NIETZSCHE COMO PSICÓLOGO: PROCEDIMENTO GENEALÓGICO E CRÍTICA AOS UTILITARISTAS INGLESES Mizael José de Oliveira Filho Martins Mestre em Filosofia Contemporânea (UEL) e Professor do Instituto Federal do Amazonas (IFAM) Resumo: Abstract: O procedimento genealógico elementar para o entendimento histórico-filosófico dos estudos das condições em que nasceu o valor dos valores é deixado de fora do método de escrutínio dos historiadores-psicólogos ingleses. É pela averiguação dos costumes dos povos que o historiador poderá compreender as condições de surgimento de sua moralidade. Este artigo mostra como Nietzsche se utiliza da psicologia para a compreensão do nascimento da civilização ocidental, promovendo seu embasamento na necessidade de criação de um perspectivismo interpretativo, incomensurável antes do pensamento nietzscheano. The procedure for genealogical elementary understanding of the historical-philosophical studies of the conditions in which was born the value of values is left out of the method of scrutiny of historians-psychologists British. It is the finding of the customs of the people that the historian can understand the conditions of appearance of their morality. This article shows how Nietzsche uses psychology to understanding the birth of Western civilization, promoting its basement in need of creating an interpretive perspectivism, immeasurable before nietzschean thought. Palavras-chave: Psicologia; procedimento genealógico; utilitarismo inglês; perspectivismo. Key-words: Psychology; procedure British utilitarianism; perspectivism. genealogical; Algo ocorrido nas faces da Terra fez com que o homem transformasse por si mesmo uma sua condição natural, instintualmente estabelecida e, unicamente por este motivo, imperativa em força essencial, em algo indesejado: o “bem máximo” a ser querido pelo homem torna-se então o contrário, o inverso, o exato oposto a esta natural condição: a negação da força instintual primordial, mas não pelos próprios detentores da força e sim pelos impossibilitados naturalmente de agir afirmativamente sobre as terrenas faces. Um evento necessariamente deve ter ocorrido e ele mesmo possibilitado o transladar da organização da “conduta” humana de uma esfera instintual, corpórea, baseada na satisfação deste corpo em direção ao externo, a um fora de si e impondo-se de maneira dominante em relação a este exterior, para um “bem” praticado em nome do grupo dos homens, ou seja, Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) para uma organização política1 e a respectiva contenção física individual. Podemos visualizar em nossos dias este homem fraco, necessitante da constituição da política para que possa governar? Onde está este canhestro vital, este esquerdo face à existência? (...) Vai, Carlos! ser gauche na vida. (...) Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco.2 Os versos drummondianos são exemplares: por conta da constatação da “morte de Deus” pelo eu-lírico, este fica relegado tão somente e entregue às vivências, ao corpo, à monotonia da vida a ser vivida! Cessa-se o espetáculo metafísico e o eu-lírico tem de se haver com a bestialidade quase ignominiosa do mero viver, do parvo vivenciar humano –; o poeta não fala mais da profundidade abismal de seu ser, não fala mais em consonância com o natural terreno; o poeta lírico não mais fala dando vazão ao Uno-primordial; a natureza não mais perpassa o eu do poeta para que este possa dar vazão à sua subjetividade, naturalmente, nem tampouco fala com aquela interessante voz construída pelo tipo sacerdotal tendente ao anímico e ao incondicionado, mas sim, fala tão somente em reação a um interno que, agora, lhe é aflitivo posto ter transformado armas, campo e alvo contra o qual promove sua luta: as armas e o campo onde se desenrola tal embate performático são agora a interioridade humana; e o alvo? Ora, obviamente a própria alma, destituída do incondicionado elementar, e o invólucro mesmo guardador de tal mise-en-scène: o corpo. O que resta ao poeta lírico contemporâneo se seus versos destroem, mesmo que inconscientemente, corpo e alma? Retornando no tempo, é a partir daquela política anteriormente mencionada, da organização carente de uma resposta ao que, outrora diverso, agora se iguala, comunitariamente, que o salto torna-se mais simples em direção à criação de um algo que se 1 A palavra política neste ponto do texto aparece em um sentido diverso do entendido na modernidade; leva em consideração a conduta individual e instintiva do homem transferindo-se já para uma organização linguística e comunitária mínimas, posto que se pressupõe a concomitância de, ao menos, um ínfimo aparato de consciência coletiva. 2ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. (Organizada pelo autor). Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 21. http://www.cogitationes.org 14 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) intenciona anterior ao próprio ato criativo: tal ato é concebido negativamente posto ser reativo, e não simples criação a partir de si, podendo-se dele inferir a negação do corpóreo e do instintual como fundamento para que haja a criação daquele algo – de uma interioridade. É somente a partir da criação da interioridade que o humano necessita de uma platéia que aplauda os seus incomensuráveis esforços na tentativa de salvaguardar-se dos perigos do viver. O evento mencionado ao início deste artigo é dimensionado pelos seguintes traços característicos de criação: comunidade, memória, linguagem, consciência, intelecto e conhecimento humanos. Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um semnúmero de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar. 3 O conhecimento, o intelecto humano é uma invenção. Ele [o intelecto] é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. É a partir desta invenção que há uma inversão na constituição dos valores humanos, não mais positivos e gerados da própria conformação forte do homem mas então reativos, passados pelo crivo de todo o aparato da interioridade, expressando-se no mundo como reação, efeito mascarado em causa. Parafraseando Azeredo, a suspeita, portanto, de Nietzsche ainda em Humano, demasiado humano quanto às intenções e efeitos da moralidade bem como a 3NIETZSCHE, Friedrich W. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Obras incompletas (Col. Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 53. http://www.cogitationes.org 15 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) procedência dos preconceitos morais não possui nesta obra sua formulação remetida ao valor; introdução e tematização acerca de tal ponto irá se dar somente ao Zaratustra e, mais especificamente, à Genealogia da moral4. O projeto crítico nietzscheano embasado por seu procedimento genealógico estabelece na necessidade de viver comunitariamente e em suas conseqüentes criações da linguagem e da consciência o motivo primeiro possibilitador da inversão do valor dos valores na constituição da moralidade dos costumes: “Se, desde um ponto de vista genealógico, a origem da consciência está ligada à pressão da necessidade de comunicação, então existe em vínculo essencial entre consciência e comunidade (sociedade) – isto é, não fora a necessidade da vida em comum, não haveria consciência”5. Segundo pode-se inferir do texto de Giacoia, a crítica de Nietzsche instaura-se relativamente à imensa importância dada a esta consciência na medida mesma de sua utilidade pela tradição filosófica6; critica, desta forma, o “privilégio concedido à consciência pela filosofia e pela psicologia tradicionais”, e, ainda, a “sobrevalorização da unidade da consciência – que culmina em sua identificação com a totalidade do psíquico e com o núcleo da subjetividade –”, apresentando “raízes remotas no platonismo em suas mais diversas formulações”7. *** Em que sentido, então, Nietzsche afirma-se como psicólogo, ou mesmo como fundamentador da psicologia, ao Ecce homo? Qual é esta psicologia nietzscheana? Apresentase ela diferenciada de “outras” em voga ao seu tempo? Ela constitui-se isoladamente de outras disciplinas ou de maneira necessariamente interdisciplinar? E, ainda, de que forma esta concepção de psicologia liga-se à moralidade ou à análise dos valores morais? Tais perguntas possibilitam as análises contidas neste texto. Ao partir de uma renovada crítica do 4AZEREDO, Vânia Dutra de. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003, p. 41. 5GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2002, p. 36. 6Idem, p. 35. 7GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2002, p. 47. http://www.cogitationes.org 16 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) próprio valor dos valores morais Nietzsche funda o procedimento genealógico como recurso único para que se possa concretizar o movimento de avaliação da moralidade dos costumes. Tal processo instaura-se interdisciplinarmente e por completo alheio à imobilidade do julgar segundo os parâmetros da metafísica. A perspectiva nietzscheana toma como pontos de partida para esta avaliação um apuro em questões psicológicas e o apego àquelas que devem ser as legítimas fontes para a análise filosófica da moralidade: a história e a filologia, principalmente. Isto estabelecido, Nietzsche aponta o que se apresenta como um contra-senso psicológico dentro da avaliação utilitarista sobre a atribuição primordial do valor de “bom” às ações, à Primeira Dissertação da Genealogia da moral, tendo neste momento Stuart Mill como principal alvo, não único, de seus ataques. Por outro lado, Nietzsche reconhece o valor