III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA
AUTOR DO TRABALHO: Môniele Nunes dos Santos
De casa ao abrigo: confinamento de adolescentes vítimas de abuso sexual
RESUMO: A institucionalização em abrigo é prevista na Lei 8069/90 como medida de
proteção excepcional e provisória, no caso de ameaça ou violação de direitos, mas
paradoxalmente, tem-se configurado como uma das práticas mais utilizadas. O presente
artigo1 tem como proposta investigar o significado da experiência de viver em abrigo, seu
cotidiano e suas vivências para adolescentes vítimas de abuso sexual, buscando
compreender como estas constroem uma imagem de si mesma e de suas expectativas
futuras em uma instituição total onde o cerceamento da liberdade faz parte do seu
cotidiano. A Instituição estudada será a ONG Lar Flor de Lis , Salvador/BA, que ampara
cerca de 64 crianças e adolescentes que foram retirados do vínculo familiar por medida
de proteção. Participaram da pesquisa 10 adolescentes do sexo feminino entre 12 a 18
anos, abrigadas no período de 1 mês a mais de 4 anos na Instituição.O fato de ser
abusada sexualmente e estar abrigada é vista pelas adolescentes como uma dupla
punição e se sentem injustiçadas por estarem “presa” em um abrigo enquanto que o
agressor está solto.
Buscando conhecer melhor esse universo tão inquietante quanto complexo, espera-se
que este estudo possa dar visibilidade e produzir conhecimento acerca de uma temática
não tão pesquisada, cujo objetivo é desvendar essa lógica institucional que tornam
crianças e adolescentes abrigados socialmente invisíveis.
Palavras-chave: abrigamento, adolescentes, abuso sexual, família, Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) e redes de proteção.
Introdução
Dentre as distintas formas de violência que conhecemos, a mais cruel e oculta delas é a
violência sexual. Embora a violência doméstica seja de difícil definição devido a sua
complexidade, discorreremos apenas sobre as situações de abuso sexual, por se tratar de
um crime especificamente intrafamiliar e os principais agressores é alguém da família.
O abuso sexual contra crianças e adolescentes têm sido considerados um problema de
saúde pública em vários países, inclusive no Brasil, devido à alta prevalência na
população e aos prejuízos para o desenvolvimento psicológico e social da vítima e de
seus familiares (Gonçalves & Ferreira, 2002; Habigzang & Caminha, 2004; Osofsky, 1995
apud HABIGZANG et al., 2006, p. 379).
O abuso sexual quando se desenrola no interior da dinâmica familiar é uma situação
complexa e não se restringe a violência em si, mas envolve, muitas vezes, a ruptura dos
vínculos afetivos e a desintegração familiar, pois a adolescente abusada sexualmente no
espaço intrafamiliar tende a se deparar com os seguintes dilemas: a) a experiência de
1
Artigo elaborado a partir do trabalho de conclusão de curso “ONG Flor de lis. De casa ao
abrigo: violência e relações familiares”, para obtenção de título de Bacharel em Sociologia no
curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia, 2010
1
ser abusada sexualmente no ambiente familiar; b) o afastamento deste ambiente por
medida de proteção, passando a viver em abrigo.
A passagem da casa para o abrigo se dá quando os direitos das crianças e dos
adolescentes são violados, e que, por essa razão, precisam ser temporariamente
afastados da família, até que possam retornar ao seio familiar, ou até mesmo obter
inserção em famílias substitutas.
A institucionalização de crianças e adolescentes em abrigos como uma medida de
proteção está disposto no Art. 1012, parágrafo único do ECA (Lei n° 8.069/1990) e vem
ganhando espaço no debate acerca dos efeitos da institucionalização precoce e
prolongada de crianças e adolescentes. A transição da casa para o abrigo é vista como
um estranhamento para as adolescentes abrigadas, principalmente porque sua vida
social passa a ser administrada formalmente, há um controle de sua autonomia através
das regras estabelecidas pela instituição.
Através do cotidiano das abrigadas, essa pesquisa almejou identificar como as
adolescentes conseguem reelaborar suas relações sociais e como elas percebem o
afastamento da família e a institucionalização; de que forma a instituição organiza a vida
das abrigadas limitando suas ações e como estas lidam com esse controle; e por fim,
analisar como elas constroem uma imagem de si mesma e de suas expectativas futuras
em uma instituição total onde o cerceamento da liberdade faz parte do seu cotidiano.
