Terceira Turma RECURSO ESPECIAL N. 887.131-RJ (2006/0170895-7) Relator: Ministro João Otávio de Noronha Recorrente: Bolsa de Valores do Rio de Janeiro - BVRJ Advogados: Joarez de Freitas Heringer e outro(s) Carlos Eduardo Caputo Bastos José Ricardo Pereira Lira e outro(s) Advogada: Beatriz Donaire de Mello e Oliveira e outro(s) Recorrente: Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda Advogado: Gian Maria Tosetti Recorrido: Os mesmos EMENTA Processual Civil e Comercial. Corretora de valores. Regime de liquidação extrajudicial. Embargos de declaração. Omissão. Súmula n. 211-STJ. DL n. 7.661/1945. Art. 44, VI. Aplicação. Correção monetária. Cabimento. Súmula n. 43-STJ. Ato ilícito absoluto e ato ilícito relativo. Juros de mora. Citação. 1. Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo (Súmula n. 211-STJ). 2. Decretado o regime de liquidação extrajudicial de corretora de valores, aplicável o disposto no art. 44, V, da antiga Lei de Falências (DL n. 7.661/1945) às vendas a termo de títulos e valores mobiliários, se tanto a comitente vendedora, atuando como intermediária, quanto a compradora deixam de efetuar o pagamento respectivo no tempo e na forma pactuados. 3. “É entendimento consolidado da Corte que a evolução dos fatos econômicos tornou insustentável a não-incidência da correção monetária, sob pena de prestigiar-se o enriquecimento sem causa do devedor, constituindo-se ela imperativo econômico, jurídico e ético indispensável à plena realização dos danos e ao fiel e completo adimplemento das obrigações” (REsp n. 247.685-AC, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 5.6.2000). REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 4. O enunciado da Súmula n. 43-STJ refere-se tanto ao ato ilícito absoluto (extracontratual) quanto ao ato ilícito relativo (contratual). Precedentes. 5. Conforme disposto no art. 18, alínea d, da Lei n. 6.024/1974, decretada a liquidação extrajudicial da empresa, não há fluência de juros enquanto não integralmente pago o passivo. No caso, porém, não tendo havido recurso da parte interessada quanto ao ponto, deve ser mantido o entendimento adotado no acórdão recorrido, que determinou a incidência da norma contida no art. 219 do CPC e, como consequência, fixou a fluência dos juros moratórios desde a citação válida. 6. Recurso da primeira recorrente conhecido e parcialmente provido. Recurso da segunda recorrente parcialmente conhecido e desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, prosseguindo no julgamento, por unanimidade, conhecer do recurso especial da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro - BVRJ e dar-lhe parcial provimento; e, conhecer em parte do recurso especial da Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda e, nessa parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Dr. Ricardo Ramalho Almeida, pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro BVRJ Brasília (DF), 16 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro João Otávio de Noronha, Relator DJe 14.10.2013 328 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA VOTO-VISTA O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Foram dois processos, relativos a duas ações ordinárias, envolvendo as mesmas partes, a BVRJ - Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e a Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda, ambas as ações em 1º Grau julgadas separadamente, contudo (embora antes declarada a conexão, para julgamento conjunto, fls. 2.256), pelo mesmo Magistrado (sentenças a fls. 2.275 e fls. 2.330-2.333) e, em 2º Grau, em um só julgamento conjunto (Acórdão, fls. 2.460-2.468), pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. As ações são ligadas à crise ocorrida na bolsa de valores e mercado de ações em junho de 1989. No fulcro da controvérsia, segundo o relato da BVRJ, a Celton teria sido uma ativíssima protagonista do escândalo conhecido por “Operações D-Zero”, mediante operações denominadas “Zé com Zé”, artifício segundo o qual o mesmo investidor vendia e comprava as mesmas ações para si mesmo, causando prejuízos aos investidores de boa-fé, ante a inadimplência de corretoras de títulos e valores mobiliários, entre as quais se destacaria a Celton, tendo a BVRJ reparado seus prejuízos com haveres próprios e de seu Fundo de Garantia, mas, tendo diversos investidores dado ordem de venda de ações por intermédio da Celton, a DTVM - Capitânia Distribuidora de Títulos e Valores Imobiliários, comprometeu-se a adquirir essas ações, mas, na data do vencimento, não lhes pagou o preço, de modo que aludidos investidores vieram a ter as ações restituídas pelo Fundo de Garantia da BVRJ, pela diferença entre a cotação média das ações no dia anterior à restituição e o preço convencionado nas operações de venda a termo, corrigido monetariamente. Ainda no fulcro da controvérsia, a Celton alegou que a BVRJ, agindo de má fé, teria lançado falácias contra ela visando a acobertar sua parcialidade no agir em 1989, quando teria buscado soluções atípicas, privilegiando algumas corretoras, bem como que havia sido reconhecida superavitária pela Comissão de Inquérito do Bacen - Banco Central do Brasil, afastando-lhe a provocação de danos ou prejuízos, e, ainda, por fim, levantando a indisponibilidade dos bens de seus ex-administradores (cf. doc. fls. 205). 2.- No primeiro processo (Autos n. 1993.001.072495-3, sent. fls. 2.3302.335, datada de 27.2.2004), ação movida pela BVRJ contra a Celton, ação em que interposto o presente Recurso Especial n. 887.131, tendo como recorrentes RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 329 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA e recorridas as mesmas litigantes BVRJ e Celson, na primeira ação, repita-se, movida pela BVRJ contra a Celton, pediu a BVRJ “na forma e para os fins previstos no artigo 27 da Lei n. 6.024/1974”, a procedência da ação “para efeito de serem reconhecidos os aludidos créditos, no valor global histórico de NCz$ 16.132.941,71 (...), para o devido pagamento, com o acréscimo de correção monetária e juros legais a partir de quando incorridos pela Bolsa e/ ou da data em que se tornaram devidos, com a plena integração de todos os montantes no quadro geral de credores da Ré” (fls. 30). Essa primeira ação, foi julgada procedente por sentença (datada de 27.2.2004, fls. 2.330-2.333), rejeitados Embargos de Declaração interpostos pela Celton, “para declarar o reconhecimento do crédito em favor da autora (a BVRJ) e, via de consequência, condenar a ré ao pagamento de NCZ$ 16.132.941,72, monetariamente corrigida a partir do ajuizamento desta ação, mais juros legais de 0,5% (...) ao mês, estes a contar da citação (...)” (fls. 2.333). Interpostos apelação pela Celton (fls. 2.364-2.381) e recurso adesivo pela BVRJ (fls. 2.387-2.389), foram ambos os recursos improvidos, com rejeição de Embargos de Declaração de ambas as partes (fls. 2.494-2.500) pelo Acórdão ora atacado (fls. 2.287-2.293) por intermédio dos presentes recursos especiais (sob o n. 887.231-RJ), interpostos por ambas as partes. 3.- No segundo processo (autora a Celton, Autos n. 1996.001.006184-3, fls. 2.449-2.557, sentença datada de 29.4.2004, fls. 2.549-2.557 ou 181-189), movida pela Celton contra a Valia - Fundação Vale do Rio Doce de Seguridade Social e Outras, entre as quais a Bolsa de Valores, ação de que provém o Agravo de Instrumento n. 818.185-RJ, ora em julgamento conjunto (agravo esse que visa a determinar a subida a este Tribunal de recurso especial interposto pela autora), sustentou a ora Recorrente Celton que “antes do processo de liquidação extrajudicial adquiriu várias ações preferenciais nominativas da primeira empresa demandada, depositando as denominadas ‘margens’ relativas a essa compra”, mas “a Vale do Rio Doce logo após a referida liquidação solicitou ao liquidante que promovesse a restituição das ações aos investidores”, porém, “mesmo após a negativa do liquidante e antes da manifestação do Bacen, a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, uma das empresas demandadas, em conluio com as demais, em manifesta desobediência à lei, celebrou com elas, entre outubro e novembro de 1989 o denominado ‘termos de recebimento e outras obrigações’, mediante os quais dispôs das ações da Vale do Rio Doce que integravam o ativo da sociedade liquidada, devolvendo-as às fundações”, de modo que pretendeu “a declaração de nulidade dos contratos e instrumentos negociais; entrega a massa liquidanda 330 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA de todas as ações que constituíam a carteira depositada na custódia da Bolsa de Valores, ou, na sua impossibilidade, o valor de mercado dessas ações; pagamento de dividendos que renderam as ações em questão desde o recebimento das aludidas ações; e, por último, o ressarcimento solidário de perdas e danos e lucros cessantes” (relatório da sentença, datada de 29.4.2004, fls. 2.549-2.550 – ou fls. 181-182). Essa ação movida pela Celton foi julgada improcedente, por sentença diversa da proferida na primeira ação, mas que veio a ser confirmada pelo mesmo Acórdão, em julgamento conjunto. 4.- No presente Recurso Especial, sustenta a recorrente Celton, como resumido pelo voto do E. Relator, que: VI) Dos recursos especiais No Recurso Especial da Celton (fls. 2.502-2.533), fundado na alínea a do permissivo constitucional, busca-se a reforma do r. acórdão a quo, sustentandose ofensa aos arts. 165, 458, I e II, do CPC, 145, IV, do CC/1916 (atual art. 166, V, do CC/2002), 185 do CC, 31 da Lei n. 6.024/1974, 44 do Decreto-Lei n. 7.661/1945, 5º, LX, e 93, IX, da CF. Aduz, em síntese, que padece de nulidade a sentença por ter omitido, no seu relatório, a menção à apresentação de contestação pela Celton e à suma das razões ventiladas nessa peça e por ter incluído a contestação “juntamente com os documentos a ela acostados, como se tivesse vindo e fizesse parte de documentos da Autora, aqui Recorrente (BVRJ). Tudo foi englobado na seguinte frase: ‘com a petição inicial vieram os documentos de fls. 32-2.259’ e, assim, nenhuma referência existe naquela sentença sobre a resposta (contestação) da ré/recorrente {Celton}, que está às fls. 255-302” (fl. 2.505). Afirma-se, ademais, que a Bolsa de Valores não poderia, sem prévia autorização da Celton, ter alienado “bens mobiliários da recorrente” {Celton} que estavam na sua custódia” (fl. 2.507). No apelo nobre da Bolsa de Valores (fls. 2.538-2.553), fundado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, busca-se a reforma da r. acórdão a quo, sustentandose ofensa à Súmula n. 43-STJ, ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito e aos arts. 458, II, 535, II, do CPC, 1º do Decreto-Lei n. 1.477/1976, 960 do CC/1916, além de dissídio jurisprudencial. Aduz-se, em síntese, que o acórdão a quo padece de omissões quanto aos arts. 46 da ADCT, 18, a, 27 da Lei n. 6.024/1974, 1º do Decreto-Lei n. 1.477/1976 e 960 do CC/1916. Anota-se que ele também possui contradições quanto à fixação do termo inicial da correção monetária a partir do ajuizamento da ação, a despeito da vedação do enriquecimento ilícito e da Súmula n. 43-STJ. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 331 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Assevera-se, ainda, que não há fundamento legal para que a correção monetária do crédito da Bolsa de Valores incida a partir do ajuizamento da presente ação, pois o seu termo inicial deve corresponder à data em que o crédito se tornou exigível. Insurge-se, outrossim, contra a incidência dos juros de mora a partir da citação da Celton. Às fls. 2.637-2.640, a Celton apresentou as suas contrarrazões, ao passo que a Bolsa de Valores ofereceu as suas contrarrazões às fls. 2.642-2.663. VII) Do fato novo: Posteriormente, o Sr. Raul Pedroza Aguinaga, na qualidade de sóciocontrolador da recorrente Celton juntou petição e documento alegando fato novo, em razão de o Banco Central do Brasil ter cessado a liquidação extrajudicial e requer, ao final, a exclusão da recorrente Celton no polo passivo da ação (fls. 2.792-2.805). 5.- O voto do E. Relator, Min. Massami Uyeda, na trilha do que antes julgara em decisão monocrática, dá provimento ao Recurso Especial, anulando o processo a partir da sentença, sob a ementa que se segue: Recurso especial. Nulidade da sentença e do v. acórdão estadual. Alegação da segunda recorrente de violação aos artigos 165 e 458 do CPC na sentença. Ocorrência. Alegação da primeira recorrente de violação dos artigos 458, inciso II e 535, inciso II, do CPC no v. acórdão estadual. Prejudicado, embora pertinente, ante a nulidade da sentença. Recurso especial da segunda recorrente provido e prejudicado o recurso especial da primeira recorrente. I - A apreciação e análise da contestação, quando do julgamento da ação é essencial para a adequada apreciação imparcial e equânime por parte do magistrado sentenciante. II - Não é apropriado e não respeita a boa técnica processual, após a provocação via embargos de declaração, remeter-se para a segunda instância matéria que não foi tratada na sentença, suprimindo-se o duplo grau de jurisdição. Essa prática. Essa prática ofende ao contido nos artigos 165 e 458 do CPC e ao devido processo legal. III - O efeito devolutivo da apelação, com o qual se possibilita que a Segunda Instância possa reapreciar todos os pontos da lide (inicial, contestação e provas), não afasta ou supre a necessidade de que a sentença de Primeiro Grau julgue a matéria, pois somente pode haver o rejulgamento do que já foi julgado. IV - A utilização de fundamento no sentido de que: “O relator não está obrigado ao exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas apresentadas pelas partes, quando já tenha formado juízo de convencimento, ainda que 332 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA contrário a tese da embargante.”, não pode servir de escudo para o julgamento deixar de se pronunciar sobre questões relevantes, a exemplo de preliminares e de prejudiciais de mérito. V - A saudável prestação jurisdicional consiste no pronunciamento do magistrado a respeito dos pontos fundamentais da ação, apresentados pelo autor (inicial e provas do autor) e pelo réu (contestação e provas do réu), em especial nas instâncias ordinárias, nas quais o conjunto fático-probatório é examinado, pois para o e. Superior Tribunal de Justiça estão reservadas as eventuais violações legais e de divergência jurisprudencial (art. 105, inciso III, letras a e b da Constituição Federal), não se adentrando no exame de fatos, provas e cláusulas contratuais (Súmulas n. 5 e 7-STJ). VI - Recurso especial da segunda recorrente (Celton) provido e prejudicado o recurso especial da primeira recorrente (Bolsa de Valores). 6.- O Voto do E. Min. Relator dá provimento ao Recurso Especial da Celton, declarando a “nulidade da sentença de fls. 2.330-2.333 para que nova seja proferida em seu lugar, em obediência ao contido nos artigos 165 e 458 do CPC, tornando-se sem efeito o v. acórdão recorrido, o qual não supriu as nulidades acima apontadas, restando prejudicado o exame do recurso especial da recorrente Bolsa de Valores”. É o que se acrescenta ao Relatório do E. Min. Relator. 7.- Meu voto, com o maior respeito pelo cuidadoso voto do E. Min. Relator, diverge, afastando as alegações de nulidade da sentença – e, indo além, também de nulidade do Acórdão – de modo que, afastando a preliminar de nulidade, entende dever-se passar ao julgamento das demais questões, como de Direito, de modo a superar-se de vez o longo processo em que se digladiam as partes há décadas. A sentença, efetivamente, poderia ter sido mais explícita em enfrentar as diversas e complexas questões trazidas pelo questionamento entre as partes, mas a verdade é que contém todos os elementos necessários à validade da manifestação jurisdicional, não se olvidando que, a seguir, veio acórdão extremamente detido em examinar todas as questões existentes nos autos. As críticas da recorrente Celton à sentença foram fixadas pelas alegações dos Embargos de Declaração, que lhe apontaram os pretensos defeitos. Essas críticas, no resumo do voto do E. Relator, que acolhe a alegação de nulidade, resumemse à omissão de enfoque do seguinte: “i) da contestação; ii) das preliminares suscitadas na contestação; iii) da audiência de instrução; iv) da determinação de prosseguimento em conjunto com os autos da Ação n. 96.001.006.184.184-3 RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 333 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA movida pela Celton contra a Bolsa de Valores (despacho de fls. 2.256), proferindo a sentença quando os autos da referida ação encontravam-se fora de Cartório; v) a exclusão do valor já inscrito no quadro geral de credores; vi) sobre a prova testemunhal e laudo dos assistentes”. O acórdão analisou e rejeitou todas essas alegações, com cuidado e detalhe, em julgamento bem motivado, que deve subsistir, afastando-se a perspectiva de anulação de processo que vem de há longo tempo – causa mais que madura, diante do que as partes devem encontrar o desfecho final do penoso digladiar. i) Arguida na apelação a falta de referência explícita à sentença, o Acórdão expressamente pronunciou-se sobre a alegação de nulidade, rejeitando-a e consignando que a falta de referência não causou prejuízo às partes (fls. 2.461), como, efetivamente, não causou. O Acórdão, ainda, ao rejeitar Embargos de Declaração, esclareceu que, tendo havido extravio dos autos, a ora Celton não juntou a cópia da contestação, o que foi certificado pelo Cartório, só tendo essa cópia vindo aos autos trazida pela Bolsa de Valores, como documento anexo à inicial de restauração de autos (Acórdão, fls. 2.495). De qualquer forma, ainda que sem referência expressa à contestação, a verdade é que a sentença não decretou a revelia da Celton, nem lhe atribuiu o grave efeito da confissão de matéria de fato (CPC, art. 319), nem julgou antecipadamente com fundamento na revelia (CPC, art. 330, I). Ao contrário, a sentença julgou detendo-se em examinar provas, analisando, especificamente, a perícia, e efetuando expressa opção pelas informações periciais constantes do resumo contábil tomado de empréstimo do trabalho pericial produzido no outro processo (fls. 2.331-2.332 – com expressa referência ao número das folhas desse documento, fls. 1.593, 8º Vol., fls. 2.332). A sentença cuidou de expor que o julgador realizava opção assegurada pelo princípio da liberdade na interpretação da prova, acolhendo a prova pericial que destacou, invocando como arrimo o disposto nos arts. 131 e 436 do Cód. de Proc. Civil. Além disso, analisando o núcleo da questão central de que se originou o processo, a sentença ressaltou que “cai por terra a assertiva lançada pela empresa demandada quando tenta sustentar que os cancelamentos efetuados pela empresa demandante não restituíram as partes ao statu quo ante” e frisou que “de acordo com o laudo elaborado pelo expert, quem frustrou o retorno dos 334 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA litigantes ao estado anterior foi a própria empresa demandada, quando deixou de restituir à autora as importâncias despendidas com a operação rotulada de ‘zé-com-zé’, objeto exatamente do pedido formulado na petição inicial” (fls. 2.332). Ademais, o Acórdão ora recorrido voltou a examinar as matérias centrais, cujo enfrentamento, aliás, consta da própria exaustiva ementa do Acórdão (fls. 2.460). E afastou, com convicção, a sustentação de nulidade: “A douta sentença, a despeito de relatar sucintamente, tendo em vista os numerosos volumes que integram os autos, respondeu, suficientemente, às teses deduzidas pelas partes, respeitou o contraditório e procedeu a instrução implementando provas pericial e testemunhal requeridas pelas partes, considerando, afinal, suficientemente provados os fatos constitutivos do direito do autor” (...). “Em tais circunstâncias, não havendo prejuízo causado às partes, como no caso destes autos, incide a norma do art. 250, parágrafo único, do CPC, que proclama: ‘pas de nulitté sans grief’. / Por conseguinte, a r. sentença não profana os princípios basilares do contraditório e ampla defesa (art. 5º da CRFB/1988), nem o provimento em separado causou qualquer prejuízo às partes (art. 250, parágrafo único, do CPC), razões pelas quais se rechaçam, desde logo, as preliminares deduzidas no recurso” (fls. 2.461). ii) As preliminares que se vêm na contestação, resumidas pela peça (fls. 255), não poderiam jamais vingar, entrosando-se com o mérito, enfrentado pela sentença e pelo Acórdão, e tornando-se, diante das conclusões deste, aniquiladas, glabras, inaptas a grassar vivas diante da força das conclusões vindas do mérito – tal como fixado pela análise fulcral realizada pela sentença e pelo acórdão. Como extrair ilegitimidade passiva ad causam (item I, fls. 255) da Celton, se da análise pericial se extraía sua responsabilidade? Qual o efeito prático que se poderia imaginar da intimação do Banco Central do Brasil (item II, fls. 255)? De que valeria a intimação da C.V.M., sob invocação do art. 31 da Lei n. 6.385/1976 (item III, fls. 255)? Denunciação da lide – genericamente referida no art. 70 CPC, sem indicação do inciso – para quê? Qual o resultado que se obteria neste processo – e que, aliás, não pudesse ser perseguido em ação autônoma (item V, fls. 255)? iii) Audiência e eventuais outras provas eram de solar inexpressividade, diante da perícia e da massa de documentos trazidos ao processo, analisados pelos julgados e base das conclusões a que chegaram. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 335 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O Acórdão, ademais, salientou que “o deslinde da demanda pelo douto Juízo monocrático lastrou-se em prova pericial e documental, afigurando-se de menor relevância, no contexto, a prova oral, motivo pelo qual não perece censura o não destaque na r. sentença da prova testemunhal colhida em audiência, considerando a natureza e a essência da lide destes autos assentar-se em prova escrita e na lei” (fls. 243). iv) Nem se deixe de ressaltar que, além de a sentença haver enfrentado o cerne das alegações da Celton, veio, o mesmo Juízo, julgando o processo movido por esta contra várias acionadas, inclusive a Bolsa de Valores, cuja apelação foi julgada em conjunto pelo Acórdão ora recorrido, veio, a sentença, a debruçarse detida e mais alongadamente sobre as alegações da Celton, afastando-as – julgamento aquele que não passou despercebido do Acórdão ora recorrido, o qual assinalou que “Demais, a r. sentença do Feito n. 1996.001.006184-3, em ação conexa proposta pela Apelante 1, proferida em separado, com fotocópia juntadas a estes autos (fls. 2.322-2.330), não causou nenhum prejuízo às partes, impondo sua apensação (fls. 2.334), a seguir, para fim de julgamento conjunto das apelações interpostas” (fls. 2.461). Na rejeição dos Embargos de Declaração, aliás, o Tribunal de origem reafirmou, analisando detidamente, a inexistência das nulidades alegadas (fls. 2.494-2.500). 8.- Matéria superada, pois, na origem, deve, com o mais elevado respeito ao voto do E. Relator, ser afastada a preliminar de nulidade, passando-se ao julgamento das demais questões trazidas pelos recursos. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Srs. Ministros, com a vênia do eminente Ministro Massami Uyeda, acompanho integralmente o Sr. Ministro Sidnei Beneti, seja quanto ao não conhecimento dos segundos embargos declaratórios opostos pelo terceiro interessado, seja quanto à solução dada ao recurso especial. Inviável acolher-se a preliminar de nulidade por irregularidade constante no relatório da sentença, quando esta já havia sido substituída pelo acórdão do Tribunal, que enfrentou a questão, reconhecendo que o fato de a sentença não ter mencionado a contestação e deixado de arrolar as alegações ali vertidas não teria trazido prejuízo para a parte. 336 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Possível, então, prosseguir-se no julgamento, com enfrentamento das demais questões trazidas pelos recursos. Com renovadas vênias do eminente Ministro Massami, acompanho integralmente o voto do Sr. Ministro Sidnei Beneti. RELATÓRIO O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Trata-se, na origem, de ação ordinária proposta em 1993 por Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (BVRJ) contra Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda., na Vigésima Oitava Vara Cível do Rio de Janeiro - RJ. Pretende a autora, primeira recorrente, o reconhecimento de créditos que afirma ter em relação à segunda recorrente e a consequente condenação desta ao pagamento da importância de NCZ$ 16.132.941,72 (dezesseis milhões, cento e trinta e dois mil, novecentos e quarenta e um cruzados novos e setenta e dois centavos), mais juros, correção monetária e demais consectários legais (Processo n. 1193.001.072495-3). Parte dos créditos reclamados seria resultante de saldo negativo coberto pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e verificado em conta-corrente da Celton na data da decretação de sua liquidação extrajudicial. Referido sistema de contacorrente é adotado costumeiramente nas bolsas de todo o mundo e é utilizado para liquidação financeira de operações. Nele as bolsas creditam e debitam, diariamente, os valores referentes às operações realizadas nos seus pregões. No caso dos autos, essa conta-corrente era mantida no BANERJ em razão de convênio firmado entre a instituição financeira, a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e as corretoras. Outra quantia refere-se a desembolso feito pelo Fundo de Garantia da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro para cobrir dívidas decorrentes de operações a termo de responsabilidade da Celton perante investidores. Finalmente, a última parcela corresponderia a uma chamada de capital deliberada em assembleia geral extraordinária por meio da qual as corretoras integrantes da Bolsa – entre as quais se encontrava a Celton – obrigaram-se, cada uma, a aporte financeiro no valor de NCZ$ 300.000,00, montante que não foi pago pela recorrida. Relata a primeira recorrente, Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, que tais créditos teriam sido habilitados no procedimento de liquidação extrajudicial a que foi submetida a recorrida, mas foram indeferidos pelo liquidante. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 337 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Já em juízo, o pedido foi julgado procedente em primeiro grau, com a condenação da Celton ao pagamento do valor reclamado, monetariamente corrigido a partir do ajuizamento da ação, mais juros legais de 0,5% ao mês a contar da citação, além de custas e honorários de sucumbência. Ambas as partes apelaram, sendo adesivo o recurso interposto pela Bolsa de Valores. Em julgamento realizado em 23.8.2005, a Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade, prolatou acórdão em cuja ementa se lê: APELAÇÃO n. 33.280. Bolsa de Valores. Corretora. Operações fraudulentas. A BVRJ ao invés de liquidar suspendeu e depois cancelou as operações rotuladas Zé com Zé, no pregão de 2.6.1989, por terem sido consideradas fraudulentas, na forma do artigo 89, da Resolução CMN n. 922/84, conforme comprovou a perícia. Atendendo às instruções da Celton à Bolsa, os valores devidos por ela foram repassados ao BMC, efetuando-se a sub-rogação na garantia representada pelas ações bloqueadas em custódia como garantia do crédito da Bolsa em relação à Celton, sendo o produto da venda levado a crédito da Celton, abatendo, em parte o valor da dívida, levado a conhecimento do liquidante. Revela a perícia que os débitos das operações canceladas foram efetuados até a data de 16.6.1989 gerando vultosos débitos da Celton no sistema BANERJ, cobertos com recursos da Bolsa “Tudo, porém, antes da liquidação extrajudicial da Corretora, decretada em 21.6.1989” detalhando que: “o cancelamento das operações só foi possível após sindicâncias da BVRJ, da CVM e do Banco Central, sendo o registro contábil efetuado posteriormente, porém, retroativamente à data da compensação; já os registros bancários em conta corrente Convênio eram feitos no momento da compensação”. Por isso, afiguram-se certos, líquidos e exigíveis o crédito cobrado na alínea a da inicial. O recurso adesivo não merece prosperar, eis que, cuidando-se de dívida de dinheiro, portanto ilícito relativo e não absoluto (Súmulas n. 43 e 54, do E. STJ), impõe-se a correção monetária do valor apurado em liquidação, a partir do ajuizamento da ação, para impedir-se o locupletamento injusto do devedor e dos juros de mora, a contar da citação, por determinação legal (art. 219, do CPC), observando-se a disposição do artigo 406, do Código Civil, desde o início de sua vigência. APELAÇÃO n. 33.278. Revelam os autos que a autora/Celton não se desincumbiu do ônus de demonstrar os alegados fatos que seriam constitutivos de seu alegado direito (art. 333, I, do CPC), qual seja, a efetiva aquisição e pagamento das ações cuja indenização reivindica nestes autos, evidenciando, ao contrário, que nunca foi proprietária dos títulos cuja indenização pretende receber. Não comprovou, ainda, em nenhum momento, o aporte de qualquer soma para o pagamento das ações, nem tampouco depositou as margens de segurança, razões pelas quais não consta consolidado no acervo patrimonial abrangido pelo regime de indisponibilidade criado pela liquidação extrajudicial, crédito de ações em seu nome, como bem proclamou a r. sentença destes autos. Rejeição das preliminares. Desprovimento dos recursos. 338 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Não foram providos os embargos de declaração opostos por ambas as partes. Transcreve-se a ementa respectiva: Embargos declaratórios. Obscuridade, contradição e omissões inexistentes. Rediscussão do julgado no intuito de fazer prevalecer as teses dos embargantes. Via imprópria. Desprovimento dos recursos. Contra o acórdão proferido na apelação, integrado por aquele relativo aos embargos de declaração, foram interpostos recursos especial e extraordinário também por ambas as partes. Os recursos apresentados pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro foram admitidos. Já os da Celton foram inadmitidos. O agravo de instrumento interposto para destrancar o recurso especial foi, após marchas e contramarchas, provido por meio de decisão proferida pelo Ministro Humberto Gomes de Barros (Agravo de Instrumento n. 808.390-RJ), ratificada em agravo regimental julgado em 25.8.2009, com acórdão publicado em 11.9.2009, transitado em julgado. Abro parêntese para registrar alguns fatos relativos a uma ação proposta por Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. contra a Fundação Vale do Rio Doce de Seguridade Social (Valia) e outros, entre os quais figura a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, cuja tramitação ocorreu também na Vigésima Oitava Vara Cível do Rio de Janeiro (Processo n. 1996.001.006184-3). Nessa ação, a Celton afirmava que a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, mesmo após a decretação da liquidação extrajudicial pelo Banco Central do Brasil e sem o consentimento do liquidante nomeado, em ofensa à lei, portanto, devolvera às demais rés 530.000 ações preferenciais nominativas da Cia. Vale do Rio Doce integrantes do acervo patrimonial da sociedade liquidanda que se encontravam custodiadas na Bolsa. Afirmava ainda a Celton que adquirira tais ações poucos dias antes da decretação da sua liquidação extrajudicial e que depositara também as “margens” relativas a essas compras, esclarecendo que ditas margens correspondem a depósito exigido para garantir oscilações na cotação das ações quando as compras se realizam a termo. Pedia a Celton, ao final, fosse reconstituída sua carteira de ações, com as bonificações e os desdobramentos ocorridos, ou indenização correspondente, e com juros, dividendos e lucros cessantes decorrentes, segundo ela, do ilícito praticado. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 339 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O registro que ora faço é importante porque, na ação proposta pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro contra a Celton, cujo recurso ora se aprecia, discute-se essa questão da devolução das ações à Valia e a outros investidores que foram os vendedores das ações negociadas a termo. No item 2.1.2 das razões deste recurso especial, a própria Celton afirma serem essas ações as “mesmíssimas” referidas em ambas as demandas. Eventual procedência do pedido da Celton, por isso, teria implicações diretas no resultado da ação cujo recurso se encontra em julgamento. O pedido foi julgado improcedente, no entanto. Foi interposta apelação pela Celton. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decidiu, num mesmo acórdão, os recursos de apelação referentes a ambas as ações, conforme se viu da transcrição da ementa feita anteriormente (vide referências às Apelações n. 33.280 e 33.278, sendo a última a que diz respeito à ação proposta pela Celton). Contra o acórdão regional e o dos embargos de declaração opostos, foi interposto recurso especial pela Celton, que foi inadmitido. Do agravo de instrumento apresentado contra o despacho que inadmitiu o recurso especial não se conheceu por ausência de peças obrigatórias, decisão adotada no AgRg no AgRg no Ag n. 818.185-RJ, já transitada em julgado. Em resumo: transitou em julgado o acórdão regional na parte relativa à Apelação Cível n. 33.278. Menciono, porque importante também para o deslinde do recurso especial em julgamento, excerto do voto do relator (fls. 2.580): Em tais circunstâncias, revelam os autos que a autora/Celton não se desincumbiu do ônus de demonstrar os alegados fatos que seriam constitutivos de seu alegado direito (art. 333, I, do CPC), qual seja, a efetiva aquisição e pagamento das ações cuja indenização reivindica nestes autos, evidenciando, ao contrário, que nunca foi proprietária dos títulos cuja indenização pretende receber. Não comprovou, ainda, em nenhum momento, o aporte de qualquer soma para o pagamento das ações, nem tampouco depositou as margens de segurança, razões pelas quais não consta consolidado no acervo patrimonial abrangido pelo regime de indisponibilidade criado pela liquidação extrajudicial, crédito de ações em seu nome, como bem proclamou a r. sentença (fls. 2.556-2.557) destes autos. Feito o registro, fecho o parêntese. 340 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Esse o relatório que entendi necessário e suficiente para o bom equacionamento da controvérsia. VOTO O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Passo à análise do REsp n. 887.131-RJ, em que ambas as litigantes atacam o acórdão estadual na parte relativa à Apelação Cível n. 33.280. Aprecio, em primeiro lugar, o recurso especial interposto por Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda., segunda recorrente. O recurso especial foi interposto com base no art. 105, III, alínea a, da Constituição Federal e fundamenta-se na contrariedade aos seguintes dispositivos: arts. 165 e 458, II, do Código de Processo Civil; 145 e 145, VI, do antigo Código Civil (arts. 166 e 166, V, do atual Código Civil); 31 da Lei n. 6.024/1974; 44 do DL n. 7.661/1945 (Lei de Falências vigente à época). Sustenta-se ainda ofensa ao disposto nos arts. 5º, LV, e 93, IX, da Constituição Federal. Relativamente à pretensa violação dos dispositivos do Código de Processo Civil e do Código Civil referidos, com base no que se pediu a anulação do acórdão impugnado, observo que a controvérsia já foi definida na sessão de julgamento de 9.10.2012, quando ainda integrava esta Turma e atuava como relator do processo o Ministro Massami Uyeda, oportunidade em que, por maioria, decidiu-se pela superação daquela preliminar e pelo retorno dos autos ao relator para apreciação do mérito. Com a aposentadoria do Ministro Massami, o feito foi a mim atribuído. No que toca à alegada ofensa aos dispositivos da Constituição Federal, anoto que a discussão não cabe em sede de recurso especial, mas em recurso próprio a ser encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pródiga nesse sentido, o que torna despicienda a transcrição de precedentes. Nada a prover no ponto. Verifico, quanto à alegação de negativa de vigência do art. 31 da Lei n. 6.024/1974, que a matéria não está prequestionada. Embora arguida nas razões de apelação da segunda recorrente, o decisum objurgado deixou de apreciar a questão em termos expressos ou mesmo com a profundidade necessária para se tê-la como implicitamente debatida. Incidência da Súmula n. 282-STF (“É RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 341 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”). Com efeito, não basta que a parte invoque a aplicação de dispositivos legais que entende pertinentes à solução do conflito. É necessário que sobre eles se manifeste expressamente o órgão julgador (prequestionamento explícito) ou, ao menos, que a matéria neles tratada seja ampla e claramente discutida (prequestionamento implícito) para que do recurso especial se conheça. No caso dos autos, embora de maneira vaga, a segunda recorrente tentou, por meio de embargos de declaração, que o Tribunal de origem se manifestasse a respeito de diversos pontos que, a seu ver, ficaram sem solução, entre os quais eventual “negativa de vigência das normas da Lei n. 6.024/1974”. Veja-se que, nem mesmo naquela peça processual, a segunda recorrente aduziu, de forma precisa, quais dispositivos da Lei n. 6.024/1974 o órgão julgador deveria abordar. A Turma julgadora, ao entendimento de que o acórdão hostilizado não padecia dos vícios de obscuridade, contradição ou omissão, negou provimento aos referidos embargos de declaração e em nenhum momento promoveu debate sobre o dispositivo legal invocado pela parte. Caberia à recorrente, nessas circunstâncias, buscar a declaração de nulidade do acórdão por violação do art. 535 do CPC, ao invés de alegar a negativa de vigência do dispositivo legal não prequestionado. Não o fazendo, atraiu a aplicação do disposto na Súmula n. 211-STJ (“Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”). De qualquer forma, só teria sentido discutir a aplicação da norma contida no art. 31 da Lei n. 6.024/1974 se as ações que a segunda recorrente alega terem sido indevidamente retiradas dos seus ativos fossem realmente de sua propriedade. Eis o texto do mencionado dispositivo legal: Art. 31. No resguardo da economia pública, da poupança privada e da segurança nacional, sempre que a atividade da entidade liquidanda colidir com interesses daquelas áreas, poderá o liquidante, prévia e expressamente autorizado pelo Banco Central do Brasil, adotar qualquer forma especial ou qualificada de realização do ativo e liquidação do passivo, ceder o ativo a terceiros, organizar ou reorganizar sociedade para continuação geral ou parcial do negócio ou atividade da liquidanda. 342 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No entanto, conforme consta do acórdão recorrido na parte que cuida da Apelação Cível n. 33.278 e que tem por objeto “as mesmíssimas” ações tratadas no presente recurso, nas palavras da própria Celton, ficou evidenciado que esta “nunca foi proprietária dos títulos cuja indenização pretende receber”, tendo atuado apenas como intermediária nas operações de compra e venda a termo das ações preferenciais da Cia. Vale do Rio Doce. A propósito do tema, o Ministério Público Federal, em parecer da lavra do professor GUSTAVO TEPEDINO, assim se expressou no Recurso Criminal n. 99.02.09052-4, interposto contra decisão que rejeitara denúncia formulada contra os representantes da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro por, supostamente, terem negociado os títulos em referência que se encontravam custodiados naquela associação (fls. 2.331-2.338 dos autos da Apelação Cível n. 33.278): Posta a questão nestes termos, vê-se que andou bem o juízo monocrático, ao rejeitar a denúncia, restando evidente, por outro lado, terem sido induzidos em clamoroso erro a Justiça Pública e o renomado criminalista signatário do parecer em que se fundamentou a denúncia. O equívoco decorre da falsa premissa segundo a qual a corretora Celton, intermediária das seis operações a termo destinadas à venda de papéis à Capitânea, e que sofreu liquidação extrajudicial, seria proprietária das ações objeto do contrato de compra e venda, custodiadas junto à Bolsa de Valores. Dito diversamente, considerou-se que as ações objeto da venda pertenciam aos ativos da Corretora no momento da decretação pelo Banco Central da liquidação extrajudicial. [...] Ora, no direito brasileiro, como é de correntia sabença, os contratos translativos de propriedade não têm eficácia real, limitando-se a produzir efeitos obrigacionais. Vale dizer que, com a compra e venda, o vendedor se obriga a transferir os bens no termo pré-fixado e mediante o pagamento do preço, sendo somente a traditio, em se tratando de bens móveis, ou o registro do título translativo – a transcrição do título, como se afirma com base no sistema anterior – no caso de bens imóveis, capazes de transferir o domínio. Tais considerações, que por tão elementares dispensam a remissão aos artigos do Código Civil pertinentes, suscitam duas inarredáveis conclusões. Em primeiro lugar: as ações postas em custódia junto a Bolsa de Valores, no contrato a termo, permanecem na propriedade dos vendedores até o momento em que, com o adimplemento do preço, são transferidas aos compradores. Em segundo lugar – e mais importante: a Bolsa de Valores, diante do não pagamento do preço pelos compradores no vencimento antecipado, ao restituir aos vendedores as ações que lhe pertencem, não deflagrou o tipo penal supracitado, já que entregou os bens aos seus proprietários, sendo impossível, por isso mesmo, falar-se tecnicamente em negociação, como quis, na previsão do tipo, o legislador penal. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 343 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Já no que diz respeito à alegação de negativa de vigência do art. 44 da antiga Lei de Falências, subsidiariamente aplicável às liquidações extrajudiciais, observo que o Tribunal estadual adotou a correta interpretação do dispositivo legal no caso concreto. Com efeito, realizada a venda a termo das ações da Cia. Vale do Rio Doce, tendo como intermediária a Celton e como compradora a Capitânea Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários, sobrevindo o inadimplemento de ambas, a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, atendendo a pedido das vendedoras, devolveu-lhes os títulos que estavam sob sua custódia e as indenizou pela diferença entre o valor daqueles títulos na data do contrato de compra e venda e aquele vigente na data da devolução, utilizando recursos do seu fundo de garantia, sub-rogando-se o direito das vendedoras. O procedimento adotado pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro foi completamente aderente ao que diz o art. 44, V, da Lei de Falências, in verbis: Art. 44 - Nas relações contratuais, abaixo mencionadas, prevalecerão as seguintes regras: [...] V - Tratando-se de coisas vendidas a termo, que tenham cotação em Bolsa ou mercado, e não se executando o contrato pela efetiva entrega daquelas e pagamento do preço, prestar-se-á a diferença entre a cotação do dia do contrato e a da época da liquidação. Manifestando-se nos autos na qualidade de amicus curiae, afirmou a Comissão de Valores Mobiliários (fls. 2.372-2.376 dos autos da Apelação Cível n. 33.278): [...] o que a BVRJ fez foi atender à reclamação dos lesados, mediante pedido ao Fundo de Garantia, conforme a legislação prevê. É um procedimento administrativo regular. Ressarciu os vendedores do prejuízo e se sub-rogou no seu direito, na massa da liquidanda. [...] Não há irregularidade na atuação da BVRJ. Por sua vez, o Ministério Público Federal, no parecer do professor GUSTAVO TEPEDINDO, já mencionado, concluiu: [...] Visto por outro ângulo, verifica-se que a restituição, praticada pela Bolsa de Valores, equivale à espécie de obrigação de dar, determinada pelo DecretoLei n. 7.661/1945, no art. 44, inciso V, consistente na entrega do bem ao seu proprietário, não se confundindo com a disposição, associada à transferência de propriedade. 344 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Também quanto a esse aspecto, nada há a prover. Acrescente-se que o acórdão recorrido, em todas as questões levantadas nas razões de apelação, pautou sua fundamentação em premissas fáticas basicamente extraídas da perícia realizada. Incabível, também por isso, a revisão do julgado, como decorrência do contido na Súmula n. 7-STJ (“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”). Ante o exposto, conheço em parte do recurso especial interposto por Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. para negar-lhe provimento. Analiso, agora, o recurso interposto pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal. Ao apreciar a apelação adesiva interposta pela ora recorrente, a Turma julgadora assim se manifestou: Pugna a apelante 2, em recurso adesivo (fls. 2.285-2.289) a reforma da r. sentença, para que dela conste que o valor da condenação corrigido, monetariamente e juros legais, na forma postulada na inicial, a partir do momento em que o débito da Celton se tornou exigível, conforme, identificado no laudo pericial, tão logo foi franqueada à Bolsa a cobrança judicial contra a Celton, no prazo e na forma determinados na Lei n. 6.024/1974. Cuidando-se de dívida de dinheiro, portanto, ilícito relativo e não absoluto (S. 43 e 54, do E. STJ), impõe-se a correção monetária do valor apurado em liquidação, a partir do ajuizamento da ação, para impedir-se o locupletamento injusto do devedor e dos juros de mora, a contar da citação, por determinação legal (art. 219, do CPC), observando-se a disposição do art. 406, do Código Civil, desde o início de sua vigência. Contra essa decisão, argui a recorrente violação dos arts. 458, inciso II, e 535, inciso II, do CPC, bem como negativa de vigência do art. 18, letra a, da Lei n. 6.024/1974, do art. 1º do Decreto-Lei n. 1.477/1976 e do art. 960 do Código Civil de 1916, além de divergência jurisprudencial. Sustenta a primeira recorrente que, durante quase quatro anos, ficou impedida de acionar judicialmente a recorrida em obediência à norma contida no art. 18, letra a, da Lei n. 6.024/1974, que veda o ajuizamento de ações contra a sociedade liquidanda enquanto não houver sido publicado o quadro geral de credores definitivo. Argumenta que, de 1989 a 1993, quando finalmente pôde ajuizar a presente demanda, a variação do INPC foi superior a seis milhões por cento e que privá- RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 345 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA la da correção monetária desse período importaria em propiciar à recorrida injustificável enriquecimento sem causa. Invoca, em prol da sua tese, ainda a Súmula n. 43-STJ (“Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo”). Quanto aos juros, lembra que o próprio acórdão teria reconhecido a existência, a certeza e liquidez dos créditos devidos pela Celton e argumenta que “as parcelas que compõem a dívida da Recorrida deveriam ter sido por esta honradas na ocasião em que efetuados os correspondentes lançamentos a débito na contacorrente do Sistema BANERJ de liquidação financeira de operações, constituindo-se a Recorrida em mora, diariamente, em função dos saldos negativos por ela não honrados e cobertos com aportes de recursos da Recorrente”. E continua: “[...] ainda que assim não fosse, isto é, ainda que a constituição em mora dependesse de ato posterior (o que não foi o entendimento do v. acórdão, como se verá a seguir), o fato é que a própria habilitação do crédito da Recorrente no processo de liquidação extrajudicial, ocorrida logo em seguida à decretação do regime de liquidação, em 21.6.1989, já teria, de todo o modo, caracterizado plenamente uma interpelação, isto é, um ato de cobrança da dívida e de constituição do devedor em mora, na forma do disposto na segunda parte do mesmo artigo 960 do Código Civil de 1916 (‘Não havendo prazo assinado, começa ela [a mora] desde a interpelação, notificação ou protesto’)”. Entendo caber parcial razão à recorrente. De fato, é entendimento antigo deste Tribunal que a correção monetária nada acresce ao valor do débito, mas evita a corrosão do poder aquisitivo da moeda pelo processo inflacionário. São célebres as decisões de lavra do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira nesse sentido. Cito, como exemplo: Direitos Processual Civil e Econômico. Seguro de vida. Correção monetária. Atualização. Termo a quo. Recurso Especial. Pressupostos. Ausência. Recurso não conhecido. I - Sendo a correção monetária mero mecanismo para evitar a corrosão do poder aquisitivo da moeda, sem qualquer acréscimo do valor original, impõese que o valor segurado seja atualizado desde a sua contratação, para que a indenização seja efetivada com base em seu valor real, na data do pagamento. II - É entendimento consolidado da Corte que a evolução dos fatos econômicos tornou insustentável a não-incidência da correção monetária, sob pena de prestigiar-se o enriquecimento sem causa do devedor, constituindo-se ela imperativo econômico, jurídico e ético indispensável à plena indenização dos 346 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA danos e ao fiel e completo adimplemento das obrigações. (REsp n. 247.685-AC, DJ de 5.6.2000.) Ademais, no caso dos autos, o ajuizamento da ação só se tornou possível quatro anos após o desembolso dos valores pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, dada a demora na publicação do quadro geral de credores da recorrida, havendo impossibilidade legal de acionamento da devedora antes daquela data, em razão do disposto da Lei n. 6.024/1974, como apontado pela primeira recorrente. A Súmula n. 43-STJ ampara plenamente a pretensão, uma vez que seu enunciado refere-se tanto ao ato ilícito absoluto (extracontratual) quanto ao ato ilícito relativo (contratual), ao contrário do que decidiu o Tribunal estadual. Cito como precedentes os acórdãos proferidos nos REsp n. 24.865-0-SP e 31.094-9SP, ambos relatados pelo Ministro Nilson Naves. Como consequência, entendo que a correção monetária deverá incidir a partir da ocorrência de saldos devedores não cobertos na conta-corrente da Celton, mantida, à época, no BANERJ. No que diz respeito aos juros de mora, no entanto, deve-se manter o entendimento adotado no acórdão recorrido. Na verdade, estabelece o art. 18, alínea d, da Lei n. 6.024/1974: Art. 18. A decretação da liquidação extrajudicial produzirá, de imediato, os seguintes efeitos: [...] d) não fluência de juros, mesmo que estipulados, contra a massa, enquanto não integralmente pago o passivo. No entanto, como não houve recurso por parte da Celton quanto à data do início da contagem dos juros de mora, deve ser mantida aquela definida no acórdão recorrido, entendimento que, aliás, não discrepa da jurisprudência desta Corte, como se vê da ementa abaixo: Liquidação Extrajudicial. Correção monetária. Juros. 1. Os débitos resultantes de decisão judicial, das empresas submetidas a liquidação extrajudicial, devem ser corrigidos desde o vencimento da obrigação ou do ajuizamento da ação. Princípio geral da Lei n. 6.899/1981, que não sofreu restrição com a superveniência do Dec. Lei n. 2.278/1985. 2. Ajuizada ação de adimplemento de obrigação descumprida pela empresa em liquidação, incide a regra processual sobre a mora (art. 219 CPC) e, como consequência, fluem os juros moratórios desde a citação válida. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 347 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Recurso não conhecido. (REsp n. 48.606-8-SP, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 29.8.1994.) Ante todo o exposto, conheço parcialmente do recurso interposto por Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. e nego-lhe provimento. Conheço do recurso interposto pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e dou-lhe parcial provimento, na forma estabelecida na fundamentação retro. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.152.849-MG (2009/0157602-6) Relator: Ministro João Otávio de Noronha Recorrente: Lucas Monteiro Machado Neto e outros Advogado: Rita Câmara Elian e outro(s) Recorrente: Maternidade Octaviano Neves S/A Advogado: Rafael Alkmim Sousa e outro(s) Recorrido: Os mesmos EMENTA Recurso especial. Direito Societário. Violação do art. 535 do CPC. Não ocorrência. Sociedade anônima. Assembleia geral. Assunto omisso na publicação da ordem do dia. Nulidade da deliberação. Higidez da assembleia. Ações preferenciais. Voto contingente. Desnecessidade de publicação da aquisição de direito a voto. Acordo de acionistas. Acordo de voto em bloco. Limitação aos votos de vontade. Impossibilidade quanto aos votos de verdade. 1. Não viola o art. 535 do CPC acórdão que, integrado por julgado proferido em embargos de declaração, dirime, de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais. 348 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 2. Da convocação para a assembleia geral ordinária deve constar a ordem do dia com a clara especificação dos assuntos a serem deliberados. 3. A votação de matéria não publicada na ordem do dia implica nulidade apenas da deliberação, e não de toda a assembleia. 4. Quando da convocação para a assembleia geral ordinária, não há necessidade de publicação da aquisição temporária do direito de voto pelas ações preferenciais (art. 111, § 1º, da LSA – voto contingente). 5. O detentor da ação preferencial que não recebeu seus dividendos conhece essa situação e deve, no próprio interesse, exercer o direito que a lei lhe concede. Ao subscrever quotas de capital, o acionista precisa conhecer as particularidades das ações que adquire, não podendo arguir o desconhecimento dos termos da lei. 6. O acordo de acionistas não pode predeterminar o voto sobre as declarações de verdade, aquele que é meramente declaratório da legitimidade dos atos dos administradores, restringindo-se ao voto no qual se emita declaração de vontade. 7. Recurso especiais desprovidos. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento aos recursos especiais, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei Beneti. Brasília (DF), 7 de novembro de 2013 (data do julgamento). Ministro João Otávio de Noronha, Relator DJe 18.11.2013 RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 349 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RELATÓRIO O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Trata-se de recursos especiais interpostos por Lucas Monteiro Machado Neto e Outros e por Maternidade Octaviano Neves S/A, ambos com fundamento no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal. Na origem, os primeiros recorrentes, acionistas da referida maternidade, ajuizaram ação para ver anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral ordinária (AGO) realizada em 29.4.2005. Apontaram as seguintes nulidades: a) irregularidade na convocação da AGO: omissão sobre a deliberação da destinação do lucro e distribuição de dividendos na ordem do dia; b) vício na convocação e instalação da AGO: ausência de publicidade no que se refere à aquisição do direito de voto pelos acionistas preferenciais; c) aprovação irregular das contas da administração: aprovação mediante votação dos próprios administradores por meio de acordo de acionistas; e d) nulidade da deliberação quanto à distribuição de dividendos. Em primeira instância, o pedido foi julgado parcialmente procedente para declarar a nulidade das deliberações no que se refere à distribuição de dividendos e à aprovação das contas dos administradores. Ambas as partes apelaram, e o Tribunal a quo manteve a sentença em acórdão assim ementado: Declaratória. Sociedade anônima. Assembléia geral ordinária. Convocação pública. Ordem do dia. Omissão de matéria a ser deliberada. Votação. Questão decidida. Nulidade. Ação preferencial. Direito ao sufrágio. Prazo legal decorrido. Aquisição imediata. Acordo de acionistas. “Voto de verdade”. Aprovação de contas. Vedação. O regime de convocação pública tem por finalidade permitir que o sócio tome conhecimento prévio da realização da AGO - Assembléia Geral Ordinária, possibilitando que os titulares das quotas verifiquem a conveniência ou não de sua presença, razão pela qual, deve ser dada ciência aos interessados quanto às questões que serão deliberadas no conclave. Caso ocorra a votação de alguma matéria que não foi mencionada no edital, somente aquela questão específica deve ser considerada nula, permanecendo hígidas as demais decisões tomadas em atendimento às determinações legais. Nas ações preferenciais, transcorrido o prazo estipulado no artigo 111, § 1º, da Lei n. 6.404/1976 sem que haja rateio dos dividendos, a aquisição do direito ao sufrágio é automática e imediata. É vedado ao acordo de acionistas o chamado “voto de verdade”, como, por exemplo, aquele que aprova as contas da administração (e-STJ, fl. 402). 350 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Os dois embargos declaratórios subsequentemente opostos foram rejeitados (e-STJ, fls. 422 e 435). Sustentam os primeiros recorrentes (autores) as seguintes teses: a) violação do art. 535, II, do CPC, uma vez que o acórdão recorrido não deliberou acerca de dois pontos: i) a omissão na pauta de publicação da AGO quanto a alguns dos itens gera prejuízo na deliberação dos demais; e ii) a publicidade é um princípio informativo da Lei n. 6.404/1976; b) ofensa aos arts. 124, 132 e 135 da Lei das S.A. em razão do vício na convocação para a AGO; o edital foi silente acerca da distribuição de dividendos, mas houve deliberação acerca da matéria; c) contrariedade ao art. 111, § 1º, da Lei das S.A., tendo em vista o vício na convocação e instalação da assembleia, que foi realizada sem devida publicidade acerca da aquisição do direito de voto pelas ações preferenciais. Requer seja declarada a nulidade total da AGO de 29.4.2005. As contrarrazões foram apresentadas (e-STJ, fls. 479-485). A segunda recorrente alega afronta ao art. 118 da Lei das S.A., que admite o acordo de voto em bloco para aprovação de contas. Contrarrazões apresentadas às fls. 487-494. Admitidos os recursos na origem (e-STJ, fls. 503-505), ascenderam os autos ao STJ. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): No presente caso, autores e réu interpuseram recurso especial. O acórdão recorrido decretou a nulidade de duas deliberações tomadas em assembleia geral ordinária: distribuição de dividendos e aprovação das contas da administração. Os primeiros recorrentes pretendem a declaração de nulidade de toda a assembleia; a segunda recorrente pretende que seja mantida a aprovação das contas. Passo à análise dos recursos especiais: RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 351 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL DE LUCAS MONTEIRO MACHADO NETO e OUTROS I - Art. 535, II, do CPC Afasto a alegada ofensa ao art. 535, II, do CPC, porquanto a Corte de origem examinou e decidiu, de modo claro e objetivo, as questões que delimitaram a controvérsia, não se verificando nenhum vício que possa nulificar o acórdão recorrido. O órgão colegiado tratou das questões que lhe foram submetidas e foi expresso ao negar a nulidade de toda a assembleia em razão de omissão pontual na convocação. Foi expresso também ao reconhecer a importância da publicidade dos atos. Assim, ateve-se aos pontos relevantes e necessários ao deslinde do litígio, adotando fundamentos cabíveis à prolação do julgado, ainda que que a parte não concorde com as conclusões firmadas. II - Arts. 124, 132 e 135 da Lei das S.A. Os recorrentes afirmam que duas questões de direito deverão ser debatidas no especial: a) “saber se a omissão quanto a algumas das matérias objeto de deliberação em AGO importa na na nulidade de toda a AGO ou só na deliberação tomada”; e b) “se, por ser a publicidade um princípio informativo da 6.404/1976, a aquisição do direito de voto na hipótese do artigo 111, § 1º da Lei n. 6.404/1976 deve ser publicada” (e-STJ, fls. 444-445). As instâncias ordinárias reconheceram que houve a convocação para a assembleia geral ordinária. Contudo, a ordem do dia foi omissa em relação a um ponto: a deliberação sobre a destinação do lucro líquido do exercício e a distribuição de dividendos. Apesar da omissão, tais matérias foram discutidas na reunião, por isso a sentença decretou a nulidade da deliberação com a devolução dos dividendos efetivamente distribuídos. A convocação para a AGO foi realizada adequadamente, havendo omissão quanto a uma das matérias tratadas no concílio. Por óbvio, não se pode anular toda a assembleia, mas tão somente aquele ponto acerca do qual não foi dada a necessária publicidade. Houve o chamamento público e foi dada aos acionistas a oportunidade de avaliar o interesse em comparecer ao ato. Apenas a discussão referente ao lucro 352 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA líquido e dividendos não foi levado ao conhecimento prévio dos interessados, razão pela qual somente essa deliberação deve ser invalidada. A ocorrência da assembleia, em si, não foi prejudicada, tendo em vista que os demais assuntos tratados constaram da ordem do dia. É nítido que a hipótese retratada nos autos é de nulidade da deliberação, e não de toda a assembleia. III - Art. 111, § 1º, da Lei das S.A. Quanto à ausência de divulgação do direito de voto pelas ações preferenciais, também não há reparos a fazer. Como contrapartida das prerrogativas patrimoniais que detêm em face das ações ordinárias do capital da empresa, as ações preferenciais, em princípio, possuem restrições quanto ao direito de voto. Todavia, adquirem esse direito na hipótese do art. 111, § 1º, da Lei das S.A., ou seja, quando “a companhia, pelo prazo previsto no estatuto, não superior a 3 (três) exercícios consecutivos, deixar de pagar os dividendos fixos ou mínimos a que fizerem jus”. O direito é conservado até o pagamento dos dividendos atrasados. No caso dos autos, essa ausência de pagamento foi verificada nos exercícios de 2001, 2002 e 2003. Logo, foi descumprida a prioridade patrimonial, sendo concedido aos preferencialistas o direito a voto até então limitado ou suprimido. Todavia, não se exige que a aquisição do direito ao voto seja divulgada por ocasião da convocação da AGO. Além do cumprimento das formalidades do art. 133 da Lei n. 6.404/1976, o art. 124 arrola as informações que devem constar da convocação para a assembleia e não inclui a informação pretendida pelos recorrentes: Art. 124 - A convocação far-se-á mediante anúncio publicado por 3 (três) vezes, no mínimo, contendo, além do local, data e hora da assembléia, a ordem do dia, e, no caso de reforma do estatuto, a indicação da matéria. A publicidade que informa o regramento das sociedades diz respeito à divulgação de atos e informações, e não de direitos legalmente expressos. Como bem explicitado na sentença, o chamado voto contingente é adquirido pela simples configuração fática da hipótese legal (art. 111, § 1º, da Lei das S.A.). Transcorrido o prazo sem que haja pagamento dos dividendos, o direito de voto é adquirido de forma automática e imediata, sendo desnecessário informar aos acionistas por ocasião da convocação para a assembleia. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 353 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O detentor da ação preferencial que não recebeu seus dividendos conhece essa situação e deve, no próprio interesse, exercer o direito que a lei lhe concede. Ao subscrever quotas de capital, o acionista precisa conhecer as particularidades das ações que adquire, não podendo arguir o desconhecimento dos termos da lei. Logo, a não comunicação do direito de voto aos detentores das ações preferenciais não enseja a nulidade da assembleia realizada. IV - Conclusão no tocante ao recurso dos autores Todas as questões abordadas no recurso especial foram primorosamente tratadas na sentença e no acórdão, julgados que devem ser mantidos na sua inteireza, com o desprovimento do presente recurso. RECURSO ESPECIAL DE MATERNIDADE OCTAVIANO NEVES S/A I - Art. 118 da Lei das S.A. O acórdão recorrido decidiu pela nulidade da aprovação de contas, questão deliberada na AGO ora arguida. A recorrente pretende a reforma desse entendimento, aduzindo ser permitido aprovar contas dos administradores por voto do acordo de acionistas. O acordo de acionistas, expressamente permitido no art. 118 da Lei das S.A., é o pacto celebrado por acionistas em que é definido como cada parte deve exercer determinados direitos sociais. O acordo possibilita a convergência dos interesses dos acionistas da sociedade anônima, assegurando-lhes poder de controle. Leciona Modesto Carvalhosa: Trata-se o acordo de acionistas de um contrato submetido às normas comuns de validade de todo negócio jurídico privado, concluído entre acionistas de uma mesma companhia, tendo por objeto a regulação do exercício dos direitos referentes a suas ações, tanto no que se refere ao voto como à negociabilidade das mesmas. (Acordo de Acionistas. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 9.) O acordo pode ser de comando e defesa, de bloqueio ou de votos em bloco. No presente caso, merece atenção o conteúdo do objeto do acordo de acionistas para votos em bloco. 354 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA O voto é o instrumento de aferição do entendimento predominante entre os acionistas com direito de participar das deliberações sociais. Há distinção entre o voto de vontade, que envolve manifestação de vontade, e o voto de verdade, que envolve a apreciação do sócio quanto à correspondência do documento em apreciação e a realidade do objeto correspondente: Acerca do tema, Fábio Ulhôa leciona: Nem todo voto é uma manifestação de vontade. Quando a apreciação tem por objeto as demonstrações financeiras, as contas dos administradores e os laudos de avaliação, o voto exterioriza, a rigor, o entendimento do acionista quanto à correspondência entre o conteúdo desses documentos e a realidade. A aprovação significa que o acionista os considera fiéis ao respectivo objeto (o balanço retrata o patrimônio e seus desdobramentos, a prestação de contas indica a regularidade dos atos de administração, o laudo apresenta o valor de mercado do bem avaliado etc.), e a reprovação, o inverso. Em vista disso, podem-se configurar dois tipos de voto de acionistas, o de vontade e o de verdade. A distinção é muito importante, porque possibilita distinguir entre a negociação lícita do exercício do direito de voto (que somente pode dizer respeito à manifestação de vontade) e o crime de venda de voto, tipificado no art. 177, § 2º, do CP (referente à de verdade). (Curso de Direito Comercial, vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 309.) Adiante, sintetiza: O voto pode ser “de vontade” ou “de verdade”. No primeiro, o acionista manifesta sua opção pela alternativa que mais lhe interessa entre as abertas na apreciação da matéria. No último, exterioriza o seu entendimento acerca da fidelidade, ou não, do documento em apreciação ao seu correspondente objeto. Ao dispor acerca do acordo de acionistas, o jurista apregoa: Em princípio, os acionistas podem contratar sobre quaisquer assuntos relativos aos interesses comuns que os unem, havendo, a rigor, um único tema excluído do campo de contratação válida: a venda de voto. É nula a cláusula de acordo de acionista que estabeleça, por exemplo, a obrigação de votar sempre pela aprovação das contas da administração, das demonstrações financeiras ou do laudo de avaliação de bens ofertados à integralização do capital social. Também é nula a estipulação de um acionista votar segundo a determinação de outro. Quanto ao mais, inexiste vedação legal. Assim, sobre o exercício do voto de vontade e demais aspectos das relações societárias, os acionistas podem livremente entabular as tratativas que reputarem oportunas à adequada composição dos seus interesses (op. cit., p. 315). RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 355 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A doutrina declara a invalidade do acordo de acionistas que tenha por objeto o chamado voto de verdade, aquele que declara a legitimidade dos atos dos administradores. Essa é a linha de entendimento de Modesto Carvalhosa: [...] a convenção de voto não pode ter por objeto voto de verdade, ou seja, aquele que é meramente declaratória da legitimidade dos atos dos administradores. Tal convenção constitui fraude à lei, pois não se pode predeterminar, através do voto, a aprovação de atos de gestão, no pressuposto de sua inconformidade com o interesse social, o interesse do estado e dos acionistas uti socii. Restrito o objeto do acordo ao voto de vontade, este poderá abranger qualquer matéria de natureza funcional [...], política [...] ou estrutural [...] (op. cit., p. 77). Tratando das matérias que podem ser objeto do acordo de acionistas, José Waldecy Lucena também discute a vedação aos acordos das declarações de verdade: Filiamo-nos à segunda corrente, assim entendendo que quaisquer matérias podem ser objeto de acordos entre os acionistas, contanto que, como pactos parassociais que são, obviamente não alterem o estatuto social, e, muito menos, contenham disposições contra legem. Costumam os autores, outrossim referir-se às matérias que não podem ser objeto de acordo de acionistas. Assim, Celso de Albuquerque Barreto listou os seguintes casos: (...) acordos que tenham por objeto as declarações de verdade (aprovação de contas, etc.). (Das sociedades anônimas, vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 1.135-1.136.) Não se pode permitir a predeterminação do voto sobre as declarações de verdade, pois, tratando-se de forma de fiscalização dos atos de administração, não deve ser exercida nos interesses de determinado grupo de acionistas. Constatado que o voto do acordo de acionistas foi pela aprovação das contas dos administradores da recorrente, deve ser reconhecida a sua nulidade, nos termos do acórdão recorrido. II - Conclusão no tocante ao recurso da maternidade Deve ser mantido o acórdão atacado com o desprovimento do recurso especial. 356 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA CONCLUSÃO Ante o exposto, nego provimento aos recursos especiais. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.161.941-DF (2009/0204609-0) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: Juliana Almeida e Araújo e outro Advogado: Renato Oliveira Ramos Recorrido: Casanova Trajes A Rigor e Promoções S/C Ltda Advogado: André Vicente Achefer Quintaes e outro(s) EMENTA Recurso especial. Direito do Consumidor. Indenização por danos morais e materiais. Entrega de vestido de noiva defeituoso. Natureza. Bem durável. Art. 26, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor. Prazo decadencial de noventa dias. 1. A garantia legal de adequação de produtos e serviços é direito potestativo do consumidor, assegurado em lei de ordem pública (arts. 1º, 24 e 25 do Código de Defesa do Consumidor). 2. A facilidade de constatação do vício e a durabilidade ou não do produto ou serviço são os critérios adotados no Código de Defesa do Consumidor para a fixação do prazo decadencial de reclamação de vícios aparentes ou de fácil constatação em produtos ou serviços. 3. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca 30 (trinta), em se tratando de produto não durável, e em 90 (noventa) dias, em se tratando de produto durável (art. 26, incisos I e II, do CDC). 4. O início da contagem do prazo para os vícios aparentes ou de fácil constatação é a entrega efetiva do produto (tradição) ou, no caso RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 357 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de serviços, o término da sua execução (art. 26, § 1º, do CDC), pois a constatação da inadequação é verificável de plano a partir de um exame superficial pelo “consumidor médio”. 5. A decadência é obstada pela reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca (art. 26, § 2º, inciso I, do CDC), o que ocorreu no caso concreto. 6. O vestuário representa produto durável por natureza, porque não se exaure no primeiro uso ou em pouco tempo após a aquisição, levando certo tempo para se desgastar, mormente quando classificado como artigo de luxo, a exemplo do vestido de noiva, que não tem uma razão efêmera. 7. O bem durável é aquele fabricado para servir durante determinado transcurso temporal, que variará conforme a qualidade da mercadoria, os cuidados que lhe são emprestados pelo usuário, o grau de utilização e o meio ambiente no qual inserido. Por outro lado, os produtos “não duráveis” extinguem-se em um único ato de consumo, porquanto imediato o seu desgaste. 