destes psicólogos ingleses, os primeiros a tentar, mesmo que de maneira tortuosa, considerar a moralidade tendo em vista a interioridade e as ações humanas. Deve-se, então, averiguar a crítica nietzscheana aos utilitaristas dentro da parte da referida obra e de que forma Nietzsche afirma-se como psicólogo, em especial após o estabelecimento do procedimento genealógico. Uma colocação simples para que possamos conceber em que sentido, exatamente, Nietzsche considera-se o primeiro psicólogo: antes do pensamento nietzscheano a psicologia estabeleceu-se como disciplina específica sendo subsidiada, no entanto, pela metafísica: a psicologia “achava-se”, segundo a análise, por Scarlett Marton, do pensamento de Christian Wolff, “vinculada à lógica (como a alma humana se representa o mundo) e à moral (como ela se coloca princípios para a ação) e encontrava o seu fundamento na metafísica (a própria noção de alma)”8. Tais considerações de Wolff são amparadas pelas noções de alma segundo Leibniz. Ora, de certa forma, dentro do pensamento nietzscheano, a psicologia também aparece vinculada à moral apresentando, no entanto, uma diferença essencial em relação ao wolffiano: em Nietzsche a psicologia está apartada por completo da metafísica. Se em Christian Wolff a metafísica é a disciplina que estabelece os “princípios gerais” dos quais a psicologia deve-se utilizar, em Nietzsche não há metafísica e nem noção de alma humana; se anteriormente não poderiam ser atribuídas aos fenômenos morais “origem” e 8MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 68. http://www.cogitationes.org 17 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) “história”, agora, o procedimento genealógico deve concebê-los como conditio sine qua non para a real averiguação do valor dos valores morais: estes passam a ser produtos sociológicos e, neste sentido, devem ser discernidos e analisados por um conjunto complexo de saberes: a psicologia constitui-se, já no Humano, demasiado humano, como a ciência que irá promover a investigação de origem e história dos sentimentos morais 9, mas é à Genealogia da moral que ela será apresentada como a ciência embasadora do desenvolvimento do procedimento genealógico e autônoma da metafísica. Com a nova configuração nietzscheana dos fenômenos morais tem-se uma mudança completa não só do ponto perspectivo por meio do qual olha-se para o referido objeto, mas também do próprio objeto, o qual consubstancia-se ao próprio homem na medida mesma que este o faz, reflexivamente, ao objeto: se estes fenômenos morais passam a ter origem e história eles não remetem mais a essências ou incondicionados, eles não se ligam mais a uma noção de alma humana e, por conseguinte, devem referir-se exclusivamente às faces deste mundo, às intenções humanas de criação e avaliação dos valores morais, nunca a um por detrás das ações, a um regente primordial da conduta humana. Esta nova configuração do trato da moral segundo Nietzsche é tributária da psicologia francesa nascida das análises, principalmente, de Montaigne, Pascal (salvo a sua defesa do cristianismo), La Rochefoucauld, Vauvenargues, Chamfort e Stendhal tanto no que concerne à forma (o estilo ensaístico; o aforístico, pautado em máximas e sentenças morais; o romance de cunho psicológico mas pautado na história e na sociologia) quanto ao conteúdo elementarmente desenvolvido, a saber: “os moralistas franceses criam uma nova psicologia dos móveis humanos”10 e promovem uma anatomia moral. Nietzsche salienta a necessidade de, ao apartar a psicologia da metafísica e vinculá-la de maneira estreita à história, não se promover uma análise psicológica rasa daquelas motivações morais nem, tampouco, renderse à auto-observação re-flectiva tão própria dos ditos psicólogos de sua época: como se reconstrói de Marton, nem o livro do mundo nem a introspecção são suficientes para fornecer o critério moral.11 9NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, § 37, pp. 45-6. 10MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 70. 11Idem, p. 71. http://www.cogitationes.org 18 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) Parte-se então do pressuposto de que o valor dos valores morais deve ser questionado a partir do deslocamento da dúvida nietzscheana: não mais se deve perguntar qual a procedência do valor dos valores mas sim qual é, realmente, o valor destes valores morais. “Le projet le plus général de Nietzsche consiste en ceci: introduire em philosophie les concepts de sens et de valeur”12. Retomando o que já fora apresentado ao final da primeira parte deste texto por intermédio da contundente asseveração deleuzeana, Nietzsche introduz na filosofia os conceitos de sentido e valor. A consideração da noção de valor promove não somente uma subversão crítica, mas