A compreensão sobre a dinâmica da Instituição está assentada sobre a definição de
Instituição total definido por Goffman (1999), cujo traço singular da sua análise é a
questão do confinamento espacial e social dos indivíduos que levam uma vida
formalmente administrada. Por outro lado, esse autor traz para o centro da análise a
questão do estigma e da identidade do eu como fatores que influenciam na imagem de si
mesmas. Esses fatores dentre outros, permitem compreender de que forma a experiência
do abrigamento influencia na sua carreira moral, principalmente na percepção de si
mesma e de suas projeções futuras.
A Instituição estudada foi a ONG Lar Flor de lis3, Salvador/BA , que ampara crianças e
adolescentes de ambos os sexos e de diferente faixa etária que foram retirados do
vínculo familiar por medida de proteção. A maioria dos adolescentes abrigados são afrodescendente, oriundos de bairros periféricos e, também, de outros municípios do Estado
da Bahia apresentando baixa escolaridade.
Sobre as participantes é importante destacar a questão de gênero. Participaram da
pesquisa 10 adolescentes do sexo feminino entre 12 a 18 anos4 abrigadas a pelo menos
1 mês, até mais de 4 anos na Instituição. As adolescentes que participaram da pesquisa
foram abusadas sexualmente. Não houve restrição de escolaridade, etnia, cor, religião e
nível socioeconômico.
A escolha dos instrumentos e o percurso metodológico adotados nessa investigação
foram coerentes com o objeto de pesquisa e com o problema estudado. Na metodologia
selecionada buscou-se captar a instituição em seu cotidiano, focalizando o particular e o
plural desta instância social na interação com os sujeitos envolvidos almejando identificar
o contexto no qual estão circunscrito.
2
Ver página 4
Nome fictício.
4
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 2º, considera-se adolescente aquele
entre 12 e 18 anos de idade.
3
2
Foram utilizados como instrumento metodológico na pesquisa: realização de entrevistas
abertas; observação participante; informações de psicólogos, assistente social e
pedagogo da Instituição Lar Flor de Lis; análise das pastas dos abrigados (buscando
compreender suas histórias de vidas); também foi verificado o livro de registros de
ocorrências e de visitas do abrigo.
Uma pesquisa científica como esta jamais esgotará um tema, e vários são os enfoques
que podem ser dados abrindo espaço para o desdobramento de novas pesquisas e
projetos. Considero como um dos maiores limitadores a carência de estudo nesse campo
de pesquisa numa perspectiva sociológica, o que soa um alarme para que os sociólogos
tenham contato com essa realidade tão inquietante quanto complexa. Os debates,
projetos e pesquisas ainda têm despontado de forma tímida.
A literatura sobre a problematização do abrigamento e suas variáveis ainda são
incipiente, devido à “recente” medida de proteção que surge com o advento do Estatuto
da Criança e do Adolescente em 1990, por isso que nesse momento presente estamos
colhendo os frutos, iniciando os debates sobre os efeitos da institucionalização precoce e
prolongada de crianças e adolescentes.
1. A excepcionalidade e a provisoriedade: algumas reflexões sobre o abrigo
A Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), introduziu mudanças amplas e significativas nas políticas protetivas direcionadas à
infância e juventude. No art. 19, especifica que “toda criança ou adolescente tem direito
a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta,
assegurada à convivência familiar e comunitária.”
Porém, estudos apontam, cada vez mais, que esse ambiente (lar) considerado inviolável,
é um dos principais lócus passíveis de violência intrafamiliar, tais como abuso sexual,
agressões físicas, psicológicas e negligência, quebrando o mito da família feliz, segura e
protetora. “Esta constatação nada traz de novo; porém, revela-se de forma mais
acentuada nos últimos anos, devido ao amplo interesse mundial na questão da violência
doméstica ou intrafamiliar, em particular o abuso sexual”. (RIZZINI, 2007, p. 36)
Nessa circunstância, em caso de suspeita ou confirmação de violação de direitos contra
crianças e adolescentes aplica-se as medidas de proteção que se distribuem a partir do
art. 98 do ECA. O Conselho Tutelar enquanto órgão jurisdicional deve obedecer ao
art.101 até o inciso VII que prevê a colocação em abrigo. Ratifico que embora
mencionadas as inúmeras medidas protetivas elencadas no Art. 136 (ECA) essa pesquisa
trata-se apenas dos casos em que as adolescentes foram abusadas sexualmente e
encaminhadas para o abrigo.
Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a
autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes
Medidas:
VII - abrigo em entidade; (grifo nosso)
Parágrafo único. O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como
forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando
privação de liberdade.
Embora o abrigamento de crianças e adolescentes esteja normatizado como penúltima
medida de proteção, muitas vezes, é a primeira medida tomada pelas entidades de
atendimento – Conselho Tutelar e Juizado da Infância e Juventude (OLIVA, 2004, p.5), o
que corrobora com a prática da Conselheira Raimunda, violando o direito fundamental a
convivência familiar e comunitária. Essa prática é confirmada também pela dirigente e
3
equipe técnica do abrigo pesquisado. Além, disso a Conselheira Raimunda confirma estar
ciente dessa prática contrária ao que o ECA preceitua.
Muitos conselheiros abrigam de forma aleatória, só para não ter trabalho, qualquer coisa
eles abrigam, [...] só faço em último caso (referindo-se ao abrigamento), eu sou assim.
(Conselheira Raimunda)
Assim, o abrigamento se dá como um “caminho natural”, configurando-se como uma das
medidas mais utilizadas. De fato, há uma discrepância entre o que é dito no ECA e o que
foi comprovado pela pesquisa. Dos casos identificados no abrigo Lar Flor de Lis em 2009,
os abrigamento foram solicitados principalmente pelo Conselho Tutelar (78,12%),
Juizado da Infância e Juventude (7,81%) e Ministério público (14,06%). Diante desse
cenário, ganha corpo o debate acerca dos efeitos da institucionalização precoce e
prolongada de crianças e adolescentes no país.
Com a aprovação da lei 12.010/09 que foi sancionada pelo presidente Lula, que a
princípio é precoce analisar os impactos dessa nova lei, informa que em casos de abuso
sexual o afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar para ser
encaminhado a uma instituição de acolhimento (abrigo) é de competência privativa da
autoridade judiciária. O que antes causava uma grande confusão, já que o ECA não
deixava claro esta exclusividade.
Corroboro com a afirmativa da autora quando elucida que retirar a pessoa de seu meio
social não significa eliminar a problemática, pois a prática da violência não ocorre
isoladamente. Ela envolve toda uma gama de fatores produtores desta questão. De nada
adianta trabalhar rompendo apenas a “ponta do ice berg”, se ainda há uma montanha de
gelo capaz de sustentar novas formas de apresentação do fenômeno para além da
superfície. (OLIVA, 2007, p.6).
Outro ponto da redação desta lei é que crianças e adolescentes não devem ficar mais do
que dois anos nos abrigos salvo alguma recomendação expressa da Justiça. Portanto, nos
questionamos, o fato de determinar quantitativamente o período de abrigamento implica
ser uma solução em si mesma?; A determinação de um tempo físico recupera o tempo
social?; Será que não é hora de (re) pensarmos as formas de abrigamento?; Por que se
tornou comum que a criança ou adolescentes vítimas de abuso sexual vão para abrigos,
enquanto que o agressor reside no lar?; O que justifica a lentidão na responsabilização
dos agressores?
Partindo do pressuposto de que a família tenha violado os direitos das crianças e
adolescentes, outras medidas foram consideradas aplicáveis aos pais ou responsáveis
disposto no art. 129, incluindo o afastamento do agressor, em alguns casos, como dispõe
o artigo 130:
Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos
pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o
afastamento do agressor da moradia comum.
Para advogada e consultora jurídica Jalusa Arruda (informação verbal, 2009), “é muito
mais fácil tirar a vítima de casa do que o agressor”. Portanto, o Art. 130 enfrenta
inúmeros obstáculos na sua implementação, porque na maioria dos casos, o principal
provedor é o agressor.
