
do século passado e início deste século. O Censo de 2000 (veja tabela mais adiante), realizado pelo
IBGE, nos mostrou que quase 93% da população brasileira se declara adepta de uma religião. E o
contingente restante de pessoas não se diz necessariamente ateu. Apenas não se define como
membro de uma determinada religião.
Ao falarmos da religiosidade brasileira começaremos situando o aumento dessa religiosidade
dentro de um contexto de crise de paradigmas e de construção de novos referenciais. Em seguida
veremos a religiosidade brasileira dentro de um contexto maior de mundo e que marcou a história do
Ocidente, sobretudo a partir da década de 1980. Num terceiro momento abordaremos o tema específico do fenômeno da religiosidade brasileira, enfocando quatro aspectos que consideramos importantes: a) a matriz religiosa brasileira; b) o processo de configuração da matriz religiosa brasileira; c) o
sincretismo religioso brasileiro; d) as atuais características da religiosidade brasileira. Concluirá o
nosso estudo uma reflexão que retomará o conteúdo do início das aulas, abordando a questão do
diálogo entre ciência e religião na pós-modernidade. Por fim, falaremos da possível contribuição do
estudo da religiosidade e do fenômeno religioso para a construção da paz e de uma cultura de solidariedade.
1. A religião como sistema de representação e sistema cultural
Já tivemos oportunidade de mencionar nas duas primeiras unidades a relação que existe entre
religião e cultura. Tendo estudado o conceito de religião na primeira unidade e o de cultura na segunda unidade, agora nos é possível entender melhor essa relação. Os antropólogos costumam afirmar
que a experiência religiosa tem a sua autonomia e não está necessariamente condicionada pela estrutura de uma cultura. Todavia eles próprios reconhecem que quando a experiência religiosa se
transforma em religião institucional ela só pode ser entendida no contexto de uma cultura. Por isso
podemos afirmar que a religião é um sistema de representação e um sistema cultural. Sendo uma
rede de símbolos, com fronteiras bem demarcadas, com textos e normas precisas, a religião se expressa e se apresenta como uma cultura. Ela tem modelos de comportamentos, organização, estruturação, doutrina e ocupa espaços nos mesmos moldes de uma cultura. É uma cultura religiosa
(TERRIN: 85-86).
É claro que como as demais culturas a religião enfrenta uma série de desafios no atual momento. Enquanto filtro social, construção social, realidade pré-concebida que se põe no meio das
pessoas como “centro do mundo”, como sistema pré-estabelecido, a religião enfrenta hoje o desafio
da adaptação diante de um número sem fim de mudanças. Tais mudanças são sintetizadas pelo fenômeno da globalização, o qual provoca a crise das representações e estimula a interculturalidade
(MOREIRA, 2008: 17-35). De fato, a globalização impõe um ritmo no qual todas as culturas localizadas são aceitas, mas ao mesmo tempo consideradas provisórias. Assim sendo, qualquer religião hoje
tem legitimidade dentro de um planeta globalizado, mas também é facilmente descartada pela imposição de outras representações religiosas (Ibid.: 78-83).
A cultura da mídia contribui, com toda a sua potência, para que isso aconteça com mais rapidez. Disso resulta a interculturalidade, ou melhor, a internacionalização das culturas, a qual consiste
numa passagem do local para o mundial com muita facilidade e rapidez. Além da mídia as grandes
migrações, formadas por contingentes de pessoas que vão de um lugar para outro do planeta em
busca de condições mais dignas de vida, favorecem ainda mais essa internacionalização das culturas. Por isso é cada vez mais comum o processo de hibridação religiosa, ou seja, a formação de grupos religiosos que misturam elementos de várias crenças. Neste sentido as religiões mais antigas e
tradicionais entram em crise porque, muitas vezes, não conseguem manter a própria identidade e
nem tão pouco dar razões suficientes da sua existência (Ibid.: 80-82).
Tendo presentes essas considerações podemos agora estudar os elementos que compõem a
religião enquanto sistema de representação e sistema cultural. Os conceitos que vamos analisar podem sofrer a influência das mudanças que acabamos de mencionar. Por isso vamos ter sempre presente a possibilidade de flexibilidade desses conceitos, dependendo do ambiente onde nos encontraremos. As descrições feitas a seguir levam em conta o conceito clássico do fenômeno religioso e da
religião. Mas elas podem variar dependendo do grau de influência da globalização em um determinado ambiente religioso.
a) A religião como sistema
Vimos na unidade passada que a cultura funciona como uma espécie de lentes ou de óculos
que possibilitam uma determinada visão de mundo. A cultura é um sistema simbólico que dá significado às coisas e às ações humanas. Ora, a religião é também cultura, enquanto tentativa de buscar
significar e de responder a perguntas sobre a existência humana e sobre o sentido da vida. De fato,
ela “não é patrimônio exclusivo das igrejas. É fruto da história dos povos e a eles pertence como um
dos elementos mais significativo e importante de suas culturas; porque ela, antes de ser a estruturação de certa experiência religiosa é, e representa, o anseio humano de se transcender e de se encontrar com aquele Ser, no qual a humanidade encontra respostas às suas perguntas profundas”
(SCHIAVO: 77).
Enquanto sistema simbólico que dá significado às coisas e às ações humanas, a religião influencia e determina comportamentos e propõe normas. Ela colabora para a construção do estilo e da
identidade das culturas (TERRIN: 85-87). A religião cria papéis, comportamento, valores. Em alguns
casos ela funciona como uma roupagem que o indivíduo veste para assumir sua pertença a determinado grupo e para proclamar a sua identidade específica. Por isso é comum, em alguns lugares ou
em determinadas épocas e situações, ver a religião apoiando a ordem social vigente e legitimando
poderes. Em outros momentos a encontramos como elemento de subversão e de inovação, expressando a insatisfação de grupos marginalizados, excluídos pelo sistema vigente (SCHIAVO: 73-74).
Nesta sua condição de roupagem que ajuda os indivíduos a adquirirem uma pertença e uma
identidade, vemos a religião influenciando na produção artística: música, arquitetura, literatura, pintura, teatro, novelas, etc. Nós a encontramos exercendo seu papel na política, legitimando poderes,
apoiando grupos, favorecendo o conformismo e a alienação ou motivando a renovação, a revolução e
a libertação. Na América Latina, particularmente no Brasil, isso é bem visível. Desta forma a religião
cumpre funções sociais, gera utopias, justifica um modo de existir, garante hegemonia à classe dominante ou favorece a autonomia das classes oprimidas.
b) Elementos da religião como sistema
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Por ser um sistema representativo e cultural a religião é formada por alguns elementos. Tais
elementos fazem parte da linguagem com a qual o ser humano, enquanto ser religioso, consegue se
exprimir e se comunicar. De um modo geral esses elementos são essencialmente simbólicos, ou seja,
conseguem unir realidades diferentes que, em princípio parecem distantes e separadas. Por meio do
símbolo a cultura – e no nosso caso a cultura religiosa – consegue se exprimir de modo transparente,
de maneira tal que também quem não é daquela cultura consegue perceber a comunicação, mesmo
que ela seja recebida com sentidos diferentes. No processo de simbolização as coisas, os objetos
normais, recebem uma transsignificação, ou seja, recebem um significado diferente do normal e passam a ser mediação de experiências religiosas (REIMER: 81-84).
O primeiro elemento do sistema religioso é o mito, o qual vem da raiz grega µυθειν (muthein).
Etimologicamente significa comunicação de alguma lembrança, pensamento ou verdade (Ibid. 84-88).
O mito é narração de acontecimentos, relato de fatos que aconteceram nos tempos primordiais. Não
é uma fábula, mas história verdadeira. O mito é composto de símbolos e de palavras que procuram
não só transmitir e conservar a memória ancestral, mas também re-atualizar o que transmite e comunica (BAZÁN: 20-21). Do ponto de vista da antropologia os mitos “são relatos fundadores, histórias de
deuses ou de coisas, que fornecem um conjunto de representações das relações do mundo e da humanidade com os seres invisíveis. Oscilando entre a lenda e a ciência, o mito já é uma ordenação
racional. Ele situa o homem em seu lugar no universo graças a um sistema de referências no interior
de um todo cuja organização (cosmos) é afirmada e não apenas constatada” (LABURTHE-TOLRA &
WARNIER: 204).
Por isso o mito é algo atemporal. É um tempo que está fora do tempo, uma vez que ele é capaz de se expandir e de atingir todas as épocas, tempos e lugares. Embora esteja localizado no tempo das origens, o mito atinge o ser humano no local e na ocasião em que ele se encontra. Enquanto
narrativa da intervenção de seres divinos que realizam ações excepcionais, os mitos estão destinados a todos os seres humanos que transitam em todas as partes da terra e que surgiram em todas as
épocas (BAZÁN: 21-22).
Pode-se, então, afirmar que o mito é a forma mais antiga que os seres humanos encontraram
para falar do mistério e para tentar esclarecer determinadas situações encontradas no mundo e na
natureza. Neste sentido o mito é um elemento cultural, um fenômeno ou até mesmo uma palavra que
revela e comunica algo muito profundo que vem dos deuses, do sobrenatural, considerados os responsáveis diretos pelos fatos e acontecimentos narrados (BAZÁN: 13-41). O mito se liga, pois, às
origens e “é um símbolo desdobrado pela língua que relata uma cadeia ou série de fatos que tiveram
lugar no marco da origem, uma instância que é estranha ao deslocamento interno ou externo da sucessão e do movimento temporal” (Ibid.: 15).
O mito é, pois, o relato de um acontecimento originário no qual a divindade (ou divindades)
age com a finalidade de dar sentido a uma realidade significativa para a humanidade. Existem dois
tipos de mitos: os cosmogônicos que falam da visão de mundo de uma determinada cultura e os civilizatórios que narram a instauração de práticas de uma cultura. Assim sendo, o mito é a narrativa de
um acontecimento originário que responde a perguntas do presente. O mito quer atribuir sentido a
uma vivência, a uma realidade. Por isso as mitologias são importantes para o conhecimento e a compreensão da essência humana. Nas mitologias as culturas projetaram por gerações as suas visões de
mundo e de vida. Podemos então afirmar que o mito não é uma ilusão ou mentira; não é algo irracional como chegaram a pensar alguns antropólogos, mas é a “linguagem da alma” (Jung), da interioridade das pessoas, que expressa ao mesmo tempo um inconsciente coletivo (REIMER: 85-86).
O segundo elemento do sistema religioso é formado pelo binômio sagrado-profano. O sagrado
é o “senso do Nume”, ou, se quisermos, da divindade, que faz nascer no sujeito o sentimento de criaturalidade. Sagrado é o que se reveste de potência, força e poder e quebra a normalidade da vida,
rompe os esquemas habituais. Por essa razão o sagrado quer dizer separado e algo que não pode
ser apreendido ou aprisionado (TERRIN: 223-225). O sagrado se refere “ao incomum, ao extraordinário, ao sobrenatural; gera atitudes de medo, de circunspecção, de sensação do desconhecido”
(MARCONI & PRESOTTO: 163).
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Por sua vez o profano (pro-fanum), como já indica a raiz etimológica da palavra, significa aquilo que está fora do sagrado, fora do templo, do espaço sacro ou diante dele. Profano é o que é normal, o que não causa medo, o que pode ser explicado (TERRIN: 224-225). O profano, pois, “significa
o cotidiano, o natural, o comum; implica atitude de aceitação, familiaridade, do conhecido” (MARCONI
& PRESOTTO: 163). De um modo geral, na estrutura das religiões, o sagrado e o profano aparecem
como duas realidades separadas. Porém, na prática, as religiões sempre buscaram conduzir o profano ao sagrado e “levar o sagrado ao nível mais baixo, isto é, ao profano, criando uma homologia entre os dois planos” (TERRIN: 226). Podemos, então, dizer que o sagrado é a separação do profano e
que a religião é a tentativa de “cosmização do sagrado” (Berger), entendendo esta última expressão
como esforço para colocar tudo sob a ótica do sagrado.
