1 A CONCEPÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA E A BUSCA DA VERDADE POSSÍVEL Sérgio de OLIVEIRA SILVA JUNIOR1 Jean Carlos BATISTA DE ANDRADE2 INTRODUÇÃO No modelo processual brasileiro a distribuição do ônus da prova se mostra imprescindível para que o Estado cumpra com o seu poder-dever de dizer o Direito. Levando-se em conta a proibição do non liquet, a regra de julgamento baseada no onus probandi viabiliza o provimento jurisdicional mesmo diante da dúvida do julgador frente ao corpo probatório, decidindo em desfavor daquele que não se desincumbiu de seu encargo probatório. O Código Processual Civil Brasileiro de 1973 adotou a concepção estática da distribuição do onus probandi no artigo 333, incisos I e II,3 segundo o qual compete a quem alega comprovar os fatos que dão suporte ao seu direito de acordo com a posição que ocupa em um dos pólos da relação jurídica processual. Portanto compete ao autor a comprovação dos fatos constitutivos de seu direito e ao réu dos fatos extintivos, impeditivos ou modificativos dos direitos do autor. A regra de distribuição estática do onus probandi possibilita ao réu, conforme a estratégia defensiva adotada ao caso concreto, conseguir a vitória na demanda, levando-se em consideração apenas e tão somente a inércia ou impossibilidade do autor comprovar o alegado. Quando opta o réu por apenas negar os fatos constitutivos do direito do autor, o ônus da prova recai somente sobre este, que terá de comprovar os fatos constitutivos de seu direito. Por outro lado se o réu optar pela defesa indireta, que se 1 Mestre em Direito Processual Civil. Professor nas Faculdades de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba (Piracicaba), Centro Universitário UNAR (Araras) e Instituto Superior de Ciências Aplicadas (Limeira). [email protected] 2 Bacharelando em Direito na Universidade Metodista de Piracicaba. [email protected] 3 BRASIL, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. 2 caracteriza pela alegação de fatos que alterem ou eliminem o direito pretendido pelo autor, terá sobre si o ônus de comprovar os fatos alegados em sua defesa. Nestes termos discorre Humberto Theodoro: Quando o réu contesta apenas negando o fato em que se baseia a pretensão do autor, todo o ônus probatório recai sobre este. Mesmo sem nenhuma iniciativa de prova, o réu ganhará a causa, se o autor não demonstrar a veracidade do fato constitutivo do seu pretenso direito. Actore non probante obsolvitur réus. Quando, todavia, o réu se defende através de defesa indireta, invocando fato capaz de alterar ou eliminar as conseqüências jurídicas daquele outro fato invocado pelo autor, a regra inverte-se. É que, ao se basear em fato modificativo, extintivo ou impeditivo do direito do autor, o réu implicitamente admitiu como verídico o fato básico da petição inicial, ou seja, aquele que causou o aparecimento do direito que, posteriormente, veio a sofrer as conseqüências do evento a que alude a contestação. O fato constitutivo do direito do autor tornou-se, destarte, incontroverso, dispensando, por isso mesmo, a respectiva prova (art. 334, III). A controvérsia deslocou-se para o fato trazido pela resposta do réu. A este, 4 pois, tocará o ônus de prová-lo. Cabe salientar que o deslocamento do ônus da prova não ocorre se o réu alegar versão contrária dos fatos. Caso o autor venha afirmar, v.g., que teve seu veículo abalroado pelo réu e, esse por sua vez alega que foi o autor quem cometeu tal ato ilícito, o ônus da prova permanece sob encargo do autor. Para que ocorra a transferência do encargo é necessária a ocorrência de fatos sucessivos. 5 A distribuição estática do ônus da prova acolhida pelo artigo 333, I e II do Código de Processo Civil se mostra apropriada na maioria dos casos e além de tudo promove segurança jurídica pelo conhecimento prévio dos encargos de cada parte, porém, em alguns casos pode ser insuficiente para garantir a isonomia entre os litigantes, servindo apenas para legitimar um provimento, dada a proibição do non liquet, pouco importando se no plano material ele foi justo ou não. A impossibilidade de produção da prova por uma das partes em detrimento da possibilidade de produção da prova em contrário pelo litigante adverso exige a aplicação de regras que rompam com a igualdade meramente formal, levando a efeito o principio da isonomia, garantindo o acesso a uma ordem jurídica efetivamente justa, em consagração ao disposto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. 