O caráter provisório e excepcional da medida de abrigamento corresponde um dos
entraves à implementação do ECA. O Levantamento Nacional de Abrigo para Crianças e
Adolescentes da Rede de Ação Continuada (Rede SAC/ IPEA-2003) demonstrou essa
realidade traçando o perfil dos Abrigos que acolhem crianças e adolescentes em todas as
4
regiões brasileiras. Os dados desta pesquisa revelaram que 32,9% viviam em uma
instituição de abrigo por um período de entre 2 e 5 anos, 13,3% por um período de 6 a
10 anos e 6,4% mais de dez anos, totalizando 52,6% daqueles que estão confinados a
um período maior que dois anos. Os dados do IPEA corroboram com a realidade dos
abrigados do Lar Flor de Lis, cujos dados revelaram que 45,31% dos institucionalizados
ficam abrigados por mais de um ano, 14,06% por mais de cinco anos. Assim, o espaço
que deveria ser apenas temporário torna-se, para muitos deles, permanente.
A excepcionalidade e a provisoriedade requerem estudos mais aprofundados para que
deixem de centrar-se apenas nas condições das famílias e do abrigo e explicitem seu
profundo enraizamento sócio-estrutural. A excepcionalidade, devido à violação de
direitos, mascara a pobreza subjacente, o abandono ou o atendimento paliativo dos
serviços públicos em relação às famílias. A provisoriedade requer que se defina a
significação do tempo social já que o tempo físico não parece ser o referencial mais
indicado (PALMA, 2006, p. 159).
O presente estudo verificou-se que a grande maioria dos abrigados possui famílias,
embora estejam vivendo em abrigo. Se o ECA ratifica como uma de suas atribuições, a
preservação do direito da criança e do adolescente a convivência familiar e comunitária,
e também prega a necessidade de reinserir estes abrigados a sua família de origem ou
uma substituta, conforme está disposto no Art. 92 , inciso I e II, então, como explicar a
permanência prolongada de adolescentes vítimas de abuso sexual em abrigos?; Quais
são os limites e possibilidades da reinserção familiar?; Como restabelecer ou (re) criar
vínculos que se tornaram “líquidos” ao longo do tempo?; Quem são seus vínculos fora da
instituição e quais de suas redes sociais são ativas, novas ou recriadas?
O abrigo pesquisado depara-se com a existência de bloqueios e distanciamento entre a
legislação e as condições institucionais. Partindo do princípio de que cada história de vida
possui sua singularidade, podemos inferir que o período de abrigamento está relacionado
a múltiplos fatores. No universo do abrigo contemplado nessa pesquisa, esta
permanência que poderá durar meses ou anos está relacionada à rejeição familiar
(família de origem); a condição de miserabilidade dos familiares; à morosidade da
justiça, nos casos de violência sexual nenhum agressor foi responsabilizado; falta de
recursos financeiros para fazer as visitas familiares (domiciliares); desarticulação das
redes de proteção de assistência a crianças e adolescentes, já que o abrigo não tem
condição de patrocinar sozinho o fortalecimento dos vínculos familiares, etc. Nota-se na
fala da diretora do abrigo que as dificuldades são muitas e as soluções complexas.
Há casos que não tem como devolver essa adolescente à família, tem um caso aqui, em
que a mãe trocava a filha para ser abusada sexualmente em troca de crack. Por outro
lado, um outro parente não quer “adotar” porque é mais uma boca para comer . A família
dessas vítimas é pobre, e também há casos de preconceito, acha que a vítima pode
seduzir seu companheiro. (Valentina, fundadora e diretora do abrigo Lar flor de lis)
2. Viver em abrigo: entre a proteção institucional e a exclusão social
O que separa o “mundo interno” do Lar Flor de lis do “mundo externo” são os muros
altos, portões grandes que ficam sempre trancados impedindo qualquer contato ou
visualização com o mundo extra-muro. No abrigo predominam espaços coletivizados que
impedem qualquer tipo de privacidade, por exemplo, quartos, banheiros, objetos,
utensílios, presença de seguranças, registro de entrada e saída. Assim, essa Instituição
corrobora com a definição de Instituição Total proposta por Goffman:
Uma instituição total pode ser defendida como um local de residência e trabalho onde um
grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais
5
ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente
administrada [...] Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à
relação social com o mundo externo e por proibições à saídas [...] paredes altas, portas
fechadas. (GOFFMAN, 1999, p. 11-16)
Observando as práticas cotidianas do abrigo pesquisado, constatou-se que este
ambiente está regrado por um grande número de normas: horário para acordar, horário
para realizar as refeições, horário para organizar os espaços, horário para sair, para
chegar, horário para tomar banho, horário para dormir, o que provocam perdas de
significação, tornando-se suas ações desprovidas de sentido, algo mecanizado, tornandose o indivíduo “alienado”.