Para a sociologia da religião norte-americana, da qual Berger é o principal representante, o
sagrado é um organizador do caos, da totalidade do mundo; é o que dá sentido ao cosmo e legitima
situações. Neste sentido, o sagrado não é o que se opõe ao profano, mas ao caos (FILORAMO &
PRANDI: 137-139). Eliade, por sua vez, afirma que o sagrado e o profano constituem apenas dois
modos diferentes, duas modalidades existenciais assumidas pelo ser humano. A relação entre os
dois, bem como o modo de entender essas realidades vai depender do grau de conhecimento científico adquirido pela pessoa. Assim sendo, a dessacralização se tornou uma das características das
sociedades modernas. Trata-se da existência cada vez maior de pessoas não-religiosas, que não
vêm mais nenhuma dependência do mundo e do cosmos dos caprichos de uma divindade (ELIADE:
19-22).
c) Elementos antropológicos do sagrado
Essa constatação da sociologia da religião levou alguns estudiosos a afirmar que os deuses
são uma criação dos seres humanos, os quais, diante de manifestações da natureza, assombrosas,
fantásticas e inexplicáveis para a época, atribuíram a causa de tais fenômenos a seres e entidades
sobrenaturais. Porém, continuam tais estudiosos, principalmente Feuerbach, os “deuses” adquiriram
autonomia diante dos humanos e de suas atividades. E isso permitiu que os seres humanos pudessem realizar uma operação antropológica importante: distinguir o absoluto do transitório, relativizando
assim uma série de realidades do mundo. Isso também possibilitou, sob certos aspectos, tornar a
vida mais leve e menos penosa (Ibid.: 138-139). A psicologia levantou uma suspeita semelhante, afirmando que o ser humano primitivo tinha a tendência a personificar e a venerar os fenômenos naturais. Porém, diferente da sociologia da religião, a psicologia afirma que o ser humano “não teria criado
a religião, mas a beleza e a magnitude dos fenômenos da natureza despertaram nele sentimentos em
relação ao infinito, à crença em divindades com poderes de dirigir a natureza. A gênese da crença
seria o medo do sobrenatural” (MARCONI & PRESOTTO: 161). Os estudiosos costumam indicar três
instâncias antropológicas que contribuíram para a criação do sagrado: o medo, o poder e o desejo
(TERRIN: 227-230).
O medo seria não apenas um sentimento, mas a experiência concreta de se encontrar em
desvantagem. O poder pode ser entendido como aquilo que a pessoa descobre de “sobrenatural” no
mundo e que lhe causa assombro. Quanto mais inexplicável o fenômeno, mais poderoso e prepotente
ele se torna. E os que fazem a mediação entre o sagrado e a humanidade se tornam também muito
poderosos. Já o desejo seria a necessidade de salvação que sentem os seres humanos. Trata-se da
busca da própria totalidade, do conjunto de impulsos que levam as pessoas na direção da “completude”, da procura de algo que preencha a própria existência. Essa busca de completude vai desde o
desejo de resolver pequenos problemas, pessoais e sociais, até a necessidade de encontrar meios
para enfrentar situações desastrosas e complicadas.
Os antropólogos, porém, falam também de variáveis que modificam essas instâncias antropológicas (Ibid.: 230-234). A primeira delas seria a concepção do divino. Se for verdade que as instâncias antropológicas fazem os humanos descobrir o sobrenatural, é também verdade que a ação dos
deuses sobre os humanos vai depender do modo como as pessoas e as culturas concebem esse
sobrenatural. Se, por exemplo, a concepção da divindade é de um juiz, a sua ação sobre os seres
humanos será diferente daquela onde a concepção de deus é do tipo materno. Se a concepção de
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divindade é monoteísta a sua ação sobre os humanos será bem diversa daquela na qual se aceita o
politeísmo.
A segunda variável é a configuração social. Dependendo do modo como o grupo social está
organizado, a idéia do divino pode incutir medo e terror ou pode proporcionar segurança e tranqüilidade. Assim sendo, numa ditadura a idéia de deus está associada à insegurança e ao pavor. Do contrário, numa situação de mais democracia e respeito pela dignidade da pessoa, a concepção de deus
pode propiciar um sentimento de paz e de tranqüilidade. Por fim uma terceira variável seria o grau de
conhecimento científico das pessoas e culturas. Na medida em que as pessoas avançam nos conhecimentos científicos elas tendem a compreender melhor a realidade, não sendo mais necessário “incomodar os deuses” para explicar certos fenômenos.
Alguns antropólogos costumam dizer que em determinados ambientes, onde a idéia do sagrado está profundamente associada ao medo e ao terror, a ciência é tida como concorrente da religião.
Porém, como veremos mais adiante, a ciência pode se tornar um fator de estímulo do crescimento da
religiosidade. De fato, se os resultados dessa ciência não beneficiam todas as pessoas, os excluídos
e excluídas tendem a correr atrás de magos, xamãs, videntes, cartomantes, curandeiros para tentar
resolver aquilo que o progresso científico não consegue resolver (Ibid.: 233-234).
d) Experiência religiosa, religiosidade e religião
Feitos esses esclarecimentos, podemos agora analisar a relação e a diferença entre experiência religiosa, religiosidade e religião. A experiência religiosa é a experiência do transcendente e da
transcendência, ou seja, aquela “capacidade, típica do ser humano, de sair para fora de si, do seu
corpo, da sua situação humana, através da reflexão, do pensamento, do sonho, da imaginação”
(SCHIAVO: 65). A experiência religiosa, enquanto experiência da transcendência e do Transcendente, dá respostas para as diversas perguntas sobre o sentido da vida e da existência, oferece amparo
e segurança para os momentos difíceis, preenche aquele vazio gerado pela finitude da vida e garante
um destino positivo no final da caminhada do ser humano. Pela experiência religiosa a humanidade
olha para o Transcendente como a causa da sua existência, o amparo para a sua contingência (limites) e para o seu abandono, a resposta segura para as suas interrogações e a meta para onde está
caminhando (Ibid.: 65-66).
Por religiosidade entendemos a manifestação da experiência religiosa, da experiência da
transcendência, feita por pessoas e grupos e expressa nas suas diversas formas de manifestações
individuais e culturais (orações, crenças, festas, celebrações, símbolos, ritos, rituais, etc). Trata-se da
crença num ser sobrenatural, transcendente, considerado o criador e mantenedor da ordem cósmica
e que se expressa através de atos e objetos visíveis. A religiosidade é a busca do princípio infinito
que está na origem da vida e do universo, bem como na sua conservação e ordem, manifestada publicamente, exteriormente. Neste sentido, como já foi dito na primeira unidade, a religiosidade é uma
experiência profundamente antropológica, uma vez que é próprio do ser humano revelar de modo
bem claro e visível o desejo de ir além de si mesmo, de auto-transcender-se.
A religião, por sua vez, é a institucionalização da experiência religiosa e da religiosidade, a
padronização do caminho para a relação com o Transcendente, feito por um grupo social ou cultural.
A religião se caracteriza por uma estrutura simbólica bem definida, através da qual ela procura dar
unidade e coesão à existência humana. Quase sempre toda religião, enquanto sistema e enquanto
instituição, afirma ter uma origem sobrenatural, pretende ser a única verdadeira, se alicerça na crença
em um ente superior e transcendente. Seu enfoque é sempre a divindade (Ibid.: 67-77).
Enquanto instituição a religião é formada por vários elementos. Além daqueles já mencionados anteriormente, convêm lembrar mais alguns. Antes de tudo os símbolos que são os elementos
capazes de juntar, de unir duas realidades diferentes (REIMER: 82-84). Além dos símbolos temos as
doutrinas, entendidas como conteúdo racional e orgânico da religião; os mediadores que são aquelas
pessoas que fazem a ponte entre o sagrado e o profano, entre o divino e as pessoas; os rituais e ritos
que são conjunto de ações que proporcionam o contato com a divindade, com o sagrado. Por fim o
espaço sagrado onde se dá o contato com a divindade. Normalmente no espaço sagrado encontramos os objetos e utensílios sacros e os momentos fortes chamados de tempo sagrado.
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e) Particularidades dos elementos da religião
Comecemos pelo símbolo, pois ele ocupa um lugar fundamental na estruturação da religião.
De um modo geral pode-se dizer que o símbolo é tanto um elemento externo (do mundo, da natureza) como um elemento interno do ser humano (palavra, gesto, expressão, etc.) que revela um sentido
para aquilo que está oculto. O símbolo tem um duplo significado: aquilo que é real e aquilo que ele
significa. Por essa razão a linguagem do símbolo pode não só revelar, mas também encobrir. Por
isso, segundo Bazán, convém não confundir símbolo com signo, com sinal, e nem com emblema. O
sinal ou signo é o que foi estabelecido de forma convencional para significar determinadas coisas
bem concretas. O emblema é aquilo que expressa as particularidades de um determinado ser ou coisa. Do mesmo modo não se deve confundir o símbolo com a alegoria, uma vez que essa é a manifestação de um pensamento que representa uma coisa para dar idéia de uma outra (BAZÁN: 16-19).
O símbolo, do grego symbolon, é aquilo que tem a capacidade de reunir de modo eficaz duas
realidades que parecem separadas. É aquilo que propõe a quem o vê o sentido e o significado de
algo que está além dele mesmo. Dessa forma, o símbolo realiza uma transignificação. Para quem o
vê ele não só expressa a sua própria realidade, mas convida o sujeito a transportar-se para uma outra realidade que está além dele mesmo. O símbolo é uma imagem reveladora, um reflexo de uma
realidade que nele está escondida. Neste sentido pode-se afirmar que o símbolo é mais fraco do que
a realidade que ele simboliza e, às vezes, até o inverso do que ele representa. Ele tem um caráter
análogo: é ao mesmo tempo idêntico e diferente daquilo que ele revela. Pode-se dar como exemplo
disso a cruz que, mesmo sendo em si um instrumento de tortura, tornou-se, para os cristãos, símbolo
da salvação realizada por Cristo (Ibid.: 17-19).
A religião normalmente quer comunicar a sua mensagem. E faz isso utilizando várias formas
de linguagem. A doutrina, porém, não é apenas a comunicação de experiências religiosas, mas “uma
sistematização lógica e elaborada de normas e diretrizes para a vivência comunitária ordenada em
determinada expressão religiosa” (REIMER: 90). Na maioria dos casos os problemas e conflitos religiosos acontecem no âmbito da doutrina, por causa da possibilidade de interpretações diversas. Isso
se verifica particularmente com as religiões do livro, ou seja, daquelas que possuem corpo escriturístico, os chamados escritos sagrados. As tensões nascem não só no âmbito da compreensão das idéias, mas também, e acima de tudo, no espaço da ética e do comportamento moral, resultante das
diversas tradições que interpretam os textos sagrados.
Por esse motivo quase todas as religiões possuem os seus mediadores que são aquelas pessoas que o sistema religioso coloca como responsáveis pela mediação entre a divindade e a humanidade e que também são encarregados de dar a interpretação correta aos textos sagrados. Os antropólogos identificaram pelo menos quatro tipos de mediações (TERRIN: 234-241). Um primeiro tipo é
o xamã (do sânscrito sraman, “o eleito das divindades”), que usando a técnica do êxtase, do transe e
do sonho descobre meios para curar doenças ou para assegurar a passagem do falecido para o além. Ao lado dele podem ser colocadas outras figuras como o mago e o adivinho. O segundo tipo é o
rei-sacerdote, que em algumas culturas religiosas era tido como o único e verdadeiro mediador entre
a divindade e a humanidade. O rei-sacerdote era considerado filho da divindade, o que contribuía
para o fortalecimento da ideologia da realeza sagrada e para a crença na superioridade do rei. Baseado neste princípio alguns imperadores romanos chegaram a exigir dos súditos o culto à sua pessoa.
O terceiro tipo é o dos profetas, os quais tiveram, e ainda têm, um papel decisivo no judaísmo,
no cristianismo e no islamismo. O profeta é aquele que é “agarrado” e “subjugado” pela divindade,
“forçado” a ser seu porta-voz. O profeta sente o chamado da divindade e não resiste a este apelo. De
um modo geral os profetas denunciavam situações de injustiça e de opressão que eram consideradas
ofensa à divindade. Por fim o quarto tipo, o monge, presente, sobretudo, nas religiões chamadas orientais. Normalmente o monge não tem poder, não exerce pressão sobre as pessoas, não tenta capturar a divindade. Sua mediação se fundamenta essencialmente na força que vem do seu exemplo,
da sua simplicidade e pobreza, da sua pureza e amabilidade.
f) O ritual e os ritos
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Um lugar todo especial nas religiões é ocupado pelo ritual e pelos ritos. O ritual, dito de forma
bem simples, é a ação ou ato através do qual as religiões organizam as suas formas de rezar, de
cantar, de dançar aos deuses, de fazer oferendas e sacrifícios às divindades. Existem pelo menos
três formas de rituais. A primeira delas é a oração ou prece, ou seja, o modo de invocar ou louvar a
divindade. A segunda é a da oferenda que consiste em fazer ofertas à divindade. Tais oferendas podem ser desde frutos da colheita até aos sacrifícios humanos. O terceiro tipo de ritual é chamado de
manifestação e consiste basicamente em movimentos rítmicos como danças e procissões (MARCONI
& PRESOTTO: 154-155). O ritual é uma “manifestação dos sentimentos por um ou vários indivíduos,
em qualquer meio, através da ação. Embora de caráter religioso ou mágico, não é tão persistente
quanto o culto. Consiste em um tipo de atividade padronizada, em que todos agem mais ou menos do
mesmo modo, e que se volta para um ou vários deuses, para seres espirituais ou forças sobrenaturais, com uma finalidade qualquer” (Ibid.: 152).