4 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. p. 430/431. 5 Ibidem. p. 431. 3 I – A FLEXIBILIZAÇÃO DA REGRA ESTÁTICA O critério legal de distribuição estática do ônus da prova, prevista no artigo 333, I e II do Código de Processo Civil, admite exceções através dinamização na distribuição do encargo probatório, que pode ocorrer pela sua inversão ou pela aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. A inversão pode ocorrer de três formas diferentes, quais sejam: legal, convencional ou judicial. Feita a inversão por qualquer das três formas elencadas, a oneração recairá sobre a parte contrária de quem originalmente detinha o encargo, porém o ônus será de comprovar a inexistência dos fatos alegados pela parte adversa. Se a inversão recair sobre o réu, ele deverá comprovar a inveracidade das alegações do autor e, este por sua vez se vê livre de comprovar os fatos constitutivos de seu direito. Quando a inversão se dá em favor do réu, este está liberado de comprovar os fatos desconstitutivos, impeditivos ou modificativos do direito do autor, que por sua vez deverá comprovar a inexistência daqueles fatos.6 A Teoria da Distribuição Dinâmica do Ônus da prova sistematizada pelo Jurista argentino Jorge W. Peyrano transfere, por atuação do Juiz, o onus probandi à parte que se encontrar em melhores condições de produzir a prova, liberando desse encargo e dos possíveis efeitos negativos a parte que se encontra em condições desfavoráveis de produzir a prova. Diante da ineficiência do critério legal em certos casos, surgiu no campo doutrinário e jurisprudencial a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Trata-se de uma teoria moderna consistente na atribuição do ônus da prova ao litigante que se encontrar em melhores condições produzir a prova, ou seja, ela flexibiliza a regra estática em favor da facilitação da produção da prova, com a finalidade de proporcionar um julgamento mais justo.7 Dessa forma, se a parte a quem caberia o ônus probatório estiver impossibilitada de produzir a prova por questões de ordem fática, técnica ou econômica, ou seja, se para ela a prova a ser produzida se configura como prova 6 GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Novo curso de direito processual civil. p. 317. BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p. 69. 7 4 diabólica, o juiz observando as peculiaridades do caso concreto poderá flexibilizar a regra estática e aplicar a distribuição dinâmica do ônus da prova, transferindo o encargo à parte que detém melhores condições de esclarecer aquele fato, no entanto, observando que o seu limite de aplicação está na impossibilidade de atribuir uma prova diabólica para quem receberá o referido ônus. Jorge W. Peyrano, através de seus estudos em conjunto com outros doutrinadores argentinos, buscou sistematizar e difundir a aludida teoria sob a denominação teoria de las cargas probatórias dinâmicas. Contudo, Peyrano reconhece que suas bases são antigas.8 Há controvérsia acerca da sua origem, mas a doutrina de forma quase unânime reconhece ao filósofo e jurista inglês, Jeremy Bentham, adepto da corrente filosófica utilitarista, a concepção de sua premissa básica, qual seja, a responsabilidade da produção da prova deve ser atribuída àquele que puder satisfazê-la com menos inconvenientes9, conforme diz: Camilo José D’Ávila Couto: [...] Segundo Bentham, em um sistema de justiça franco e simples, a obrigação da prova deve ser imposta, caso a caso, à parte que puder satisfazê-la com menos inconvenientes, vale dizer, menores despesas, menos perda de tempo e menor incômodo. Para o referido autor o princípio segundo o qual quem propõe a demanda deve provar a verdade é um princípio tão falso quanto absoluto. Na essência, ao tentar estabelecer um critério para a distribuição do ônus da prova, Bentham trouxe para o direito 10 sua filosofia utilitarista. Bentham concebeu o critério de distribuição dinâmico do ônus da prova como regra geral, no entanto, tratava-se de um contexto histórico, social e jurídico totalmente diferente do atual, notadamente por estar inserido no direito anglo-saxão que é pautado na casuística.11 Peyrano, por sua vez, defende a sua aplicação de forma subsidiária ou excepcional, apenas quando a regra estática se mostra insuficiente ou injusta. Moacyr Amaral Santos menciona que um critério semelhante teria sido defendido por Demogue, na França.12 8 BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p. 69. 