Joana Havia de coisas que havia e de outras que vai havendo Bértholo Histórias Ilustrações e Posfácio de Daniel Melim H avia um índice muito desarrumado. Nunca sabia onde punha as coisas e nas semanas em que fazia dois turnos nem tinha tempo para guardar a roupa e esta acumulava-se em cima dos móveis, cobrindo tudo. 9 Havia um absurdo que não ouvia nada bem .......... Havia uma rapariga que todas as manhãs saía 13 para tomar café com um poema ......................... 15 Havia um senhor que certa manhã achou um bilhete suspeito à porta de casa ........................... 21 Havia um senhor que escrevia muitos livros .......... Havia uma ilha rodeada de terra por todos os lados .. Havia uma cidade que ninguém conhecia porque 25 permanecia anónima ............................................. 33 Havia um sentimento que não tinha nome .............. Havia uma mulher que se apaixonou por um 35 homem muito culto, das Letras ........................... 43 Havia, mas não era ele ................................................. Havia, uma, vírgula, com, uma, gritante, 47 necessidade, de, protagonismo, .......................... 51 Havia uma linguagem corrente que era coxa .......... Havia este homem, mais velho, no qual eu 55 estava interessada .................................................. 61 29 Havia um senhor que mastigava tudo setenta e oito vezes antes de engolir ................................ 65 Havia um duelo musical entre duas bandas muito aclamadas .................................................... 73 Havia um senhor (mais de 23% da população mundial) muito confuso ....................................... 77 Havia um Ricardo que queria ser um Francisco ..... Havia uma menina que estava há muito 83 tempo sem comer .................................................. 87 Havia uma família completamente sem cedilhas e com muito poucos tis ......................................... 10 91 Havia um homem que tomava café para dormir .... Havia um poeta que era mais alto e maior 97 do que todos os outros homens .......................... 103 Havia um amor que era puro ..................................... Havia uma tese académica escrita em jargão 105 científico ................................................................ 109 Havia um Alemão que namorava uma Portuguesa .............................................................. 113 Havia um telemóvel que dizia que tinha uma escrita muito inteligente ....................................... 117 Havia um poeta afetado .............................................. Havia alguém que amava uma marioneta ............... Havia uma história que não queria ser contada ..... Havia uma pessoa que um dia, numa manhã 121 125 131 cinzenta, em pleno centro de Londres, acordou bem-humorada ....................................... 135 Havia uma senhora que gostava de lamber selos nos tempos livres ......................................... 137 Havia aquela via onde aquele homem que já não via fingia que via as miúdas passar ............ 141 Havia um senhor que tinha gosto em assaltar a casa alheia ............................................................ 145 Havia uma infinidade de coisas belas e infinitamente fascinantes no Mundo sobre as quais ela poderia escrever ............................... 151 Havia uma história circular que queria ser reta ...... 153 Posfácio (por Daniel Melim) ........................................ 157 11 Havia um índice muito desarrumado. Ao procurar uma meia desemparelhada, encontrou uma antiga carta de amor, enterneceu-se, e concluiu que ser desarrumado também tinha as suas vantagens. 12 H avia um absurdo que não ouvia nada bem. Não era apenas um pouco surdo, este absurdo, era mesmo surdo. Não apanhava nada. Uma pessoa perguntava-lhe: “Com ou sem gelo, senhor?” E ele respondia: “Multibanco”. Em qualquer tipo de conversação que fosse, as suas respostas roçavam sempre o absurdo: — Porque é que a tua mulher é ruiva e tu não? — Molho de tomate. — Já foste à tropa? — Perto de casa. — Achas que a comida para gato sabe a rato? — Já não havia, trouxe antes um capacete. Não adiantava gritar, gesticular, apontar para as coisas, este absurdo recusava-se a ouvir. Só ele se compreendia. 13 Havia um absurdo que não ouvia nada bem: — És feliz? — perguntaram-lhe um dia. — Às nove e um quarto — respondeu ele. 14 H avia uma rapariga que todas as manhãs saía para tomar café com um poema. Tinha-o visto num filme de cinema. Era menina e havia apenas uma sala de cinema na região. Nesse filme, uma mulher lindíssima que acordava perfeitamente penteada e maquilhada sentava-se numa esplanada, numa praça cheia de pombos que não sujavam o chão. Ficava simplesmente ali, lindíssima, a observar as pessoas que passavam e passeavam. Sobre elas escrevia doces e cândidos poemas. Todas as manhãs, justamente ao terminar o seu poema mais inspirado, aparecia um homem alto e bem-parecido. Tinha ar de galã e bebia galão. Foi a partir deste filme que a rapariga ganhou o hábito de ir para a esplanada do fundo da rua, que não tinha arcadas monumentais mas tinha pombos. Estes, ao contrário dos outros, sujavam tudo e tornavam a rua praticamente intransitável. Pelo que as pessoas evitavam passar por ali. Mesmo assim, a rapariga que todas as manhãs saía para tomar café com um poema, bebericava lentamente o seu café, e aguardava o seu galã. Para sua enorme estranheza, nunca um galã se sentou à sua mesa para tomar um galão. Ou lhe elogiar a métrica. Muitos anos assim se passaram. Muitos poemas assim se escreveram. Ao contrário do que se possa julgar, nunca desta espera se gerou um espírito desiludido ou amargo. A rapariga que todas as manhãs saía para tomar café com um poema nunca deixou que a escuridão do cinema turvasse a (sua) realidade. Todas as manhãs a rapariga saía para tomar café com um poema, todas as manhãs com a mesma fé e o mesmo ânimo. 15 Para ela, havia suficiente beleza cinemato gráca simplesmente naquele ritual, na teimosia dos pombos contra a brancura do mármore, no modo improvável e simpático como a cadeira de ferro se tinha ajustado às suas formas redondas, na atenção turística que os poucos transeuntes — e sempre os mesmos — lhe entregavam num sorriso, ao vê-la sempre ali, estátua e marco daquela rua. Mais embelezadora que qualquer arcada. Muitos anos assim se passaram. Muitos poemas assim se escreveram. 16 Havia uma rapariga que todas as manhãs saía para tomar café com um poema. Quando morreu, a população dedicou-lhe uma estátua em bronze, gurando-a sentada a escrever no mesmo café onde sempre escrevera. Tornou-se um dos pontos mais visitados da cidade. 17 H avia um senhor que certa manhã achou um bilhete suspeito à porta de casa. Foi logo ao acordar, ao enfrentar a neve e o frio para ir buscar pão e lenha à vila, que reparou que à porta de sua casa repousava um bilhete, muito dobradinho, e nele dizia: O senhor que esta manhã achou este bilhete suspeito cou naturalmente muito intrigado. Sobretudo por não haver nenhum lago nas redondezas. Nem tão-pouco possuía qualquer peça de roupa de cor lilás. Nenhum gorro. Nem sequer um cachecol. Por precaução, não acenderia qualquer lareira nos próximos tempos. 21 Havia um senhor que certa manhã achou um bilhete suspeito à porta de casa e naquele inverno toda a família passou muito frio. 22