O ritual, por sua vez, é estruturado pelos diversos ritos. O rito é uma espécie de conjunto de
códigos que, unidos entre si, formam um modo de comportamento e de vivência que a comunidade
ou grupo assume para celebrar diversos momentos da sua existência ou da existência das pessoas
que a compõem. Os ritos religiosos “são procedimentos mais ou menos estereotipados ou elaborados, compostos por atos e símbolos, que se manifestam freqüentemente por objetos, e palavras provenientes de um longínquo passado” (LABURTHE & WARNIER: 206). Neste sentido o rito se diferencia do culto, o qual “é uma série de atos contidos na veneração ou comunicação com seres sobrenaturais. Consiste no conjunto de crenças, rituais e divindades, associados a objetos, lugares específicos, oficiantes e crentes. Varia na estrutura, organização e realização, no tempo e no espaço. Cultuam-se espíritos e antepassados” ((MARCONI & PRESOTTO: 154). Portanto, o culto não pode ser
confundido com o rito. De fato, normalmente, as “cerimônias do culto compõe-se de ritos, mas nem
todos os ritos são cultuais” (LABURTHE & WARNIER: 206).
Por meio dos ritos as religiões procuram trabalhar a questão da temporalidade e da fuga do
tempo. Nele as estações do tempo e as fases da existência são experimentadas e vividas não só pelo
indivíduo em si, mas por toda a comunidade. O mais interessante no rito não é o seu resultado, a sua
eficácia, mas aquilo que ele provoca no grupo. E um dos principais resultados da celebração do rito é
a mobilização dos membros da comunidade e o reforçamento da solidariedade entre as pessoas do
grupo (Ibid.: 206-214).
Os estudiosos identificam três tipos de ritos. O primeiro é o propiciatório, também chamado de
intensificação. Trata-se do rito no qual se suplica a benevolência, o favor dos seres ou entidades sobrenaturais. Normalmente isso é feito através de uma cerimônia. O segundo tipo é o de passagem ou
transição, normalmente realizado no momento em que o indivíduo do grupo passa de um estado social para outro. Os ritos de passagem se subdividem em quatro: de nascimento, de puberdade, de
casamento e de morte. Por fim o rito de iniciação, o qual consiste na realização de uma cerimônia por
ocasião da passagem da pessoa para a fase adulta (MARCONI & PRESOTTO: 156-157).
Os antropólogos costumam dar muita importância aos ritos de iniciação. Alguns desses ritos
são marcados não só por festas, mas também por competições, provas de resistência, através das
quais os jovens devem mostrar o seu grau de maturidade, demonstrando coragem, força, destreza,
determinação, etc. Incluem experiências que vão desde as instruções, passando pelas reclusões, até
as mutilações. De acordo com a maioria dos estudiosos estes ritos de iniciação obedecem a uma
lógica universal, criam novas identidades para os indivíduos, dão acesso ao conhecimento, caracterizam a passagem definitiva para o mundo dos adultos e, de um modo geral, são revestidos de religiosidade. Por terem funções diferentes e por serem polissêmicos (diversos significados) eles são muito
importantes para o estudo e o conhecimento das culturas (LABURTHE & WARNIER: 207-211).
Para o estudo da religião esses ritos são muito significativos, uma vez que eles desempenham
um papel muito importante na vida do ser humano religioso, o qual coloca sempre o seu ideal naquilo
que é transcendente e sobre-humano. Para as nossas culturas dessacralizadas esses momentos não
passam de acontecimentos comuns, ligados mais aos indivíduos e suas famílias. Perderam todo o
significado simbólico. Pelo contrário, para o homem e a mulher religiosos do passado o ser humano
só se completava quando era capaz de superar a si mesmo.
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Pelos ritos de iniciação os seres humanos demonstravam que queriam ser diferentes e que se
esforçavam para alcançar essa meta. Neste esforço encontram-se de certa forma embutidos os primeiros germes das diferentes éticas que foram sendo aos poucos elaboradas. O homem moderno
não tem mais esse élan e, talvez por isso, se encontra perdido, sem deuses, sem heróis, sem ideais,
sem referenciais e sem ética. E assim sendo, torna-se, sem perceber, refém de si mesmo e das suas
pretensões. Incapaz de sair de si mesmo, o ser humano moderno corre o risco de beber do seu próprio veneno e ser vítima da sua própria arrogância (ELIADE: 150-174).
g) Espaço sagrado e tempo sagrado
Nessa dinâmica de religiosidade o espaço sagrado ocupa um lugar fundamental, é uma experiência primordial (Ibid.: 25-61). Por essa razão em praticamente todas as culturas religiosas os templos e lugares sagrados estão sempre presentes. O espaço sagrado tem como que um valor existencial para o ser humano religioso. Mesmo não existindo uma homogeneidade quanto à sua configuração e significado, o espaço sagrado é um elemento de suma importância para as pessoas religiosas.
Segundo Eliade ele corresponde à fundação do mundo e é uma espécie de ponto fixo, a partir do qual
se organiza o estado caótico das coisas e a vida real das pessoas. No espaço sagrado o limiar (soleira da porta) tem um significado profundo: é o lugar que separa e ao mesmo tempo une o sagrado e o
profano. “O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem
do mundo profano para o mundo sagrado” (Ibid.: 29).
O espaço sagrado é o lugar da manifestação da divindade, a qual, por sua vez, torna sagrado
o espaço. Normalmente esse lugar não é escolhido pelos seres humanos, mas indicado pelos deuses. A confirmação de que o lugar é sagrado se dá por meio de um ritual no qual se tenta reproduzir
exatamente as indicações dadas pelos deuses para aquele lugar. Nesse ritual de consagração do
espaço sagrado procura-se repetir a lógica da cosmogonia, ou seja, o sistema ou teoria que explica a
origem do mundo e o seu funcionamento. Nele fica evidente que o ser humano só existe por causa da
manifestação dos deuses. Por essa razão ele precisa permanecer aberto à transcendência e ao
transcendente. E o lugar de comunicação com o transcendente é o espaço sagrado. Dada essa função do espaço sagrado ele é considerado o centro do mundo, o lugar mais próximo da habitação da
divindade. Nele o ser humano encontra uma espécie de abertura através da qual ele rompe com o
cotidiano e rotineiro e se comunica com um outro mundo, uma outra realidade. Neste sentido o lugar
sagrado pode ser um templo ou até mesmo uma cidade.
O espaço sagrado ocupa um lugar de destaque mesmo para as culturas religiosas que não
são dotadas de templos e de cidades sagradas. Neste caso a sacralidade é transferida para lugares
geográficos, para a natureza, como, por exemplo, as montanhas. De um modo geral para o ser humano religioso a Natureza não é totalmente “natural”, mas ela costuma ser revestida de sacralidade
(Ibid.: 99-132). Por ser obra da divindade ela revela de modo espontâneo a dimensão do sagrado. Na
concepção da pessoa religiosa não há separação entre o natural e o sobrenatural. Assim sendo, a
simples contemplação de um elemento da natureza (céu, montanha, etc.) transforma-se naturalmente
numa experiência religiosa.
Na Bíblia hebraica, por exemplo, isso aparece com freqüência, mesmo que para o judeu Deus
e mundo não se confundam. Dessa maneira o salmista hebreu pode dizer: “Quando vejo teus céus,
obra de teus dedos, a lua e as estrelas que fixaste, quem é o homem, para que nele penses, e o ser
humano, para que dele te ocupes?” (Salmo 8,4-5). Entre os aborígines do interior da Austrália o lugar
sagrado é um gigantesco monólito chamado por eles de Uluru e hoje denominado Ayer’s Rock
(KÜNG: 19-20). Não faltam os casos de cultos a árvores, a vegetação, a pedras, ao sol, a lua e assim
por diante. Desse modo, terra, fecundidade, maternidade, mulher, religião se tocam profundamente.
Tais experiências de sacralização da natureza permitem que a vida normal e a religiosidade se misturem. Tudo isso mostra “uma estrutura particular da sacralidade da Natureza; ou, mais exatamente,
uma modalidade do sagrado expressa por meio de um modo específico de existência no Cosmos”
(ELIADE: 129).
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No espaço sagrado estão também os objetos sagrados. Esses objetos normalmente são usados nos rituais. Inclusive eles podem ser venerados ou até mesmo adorados. Os principais objetos
sagrados são: as imagens ou representações da divindade; os objetos rituais como utensílios, roupas, vasos, etc. As máscaras também são objetos sagrados. Essas são disfarces usados nos rituais e
vão desde as mais simples até as mais ornamentadas artisticamente. As máscaras podem simbolizar
autoridade, prestígio e em alguns casos chegam a ter efeitos medicinais (MARCONI & PRESOTTO:
154).
O ser humano religioso também sacraliza o tempo. Ele procura inserir no “tempo profano” intervalos de tempo sagrado. De um modo geral o tempo sagrado serve para re-atualizar eventos que
tiveram lugar nos primórdios, no passado mítico (ELIADE: 63-98). No tempo sagrado acontecem as
festas religiosas e as liturgias. Elas servem para reintegrar o tempo ordinário ou normal no tempo
mítico. Através do tempo sagrado os seres humanos religiosos acreditam recuperar o eterno presente
e fazer experiência da presença da divindade. Assim sendo, na concepção da pessoa religiosa o
tempo sagrado permite que o mundo renove-se anualmente e reencontre a sua santidade original.
Nessa concepção não há apenas a cessação de um tempo, como pensam as pessoas modernas,
mas a abolição do passado e a cessão do tempo decorrido. O tempo que existiu até então desaparece por completo e surge um novo tempo. E ao participar das festas sagradas que marcam o tempo
sagrado as pessoas também são recriadas e passam para uma nova existência. Neste sentido a festa sagrada não é a comemoração de um acontecimento do passado, mas a sua re-atualização.
De um modo geral as festas do tempo sagrado acontecem nos templos ou nos lugares sagrados. Por meio delas os seres humanos religiosos acreditam que se tornam contemporâneos dos deuses. Crêem que por meio delas podem reencontrar a plenitude da vida e experimentar a sensação de
existir como criaturas dos deuses. Podemos então afirmar que na sacralização do tempo se encontra
uma das grandes aspirações de todo ser humano: voltar àquele estado original do mundo nascente
que assegura uma vida realmente feliz. Trata-se do desejo de uma vida autêntica, simples, mas carregada de significado e de sentido. Por isso ele está disposto a colaborar com as divindades, fazendo
de tudo para re-estabelecer este estado originário de existência. Podemos então afirmar que neste
elemento da religiosidade nós encontramos não só a sede do sagrado, mas também a sede do ser,
entendendo isso como desejo profundo de autenticidade e de felicidade.
h) Outros elementos da análise antropológica do fenômeno religioso
Para concluir essa primeira parte da análise da religião como sistema representativo e cultural
abordaremos brevemente outros elementos interessantes: magia, sincretismo, tabu e tótem.
•
Magia
Por magia entende-se a crença ou atribuição de poderes sobrenaturais a coisas ou objetos,
capazes de interferir automaticamente no curso dos acontecimentos. Além disso, a magia seria o
controle dessas forças sobrenaturais por meio de fórmulas, rituais e ações. Seria também a técnica
para controlar a natureza, com a finalidade de obter coisas ou precaver-se de forças misteriosas. Na
magia o feiticeiro ou mago manipula as forças sobrenaturais através de rituais, ações, objetos, mágicas, formulas verbais ou por meio de encantamentos. Há quem acredite que a magia não se distinga
da religião (LABURTHE & WARNIER: 235). Outros antropólogos, porém, vêem diferença pelo fato de
que a magia não crê em seres espirituais. Apenas atribui poderes sobrenaturais a coisas ou objetos
(MARCONI & PRESOTTO: 163-165).