9 COUTO, Camilo José D’Ávila. Dinamização do ônus da prova: teoria e prática. p. 97. 10 Ibidem. 11 COUTO, Camilo José D’Ávila. Dinamização do ônus da prova: teoria e prática. p. 98. 12 YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Considerações sobre a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. RePro 205, p. 130. 5 Jorge Peyrano explica que realizou seus estudos cotejando as idéias do ônus processuais dinâmicos de James Goldshimdt. Foi com base nessas idéias que ele coordenou a doutrina argentina na tarefa de dar contornos à teoria de las cargas probatórias dinâmicas. Como aponta Thaís Bazzaneze: De acordo com Jorge. W. Peryano, foi James Goldshimdt quem trouxe para o direito processual civil vários conceitos básicos, os quais foram amplamente difundidos e hoje podem ser considerados como parte integrante a linguagem fundamental do processo. No que se refere ao ônus da prova, é destacado que dentre os principais conceitos consagrados por aquele autor estão as possibilidades e expectativas processuais das partes, as quais, desde logo se adianta, são situações jurídicas que submetem as partes a agirem, ou não, de acordo com a sua conveniência. Com fundamento na teoria introduzida por James Goldshimdt, o processo não está vinculado a uma relação jurídica entre as partes (consideração estática do direito), mas sim à conduta judicial e à tutela jurisdicional pretendida, ou melhor, o caso concreto em análise pelo Poder Judiciário (consideração dinâmica do processo). As partes, no processo, vivenciam uma situação jurídica de expectativa de tutela do Estado diante do litígio em juízo, pelo que frente a uma 13 possibilidade processual, lhes importam provar conforme o seu interesse. Baseado então, numa concepção dinâmica do processo, Peyrano observou que a distribuição estática do onus probandi não é suficientemente adequada em certas situações por não se mostrar hábil a permitir a flexibilização que certas demandas exigem,14 nas quais se mostra mais adequada a utilização da teoria de las cargas probatórias dinâmicas, de forma subsidiária ou complementar.15 O jurista cita que o primeiro caso que lhe chamou atenção acerca da insuficiência da distribuição estática do ônus probatório foi uma ação em que se discutia erro médico em cirurgia malsucedida, na qual pelas regras estáticas caberia ao autor comprovar a ocorrência de erro por parte do médico cirurgião. Peyrano constatou que exigir do paciente a prova do que e como ocorreu no ato cirúrgico equivaleria a negar-lhe a chance do êxito na demanda, enquanto que o médico teria 13 BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p.65. 14 Ibidem.p. 67. 15 PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. Ônus da Prova e o Projeto de Código de Processo Civil. RT 913. p. 312. 6 amplas possibilidades de comprovar que agiu conforme a técnica adequada para o caso.16 Em obra produzida em coautoria com Julio O. Chappini, Peyrano aponta para a orientação jurisprudencial e sintetiza o princípio que passou a fundamentar a jurisprudência argentina daí por diante: “o ônus da prova deve recair sobre a parte que se encontre em melhores condições profissionais, técnicas ou fáticas para produzir a prova do fato controvertido”.17 Sua teoria foi consagrada nas Quintas jornadas Bonaerenses de Derecho Civil, Comercial, Processual e Informático, em outubro de 199218com a seguinte descrição: A chamada doutrina dos ônus probatórios dinâmicos pode e deve ser utilizada nos processos em determinadas situações nas quais não funcionam adequada e valiosamente as previsões legais que, como regra, repartem os esforços probatórios. A mesma importa um deslocamento do onus probandi, segundo forem as circunstâncias do caso, em cujo mérito aquele pode recair, verbi gratia, na cabeça de quem está em melhores condições técnicas, profissionais ou fáticas para produzi-las, independentemente da condição do autor ou demandado ou tratar-se de 19 fatos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos [...] Na jurisprudência brasileira a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova também foi