uma teoria da reversibilidade13 no que diz respeito à consideração do valor dos valores morais: não só a perspectiva avaliativa é alterada como também o são objeto a ser analisado e sua respectiva contextualização: os valores devem ser avaliados como criações humanas e não legitimados por um mundo suprasensível. Desta forma, O valor dos valores está em relação com a perspectiva a partir da qual ganharam existência. Não basta, contudo, relacioná-los com os pontos de vista de apreciação que os engendraram; é preciso ainda investigar de que valor estes partiram para criá-los. Em outras palavras, a questão do valor apresenta duplo caráter: os valores supõem avaliações, que lhes dão origem e conferem valor; estas, por sua vez, ao criá-los, supõem valores a partir dos quais avaliam. 14 Nietzsche já esclareceu, ao sexto parágrafo do Prólogo da Genealogia, que “necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão”; necessitamos da constituição de “um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado”15. Mas de que forma foi tal empreitada posta efetivamente em ação e quem fora o desencadeador deste movimento completamente diverso na consideração dos móveis primeiros que levaram o ser humano a constituir valores? *** 12DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 2007, p. 1. 13MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 72. 14Ibidem. 15NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 12. http://www.cogitationes.org 19 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) Se ao primeiro parágrafo do Prólogo à Genealogia da moral Nietzsche apresenta uma crítica aos homens do conhecimento, ironicamente, pela voz de um destes próprios homens os quais guardam o que há de mais valoroso para si dentro de intumescidas colméias prenhes de conhecimento mas, paradoxalmente, desprovidas de qualquer ínfimo gérmen de sensualidade ou impulso (Trieb) vital, Nietzsche retoma a voz “sarcástica” no início da Primeira Dissertação para falar dos psicólogos ingleses: a defesa nietzscheana aos psicólogos ingleses está assentada tanto na corajosa iniciativa destes perscrutadores da moral, não propriamente nos seus escritos, quanto no que concerne ao ataque à rasa crítica formulada pelos seus opositores, os quais tentaram de todas as formas desacreditar qualquer tipo de “verdade chã, acre, feia, repulsiva, amoral, acristã...”16. Por esta nobilíssima iniciativa os psicólogos ingleses seriam, conseqüentemente, os desencadeadores deste movimento, em qualquer sentido verificado de sua análise. Mas o elogio nietzscheano prossegue até o próprio momento da busca destes psicólogos pelas motivações para a criação dos valores morais no “nosso mundo interior” 17; até onde Nietzsche verifica o movimento que impele estes homens em direção à crítica da tradição, a Platão e ao cristianismo, à investigação do homem em suas mínimas partes. Nietzsche respeita-os até a apresentação deste “intento”; a forma como o levam a cabo e seus resultados serão criticados. Qual o erro essencial destes “historiadores da moral” já que eles são os únicos “aos quais até agora devemos as únicas tentativas de reconstruir a gênese da moral” 18?: “Infelizmente é certo que lhes falta o próprio espírito histórico, que foram abandonados precisamente pelos bons espíritos da história!” 19. O retrospectivismo elementar para o desenvolvimento dos estudos das condições em que nasceu o valor dos valores é deixado de fora do método de escrutínio destes “historiadores”: suas aferições não possuem possibilidade de constatação empírica dentro da história das culturas. É pela averiguação dos costumes dos povos que o historiador poderá compreender as condições de surgimento de 16NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: um escrito polêmico. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18. 17Idem, p. 17. 18Ibidem. 19Idem, p. 18. http://www.cogitationes.org 20 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) sua moralidade. Perceba-se a grandiosidade, dificuldade e a necessidade de um perspectivismo interpretativo, incomensurável antes de Nietzsche. A “maneira essencialmente a-histórica”20 por meio da qual se desenvolve a única tentativa de análise da moralidade dos costumes é atribuída ao pensamento dos utilitaristas ingleses em geral, mas de forma incisiva a Stuart Mill21. “Originalmente” – assim eles decretam – “as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas – como se em si fossem algo bom. Logo se percebe: esta primeira dedução já contém todos os traços típicos da idiossincrasia dos psicólogos ingleses – temos aí 'a utilidade', 'o esquecimento', 'o hábito' e por fim 'o erro'”.22 Para Nietzsche há um erro elementar no estabelecimento do lugar de onde é proveniente este juízo “bom”: a constituição valorativa primordial é produzida pelos “bons”, pelos capacitados de agir e que atribuem ao seu sentimento, à sua ação, o juízo “bom”, e não por aqueles a quem o “bem” é feito: “Foram os 'bons' mesmos, isto é, os nobres, os poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu” 23. Ao parágrafo terceiro da Primeira Dissertação da Genealogia da moral encontram-se as palavras nietzscheanas referentes ao contra-senso psicológico depreensível em um segundo momento da genealogia da moral destes 20NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: um escrito polêmico. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18. 21Por estes mesmos pressupostos Nietzsche também promove uma crítica ao pensamento kantiano e o modo como tanto este quanto os utilitaristas ingleses utilizam-se dos mais variados embustes para tornar insondável, imperscrutável e inquestionável a moralidade: “Nietzsche considera Kant um mau psicólogo, pois teria excluído do domínio do conhecimento os problemas relativos à conduta humana, visando a metafísica graças à moral” (MARTON Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 129). 22NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: um escrito polêmico. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18. 23NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: um escrito polêmico. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19. O objetivo deste artigo não é promover uma análise aprofundada das diferenciações promovidas por Nietzsche e relativas ao valor das valorações dentro de cada uma de suas fontes. O trabalho etimológico, ou filológico, desenvolvido à Primeira Dissertação da Genealogia da moral, amparado pelas diretrizes da psicologia e da história, por via do qual Nietzsche coloca em movimento o seu procedimento genealógico, bem como as conseqüências dele depreendidas, é tema para um escrito de maior fôlego. http://www.cogitationes.org 21 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) “historiadores”: tal contra-senso refere-se à utilidade das ações altruístas como causa da aprovação delas próprias, sendo que, posteriormente, tal causa é esquecida. Nietzsche pergunta-se como tal pode ter ocorrido dada a recorrência de tais ações dentro da sociedade. No sentido exposto acima é que podemos compreender a aceitação nietzscheana da teoria de Spencer, já que este “estabelece o conceito ‘bom’ como essencialmente igual a ‘útil’, ‘conveniente’, de modo que nos conceitos ‘bom’ e ‘ruim’ a humanidade teria sumariado e sancionado justamente as suas experiências inesquecidas e inesquecíveis acerca do útilconveniente e do nocivo-inconveniente”24. Apesar de também errônea, tal interpretação é razoável e fiel à sustentação psicológica já que o que aparecia, outrora, como útil no mais alto grau continua a ser percebido como “‘valioso no mais alto grau’, ‘valioso em si’” 25. Quem será, então, o desmantelador da moralidade que promoverá seu trabalho partindo da perquirição perspectiva e externa à própria moral observada; que partirá da análise da organização e dos costumes, e logo, da linguagem, de um povo para chegar à real origem do valor de seus valores? Ora, obviamente, este deve ser o trabalho do psicólogo aliado ao do historiador: somente por intermédio da união de seus esforços é que se torna possível “solapar concepções metafísicas” 26, destituir a moralidade dos costumes das normas de condutas necessárias, dos juízos universais e, como observado ao erro no qual incorreram os ingleses, destituí-la das generalizações indevidas. É pelo apego às vivências que Nietzsche prefere a doutrina moral de Spencer à dos outros utilitaristas, visto que aquele, ao contrário destes, toma a vida como ponto de partida para as reflexões morais. É certo que, ao promover um evolucionismo moral, Spencer é criticado acentuadamente por Nietzsche pois este não concebe o indivíduo sair de um estado primordial eminentemente egoísta “evoluindo”, posteriormente, para um altruísta. Dentro desta evolução, Spencer, de algum modo, reaproxima-se dos utilitaristas dantes por ele criticados: a felicidade não mais pode ser aceita egoisticamente, o indivíduo não pode ser feliz; somente ao grupo é dada a felicidade; somente o estado gregário é o que pode 24NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: um escrito polêmico. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 20. 25Ibidem. 