Há antropólogos que procuram ver uma relação entre o plano psicológico e a magia
(LABURTHE & WARNIER: 325-328). Afirmam que quando acontece alguma coisa de negativo com a
pessoa é porque ela cedeu a uma situação de medo e se “deixou enfeitiçar”. O estado de angústia
termina por atingir o sistema nervoso e precipitar as coisas. Neste caso “o medo é acompanhado de
uma atividade intensa do sistema nervoso linfático que, caso o indivíduo não encontre resposta para
a situação, desorganiza-se, e, em algumas horas, às vezes, provoca uma diminuição do volume sangüíneo e a queda da pressão, acarretando danos irreparáveis nos órgãos da circulação” (Ibid. 325). O
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mesmo aconteceria nos casos em que a magia funciona de forma positiva, como está comprovado
cientificamente através das experiências feitas com placebos, substâncias desprovidas de qualquer
elemento fármaco e curativo. A confiança, a fé individual ou grupal, a vontade de recuperar a saúde
seriam suficientes para fazer desaparecer os sintomas de uma doença (Ibid.: 328-331). Isso mostra
como as sociedades mais tradicionais, os grupos religiosos, possuem formas de resolver seus problemas às vezes mais eficazes do que aqueles considerados moderníssimos e infalíveis.
Os estudiosos falam de cinco tipos de magia: a) Analógica ou imitativa por meio da qual o semelhante produz o semelhante e o efeito se parece com a causa (exemplo: fazer um boneco representando a pessoa e espetá-lo com alfinetes); b) Contagiosa, isto é, a crença de que o contato com
alguém ou alguma coisa produza um efeito que perdura mesmo quando distante (exemplo: tocar numa imagem de santo); c) Simpática, no sentido mágico da expressão, feita para exercer influência
sobre as pessoas (as famosas “simpatias”); d) Branca, ou seja, aquela boa ou benéfica; e) Negra,
quando considerada má ou maléfica (Ibid.: 164-165).
•
Sincretismo
Infelizmente entre nós a palavra “sincretismo” costuma ter um sentido pejorativo. Algumas religiões o consideram algo ruim, negativo e nocivo para a vivência do seu credo. Porém, no seu significado mais antigo o sincretismo não tinha este sentido negativo. Ele possuía uma dimensão positiva
sendo entendido como aliança, ou seja, como frente comum ou unidade entre as diversas crenças. A
concepção negativa de sincretismo aparece no século XVI, no âmbito das controvérsias entre católicos e reformadores protestantes, passando, a partir de então, a significar a mistura de elementos
religiosos diferentes que, combinados entre si, seriam prejudiciais para os credos religiosos (BÁZAN:
224-227).
No Brasil, em razão da nossa configuração história nos últimos quinhentos anos, o sincretismo
religioso se desenvolveu em um ambiente de conflito, particularmente entre o catolicismo português
do senhor de engenho e os cultos africanos trazidos pelos escravos negros. Neste sentido ele foi e
ainda é “um processo que se propõe solucionar conflitos e problemas num dado contexto cultural. O
sincretismo possui como característica a mescla, a fusão e a simbiose de elementos culturais”
(BITTENCOURT FILHO: 63). Desenvolveu-se, pois, e se manifestou em situações de conflito, nas
quais determinados grupos culturais foram e ainda são obrigados a encontrar formas alternativas de
religiosidade para resistir, para fugir da perseguição e para preservar a identidade (Ibid.: 62-81).
Sabemos, porém, que toda e qualquer religião, inclusive o cristianismo, é, de certa forma sincrética, uma vez que não existe nenhuma experiência religiosa em estado puro. Assim sendo, o sincretismo “não constitui um mal necessário nem representa uma patologia da religião pura. É sua
normalidade como momento de encarnação, expressão e objetivação de uma fé ou experiência religiosa” (BOFF: 151). As religiões são dinâmicas e não coisas fixas. Ao longo da história elas sofrem
alterações. Suas identidades não são absolutas, pois dependem de tantas outras. Por isso podemos
afirmar “que nenhuma religião é totalmente original. Todas as religiões dependem de outras religiões
mais antigas, que por sua vez são formações que se devem a uma visão precedente; em outras palavras, são formações sincréticas” (TERRIN: 338).
A formação do sincretismo se dá através de um processo (BERKENBROCK: 134-143). Iniciase num nível horizontal, isto é, passando do estar ao lado do outro para o estar junto com o outro. Em
seguida passa para um nível vertical, ou seja, para uma evolução que vai se dar nos diversos grupos
e de formas diferentes nas diversas regiões. Quando tem início o processo de sincretismo existe a
impressão de uma grande confusão. Os elementos religiosos ficam como que “empilhados”, sem uma
ordem definida, sem que as pessoas percebam nenhuma contradição nisso. Aos poucos, porém, esta
“confusão” vai se desfazendo e os diversos elementos vão sendo ordenados de acordo com o objetivo do sincretismo.
Hoje é possível afirmar a existência de seis tipos de sincretismo: a) de adição: apenas acrescentando elementos, sem preocupar-se com a relação entre eles; b) de acomodação: adequar-se ao
elemento mais forte; c) de mistura: diluindo um elemento em outro; d) de concordismo: na fórmula,
nos ritos, nas expressões, de modo que todos fiquem contentes; e) de tradução: utilizando categorias,
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tradições e expressões de outra religião para comunicar a própria mensagem; f) de refundição: abertura para expressões religiosas diferentes, assimilando-as e reinterpretando-as a partir dos critérios
próprios (BOFF: 147-149).
•
Tabu
O tabu é considerado por muitos antropólogos como sendo o elemento negativo da religião.
Consiste basicamente na proibição ou alerta (cuidado) em relação a certos atos, geralmente relacionados a representações mágico-religiosas. O tabu é símbolo de precaução contra coisas essencialmente perigosas. Por isso a violação do tabu pode resultar em castigo para o infrator.
Pode-se então afirmar que o tabu é um conjunto de normas que, infringidas, levam o sobrenatural a prejudicar o infrator. De um modo geral os estudiosos afirmam que o tabu desempenha três
funções nos grupos religiosos. Em primeiro lugar serve para manter o espírito do temor do sobrenatural. Além disso, serve para unir os membros de um grupo social. E, por fim, é elemento básico de
controle social (MARCONI & PRESOTTO: 165-166).
•
Tótem
O tótem é um ser animado ou inanimado do qual, segundo crenças antigas, descendem os
membros de um determinado clã. É o pai ancestral e, quando se trata de um animal ou planta, os
indivíduos de um mesmo grupo não o podem matar e nem comer (exemplo: a vaca na Índia). O tótem
se transmite por herança e é a fonte de tabus e de interditos. O tótem é símbolo de um vínculo parental ou de adoção a uma comunidade ou poder superior (SCHLESINGER & PORTO: 363).
Podemos então afirmar que o tótem é um ser que é considerado o antepassado da raça. É o
parente que teria dado origem ao clã que, inclusive, procura adotar o seu nome. É ele que justifica
determinadas interdições, como por exemplo, a proibição de uma pessoa casar com alguém do
mesmo clã (LABURTHE & WARNIER: 218-219). Alguns antropólogos afirmam que o totemismo foi a
primeira forma de religião e de moral. Outros, como é o caso de Eliade, defendem que o totemismo
não se difundiu pelo mundo e, por essa razão, não pode ser considerado a forma mais antiga de religião (ELIADE: 12).
No totemismo temos uma espécie de “aliança” entre um determinado grupo social e a natureza e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de acolhida do diferente. Ele permite seja a união de um
mesmo grupo, que o acolhimento do diferente e da diferenciação. A lógica do totemismo, se assim
podemos dizer, é a de relacionar as pessoas entre si e igualmente propor o respeito por quem e por
aquilo que é diferente (DAMATTA: 133-142).
2. A cultura religiosa brasileira
Depois de termos estudado a religião como sistema representativo e cultural podemos agora
passar à análise da cultura religiosa brasileira. Trata-se somente de uma panorâmica, já que não será
possível um aprofundamento dessa questão tão complexa em apenas algumas páginas (MOREIRA,
2004: 111-125)
2.1. Crise de paradigmas e construção de novos paradigmas
Para nos situarmos melhor, precisamos contextualizar a questão. Vamos partir do momento
em que estamos vivendo, para depois chegarmos às raízes ou matrizes da experiência religiosa em
nosso país. Trata-se de tentar entender o que está acontecendo hoje para depois nos perguntarmos
sobre o que nos trouxe até aqui. Comecemos vendo a tabela baixo que nos apresenta o quadro das
religiões no Brasil, segundo os dados do Censo de 2000 fornecidos pelo IBGE:
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Religião
Católicos romanos
Evangélicos
Protestantes históricos
Pentecostais
Outros evangélicos
Espíritas
Espiritualistas
Afro-brasileiros
Umbanda
Candomblé
Judeus
Budistas
Outras religiões orientais
Mulçumanos
Hinduístas
Esotéricos
Religiões de tradição indígena
De outras religiosidades
Sem religião
Declaração múltipla
BRASIL (*)
Número absoluto
124.976.912
26.166.930
7.159.383
17.689.862
1.317.685
2.337.432
39.840
571.329
432.001
139.328
101.062
245.870
181.579
18.592
2.979
67.288
10.723
1.978.633
12.330.101
382.489
169.411.759
%
73,77
15,44
4,23
10,43
0,78
1,38
0,02
0,34
0,26
0,08
0,06
0,15
0,11
0,01
0,00
0,04
0,01
1,17
7,28
0,23
100,0
(*) Não inclui 387.411 casos de religião não declarada, que correspondem a 0,23% da população residente, que em 2000 era de 169.799.170.
a) Alguns elementos históricos
A partir desse quadro das religiões em nosso país podemos nos adentrar na questão da religiosidade dos brasileiros. Comecemos olhando para determinados acontecimentos mundiais que tiveram a sua influência sobre a atual experiência religiosa da população residente no Brasil
(BITTENCOURT FILHO: 179-212).
Sabemos que com o advento do iluminismo e do positivismo teve início um processo de secularização que se radicalizou cada vez mais e durou até, mais ou menos, 1979. Tal processo se caracterizava pela proclamação da morte da religião, da morte de Deus. A religião, especialmente nos países ocidentais e nos de regime comunista, ficou reduzida ao âmbito do privado, às margens da vida
social e pública; dela só se ocupavam os nostálgicos e teimosos.
Em 1979 deu-se a crise no Irã que culminou na vitória da revolução liderada pelo aiatolá Khomeini, conhecida também como revolução khomeinista. A partir da Universidade de Teerã, com o
apoio de universitários e de universitárias, aconteceu um movimento de rejeição da modernidade por
parte do islã. O xá do Irã, Rezah Parlev, responsável pela introdução do modernismo no país, fugiu,
indo viver no exílio com sua família. Instalou-se então um regime rígido e decidido que pretendia resgatar a tradição islâmica e devolver ao país a sua identidade mulçumana. Depois da morte de Khomeini houve uma tentativa de flexibilização, mas até o momento o Irã continua decidido a não abrir
mão de suas últimas conquistas.
Cerca de dez anos mais tarde (1989) explodiu uma outra crise: aquela do comunismo do Leste Europeu, com a queda do muro de Berlim e a dissolução da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que tinha o seu centro em Moscou. Na medida em que o movimento vai se
ampliando, a geografia da região vai adquirindo nova configuração e a religião ressuscita dos porões
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do regime soviético e se revela como fator de identidade étnica e coletiva. O que se pensava morto
ou extinto, de repente ressurge com força e determinação. A ideologia imposta às massas não conseguiu destruir a tradição religiosa que volta com toda a força logo depois da queda do muro de Berlim. A religião tradicional ou não permanece firme, contrariando todas as previsões feitas anteriormente.
Nesse mesmo ínterim dá-se igualmente uma tremenda crise econômica que fez muitos países
em desenvolvimento perderem a sua capacidade de crescimento, gerando assim sérios problemas
sociais: pobreza, miséria e exclusão social. A famosa “década perdida” (anos 80) deixa saldos terríveis. O capitalismo se transforma em neoliberalismo e se revela cada vez mais cruel e desumano. A
dissolução do socialismo real criou a impressão de que o neoliberalismo era o único regime econômico possível e viável. Os pobres e excluídos entram em desespero. Percebem que as conquistas e as
vantagens da tecnologia e do desenvolvimento não são para eles. Com isso a religião retorna com
toda a sua força. As pessoas excluídas se decepcionam. Não acreditam mais em utopias e sonhos.