bem acolhida, assim demonstra Thais Bazzaneze: Nesse sentido, cumpre mencionar que a teoria se desenvolveu no repertório jurisprudencial brasileiro, principalmente nos Tribunais dos Estados do Sul e Sudeste do País, sendo consagrada, inclusive no STJ no ano de 1996, no julgamento ao REsp. 69.309/SC. Na mesma linha, em 1997, seguiu o TJRS no julgamento da Ap Civ 597083534, de relatoria da Des. Armínio José Abreu Lima e Rosa, e, em 1999, o TJPR, no recurso de Ag 0146797-6/01, sob a relatoria do então Juiz Noeval de Quadros. Com efeito, muitos outros julgados se sucederem sob o mesmo fundamento, como se verifica nos Tribunais de Justiça dos Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, de forma a indicar a crescente modernização de pensamento sobre o ônus da prova, bem como a resgatar a idéia pioneira sobre carga probatória (que sempre repudiou a visão 20 estática do processo), pensando quem esta com e sem razão. 16 PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. Ônus da Prova e o Projeto de Código de Processo Civil. RT 913. p. 312. 17 Ibidem. p. 311. 18 Ibidem. p. 312. 19 BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p.68/69. 20 BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p. 67/68. 7 Humberto Teodoro Júnior adverte que a aplicação da distribuição dinâmica do onus probandi não dispensa a parte desonerada de produzir provas, mas daquela que lhe configura probatio diabolica: Não se presta esta Teoria – advirta-se – a dispensar totalmente do Ônus da prova aquela parte que, segundo o art. 333, tem o encargo legal de provar a base fática de sua pretensão, mas apenas de aliviá-la de algum aspecto do evento probando, para o qual não tem acesso ou condições de investigação 21 satisfatória, ao passo que o adversário se acha em situação de fazê-lo.[...]. A dinamização do ônus da prova não inverte a estrutura entre o sujeito e espécie de fato consignada no artigo 333, I e II, do Código de Processo Civil. Camilo Couto ensina que os fatos constitutivos continuam atrelados ao autor e os fatos desconstitutivos, modificativos ou extintivos do direito do autor atrelados ao réu: A dinamização não modifica o sujeito, i.e., o fato impeditivo, modificativo, extintivo do direito do autor não passa a ser incumbência do autor, o que seria teratológico, continuando a ser incumbência do requerido. Por outro lado, também não modifica o fato a ser provado, i.e., o fato constitutivo continua na incumbência de ser provado pelo autor e o fato impeditivo, modificativo, extintivo do direito do autor continua na incumbência de ser 22 provado pelo requerido [...]. Nesse sentido, Humberto Teodoro Júnior esclarece que quem suporta o redirecionamento do encargo não deve provar o direito da parte adversa, mas sim esclarecer o fato controvertido fixado pelo juiz: a) a parte que suporta o redirecionamento não fica encarregada de provar o fato constitutivo do direito do adversário; sua missão é a de esclarecer o fato controvertido apontado pelo juiz, o qual já deve achar-se parcial ou indiretamente demonstrado nos autos, de modo que a diligência ordenada tanto pode confirmar a tese de um como do outro litigantes; mas se o novo encarregado do ônus da prova não se desempenhar a contento da tarefa esclarecedora, sairá vitorioso aquele que foi aliviado, pelo juiz, da prova 23 completa do fato controvertido. O limite de aplicação das cargas dinâmicas está em não transferir o encargo de uma prova diabólica à parte contrária. Se nenhuma delas tem condições efetivas 21 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. p. 465. 22 COUTO, Camilo José D’Ávila. Dinamização do ônus da prova: teoria e prática. p. 127. 23 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. p. 464. 