De acordo com Goffman, (1999) as atividades rotineiras repetitivas e programadas de
pela instituição têm como objetivo além de moldar, disciplinar os sujeitos, inibe-os em
termos de desenvolvimento pessoal, cognitivo, violentando a autonomia e liberdade de
decisão pessoal. Assim, esta rotina provoca um “destreinamento”, tornado-se o indivíduo
incapaz de desempenhar o seu papel em alguns aspectos de sua vida diária que antes
eram realizadas de forma natural, sem nenhuma tensão ou perturbação.
Esse processo de “mecanização” ou repetição das atividades rotineiras dificulta uma
inserção social eficaz, provocando seqüelas graves, como a incapacidade de se auto
gerenciar já que sempre lhe foi dito, em todos os momentos, o que fazer e como fazer. O
mundo atrás dos muros com novas e complexas situações inter-relacionais exige
resoluções amplas e diversificadas.
Como o abrigamento limita as possibilidades de relações sociais, o lazer busca resgatar
esse eu da vida civil que o confinamento restringiu. Embora os recursos da instituição
pesquisada sejam escassos, as crianças e os adolescentes encontram alternativas para
se divertirem. As crianças brincam de casinha e “elástico”, enquanto os adolescentes
brincam de correr, pega pega, andam de bicicleta, assistem televisão, jogam bola, fazem
artesanatos de papel (como patos, porta jóias e etc.), algumas participam de atividades
recreativas como capoeira, também ficam conversando e passeando na área interna do
abrigo. Essa área é representada e vivida simbolicamente como o espaço da rua. “A
instituição total é um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente
organização formal; aí reside seu especial interesse sociológico”. (GOFFMAN, 1999, p.22)
Por outro lado, as possibilidades de lazer extra-muro são bastante limitadas, geralmente
eles vão à praia (em frente ao abrigo), à lan house e a pracinha do próprio bairro. Às
vezes recebem doações de ingressos para participarem de atividades culturais como
teatro, circo e cinema. O lazer muitas vezes torna-se fruto de negociação e manipulação
para aqueles abrigados que não cumpre as regras da instituição.
[...] essas poucas reconquistas parece ter um efeito reintegrador, pois restabelecem as
relações com todo o mundo perdido e suavizam os sintomas de afastamento com relação
a ele e com relação ao eu perdido pelo indivíduo. (GOFFMAN, 1999, p. 50)
O viver em abrigo manifesta-se em dimensões distintas para cada adolescente. Nem
todas aceitam passivamente essa condição de cerceamento do direito de ir e vir e
buscam se tornar visíveis de várias formas seja através de brigas, xingamentos ou
reclamações, mas, principalmente, através das fugas.
As evasões acontecem durante um determinado período de abrigamento sejam dias,
meses ou anos. A porta de saída pode ser pulando o muro da instituição ou no momento
6
que vão á escola5. Para analisar a motivação das evasões é imprescindível compreender
por que as adolescentes evadem e como a instituição tem lidado com essas evasões.
Segundo a diretora do abrigo, elas fogem para fazerem sexo, porque elas já possuíam
uma vida sexualmente ativa6 e no abrigo não pode namorar. Essas informações
corroboram com as falas das adolescentes que foram entrevistadas após a fuga, quando
buscou-se compreender as motivações para as evasões. Nesse caso, o abrigamento em
si restringe as possibilidades de experimentação da sexualidade 7, um direito humano que
deve ser garantido e não violado.
Embora existam avanços no ECA, porém muitas questões ainda ficam em aberto,
principalmente as que dizem respeito à sexualidade e às relações de gênero que passam
desapercebidas, como se os adolescentes que vivem em abrigos fossem assexuados ou
isentos de qualquer desejo. A sexualidade desenvolvida de forma saudável é um
elemento basal para a formação da identidade dos adolescentes. Logo, é necessário tirar
o véu desse tabu e nos aproximarmos dessa realidade criando propostas para garantir
esse direito.