Voltam a se agarrar em alguma coisa que ainda dê esperança. E, neste momento, a religião passa
novamente a ser o salva-vidas ao qual se agarrar. Começa-se outra vez a buscar uma solução no
transcendente, em algo que esteja fora deste mundo. A aproximação do final do segundo milênio contribuiu ainda mais para criar o clima de insegurança e de medo do fim do mundo. A corrida para as
religiões e igrejas aumenta sensivelmente.
b) Cinco novos paradigmas religiosos
A partir desses contextos e situações vão se delineando cinco novos paradigmas religiosos
(FILORAMO & PRANDI: 286-288). O primeiro deles é a assim chamada desregionalização da religião: agora não existem mais áreas específicas de influência da religião, pois ela está em toda parte,
não obstante a “ocidentalização” do mundo. Um segundo paradigma diz respeito a desprivatização da
religião: ela voltou a ser um fator político e socialmente relevante, a tal ponto que se poderia falar hoje
de encontro ou desencontro entre as nações não mais a partir de questões geopolíticas, mas de rivalidades religiosas; poderíamos também falar de ciência política da religião.
O terceiro paradigma pode ser chamado de desregulamentação da religião: ou seja, o enfraquecimento das regras tradicionais, o fim do monopólio da instituição que promovia e controlava os
bens religiosos. Embora a religião tenha recuperado a sua força, inclusive pública, ela não deixa de
lado esse caráter herdado do modernismo. Exceto alguns países de regime político teocrático, a religião, embora socialmente e politicamente importante, perde a sua carga institucional e é deixada à
consciência dos cidadãos e das cidadãs.
Disso nasce um quarto paradigma: a chamada desdogmatização da religião. Trata-se do surgimento da “religião à la carte”, isto é, da religião do “faça-você-mesmo”. Assiste-se, desse modo, não
só a uma crescente privatização do fenômeno religioso, mas também a um multiplicar-se de ofertas
religiosas, com propostas para todos os gostos. O exótico passa a ter uma influência determinante no
âmbito da religiosidade. Assim foi possível o surgimento de um quinto paradigma conhecido como
despatriarcalização da religião. No contexto da pós-modernidade a religião não é mais dirigida e orientada pelos homens. Nos novos grupos religiosos há maior envolvimento da mulher na direção ou
liderança, criando certo mal-estar para os homens que continuam tendo dificuldade não só de aprovar, mas até mesmo de compreender essa dimensão da mudança. As religiões tradicionais continuam intransigentes, não aceitando o papel de liderança das mulheres. E quando se tentou romper esse cerco – como foi o caso de determinadas correntes do Anglicanismo – os alicerces dessas religiões foram seriamente abalados por grandes crises.
c) Conseqüências
Tudo isso não deixa de ter conseqüências tanto para as próprias religiões como para os grupos sociais a elas ligados (Ibid.: 288-290). A primeira de todas as conseqüências é a crise dos paradigmas tradicionais. Eles deixam de ser aceitos pela sociedade, ou, com freqüência, são aceitos apenas formalmente, externamente. Na intimidade da vida e no interior da própria casa as pessoas
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constroem a vida de outro modo. Disso nasce também a fragilidade da hermenêutica tradicional, uma
vez que os paradigmas entraram em crise. Cada um dá a interpretação que quer aos dados da religião.
Mas esse processo também tem o seu lado positivo. Passamos a ter mais espaço para o pluralismo hermenêutico. Hoje é possível ter diversas maneiras de interpretar uma mesma realidade. Os
dogmas e as doutrinas das religiões são vistos a partir de ângulos diferentes. Isso enriquece as próprias religiões e cria flexibilidade para as pessoas. Talvez esse processo dê origem a hibridações, ou
seja, ao surgimento de novas formas de religiosidade que misturam elementos de diversas religiões.
Para o lado conservador das religiões tradicionais isso é um problema sério, mas para o mundo e a
humanidade não deixa de ser uma grande conquista, uma vez que permite ao ser humano saborear
os diversos elementos e valores das diversas religiões.
Certamente tudo isso coloca uma questão muito séria para a ciência da religião. Neste contexto é preciso repensar o estatuto científico do fenômeno religioso. Esse não pode nunca ser confundido com um convite para que alguém se torne mais religioso ou adepto de um tipo de religião, mas,
mantendo a autonomia relativa da religião, ele precisa pensar acima de tudo no ethos que decorre da
vivência de uma experiência religiosa.
2.2. Busca de uma nova religiosidade no Ocidente
O fenômeno religioso neste início de século, como já mencionado anteriormente, se situa num
contexto bem mais amplo. Já lembramos alguns aspectos de tal contexto, mas, antes de nos voltarmos para as questões da religiosidade brasileira propriamente dita queremos ainda destacar outros
elementos.
a) A transformação da ordem internacional
As transformações pelas quais passam as religiões têm a ver também com a transformação
na ordem internacional, com a queda do socialismo real. De fato nem o capitalismo e nem o comunismo resolveram os problemas da humanidade que continua com 2/3 de pobres e pelo menos 1/3 de
miseráveis. É verdade que o capitalismo internacional sofreu uma profunda remodelação. Transformou-se em neoliberalismo, mas isso só significou uma contramarcha e mais adversidades para os
países mais pobres.
Na ordem do dia estão as principais características do neoliberalismo: formação de corporações econômicas estratégicas, mega-conglomerados, macro-mercados, mega-estados, novas elites
globais, rompimento das fronteiras políticas e econômicas, sufoco dos estados nacionais, alteração
das bases científicas e tecnológicas; conjugação da eletrônica, micro-eletrônica, automação, robótica,
informática e telecomunicação. Mas a nova ordem mundial é marcada pela presença da ideologia
totalitarista do mercado, que pretende agora ocupar o lugar de Deus ao afirmar que a única configuração sócio-econômica possível é aquela ditada pelo neoliberalismo. Os seus mecanismos não podem ser controlados por nenhuma força humana. Atualmente, segundo especialistas, um trilhão de
dólares flui diariamente pelos mercados de capitais; 95% do capital financeiro mundial destinam-se à
especulação e apenas 5% são aplicados em investimentos e no comércio. A produção interna é quase toda redirecionada para o mercado mundial, para o “superávit primário” (BITTECOURT FILHO: 3146).
Isso tem conseqüências trágicas para a população dos países menos desenvolvidos. Os pobres não representam mais nada, nem mesmo como mão-de-obra barata. Eles são descartados como “massa sobrante”, uma vez que nem produzem e nem consomem. Por isso precisam ser eliminados, segundo a ideologia neoliberal. Trata-se daquilo que Kurz chama de “ausência de exploração”
(apud ibid.: 181), no sentido que o mercado neoliberal não precisa mais dos pobres e miseráveis, das
massas desarraigadas que não se encaixam em nenhuma forma de organização social. Por essa
razão elas precisam ser eliminadas, expulsas dos “ambientes nobres”, uma vez que “tiram a beleza” e
desmascaram o neoliberalismo. A toda hora estamos vendo os sem-tetos, os sem-terra, os morado-
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res de rua sendo expulsos e enxotados. Foi um paradigma dessa mudança a demolição das favelas
de Seul durante as Olimpíadas de 1988 (Ibidem). Talvez esse fato possa ser considerado o marco
devastador do neoliberalismo que não suporta ver diante de si a multidão de pobres e excluídos gritando por justiça e direitos iguais.
É verdade que as estruturas sociais progrediram. Mas elas estão beneficiando alguns à custa
da grande maioria, aumentando o fosso das desigualdades sociais. O empobrecimento crescente
provoca desagregação social, desintegração interna nos países, desespero, depressão. Tudo isso faz
aumentar as indagações, as incertezas, os questionamentos e diminui as convicções e as certezas.
b) As pessoas transformadas em números
Mas se olharmos para o pequeno número de incluídos, ou seja, daqueles que estão se beneficiando das vantagens do progresso, vemos que também aqui há inquietação e mal-estar (AGUIAR:
247-269). As pessoas foram transformadas em números, processos, formulários, modelos, máquinas,
códigos de barra, devido à valorização da visão tecnológica que leva à materialização e à robotização
dos comportamentos e dos relacionamentos. A ênfase no consumismo, na idéia de felicidade, no ter
determinadas coisas ou produtos, causa infelicidade, ansiedade, descontentamento e insatisfação. As
pessoas são obrigadas a manter as aparências.
Tudo isso gera imediatismo, manipulação egoísta, falta de atenção às pessoas, comportamento disfuncional, comportamentos desumanos, desintegração familiar, doenças, sentimento desgastante de desconfiança, interrupção da comunicação entre as pessoas, competição e inveja. Desse modo
também os ricos se desestruturam, uma vez que a lógica do consumismo produz ânsia, insatisfação,
competição, estresse, etc. São escravos da carreira, das máquinas, das organizações e dos produtos. O medo toma conta da vida de todos eles. Isso os leva a procurar desesperadamente acreditar
em algo, buscando antídotos para essas situações, sentido para as suas vidas e formas de superar
os efeitos perniciosos da escravidão tecnológica e consumista.
Tudo isso, de forma paradoxal, produz um drama real e nos absorve cada dia mais. Ao invés
de diminuir os problemas, gera insatisfação e vazio profundo, insegurança e frustração. Acontece que
não somos máquinas. Somos humanos, seres pensantes e inteligentes. “Não sois máquinas, homens
é que sois!” (Charlie Chaplin) Por essa razão, em tempos de crise, aumenta a população carcerária,
os pacientes em hospitais psiquiátricos, os contingentes nos quartéis e os fiéis nas igrejas e templos.
A religião volta a ser uma “saída de emergência”.
c) A corrida para a religião
É verdade, como vimos na primeira unidade, que a religião é um fenômeno antropológico. Acompanha a humanidade desde as suas origens. Durkheim já nos lembrava: “Acima de todos os
dogmas e de todas as confissões existe uma fonte de vida religiosa, tão velha quanto a humanidade,
e que, não pode jamais se esgotar” (apud BITTECOURT FILHO: 15). Adélia Prado afirma: “Tudo está
na esfera do religioso, não tem jeito de fugir...” (apud ibid.: 7). Mas não podemos esquecer que os
recentes acontecimentos sociais, políticos e econômicos provocaram uma corrida, ou melhor, um
retorno mais intenso à experiência religiosa. Mostramos antes que o sonho do capitalismo não se
concretizou, mas a sua nova versão (neoliberalismo) contribuiu para a disseminação das distorções
econômicas, para o desemprego e o aumento considerável do crime organizado. Exemplo concreto
disso é a Rússia que após a queda do comunismo tornou-se, no dizer de Roger Garaudy, “um império de droga e corrupção” (apud ibid.: 33).
Diante do vazio e do caos provocado pela transformação da ordem internacional dá-se novamente uma corrida para a religião, uma vez que ela passa a ser vista como única tábua de salvação
no meio dessa confusão geral. De fato, como nos mostrava na primeira unidade o conceito funcional
de religião, a experiência religiosa é capaz de induzir condutas sociais conseqüentes, garantindo a
coesão social a partir de valores que estão acima dos limites do tempo e do espaço. Porém, muitas
vezes, essa corrida para a religião, na busca da qualidade de vida, termina por ser desesperada e
neurótica não atingindo aquela satisfação tão desejada. Desse modo, a busca pela religião passa a
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ser uma demanda de cura, de proteção e de prosperidade, ficando circunscrita ao plano do “necessário”, desprovida de toda forma de gratuidade.
A busca de reconhecimento social por um lado e o desejo de encontrar sentido para a própria
existência por outro não deixam espaço para uma verdadeira experiência religiosa e acabam aumentando ainda mais a sensação de desespero e de frustração. A religião passa a ser uma espécie de
magia, de espera desesperada de um milagre. Desse modo cria-se um divórcio entre a esfera privada
e a pública, tirando das pessoas a capacidade de participar e de agir politicamente. A experiência
religiosa fica desprovida de historicidade, voltada pragmaticamente apenas para o momento presente. Com isso contribui-se para que a religião permaneça refém do sistema neoliberal, subordinada à
função de mantenedora da ordem social, política e econômica vigente.
2.3. O fenômeno religioso no Brasil
Após a análise dos elementos da nova religiosidade que, enquanto movimento mundial, chegou também ao nosso país, podemos agora aprofundar mais especificamente a questão do fenômeno religioso no Brasil. Depois de conhecermos um pouco a matriz religiosa brasileira, sua configuração e a elaboração progressiva do sincretismo, chegaremos à descrição das principais características
da nossa religiosidade. Concluiremos o estudo com uma reflexão sobre a relação entre ciência e religião e sobre a contribuição que o estudo do fenômeno religioso pode dar para a paz, a justiça, a solidariedade e a convivência pacífica entre as pessoas e os povos.
a) A configuração da Matriz Religiosa Brasileira
Os estudiosos do fenômeno religioso no Brasil são unânimes em afirmar a existência de um
substrato religioso-cultural brasileiro, ou seja, de uma mentalidade religiosa média dos brasileiros
BITTENCOURT FILHO: 31-81). Trata-se de uma complexa interação de idéias e símbolos religiosos
que se amalgamaram e se fundiram, ao longo dos séculos. Essa matriz religiosa é uma representação coletiva que ultrapassa até mesmo a situação da classe onde as pessoas se encontram.