8 de esclarecer o fato duvidoso a regra estática de distribuição do encargo probatório deve prevalecer.24 II – FUNDAMENTOS DE APLICAÇÃO DA DINAMIZAÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA No Brasil a Teoria da Distribuição Dinâmica do Ônus da prova encontrou solo fértil, haja vista que por aqui já se aplicava a inversão do ônus da prova, notadamente no âmbito da tutela consumerista. Assim, ela se difundiu na doutrina, na jurisprudência e está incluída no Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil25. Ocorre que a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, abriram-se novos horizontes no nosso ordenamento jurídico. O constituinte originário consignou princípios, direitos e garantias individuais que tornaram muitas das leis vigentes insuficientes ou inadequadas a levar a efeito a concretização desses preceitos. Por conta disso, o Poder Judiciário ao aplicar a lei ao caso concreto, se vê no dever compatibilizar as leis em vigor aos princípios constitucionais. A Teoria da distribuição Dinâmica do Ônus da Prova à luz da Constituição Federal se mostra plenamente adequada a resolver litígios caracterizados pela desigualdade fática, técnica e econômica para a produção da prova, nos quais uma parte apresenta melhores condições de produzir a prova do que a parte adversa, e por isso vem sendo aplicada em vários tribunais brasileiros. Nesse passo, o princípio da isonomia, o princípio do acesso a uma ordem jurídica justa, o princípio do devido processo legal entre outros, compreendidos sob a ótica da efetividade da justiça, bem como o direito constitucional à prova, conferem lastro à validade de aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Thaís Bazzaneze argumenta que essa teoria “prima pela igualdade dinâmica das partes, ou seja, pela igualdade de condições, a fim de afastar a desigualdade 24 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. p. 464. 25 Projeto de Lei 8.046/10. 9 que nutre a igualdade meramente formal ou estática”.26 Ela cita as palavras de Ada Pellegrini Grinover: [...] verifica-se caber ao Estado suprir as desigualdades para transformá-las em igualdade real (...) o contraditório, como contraposição dialética paritária e forma organizada de cooperação no processo, constitui o resultado da moderna concepção da relação jurídico processual, da qual emerge o 27 conceito de par condictio ou igualdade de armas. O objetivo da teoria é fazer com que os litigantes participem efetivamente da produção das provas, exercendo um contraditório efetivo, não permanecendo inertes por razões de interesses privatisticos.28 Oportuno destacar, nesse diapasão, que a concepção privatista do processo tem cedido gradativo espaço à concepção publicista, fato este que evidencia a valorização dos poderes instrutórios do Juiz, que enquanto representante do Estado, tem o dever de viabilizar o restabelecimento do direito violado no caso que lhe for apresentado. Fredie Didier Jr. e coautores argumentam que a dinamização do ônus da prova tem sua aplicação no Brasil fundamentada nos princípios insculpidos na Constituição Federal e no Código de Processo Civil: O CPC não contém regra expressa adotando a teoria. Mas as doutrina acolhe essa concepção, a partir de uma interpretação sistemática de nossa legislação processual. A distribuição dinâmica do ônus da prova seria uma decorrência dos seguintes princípios: a)principio da igualdade (art. 5º, caput, CF, e art. 125, I, CPC), uma vez que deve haver uma paridade real de armas das parte no processo, promovendo-se um equilíbrio substancial entre elas, o que será possível se atribuído o ônus da prova àquela que tem meios para satisfazê-lo; b) princípio da lealdade, boa-fé e veracidade (art. 14, 16, 17, 18 e 125, III, CPC), pois nosso sistema não admite que a parte aja ou se omita, de forma ardilosa, no intuito deliberado de prejudicar a contraparte, não se valendo de alegações de fato e provas esclarecedoras; c) princípio da solidariedade com órgão judicial (arts. 339, 340, 342, 343, 355, CPC), pois todos têm o dever de ajudar o magistrado a descortinar a verdade dos fatos; d) princípio do devido processo legal (art. 5º, XIV, CF), pois um processo devido é aquele que produz resultados justos e equânimes; 26 BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p.70. 27 GRINOVER, Ada Pellegrini. Apud BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p.70. 28 BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p.70. 