26MARTON Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 78. http://www.cogitationes.org 22 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) promover a real paz felicitada pela plena vivência. Em Mill a felicidade também é pensada comunitariamente; sua moralidade é derivada ora de uma teleologia da felicidade, independente dos móveis e meios para a sua consecução, ora da utilidade como princípio único e suficiente. Isaiah Berlin expõe ao introduzir o Utilitarismo de Mill: “Não deve importar como se atinge uma felicidade duradoura, ou mesmo a imunidade à dor, desde que o maior número possível de homens as recebam. Bentham e Mill acreditavam na educação e legislação como caminho para a felicidade”27. Nova crítica neste ponto deve, ao menos, ser mencionada: Nietzsche não admite a instauração do prazer (felicidade) apartado do desprazer (dor); não podem surgir senão concomitantemente. Este amolecimento dos sentimentos na modernidade é criticado pelo genealogista da moral e postos em equivalência cristianismo, Revolução Francesa e Estado moderno. Segundo o psicólogo-historiador, o Estado promove a uniformização e escravização do indivíduo, massificando-o ao transmitir como necessária à manutenção da vida humana a completa agregação ao social, sem concessão para o desenvolvimento do menor viés de individualização ou autonomização. Em tal sentido, a Cultura como pensada por este investigador é adversa ou mesmo completamente avessa ao conceito de política como apresentado ao início deste artigo: a educação de um povo não pode ficar relegada à liberdade condicionada à exigência de igualdade entre seres essencialmente diversos ou de fraternidade como apascentação moral dos instintos de luta e vontade de dominação dos homens entre si. Pensando em Nietzsche como sendo não somente aquele psicólogo, da questão ao título, que promove a crítica ao pensamento utilitarista mas ainda o historiador e o filólogo necessários à promoção do procedimento genealógico pode-se claramente observar que sua crítica ultrapassa um possível intento de restringir-se somente aos ingleses: seu alvo, como visível ao parágrafo primeiro do Prólogo da própria Genealogia, são os “homens do conhecimento”; como visto ao Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral são os filósofos que necessitam de outro mundo povoado de seres tantos e “melhores” que eles próprios que possam “apreciar” suas façanhas; é todo o ideal, o instinto, o espírito gregário, 27MILL, John Stuart. A liberdade; Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000. http://www.cogitationes.org 23 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) fraco e necessitante de um algo externo a si próprio que o governe – uma qualquer criação sua, um cristianismo, um Estado inóspito à Cultura do esclarecimento, uma Revolução que intenciona o nivelamento humano tendo por base a mediocridade, ou ainda, o instinto desejante de escravidão. Esta moral reativa e negativa, a qual nasce da necessidade de resposta a um externo a si contra o qual deve lutar, de maneira indireta, exige-se ser analisada pelo genealogista colocando-se este de fora das produções (instituições) por ela estabelecidas: somente por intermédio de um tal movimento poder-se-á avaliar a primeva, e positiva, moral, afirmadora das ações e sentimentos dos homens que a criaram e a outra, uma mera sua reação. “(...) Quando [Nietzsche] trata da crítica dos valores, é a vida, enquanto vontade de potência, que adota como critério de avaliação”, e ainda segundo Scarlett Marton, “o conceito de vontade de potência (...) é tomado como parâmetro do procedimento genealógico (...). Concebida como vontade de potência, a vida constitui o único critério de avaliação que se impõe por si mesmo”28. Restava Nietzsche mostrar-nos o único valor que não pressupõe avaliação anterior e os respectivos valores que as legitimariam. É esta vida que possibilitará ao filósofogenealogista perguntar pelo valor dos valores, tanto dos nascidos positivamente e embasados na afirmação da potência dos próprios indivíduos criadores quanto daqueles provenientes da negação da potência de outrem e, não menos, necessária negação do valor que, por acaso, lançam-nos estranhos, esquerdos, canhestros neste mundo de corpos e vivências: suas próprias vidas. Referências Bibliográficas ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. (Organizada pelo autor). Rio de janeiro: Record, 2004. AZEREDO, Vânia Dutra de. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 2007. 28MARTON Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 87. http://www.cogitationes.org 24 Revista Cogitationes || ISSN 2177-6946 Vol. III, nº 9 (dez./2012.-mar./2013) GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2002. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Obras incompletas (Col. Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974. ______. Genealogia da moral: um escrito polêmico. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ______. Humano, demasiado humano. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990. MILL, John Stuart. A liberdade; Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000. http://www.cogitationes.org 25