Sabemos que essa matriz religiosa brasileira é formada pela confluência de seis grandes vertentes: 1) Catolicismo ibérico e a magia européia; 2) As religiões indígenas; 3) As religiões africanas;
4) O protestantismo histórico; 5) O espiritismo europeu; 6) O catolicismo romanizado. Pode-se então
afirmar que o sucesso de uma proposta religiosa no Brasil vai depender diretamente da sua relação
explícita ou implícita com essa matriz; caso haja um distanciamento dessa matriz poderá haver um
esvaziamento ou até esgotamento de tal proposta.
No século XVI, quando os portugueses chegaram ao Brasil, a religião do povo na Europa estava impregnada de uma visão mágica do mundo, recoberta de folclores, cuja origem estava nos cultos religiosos pré-cristãos e que o catolicismo não conseguiu eliminar. Dentro da cosmovisão da época era impensável a descrença, alguém que não acreditasse em alguma coisa. Aos poucos o Brasil
passou a ser visto pelos europeus como um paraíso, cheio de belezas naturais, mas também como
uma terra povoada de demônios, perigos e dificuldades. Por esse motivo o nosso país era considerado a terra dos sofrimentos, o purgatório, ou, no dizer de muitos, “o quinto dos infernos” para onde
eram mandados os degredados e sentenciados. Por esse motivo os habitantes nativos eram também
demonizados, sendo um álibi para a escravidão (Ibid.: 46-62).
Esta visão prevaleceu até o século XVIII, embora a prática religiosa colonial mesclasse elementos católicos, negros e indígenas, com uma certa tolerância da Igreja Católica, mesmo tentando
impor-lhes limites. Os brancos não tinham muitas dificuldades em acolher as crenças religiosas dos
negros e dos índios porque guardavam no inconsciente coletivo os elementos ancestrais das religiões
mágicas européias anteriores ao cristianismo. Por sua vez os índios e os negros não encontravam
dificuldades para aceitar a cosmovisão católica porque o seu mundo também estava carregado de
mistérios e de espíritos e personagens míticos. Sendo uma sociedade tipicamente agrária, a religiosidade no Brasil colônia continha muitos elementos dos cultos ancestrais ligados às forças da natureza.
Essa religiosidade que cultivava uma harmonia com a natureza foi depois reprimida pela concepção maniqueísta do mundo que separava o natural do espiritual, desprezava o corpo e conduzia
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na direção de uma abstração da relação com o Transcendente. Isso fez com que o negro e o indígena passassem a associar a Igreja Católica com o poder dominante. Da relação do povo com o poder
dominante foi resultando uma visão sintética dando assim origem ao sincretismo religioso. Como no
período colonial a organização religiosa estava sob o controle do proprietário e chefe de família, foi
possível uma certa criatividade.
As confissões religiosas resultantes da Reforma promovida na Europa por Lutero e Calvino no
século XVI tiveram dificuldades de se instalar no Brasil, apesar de algumas tentativas promovidas por
calvinistas franceses e por reformadores holandeses. As chamadas Igrejas históricas protestantes,
provenientes da Reforma, só vão se firmar no Brasil com as imigrações acontecidas no final do século XIX e início do século XX. Ainda no final do século XIX acontece o transplante de movimentos religiosos nascidos nos Estados Unidos que inicialmente são chamados de protestantes, mas atualmente se tornaram conhecidos como evangélicos. Também no século XIX chega ao Brasil o espiritismo
kardecista, sendo bem acolhido pela classe média e, mais tarde, por outros seguimentos da sociedade.
b) Movimentos messiânicos no Brasil
Esse processo de configuração da religiosidade brasileira tem um certo vínculo com a situação sócio-política da época. De fato os traumas decorrentes da espoliação e da repressão suscitaram
desejos de libertação que foram transplantados para o plano simbólico, de maneira particular para o
âmbito religioso. Por essa razão foram muito comuns entre nós os messianismos, movimentos de
resistência alimentados por algum tipo de religiosidade (Canudos, Contestado, Pedra Bonita, Juazeiro
do Norte, Comunidades Eclesiais de Base, etc.). Também entre os indígenas havia algo semelhante
como, por exemplo, o mito da Terra sem Males. Podemos então afirmar que, no Brasil, a religião está
freqüentemente associada à luta e à resistência. “A religião é uma manifestação da cultura espiritual,
e por isto mesmo persistente e capaz de resistir, mais do que qualquer outra manifestação, à dissolução por vezes imposta pelos conflitos de culturas, como foi o caso da colonização” (Ibid.: 63).
Durante muito tempo tentou-se desacreditar esses movimentos associando-os ao fanatismo e
à ignorância. Dizia-se que eles eram o resultado de “um patrimônio de magia religiosa” proveniente
da mistura da religião mágica dos portugueses com o misticismo dos indígenas e africanos. Embora
se reconhecesse a matriz religiosa desses movimentos, se procurava atribuir-lhe uma perspectiva
negativa, afirmando-se que eles oscilavam entre a ingenuidade e o fanatismo religioso. O sistema
social, político e religioso da época em que os movimentos messiânicos eclodiram não podia reconhecer neles uma dimensão positiva e significativa. Por essa razão procurava de todo modo destituirlhes de qualquer importância e valor. Para o sistema de então tudo não passava de verdadeira insânia, resultado da ignorância de uma população paria, desprezível, que havia abandonado as verdadeiras tradições e os bons costumes. E o fato de que tais movimentos aconteceram em localidades
do interior do país reforçava ainda mais essa hipótese, uma vez que, para os letrados que residiam
nas capitais, as populações interioranas eram marcadas por influências espúrias e por uma fé pouco
ortodoxa (BARROS: 3-41).
Hoje, porém, já estamos conseguindo mudar essa mentalidade. Estudos sérios estão provando que os movimentos messiânicos eram genuinamente religiosos e resultantes de um processo no
qual a religiosidade alimentava o desejo de superação de determinadas injustiças. Não se tratava,
como chegaram a pensar alguns, de movimentos políticos, resultantes de uma consciência política,
que recorriam à luta armada para realizar a libertação. As pessoas que participavam desses movimentos não tinham tal consciência. Não tinham consciência de que era massa explorada e não conheciam a luta de classe (Ibid.: 45-48). Todavia isso não significa que tais movimentos eram desprovidos de qualquer consciência e de qualquer conhecimento. Os integrantes desses movimentos eram
pessoas profundamente religiosas que acreditavam na vinda de um Messias que iria libertá-los do
sofrimento. A partir dessa crença se dispunham a colaborar para antecipar a vinda do Messias e a
chegada dos novos tempos (Ibid. 49-57).
Não podemos ocultar que por trás desses movimentos estavam problemas sérios que marcaram e ainda marcam o Brasil a partir da colonização portuguesa. Questões como a concentração fun-
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diária, a desigualdade social, o coronelismo, a dominação e manipulação dos pobres por parte da
classe dominante e a política de mando não deixaram de influenciar o surgimento desses movimentos (QUEIROZ: 17-193). Porém não se pode mais aceitar a tese do fanatismo e da ignorância. Aliás,
como afirma muito bem Queiroz, precisamos reverter esse senso comum que tende a identificar os
movimentos messiânicos e seus líderes com o fanatismo religioso e a esperteza. As pessoas que
aderiam a esses movimentos, particularmente os seus líderes, não eram fanáticos, malandros, espertalhões, ou embusteiros, como, durante muito tempo, se tentou afirmar. Tais opiniões negativas são
desprovidas de qualquer fundamentação científica e hoje não resistem a uma análise crítica mais
severa. Pelo contrário, estes homens e mulheres eram pessoas bem intencionadas, sérias, humildes
e que, movidas por uma fé inabalável, lutaram e resistiram até o fim (Ibid.: 102-105).
c) Configuração do sincretismo religioso brasileiro
Como dizíamos antes, no processo de configuração da religiosidade brasileira o sincretismo
religioso está presente. Provavelmente o sincretismo, especialmente nos cultos afro-brasileiros, seja
a principal característica da religiosidade brasileira (BERKENBROCK: 132-143). Por isso autores como Bittencourt Filho chegam a afirmar que o sucesso de uma proposta religiosa em nosso país dependerá do modo como os seus propositores saberão acolher, mesmo que de modo implícito, essa
realidade do sincretismo (BITTENCOURT FILHO: 31-46).
Porque os colonizadores, de modo particular os clérigos, demonizavam a religiosidade indígena e os cultos afros, vendo-os como idolatria, essas formas religiosas foram sendo direcionadas para
uma religiosidade camuflada. Aparentemente aceitavam-se as práticas religiosas ditadas pelos colonizadores, mas de forma velada se cultivava condutas transgressoras. Tratava-se de uma forma oculta de resistência que deu origem a um vasto e complexo processo sincrético, de modo que se pode
dizer que a crença em poderes mágicos, mesmo que de forma velada, permaneceu no imaginário
religioso brasileiro. Assim sendo, é possível afirmar que o sincretismo é um processo que busca solucionar conflitos e problemas dentro de um determinado contexto cultural. Sua característica principal
é a mescla, a fusão, a simbiose de vários elementos culturais.
No Brasil o sincretismo religioso não ocorreu da mesma forma em todos os lugares. Todavia
pode-se afirmar que a mesclagem dos diversos elementos se dá a partir de um núcleo comum que é
o seu objetivo: unir para resistir e vencer os desafios. Sempre que havia necessidade de enfrentar a
repressão colonizadora buscava-se fazer uma nova síntese para resistir e seguir adiante. Embora as
relações fossem desiguais, percebe-se que as maiorias empobrecidas foram suficientemente criativas
para não permitir que a ideologia dominante solapasse de vez os seus sonhos.
Dentro do sincretismo religioso brasileiro é marcante o sistema de identificação dos orixás africanos com os santos católicos. No Candomblé, “os Orixás são forças ou entidades não físicas, que
controlam e regulam tanto os acontecimentos cósmicos como os fenômenos naturais, que determinam tanto a vida social, como a vida individual das pessoas” (BERKENBROCK: 224). O número de
orixás no Candomblé brasileiro é bem menor do que o número de orixás conhecidos na África. No
Brasil são conhecidos dezessete orixás, não havendo uma hierarquia unificada e nem um sistema
único de parentesco. Além disso, a importância de cada orixá varia tanto de local como de culto (Ibid.:
228-250).
O processo de identificação entre orixás e santos católicos começa com a semelhança, uma
vez que tanto os orixás como os santos católicos são seres que intercedem pelas pessoas junto a
Deus. Em seguida há uma ligação cultural através da qual se faz uma identificação entre as tarefas
dos orixás e as dos santos católicos. Dessa forma algumas responsabilidades dos orixás são identificadas com aquelas dos santos católicos. Assim, por exemplo, a função de Santa Bárbara é proteger
as pessoas contra os raios e os trovões. Logo ela passa a ser identificada com Iansã, orixá africano
que tem a mesma responsabilidade. Por fim acontece uma identificação no âmbito da organização
social. Os negros se organizam em “nações” e se juntam também nas irmandades católicas, que, por
sua vez, estavam sob a proteção de um determinado santo católico. Aos poucos, o altar católico passa a fazer parte dos terreiros de candomblé e as pessoas do candomblé freqüentam sem maiores
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problemas as igrejas católicas. O orixá passou a ser a tradução africana dos nomes dos santos da
Igreja Católica e esses a tradução portuguesa dos nomes africanos dos orixás (Ibid.: 138-140).
Expressão significativa do sincretismo religioso brasileiro é a Umbanda. Ela nasce por volta de
1900, e o ano de 1908 é considerado pelos umbandistas o ano oficial de seu nascimento. A Umbanda
tem início a partir das crenças dos bantos num ser superior e criador do mundo. Os bantos costumavam invocar os espíritos dos antepassados falecidos. Eles começam, por volta de 1900, a se organizar em grupos que inicialmente são chamados de “Cabula” e, mais tarde, de Macumba. Logo depois
esses grupos começam a receber a influência da tradição yoruba, sendo os espíritos substituídos
pelos orixás. Com a influência do Candomblé chega também a influência do catolicismo e a identificação entre orixás e santos foi assumida pelos grupos de Macumba. Mais tarde esses grupos recebem também a influência do espiritismo kardecista e passam a organizar uma hierarquia de espíritos,
fazendo uma distinção entre espíritos superiores e espíritos inferiores. A confluência desses quatro
elementos religiosos foi a base para o surgimento da Umbanda que, aos poucos, começou a se apresentar como um novo movimento religioso. Entre os anos 20 a 40 do século passado esta nova religião se organizou de modo definitivo no Rio de Janeiro e se espalhou pelo país. Ela foi chamada também de Quimbanda, mas aos poucos os seus adeptos foram rejeitando esses nomes, tendo em vista
o seu caráter pejorativo e adotando o nome definitivo de Umbanda. Portanto, a Umbanda é uma religião genuinamente brasileira (Ibid.: 148-154).