10 e) princípio do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF), que garante a obtenção 29 de tutela jurisdicional justa e efetiva. Da analise do que foi até aqui exposto, extrai-se que além dos princípios constitucionais a teoria em comento se fundamenta também em uma interpretação sistêmica de princípios contidos no próprio Código de Processo Civil, à luz de um modelo processual colaborativo pautado na boa-fé dos litigantes na busca de uma verdade aproximativa. III - A FLEXIBILIZAÇÃO ÔNUS DA PROVA NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Pelo Ato nº 379 de 2009, o Presidente do Senado instituiu uma comissão de juristas a fim de elaborar o anteprojeto do novo Código de Processo Civil Brasileiro. Sob a presidência de Luiz Fux e relatoria de Tereza Arruda Alvim Wambier essa comissão iniciou seus trabalhos para materializar um estatuto processual capaz de resgatar a crença no Poder Judiciário e cumprir os preceitos constitucionais de uma justiça célere e efetiva, caracterizada por procedimentos modernos e alinhados com o princípio do devido processo legal. A missão foi concluída em junho de 2010, quando teve inicio a tramitação no Senado Federal do projeto de Lei nº 166/2010.30 A teoria da dinamização do ônus da prova estava inserida no artigo 262. Após, proposta de emenda que propunha a supressão desse artigo e a manutenção da distribuição estática, a qual foi rejeitada, houve a aprovação do substitutivo do Relator-Geral deslocando aquela disposição para o artigo 358.31 Após a aprovação no senado o projeto passou a dispor sobre a distribuição do ônus da prova da seguinte forma: no artigo 357, I e II, foi mantida a regra estática, porém, ressalvados os poderes instrutórios do Juiz; no artigo seguinte constou a teoria dinâmica com a seguinte redação: “Art. 358. Considerando as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, o juiz poderá, em 29 DIDIER Jr, Fredie; BRAGA Paula Sarno; OLIVEIRA Rafael. Curso de Direito Processual Civil. p. 98. 30 COUTO, Camilo José D’Ávila. Dinamização do ônus da prova: teoria e prática. p. 246. 31 Ibidem p. 347. 11 decisão fundamentada, observando o contraditório, distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o à parte que estiver em melhores condições de produzi-la. § 1º Sempre que o juiz distribuir o ônus da prova de modo diverso do disposto no art. 357 deverá dar à parte oportunidade para o desempenho adequado do ônus que lhe foi atribuído. § 2º A inversão do ônus da prova, determinada expressamente por decisão judicial, não implica alteração das regras referentes aos encargos da respectiva produção”. Vale mencionar que a regra contida no parágrafo único do artigo 359 que tem a seguinte redação: “Art. 359. É nula a convenção relativa ao ônus da prova quando: I – recair sobre direito indisponível da parte; II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. Parágrafo único. O juiz não poderá inverter o ônus da prova nas hipóteses deste artigo”.32 Nos termos acima expostos o projeto de lei foi aprovado no senado em primeira votação e enviado à Câmara dos Deputados. Houve, então, algumas críticas ao texto, especialmente quanto à falta de imposição de limites à aplicação da teoria e também ao fato de não haver previsão de recurso de agravo de instrumento contra a decisão que inverte o onus probandi, haja vista que o artigo 969, desse mesmo projeto de lei, que trata dos casos em que cabe a interposição do mencionado recurso não incluiu no seu rol a decisão que trata da inversão do ônus da prova. Eduardo H. O. Yoshikawa aponta que deve constar expressamente no texto legal a proibição da inversão do ônus da prova quando ela for ou se tornar impossível de ser produzida no curso do processo à parte que receberá o encargo (prova bilateralmente diabólica).33 Misael Montenegro Filho aponta a necessidade de inclusão no rol das decisões que comportam o agravo de instrumento daquela que inverte o ônus da prova: [...] Embora a técnica seja digna de aplausos, entendemos que a comissão deve incluir o pronunciamento no rol das decisões que ensejam a interposição do recurso de agravo de instrumento, considerando que causa 32 MONTENEGRO FILHO, Misael. Projeto do Novo Código de Processo Civil: confronto entre o CPC atual e o projeto do novo CPC: com comentários às modificações substanciais. p. 64 e 296. 33 YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Considerações sobre a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. RePro 205, p. 151. 12 prejuízo imediato à parte, na medida em que a não assunção do ônus pode 34 acarretar a procedência ou a improcedência dos pedidos. Após sofrer várias modificações na Câmara dos Deputados, somente agora, no final do primeiro trimestre de 2014 foi aprovado o texto final que será remetido ao Senado para segunda votação. Significativas mudanças foram introduzidas no que tange à questão da distribuição do ônus da prova. A matéria foi deslocada para o artigo 380, que passou a tratar de toda essa temática, conforme se nota da redação: Art. 380. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa, relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada. Neste caso, o juiz deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. § 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. § 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I – recair sobre direito indisponível da parte; II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. § 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o 35 processo. O dispositivo colacionado se interrelaciona com o artigo 364 que trata do saneamento do feito, que no inciso III trata do assunto em estudo: “III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 380”. Outro aspecto importante do artigo 364 é o seu § 1º que trata da possibilidade de esclarecimento ou ajustes na decisão: “§ 1º - Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de cinco dias, findo o qual a decisão se torna estável”.36 34 MONTENEGRO FILHO, Misael. Projeto do Novo Código de Processo Civil: confronto entre o CPC atual e o projeto do novo CPC: com comentários às modificações substanciais. p. 297. 35 Projeto de Lei 8.046/10. Ibidem. 36 13 Da análise do artigo 380 combinado com o artigo 364 do projeto de Lei que institui o Novo Código de Processo Civil que agora tramita no Senado, podem-se extrair as seguintes conclusões: a) foi mantida a regra estática anteriormente estabelecida; b) foi incluída no texto legal a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova; c) foram estabelecidos requisitos alternativos para a inversão do encargo, quais sejam: 1) casos previstos em lei; 2) peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput; 3) peculiaridades da causa relacionadas à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário; d) condições de aplicação cumulativas: decisão fundamentada, oportunidade de produção da prova, proibição de inversão de prova diabólica à parte adversa; e) pronunciamento sobre a inversão do ônus na decisão saneadora; f) possibilidade de requerimento apenas de esclarecimentos ou ajustes; g) impossibilidade de interposição de agravo de instrumento contra a inversão do ônus da prova. O texto do projeto sofreu mudanças que atenderam em parte os reclamos das críticas doutrinárias, notadamente quanto à limitação de imposição de prova diabólica à parte onerada e ao momento de comunicação da inversão do encargo na decisão saneadora. Porém, ao que parece deixou a desejar quanto à oferta do contraditório, pois este não está previsto por meio agravo de instrumento. Entretanto o texto ainda será objeto de análise pelo Senado Federal e está sujeito a sofrer novas alterações. Contudo, resta claro que a inclusão da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova no direito positivo brasileiro já é uma realidade consolidada. CONSIDERAÇÕES FINAIS A ciência processual moderna busca soluções que possibilitem uma prestação jurisdicional efetiva, através do aprimoramento de mecanismos processuais que tornem o andamento processo mais célere sem comprometer a segurança jurídica, garantindo o acesso irrestrito a uma ordem jurídica justa e 14 rápida, promovendo a igualdade material em face das novas realidades que surgem da complexidade das relações sociais modernas. O constitucionalismo moderno incorporou fundamentos da concepção contemporânea dos Direitos Humanos também às normas processuais. O movimento denominado neoconstitucionalismo propugna uma interpretação das normas constitucionais à luz de princípios de Direitos Humanos tais como a dignidade da pessoal humana, a igualdade à luz da isonomia, os direitos políticos entre muitos outros, que se irradiam para todas as esferas de direitos inerentes ao cidadão, apontando para um processo lastreado em um formalismo-valorativo. Sob essa ótica os princípios que regem o Processo Civil devem ser interpretados de forma a proteger aqueles que se encontram em situação de inferioridade de condições perante a parte contrária. Não basta garantir acesso ao Judiciário. É preciso garantir também um provimento final justo, pautado na busca da realidade fática, o que se prioriza, portanto, é o acesso à ordem jurídica justa e não mero acesso ao Judiciário. A