Na fala das adolescentes a fuga representa uma libertação, não importa se vão sair sem
documento, dinheiro, acham que lá fora irá dar um jeitinho, não avalia as conseqüências
desse ato, principalmente o fato de colocarem-se em risco. Na maioria dos casos
identificados no abrigo, a motivação das “fugas”, está relacionada ao fato de sair para se
divertir, ir a uma festa e, principalmente, namorar. Quando estas fogem, há intenção de
sair para curtir e depois voltar para o abrigo. Por outro lado, algumas fogem porque não
agüentam ficar mais tempo no abrigo.
Tia, eu quero ir embora, eu vou fugir nem que eu me arrebente, me lasque toda, ou
então saio pela frente, eu quero ver quem vai me impedir, é sério tia, eu não tô
brincando não [...] eu não agüento mais ficar aqui no abrigo. (Lorena, 13 anos, abusada
sexualmente pelo avô)
Já fugi porque aqui estava chato de mais, agente não podia sair pra lugar nenhum, nem
para a praia [...] aqui eu me sinto presa, porque agente não pode ir a lugar nenhum,
tem que sair daqui para a escola, mesmo assim, agente tem horário pra chegar,[...]
agora eu entendo porque elas fogem, é claro que elas não querem ficar presa aqui
dentro , se divertir, sei lá, com liberdade, aí quando fogem não sabe por que. (referindose aos funcionários). Aqui parece uma prisão, pra que ter grade se agente tem esse
portão, muros? (Anatalia, 17 anos, exploração sexual 8)
Algumas adolescentes quando fogem deixam uma carta para Valentina, agradecendo
pelo apoio, carinho e cuidado e pedindo desculpas pela atitude alegando que não
agüentariam ficar mais tempo no abrigo.
As medidas legalmente adotadas pela Instituição em caso de fuga é encaminhar um
ofício informando a evasão para a DERCA (Delegacia de Repressão contra Crianças) e
Adolescentes, Conselho Tutelar, Ministério Público e Juizado da Infância e Juventude,
mas nem sempre isso ocorre, principalmente com aquelas que são consideradas
“queridinhas” de alguns funcionários ou da diretora do abrigo, configurando uma
seletividade dos casos em que são comunicadas as evasões as autoridades judiciais.
5
A escola fica localizada no próprio bairro próximo ao abrigo.
Durante a análise das pastas de identificação das adolescentes, os relátorios psicossociais
registraram a informação que estas tinham uma vida sexualmente ativa.
7
Estudos (CANO e FERRIANI, 2000) revelam que há uma iniciação precoce da sexualidade
na fase da adolescência.
8
Inserir a fala da adolescente Anatalia (embora trata-se de exploração sexual) porque
considerei interessante o seu ponto de vista.
6
7
Nesse caso, quando consumado a fuga, nenhuma medida de advertência ou transferência
para outro abrigo é aplicada, gerando conflitos por partes dos abrigados que querem
tratamentos iguais.
A percepção que a maioria dos funcionários da instituição tem sobre o comportamento
das adolescentes é que elas são rebeldes, reclamam de tudo, não querem nada da vida,
não precisam ser protegidas. O fato de ter o que comer e onde dormir é suficiente para
qualquer pessoa que está passando dificuldades. Na visão destes, os adolescentes são
colocados como os únicos responsáveis pelo seu próprio destino, pelo seu sucesso ou
fracasso, pelas escolhas acertadas ou equivocadas, como se as ações individuais fossem
descoladas do sistema social. Por outro lado, outros funcionários buscam conscientizar as
adolescentes que o abrigo representa uma experiência em suas vidas e que esse tempo
deve ser investido na melhor maneira possível, buscando estudar, ser capaz de auto
gerenciar sua vida e etc.