Por ser uma religião recente, a Umbanda ainda está em processo de configuração. Mas já é
possível reconhecer algumas de suas características doutrinárias comuns. Antes de tudo o seu caráter de religião monoteísta, acreditando num ser supremo. Em seguida a crença na existência de espíritos ou entidades, alguns deles identificados tanto com os orixás africanos como com os santos da
Igreja Católica. Porém o mundo dos espíritos não se reduz a isso, mas está povoado por tantos outros (espíritos da tradição banto, de africanos, de escravos, de índios, de crianças e de falecidos). Na
Umbanda há uma hierarquia dos espíritos que são divididos em grupos, chamados de “linhas”, as
quais, por sua vez, são divididas em “falanges” ou “legiões”. Cada linha tem sete falanges e cada
falange o seu líder. A terceira característica doutrinária da Umbanda é a crença na possibilidade de
contatos entre os espíritos e as pessoas e as atividades religiosas na Umbanda são desenvolvidas
em torno dessa crença. De um modo geral, acredita-se que o contato dos espíritos com as pessoas
se dá através do médium e tem como finalidade a prática da caridade. Por fim, faz parte da doutrina
umbandista a crença no desenvolvimento do espírito e na reencarnação (Ibid.: 154-159).
d) Características atuais da religiosidade brasileira
Chama a atenção na religiosidade brasileira atual, a coexistência numa mesma pessoa de
concepções religiosas, filosóficas, doutrinárias às vezes opostas e até mesmo racionalmente inconciliáveis. Além disso, nota-se a tendência ao misticismo, ou seja, ao êxtase (ápice da experiência do
sagrado), despido do discurso religioso e teológico elaborado pelos especialistas. Igualmente percebe-se a crença na possessão de divindades, forças e espíritos sobrenaturais, independentemente do
credo que dizem professar. Esse traço ultrapassa as fronteiras confessionais e as filiações religiosas
(BITTENCOURT FILHO: 62-81).
Há entre nós o que se costuma chamar de domínio da prática religiosa sem sistematização
especializada. Os brasileiros, de um modo geral, elaboram um processo de re-apropriação, de reinterpretação, de re-invenção de conteúdos. Adotam um elenco de crenças e de comportamentos
religiosos, independentemente do grau de consciência que têm de tais crenças e comportamentos.
Por isso é muito comum uma forte procura por experiências religiosas sem muita preocupação com
uma pertença formal a uma religião ou confissão religiosa. Assim sendo, o trânsito religioso, isto é, a
passagem constante de um grupo religioso para outro, a troca de espaços e de estilos de religiosidade, está na ordem do dia. Do mesmo modo cresce a múltipla pertença, ou, pelo menos, a busca por
experiências religiosas em lugares diferentes (STEIL: 7-16).
Neste contexto nota-se a existência de um paradoxo. Os intelectuais e os integrantes das
classes dirigentes buscam socorro espiritual entre os empobrecidos e iletrados e estes tentam assimilar e reproduzir a cultura religiosa erudita. Do mesmo modo percebe-se o crescimento e aceitação
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dos novos movimentos religiosos que estão relacionados com o crescente processo de urbanização
do país. Por isso aumenta também o risco de manipulação das pessoas através das numerosas ofertas e promessas de salvação e de solução de problemas, feitas por alguns movimentos religiosos.
Infelizmente, por trás disso pode estar um grande aparato ideológico e grupos que não querem a formação da consciência crítica do povo, financiando a expansão de determinadas expressões
religiosas que contribuem para a alienação. De fato, o método usado por determinados movimentos
religiosos, leva as pessoas à suspensão total da atitude racional e dá muita ênfase ao espetacular, ao
jogo emocional, ao transe, às possessões diabólicas, favorecendo a passividade diante das injustiças
do sistema sócio-político-religioso e, portanto, a manipulação por parte dos grupos politicamente e
socialmente dominantes. Neste método a instrumentalização da linguagem e dos símbolos é muito
forte especialmente quando usados na mídia, visando o ganho de novos adeptos. O que podia ser
sinal de libertação e de vida para as pessoas pode se tornar mero instrumento de escravidão. Neste
sentido se entendem muitas das críticas feitas à religião, como, por exemplo, aquelas de Feuerbach e
de Marx (ZILLES: 99-135).
Dentro desse contexto cresce a “religião de clientela” que recorre a forças sobrenaturais e até
à magia para tentar explicar fenômenos e situações que não precisam de explicações do além para
ser entendidas. Desse modo a religião passa a ser uma resposta localizada para problemas localizados, perdendo a sua capacidade de ser interlocutora da sociedade. No atual contexto brasileiro a
maioria das expressões religiosas parece cair na tentação de concorrer com as outras. É a tentação
da funcionalização da religião: tornar-se, simplesmente, uma prestadora de serviços religiosos à sociedade, esvaziando, assim, a sua dimensão de instância interpeladora. Isso aparece com muita força
na chamada “teologia da prosperidade”, através da qual as religiões vão prestando serviços de acordo com as necessidades dos fiéis. São muitas as pessoas que hoje buscam esses serviços e têm
encontrado um retorno satisfatório.
O risco, portanto, é de que as religiões, para serem modernas, terminem por “vender-se” como
mercadoria agradável, light, sob a alegação de que “o povo quer”. E ao tornarem-se apenas prestadoras de serviços religiosos as religiões fogem do compromisso ético, transformando-se numa espécie
de suporte, de justificativa para atitudes narcisistas e para a subjetividade fechada, além de fazerem
o jogo do grupo dominante que mantém 2/3 da população numa situação de pobreza e 1/3 dela na
mais absoluta miséria. Pode acontecer então o que Wolff chama de “religião sem o humano”, ou seja,
a substituição das reais necessidades das pessoas por bens apenas simbólicos. Esta forma de religiosidade interessa aos sistemas injustos porque não oferece a possibilidade de um confronto entre as
exigências éticas e as práticas econômicas, sociais e políticas que ameaçam a vida. Desse modo a
religião contribui para que não haja responsabilidade social, reforçando e alimentando a exclusão
social e não incentivando a solidariedade. A religião que opta por esse caminho realça excessivamente a dimensão do divino, mas termina “dando as costas para o humano” (WOLFF: 223-224).
2.4. Relações entre o âmbito religioso e outros âmbitos da vida social
Chegando ao final do nosso percurso, queremos concluir nosso estudo com uma reflexão sobre o diálogo entre ciência e religião. Nesta reflexão vamos ter presente, sobretudo, o contexto da
pós-modernidade que prevalece no momento atual. Do ponto de vista filosófico a pós-modernidade
consiste num estilo de vida que se recusa a pensar, que não busca o sentido da totalidade, mas vive
de fragmentações e onde o indivíduo é o centro do mundo (OLIVEIRA, 2003: 21-52). Sociologicamente falando a pós-modernidade é a recusa de teorias globalizantes, prontas e definitivas sobre a sociedade (BENEDETTI: 53-70). “O pensamento pós-moderno entende a si mesmo como um processo de
libertação do uno, do imutável e do eterno para a diferença, para a pluralidade, para a mudança, para
o contingente e para o histórico” (OLIVEIRA, 2003: 24). Trata-se de um momento rico, mas ao mesmo tempo desafiador, uma vez que essa nova concepção de mundo, de sociedade e de pessoa abre
várias possibilidades para muitas e diversas interpretações. Assim sendo, fica difícil chegar a um
consenso e a se obter uma unidade em torno de determinadas idéias e questões. Mesmo assim vamos tentar construir algumas reflexões sobre o diálogo entre ciência e religião.
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a) A busca da verdade através do diálogo
Sabemos que o objetivo da ciência e da religião é a busca da verdade e da felicidade para
todos os seres humanos. Por isso é possível um diálogo, até mesmo formal, entre as duas realidades
que, embora se constituam em realidades autônomas, são complementares e têm finalidades semelhantes. Por essa razão as religiões, de um modo geral, sempre incentivaram as ciências, sendo a
perseguição aos cientistas e pesquisadores apenas um “incidente de percurso”. As grandes descobertas e invenções estão sempre muito relacionadas às grandes religiões e a pessoas revestidas de
muita religiosidade. A própria Universidade nasceu na Idade Média por iniciativa da Igreja Católica.
O espaço do diálogo entre ciência e religião é, sem dúvida alguma, o âmbito da vida, o cuidado com a vida humana e com a vida no planeta e do planeta. A ciência se encarrega de intervir para
conservar, melhorar e renovar a vida. A religião se encarrega de ajudar a ciência a permanecer fiel ao
princípio do serviço à vida, evitando que determinadas intervenções acarretem problemas e conseqüências trágicas. A ciência tem a missão de avançar nas pesquisas e a religião, com seus códigos
de conduta, com a sua ética, ajudar a ciência a não perder o seu objetivo que é o cuidado com a vida
(LAGO: 217-233).
De fato, a própria vida, com seus mistérios e suas surpresas, pode levar o cientista a se empolgar e a perder de vista o seu dever e as orientações éticas. A religião vai ajudá-lo a dosar essa
empolgação, lembrando que ele está a serviço da vida e não o contrário. Nesse sentido a interação
entre ciência e religião tem o seu ponto de encontro na “humanidade”, ou seja, naquela reflexão e
naquele saber que visam a autocompreensão do ser humano e da sua relação com o cosmo do qual
ele é apenas uma pequena partícula.
b) O ponto de convergência
Por essa razão o ponto de convergência entre ciência e religião é a grande pergunta sobre o
significado e o sentido da vida (LEMOS: 129-142). Sem dúvida alguma a ciência vai tentar explicar o
grande fenômeno da vida a partir de eventos físicos e cósmicos. A religião, por sua vez, tenta ajudar
a ciência a entender que a vida, em toda a sua complexidade, é um grande mistério, permanecendo
sempre além do pesquisador. Por esse motivo ela convida o pesquisador a autotranscender-se, isto
é, a manter um olhar para além dos seus objetivos pessoais ou dos grupos econômicos que financiam suas pesquisas. Trata-se de estar aberto para a possibilidade real e concreta da existência de
uma mente que organizou de uma maneira tão complexa e bonita a ordem que mantém em funcionamento o Universo. Essa atitude faz com que o pesquisador mantenha-se humilde e respeitoso na
sua pesquisa, venerando o mistério da vida e não apenas tentando manipulá-la como se fosse um
simples objeto (LAGO: 224-225).
Assim sendo, a tarefa da ciência é interpretar corretamente a vida, a sua evolução, desde os
primeiros microorganismos até os seres hiper-complexos como os humanos e as suas culturas. A
religião, por sua vez, quer ajudar a ciência a não perder de vista a grande pergunta sobre o sentido e
o significado da origem de todas as coisas. Desse modo, a religião contribui para que a ciência não
perca o horizonte da transcendência. Com isso ela não só aponta o limite do olhar humano, mas, a
partir desse limite, convida a ciência a ousar, a permanecer insatisfeita, isto é, a buscar sempre mais,
uma vez que a vida sonhada está sempre além do horizonte.
No diálogo entre ciência e religião, o “postulado da objetividade”, ou seja, a construção autônoma de explicações científicas, dependendo apenas da razão e da comprovação, é posto em relação com a pergunta fundamental acerca do sentido e do significado das coisas. Nesse diálogo buscase não apenas compreender o passado, mas entender o presente e preparar o amanhã, uma vez que
sem isso a vida pode ser seriamente ameaçada. Neste diálogo é muito importante que a religião deixe-se interpelar pela ciência, permitindo que esta questione seriamente os seus quadros referenciais
e as suas culturas. Por sua vez a ciência precisa permitir que a religião lhe faça a pergunta acerca da
sua dimensão ética, acerca da sua “humanidade”. Essa humildade de ambas as partes evita que a
ciência caia no “imanentismo”, na pretensão de saber tudo, e que a religião caia no “transcendenta-
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lismo”, na tentação de atribuir tudo ao divino, quando as coisas podem ser explicadas por aqui mesmo. Tal humildade evita os fáceis reducionismos, os conflitos inúteis e certas explicações mágicas da
vida (Ibid.: 226-229).