verdade, para cada litigante, é aquela que aponta para a concretização de seus interesses. Nesse sentido cada um tende a se utilizar dos mecanismos processuais que favoreçam o acolhimento de sua pretensão, manobrando estratégias como num tabuleiro de xadrez. Houve um tempo que o duelo foi um dos meios utilizados para solucionar demandas, era uma fórmula que favorecia o mais forte. Portanto, o mérito da causa não era apreciado. Foram épocas de trevas. Nos dias atuais, por vezes, esse quadro se repete, saindo vencedor da demanda o mais astuto ou aquele que tem condições de contratar profissionais de melhor qualificação. Porém, exsurge que o processo não é um jogo e o Estado na função de provedor da justiça deve garantir que a razão prevaleça e a verdade apareça. Não se trata de eternizar a demanda ou exacerbar no protecionismo, mas apenas impedir que se legitime um provimento apenas formalmene justo. No Processo Civil deve se primar pela verdade judicial, por muitos denominada verdade possível, que propugna pela aplicação dos meios disponíveis para trazer aos autos provas da realidade fática. Nessa tarefa o Juiz, como condutor do processo, tem o 15 poder-dever de agir para concretizar o princípio da isonomia, mantendo uma postura ativa diante de manobras de inércia probatória dos litigantes. O poder instrutório do Juiz deve ser exercido em concorrência à atividade probatória das partes. Portanto a nova ordem processual-constitucional caminha no sentido de romper com a visão liberal-privatista em benefício de um processo mais publicista, como tal mais justo. O Direito Constitucional à prova, que advém do princípio do devido processo legal, deve ser interpretado para além do direito de produzir a prova. Ele, na realidade, representa o direito que a parte tem de ver a prova produzida nos autos. Trata-se de uma visão colaborativa das partes com a instrução da causa, fundamentada no dever de lealdade com a justiça. A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova permite que nos casos em que os litigantes se vejam diante da impossibilidade ou excessiva dificuldade de se desincumbir do seu encargo probatório, o juiz possa atribuir o referido ônus à parte que se encontre em melhores condições de exercê-lo, fazendo com que a sentença se baseie em provas concretas dos fatos controvertidos, diminuindo a incidência das regras de julgamento. Trata-se de uma teoria que assegura a incidência da igualdade material, haja vista que a regra estática muitas vezes não atende com justiça aos casos peculiares. Ela representa um avanço no sentido de concretizar uma ordem jurídica mais justa. Por fim, vale ressaltar que ao jurista contemporâneo não basta somente o domínio da razão técnica, é necessário também o uso da razão crítica para interpretar as estruturas que permeiam a sociedade, a fim de contribuir para que a igualdade material prevaleça e todos tenham verdadeiro acesso à Justiça. 16 REFERÊNCIAS BAZZANEZE, Thaís, Distribuição Dinâmica dos ônus probatórios: Análise à luz do devido processo legal e do acesso à Justiça. RePro 205. p. 64. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2010. COUTO, Camilo José D’Ávila. Dinamização do ônus da prova: teoria e prática. 2011/05/04. 278f. Tese de Doutorado em Direito. Universidade Estadual de São Paulo. DIDIER Jr., Fredie; BRAGA Paula Sarna; OLIVEIRA Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 5. ed. Salvador: Podivm, 2010. v 2. DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Podivm, 2006. GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Novo curso de direito processual civil. Teoria geral e processo de conhecimento. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 1. MONTENEGRO FILHO, Misael. Projeto do Novo Código de Processo Civil: confronto entre o CPC atual e o projeto do novo CPC: com comentários às modificações substanciais. São Paulo: Editora Atlas, 2011. ________________. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo de conhecimento. 6. Ed – São Paulo: Atlas, 2010, v. I. PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova. São Paulo: RT, 2011. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2012, v. I. YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira, Considerações sobre a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Revista de Processo. RePro 205, São Paulo: RT, mar. 2012.