Elas querem sair, elas não querem ter limites, quando lá na direção não deixa elas
saírem, dizem que são prisioneiras, que estão trancadas. Eu digo a elas que aqui é
melhor que na rua. Aqui meio dia tem comida, à noite tem onde dormir. Eu acho que
aqui é uma experiência, uma experiência que você acha uma lição, só uma cabeça dura
não tira como uma lição. Muitas acham que aqui é um inferno, mas acho que lá fora é
ainda pior que aqui. Eu sempre digo isso a elas [...] elas acham que lá fora elas podem
tudo, e aqui elas não podem nada. Eu digo que lá fora a rua vai oferecer coisas que não
tem volta. Elas querem sair, não dá satisfação, não ter hora para sair, para chegar. Todo
mundo aqui, já quer se sentir de maior, para ter a liberdade, não dar satisfação a
ninguém da sua vida. (Mãe Social Vanessa)
O resultado dessa pesquisa revelou que o fato de ser abusada sexualmente e estar
abrigada é vista pelas adolescentes como uma dupla punição9, ou seja, além da violência
doméstica sofrida o abrigamento passa a ser interpretado pela vítima como mais uma
violência, e por isso sentem-se injustiçadas por estarem “presa” enquanto que o agressor
está solto.
Quer dizer que eu sou a vítima, e é eu que fico presa, enquanto ele está solto? (Dora, 14
anos, abusada sexualmente pelo pai)
Segundo as adolescentes, o fato de estarem confinadas em um abrigo impede-as de
vivenciar inúmeras oportunidades, como conhecer pessoas novas, (“ver caras
diferente”), ir ao Shopping, conhecer outros lugares, ter o direito de ir e vir, já que a
instituição mantém esse “cerceamento da liberdade 10” como uma medida de proteção.
Cheguei aqui pequena [...] foi tia Valentina (diretora do abrigo) quem me criou [...], fui
crescendo nos abrigos, fui crescendo aos poucos em cada abrigo, , não tive infância [...]
estou aqui tanto tempo que parece que estou presa [...] acho que vou morrer aqui,
minha família, ninguém liga para mim. Eu nunca quis viver nesta vida. (Andreia, 14
anos, abusada sexualmente pelo namorado da mãe).
Aqui me transformaram, me reconstruíram, me deram amor. Aqui foi o único lugar que
tive apoio, tive minha filha aqui no abrigo, minha família não quis saber de mim, aqui
9
Ser abusada sexualmente no seio familiar e posteriormente ser retirada desse convívio por
medida de proteção passando a viver em abrigo.
10
Cerceamento da liberdade de ir e vir não implica privação de liberdade As adolescentes
estão abrigadas por terem seus direitos violados. Conforme veremos ao longo da leitura
dessa pesquisa, trata-se de uma “liberdade limitada ou restrita” (horário de entrada e saída,
etc.)
8
aprendi a não guardar rancor, a perdoar minha família, a ser uma pessoa melhor.
(Veridiana, 16 anos, abusada sexualmente pelo irmão e tio)
Estas percepções, relatadas pelas adolescentes, revelam que sua relação para com a
Instituição parece estar marcada por um sentimento de ambigüidade, ao mesmo tempo
em que a reconhecem como zeladora de sua segurança e acolhimento culpabilizam pela
privação da liberdade e exclusão social, um dos motivos que gera o desejo e a efetivação
de inúmeras fugas.
No entanto, a grande maioria das abrigadas nutre e verbaliza o desejo de voltar para
seus familiares, embora estes fossem o perpetrador da violência. Das adolescentes
entrevistas algumas querem voltar para a sua família biológica, outras querem ser
adotadas, já que a sua família de origem não preenche as suas carências. Essa família
adotiva é vista pelas adolescentes como uma família idealizada, que seja o oposto da sua
família biológica. Uma família onde não há conflitos, violência e principalmente falta de
carinho, afeto, amor e atenção.
Talvez, o desejo de ter uma família livre de violências experenciada no corpo e na
“alma”, possa favorecer a constituição de uma nova família, fundamentada nas relações
de reciprocidade, respeito e afetividade, evitando assim, o perpetuamento de
comportamentos que potencializam a prática da violência.