E tudo isso só pode acontecer a partir do pressuposto da “interligação dos saberes”, ou seja,
do princípio segundo o qual nem uma nem outra tem, sozinha, isolada, a explicação para tudo, uma
vez que o mistério da vida está sempre além das diversas pretensões tanto da ciência como da religião.
2.5. O estudo do fenômeno religioso como estímulo à paz e à solidariedade.
O diálogo entre ciência e religião é possível e, até certo ponto, indispensável, uma vez que
isso pode favorecer a construção da paz e da solidariedade. Nesta última parte da nossa reflexão
queremos ver de que maneira tal diálogo efetivamente contribui para estimular iniciativas de paz e de
incentivo à solidariedade.
a) A religião e a cultura organizam a realidade
Numa sociedade, como a brasileira, onde quase 93% das pessoas se dizem adeptas de uma
religião é possível deduzir o quanto a cultura religiosa pode interferir nos processos de construção da
paz, da justiça e da solidariedade. Com seus signos, mitos, ritos, símbolos, as religiões organizam a
sociedade, definindo campos de significações e ajudando a criar identidades. Enquanto cultura, isto
é, enquanto lugar específico da manifestação do humano, das identidades, das diferenças, das opções de vida, a religião contribui para que os grupos humanos construam a sua identidade. Ela, de
certo modo, é capaz de “moldar” as identidades dos grupos sociais, apresentando-se como suporte
essencial para a construção da vida, das diferenças, da dignidade, da cidadania (RICHTER REIMER:
167-182).
A religião ajuda a construir identidades enquanto ela é capaz de fazer as pessoas descobrirem
o senso de pertença, colaborando para que os indivíduos não se fechem em si mesmos, mas saibam
interagir com os demais, colocando-se diante dos outros com respeito e com sinceridade. Por isso o
estudo da Religião ocupa um lugar de destaque dentro dessa realidade e, com seu olhar crítico e
científico, pode contribuir para que as religiões não esqueçam a sua vocação de sentinelas da ética e
da transparência.
Estudar o fenômeno religioso e as religiões, especialmente num país como o Brasil, é contribuir eficazmente para que as pessoas, a partir de sua experiência religiosa, sejam capazes de construir um “eu coletivo”, ou seja, uma identidade comum onde o reconhecimento da alteridade, dos direitos e deveres, favoreça o bem e a felicidade de todas as pessoas. Estudar as religiões é participar de
um processo dinâmico, de um mundo simbólico, de crenças, de idéias, onde são construídos referenciais para a elaboração desse “eu coletivo”. É, portanto, uma oportunidade para aprofundar um aspecto bastante significativo da vida da sociedade, o qual se constitui num espaço social e político
bastante significativo, uma vez que o modo de se relacionar com o Transcendente termina determinando também a conduta social e política das pessoas.
b) A religião como estímulo ao diálogo e ao respeito
Sabemos que a nossa sociedade brasileira ainda é fortemente marcada por discriminações e
preconceitos. A discriminação é a desvalorização da identidade da outra pessoa e a pretensão de
excluí-la do convívio social, exigindo que ela viva de forma desenraizada, negando a sua identidade
pessoal e social. O preconceito é uma postura ou uma concepção pelas quais algumas pessoas se
consideram superiores e melhores do que as demais, de modo particular em relação a certos povos e
culturas. Podemos afirmar que a discriminação e o preconceito não são coisas raras na nossa sociedade. Às vezes se encontram introjetadas nas próprias pessoas discriminadas. De fato a discriminação e o preconceito se alimentam de crenças presentes no imaginário coletivo e que, por sua vez,
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geram classificações, comportamentos discriminatórios, julgamentos de valores e exclusão
(OLIVEIRA: 157-165).
Tais atitudes são construídas culturalmente sem nenhuma base objetiva, sem fundamentação
científica, mas baseadas apenas em mitos desenvolvidos pela socialização das idéias e das concepções. A religião, ao colocar diante das pessoas a questão da origem e do sentido último da existência
humana, consciente da sua função de “salvação”, por meio de palavras, conceitos, doutrinas, símbolos, ritos, rituais, festas, pode contribuir para a superação das discriminações e dos preconceitos ou
agravá-los ainda mais. As religiões são portadoras de um grande potencial e podem contribuir para o
entrelaçamento de relações igualitárias, garantindo, às pessoas excluídas, o direito à manifestação e
à igualdade de oportunidades. Ora, o estudo das religiões nos permite, a partir do patrimônio histórico
e cultural delas próprias, estabelecer alguns elementos que garantam o direito à alteridade, à diferença, à dignidade, ao reconhecimento do valor da outra pessoa, enquanto princípios de um “outro mundo possível”.
Ao estudarmos as religiões descobrimos que nelas próprias existem elementos que estimulam
o acolhimento do diferente, a troca de saberes, a troca de experiências e eliminam toda forma de barreira, de intolerância, não permitindo que se veja no diferente um inimigo a ser combatido. Desse modo, as Ciências das Religiões podem e devem ser uma oportunidade para ajudar as religiões a voltarem a seus primórdios, superando toda forma de batalha acirrada para demarcar fronteiras, conquistar espaços e adeptos e manter a hegemonia sobre as demais. O estudo do fenômeno religioso e da
religiosidade pode, com uma visão crítica, acadêmica, e científica, contribuir para que se caminhe
cada vez mais para o encontro de culturas, de pessoas religiosas, que, com seus saberes diferentes,
com suas culturas diferentes, com suas experiências diferentes, descobrem o sentido último de suas
existências no encontro de horizontes, permitindo assim o acolhimento mútuo e a erradicação de todo
preconceito e de toda discriminação.
c) A contribuição das religiões para a paz
Hoje todas as pessoas aspiram à paz, mesmo que, às vezes, sejam a favor e até promovam a
guerra. A paz não é só ausência de guerra, mas a presença de todos os bens indispensáveis a uma
vida digna e humana e a eliminação de toda forma de preconceito e de discriminação. Diante disso, a
tarefa dos cientistas da religião é revisitar as tradições e as afirmações básicas das diversas religiões
para descobrir aí um grande potencial em favor da paz, de modo que isso sirva de referencial para
esse anseio da humanidade.
Tarefa de quem estuda a religião, aqui neste caso, é contribuir para que as religiões, voltandose para o seu próprio patrimônio, ajudem a romper com todas as formas de guerra e incentivem seus
adeptos a participar ativamente dos processos de construção da paz. Existe um consenso interreligioso acerca da potencialidade positiva e qualitativa de todas as religiões para a paz. Por isso
mesmo não haverá paz no mundo sem paz religiosa (KÜNG: 280). Para que haja paz todas as religiões precisarão retornar de forma crítica às suas tradições não só para descobrir suas potencialidades
em favor da paz, mas também para rever com humildade e transparência os momentos em que estiveram apoiando e sustentando destruições e violências.
De fato, como afirmou a Cúpula do Milênio que, em 2004, reuniu líderes representantes das
grandes religiões na sede das Nações Unidas, as religiões têm contribuído para a paz no mundo,
mas também têm sido usadas para criar divisões e alimentar hostilidades. Por essa razão, acreditam
os líderes religiosos reunidos na Cúpula Mundial, as religiões precisam ter uma atitude de reverência
à vida, à liberdade, e à justiça. E, através de um entendimento mútuo, do diálogo, procurarem se unir
para erradicar as situações de miséria, pobreza e exclusão e, no compromisso com um desenvolvimento sustentável, garantir um mundo saudável para as gerações presentes e futuras. O estudo da
religião pode, com a sua reflexão crítica, ajudar as religiões a descobrir as reais possibilidades de
estabelecer um processo comum onde a experiência religiosa, a vivência da fé, a espiritualidade entendida como cultivo da relação com o divino, se tornam forças vivas para a construção da paz.
d) A potencialidade das religiões para a paz
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Revisitando as diversas tradições religiosas é possível descobrir um patrimônio comum a todas elas e que certamente poderia se transformar em verdadeiros compromissos em favor da paz.
Vejamos os principais elementos desse patrimônio comum (RICHTER REIMER: 169-180):
1. Todas elas falam da finalidade básica e última da existência humana, indo assim ao encontro
das inquietações das pessoas;
2. Todas defendem, cada uma a seu modo, a compreensão mútua e o empenho pela justiça social, pelos bens morais, pela paz e pela liberdade;
3. Todas, de um modo ou de outro, afirmam que a discriminação, o preconceito, a violência entre
pessoas e culturas, carecem de qualquer fundamento;
4. Todas estimulam seus adeptos a, na medida do possível, viver em paz com os outros;
5. Todas, de um modo geral, afirmam o princípio da misericórdia e da compreensão no lugar da
condenação e da acusação;
6. Todas afirmam que é necessário cuidar bem do modo como são interpretadas as verdades
por elas pregadas, defendendo a necessidade de uma verdadeira hermenêutica;
7. Todas, de um modo geral, afirmam que os seus adeptos não se conformem com a política do
poder dominante, mas estejam atentos à situação dos mais pobres, dos excluídos e sofridos;
8. Todas afirmam que existe uma relação muito grande entre paz e situação sócio-políticoeconômica das pessoas;
9. Todas convergem em um dado muito significativo: a divindade capacita ao amor ao próximo
dentro da unidade feita de diversidades e, a partir disso, é possível construir relações humanas sadias, respeitando a vida e a justiça;
10. Embora com concepções diferentes a respeito da origem e do destino da vida, da natureza e
das funções das divindades, todas as religiões afirmam que é possível construir uma cultura
de paz onde essas diferenças sejam respeitadas e se possa conviver com isso de uma maneira harmônica e tranqüila;
11. Todas têm a preocupação em construir um ethos básico universal, onde o elemento comum
seria a humanidade e a práxis concreta da vida cotidiana, mesmo quando os pressupostos teóricos fossem diferentes;
12. Todas as religiões são portadoras de valores éticos fundantes os quais insistem que a paz é
própria do ser humano, e que ela não deve ser propriedade exclusiva de ninguém, mas se estender e atingir todos os seres e todas as expressões de vida;
13. Todas defendem o princípio de que a paz passa por um processo arrojado de educação, ou
seja, que é preciso educar para a paz através da formação da consciência para a crítica e a
autocrítica. Uma educação libertadora capaz de valorizar o ser humano e estimulá-lo ao compromisso com a paz. Este processo de educação para a paz tem quatro pressupostos: a) eliminação de toda forma de exclusão; b) educação comprometida com a vida; c) a experiência
religiosa não só como teoria, mas como compromisso com a construção de um mundo melhor; d) o reconhecimento da outra pessoa como irmã, como irmão;
14. Todas as religiões defendem a dimensão política da religião, entendida como educação real e
concreta para a cidadania. Elas conclamam seus adeptos para que se posicionem e ajam politicamente, mostrando que sem engajamento na luta pela justiça social não há como construir
a paz.
15. Por isso insistem no exercício de uma cidadania decisória e prática que não só respeite as diferentes culturas, mas também ajude a construir uma “paz preventiva”, a fazer a transição da
cultura de violência para a cultura da paz. Nesse sentido elas acreditam que é preciso a participação dos seus membros em ações que visem ajudar a reverter o atual quadro, como, por
exemplo, redirecionar o orçamento armamentista para o desenvolvimento dos países pobres;
16. Nesse sentido, todas as religiões são favoráveis à superação da “ontologia da violência”, isto
é, da superação de um estilo religioso que dê suporte a um padrão de relacionamento marcado pela subserviência, pela dominação e pelo abuso do poder.
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17. Por essa razão todas elas são a favor da avaliação e do exame das afirmações teológicas e
das práticas religiosas que podem estar favorecendo esse tipo de ontologia.
18. Insistem para que todas elas favoreçam uma cultura religiosa fundamentada no diálogo, no
respeito, na solidariedade entre as pessoas e os povos, de modo a transformar qualquer arma
de violência em instrumento de paz e de vida.
19. Isso porque, para todas as religiões a paz é uma dádiva do divino, do Transcendente, mas
também uma construção humana, na qual toda pessoa precisa assumir o seu compromisso
de fazer acontecer a harmonia entre os homens e as mulheres.
20. Todas as religiões insistem no fato que não pode haver paz sem justiça, com as pessoas vivendo uma vida sem sentido, sem a restauração da dignidade humana. Por isso acreditam
que não há como construir uma cultura da paz sem atitudes de vivência dessa paz tanto em
âmbito local como global.
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Análises Antropológicas do Fenômeno Religioso