Tia eu quero ir embora, eu já tenho muito tempo aqui, quero ser adotada. [...] quero
uma família que não me humilhasse, que me tratasse como se fosse de sangue, que
gostasse de mim, que me desse atenção, carinho. (Andréia, 14 anos, abusada
sexualmente pelo namorado da mãe)
Eu queria uma família feliz, aqui não é o meu lugar. (Paula, 18 anos, abusada
sexualmente pelo padrasto)
Tenho família, mas sou “sozinha”, eles não ligam para mim [...] tenho vontade de ser
adotada, ter uma família com pai, mãe, irmãos e avós, que me desse carinho, atenção,
mas acho impossível, já sou uma criança grande, e ninguém quer , só quando é bebê, já
tenho minha personalidade já formada. (Veridiana, 16 anos, abusada sexualmente pelo
irmão mais velho e pelo tio)
4. Considerações finais
O que moveu essa pesquisa foi à necessidade de se fazer conhecer a trajetória e a
experiência institucional dessas adolescentes abusadas sexualmente e dar visibilidade
aos desafios que necessitam ser enfrentados para proporcionar melhores condições de
garantias de seus direitos.
O viver em uma instituição de abrigo manifesta-se em dimensões distintas, porém
semelhantes para todas as adolescentes pesquisadas. Nesse sentido, parece ser possível
inferir para o fato do quanto é distinta a experiência de vida no abrigo para cada
adolescente.
Durante a trajetória dessa pesquisa que deu origem ao presente artigo, muitas foram às
reflexões, dúvidas, inquietações e angústias a este campo tão complexo que ainda
encobre uma realidade que permanece oculta e invisível. Definido o objeto de
investigação – o significado da experiência de viver em abrigo para adolescentes vítimas
de abuso sexual, persistiu de forma inquietante, o questionamento sobre a forma de
subjetivação dessas adolescentes, tendo em vista o fato de serem entregues a uma
9
instituição, passando a conviver com pessoas desconhecidas e o convívio com a incerteza
do desligamento e a volta para casa.
Por outro lado, os abrigamentos realizados pelos órgãos de proteção apontam para uma
investigação e análise mais apurada sobre quais foram os caminhos percorridos por esta
rede de proteção para evitar que crianças e adolescentes sejam afastados do convívio
familiar e comunitário desnecessariamente.
A intenção dessa pesquisa não é levantar a bandeira contra as instituições, já que em
alguns casos o abrigamento cumpre uma medida importante para proteger crianças e
adolescentes que se encontram em situação de risco, maus tratos, violência sexual e etc.
A questão central é evitar a permanência prolongada desses indivíduos, embora, seja
afanoso mensurar esse tempo social. Por isso, “é preciso investir em políticas básicas de
educação, saúde e geração de renda para “barrar” o ingresso de crianças e adolescentes
nos abrigos”. (FONSECA et al, 2005, p. 7).
Além disso, essa pesquisa dialogou de forma modesta com o Estatuto da criança e do
adolescente (ECA) demonstrando que além dos avanços sobre a proteção integral dos
direitos das crianças e adolescentes ainda apresentam algumas lacunas e ainda há muito
o que se fazer para que essas políticas possam ser coerentes com a realidade social
daqueles a quem se pretende proteger.
5. Referências
ANTONI, Clarissa de; KOLLER, Silvia Helena. A visão de família entre as adolescentes que
sofreram violência intrafamiliar. Estudo de Psicologia, 2000, 5(2), 347-381.
Brasil. Lei federal n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da criança e do
adolescente (ECA).Salvador. Ministério Público do Estado da Bahia, 2008.
CANO, M.A.T.; FERRIANI, M.das G.C. Sexualidade na adolescência: um estudo
bibliográfico. Rev.latinoam. Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 8, n. 2, p. 18-24, abril
2000.
FONSECA, Cláudia et al. Estrutura e Composição dos Abrigos para Crianças e
Adolescentes em Porto Alegre (Vinculados ao Conselho Municipal dos Direitos da
Criança e do Adolescente e participantes da rede própria, conveniada e conveniada não
governamental). Porto Alegre, dezembro de 2005.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1999.
HABIGZANG, Luísa et al. Fatores de Risco e de Proteção na Rede de Atendimento a
Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19
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Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. (2003). Levantamento nacional de
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http://portaldovoluntario.org.br/documents/0000/0189/109726162757.pdf. Acesso em:
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OLIVA, Paula Petter. Desvendamento do real numa instituição de abrigo para crianças e
Adolescentes. Revista Virtual Textos & Contextos, nº. 3, dez. 2004.
RIZZINI, Irene et al. Acolhendo crianças e adolescentes: experiência de promoção do
direito a convivência familiar e comunitária no Brasil. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2007.
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III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA AUTOR DO