8. Recurso provido para afastar a decadência, impondo-se o retorno dos autos à instância de origem para a análise do mérito do pedido como entender de direito. ACÓRDÃO A Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Brasília (DF), 5 de novembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 14.11.2013 358 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial interposto com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito e Territórios assim ementado: Civil. Indenização por danos materiais e morais. Relação de consumo. Alegação de entrega pelo fornecedor de vestuário - Vestido de noiva com defeito. Bem não durável. Art. 26, I, do CDC. Decadência. 1 - Nos termos do art. 26, I, do CDC, o consumidor tem 30 dias para reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação em se tratando de serviço ou de produto não durável, sob pena de decair do direito de fazê-lo. 2 - Recurso não provido (e-STJ fl. 162 - grifou-se). Na origem, Juliana Almeida e Araújo e Outra, ora recorrentes, ajuizaram ação declaratória de inexistência de débito cumulada com indenização por danos morais e materiais em desfavor de Casanova Trajes A Rigor e Promoções S/C Ltda., sob a alegação de que a empresa foi contratada para confeccionar um vestido de noiva, entregando mercadoria com inúmeros defeitos, diverso do produto encomendado e de qualidade inferior à contratada. As autoras aduziram na inicial que (...) A primeira Autora, em razão do seu casamento realizado no dia 5.8.2006, comprou da Ré, sob encomenda, um vestido de noiva branco em zibeline e renda cashmere, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). O referido valor foi dividido em 6 (seis) parcelas, sendo a primeira de R$ 2.000,00 (dois mil reais) e as restantes em R$ 1.600,00 (hum mil e seiscentos reais. E o pagamento foi efetuado por intermédio de cheques emitidos pela segunda Autora, mãe da primeira, todos com data de vencimento para o dia 15 de cada mês, a partir de abril/2006 (doc. 02). Chegando aqui, as Autoras foram obrigadas a contratar, urgentemente, um respeitado estilista em Brasília - Sr. Paulo Araújo - para reparar e reformar o vestido, especificamente para substituir o tecido, aplicar plissé e refazer o acabamento em todo o contorno da barra, conforme se vê da nota fiscal em anexo (...) Em suma, diante da má qualidade do serviço prestado, as Autoras sustaram o pagamento dos últimos cheques entregues à Ré, no valor total de R$ 3.200,00 (três mil e duzentos reais) e desembolsaram R$ 3.900,00 (três mil e novecentos reais) para reparar e deixar o vestido em perfeito estado (e-STJ fl. 6 - grifou-se). RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 359 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Afirmaram que na “última prova, dia 27.7.2006”, constataram graves defeitos no vestido contratado, e, apesar da reclamação, não houve nenhum reparo imediato, motivo pelo qual, após a cerimônia de casamento, notificaram formalmente a ré, em 21.8.2006, acerca dos alegados vícios. A contranotificação da fornecedora, negando a existência de possíveis vícios, foi conhecida pelas autoras em 31.8.2006, tendo sido a presente ação judicial proposta em 4.9.2006. Ao final, requereram a procedência dos pedidos para ver declarada a inexistência de crédito em favor da ré, a anulação dos dois últimos cheques emitidos em pagamento dos serviços, a condenação da requerida ao pagamento da quantia de R$ 700,00 (setecentos reais) a título de danos materiais ou, subsidiariamente, ao pagamento de R$ 3.900,00 (três mil e novecentos reais), caso não anulados os cheques sustados, bem como indenização por danos morais no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) para cada parte lesada (noiva e mãe da noiva). O juízo de primeira instância extinguiu o feito, com resolução do mérito, por reconhecer a decadência do direito das autoras, com fulcro no art. 269, IV, do Código de Processo Civil, em virtude da caducidade do direito pleiteado, à luz do art. 26, inciso I, do CDC, que prevê o prazo de 30 (trinta) dias para reclamação de vícios aparentes em produtos e serviços não duráveis, conclusão que restou mantida pelo Tribunal de origem, nos termos da ementa já transcrita. Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ fls. 181-185). Nas razões do recurso especial alegam as recorrentes, em síntese, violação dos seguintes dispositivos legais e suas respectivas teses: (i) artigo 535, do Código de Processo Civil, por ausência de negativa jurisdicional; (ii) artigo 26, incisos I e II, do Código de Defesa do Consumidor, sustentando que artigo de vestuário não se enquadra na classificação de bem não durável, tido como aquele que se extingue pelo mero uso, situação incompatível com a descrita nos autos, que versa sobre defeitos ocasionados em um vestido de noiva, bem durável por natureza. Assim, incidiria, no caso concreto, o prazo decadencial de 90 (noventa) dias, não havendo falar em caducidade; (iii) artigo 26, § 2º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, alegando que a notificação extrajudicial que encaminharam à recorrida obstaria, de todo modo, o curso do prazo decadencial - que não se confundiria com causa suspensiva. E, concluem, que o direito de agir somente surgiria no momento 360 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA do recebimento da contranotificação da ré, ou seja, com a expressa negativa da recorrida em solucionar o problema, restando afastada, de um modo ou de outro, a decadência. Sem as contrarrazões, e admitido o recurso especial, ascenderam os autos a esta Corte. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): O recurso merece prosperar. Quanto à alegada violação do art. 535 do Código de Processo Civil, ao que se tem, o Tribunal de origem motivou adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entendeu cabível à hipótese. Não há falar, portanto, em negativa de prestação jurisdicional apenas pelo fato de o acórdão recorrido ter decidido em sentido contrário à pretensão da parte. No mérito, assiste razão às recorrentes. Como se sabe, a garantia legal de adequação de produtos e serviços é direito potestativo do consumidor, porquanto assegurado em lei de ordem pública (arts. 1º, 24 e 25 do Código de Defesa do Consumidor. A professora Cláudia Lima Marques, ao mencionar o regime jurídico dos vícios no Código de Defesa do Consumidor, afirma que “o novo dever legal afasta a incidência das normas ordinárias sobre vício redibitório, assim como o dever legal de informar e cooperar afasta as normas ordinárias sobre o erro. O vício, enquanto instituto do chamado direito do consumidor, é mais amplo e seu regime mais objetivo: não basta a simples qualidade média do produto, é necessária a sua adequação objetiva, a possibilidade de que aquele bem satisfaça a confiança que o consumidor nele depositou, sendo o vício oculto ou aparente. Da mesma maneira, os legitimados passivamente, isto é, os responsáveis, são agora todos os fornecedores envolvidos na produção e não só o cocontratante”. (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor - Editora Revista dos Tribunais, 3ª Edição - art. 18 - p. 483 - grifou-se) A facilidade de constatação do vício e a durabilidade ou não do produto ou serviço representam no Código de Defesa do Consumidor os critérios legais para a fixação do prazo decadencial para reclamação de vícios aparentes ou de RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 361 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA fácil constatação. Assim, se o produto for durável, o prazo será de 90 (noventa) dias, caso contrário, se não durável, o prazo será de 30 (trinta) dias, como se vê da literalidade do seguinte dispositivo: Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1º Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. § 2º Obstam a decadência: I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; II - (Vetado). III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento. § 3º Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito. O acórdão recorrido, ao valorar as premissas fáticas postas nos autos, assentou que o vestuário teria natureza de bem não durável, motivo pelo qual aplicou o prazo decadencial de 30 (trinta) dias previsto no art. 26, inciso I, do CDC, extinguindo o feito com resolução do mérito por terem sido ultrapassados 4 (quatro) dias daquele prazo, como se afere da fundamentação que ora se transcreve: (...) Todavia, todos os bens, sejam duráveis ou não, se extinguem com o uso, mesmo que seja a longo prazo. Tal classificação, que não está explícita na legislação, mas fora elaborada pela jurisprudência, estabelece os lindes da questão, adotando o entendimento de que o vestuário se subsume à categoria de bem não durável, embora, por certo, não se possa falar em extinção imediata da coisa.(...) Nessa linha de entendimento, adotando o critério de ser o vestuário produto não durável, mormente em se tratando de vestido de noiva cujo uso se extingue com a realização da cerimônia e sendo a autora consumidora final do produto, não havendo falar portanto em reutilização do vestido, correto o entendimento monocrático no sentido de ter ocorrido a decadência: “Neste contexto fático-legal, tem-se evidenciada a caducidade do direito vindicado na presente ação, mesmo a se considerar a notificação encaminhada pelas autoras como causa suspensiva 362 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA do curso do prazo decadencial, reiniciando, por sua vez, após a contra-notificação conhecida pelas autoras em 31.8.2006” (fl. 122), haja vista o determinado pelo art. 26, I do CDC (e-STJ fl. 165 - grifou-se). Tal conclusão, contudo, não se sustenta no ordenamento pátrio. Entende-se por produto durável aquele que, como o próprio nome consigna, não se extingue pelo uso, levando certo tempo para se desgastar. Ao consumidor é facultada a utilização do bem conforme sua vontade e necessidade, sem, todavia, se olvidar que nenhum produto é eterno, pois, de um modo ou de outro, todos os bens tendem a um fim material em algum momento, já que sua existência está atrelada à sua vida útil. O aspecto de durabilidade do bem impõe reconhecer que um dia todo bem perderá sua função, deixando de atender à finalidade à qual um dia se destinou. O bem durável é aquele fabricado para servir durante determinado tempo, que variará conforme a qualidade da mercadoria, os cuidados que lhe são emprestados pelo usuário, o grau de utilização e o meio ambiente no qual inserido. Portanto, natural que um terno, um eletrodoméstico, um automóvel ou até mesmo um livro, à evidência exemplos de produtos duráveis, se desgastem com o tempo, já que a finitude, é de certo modo, inerente a todo bem. Por outro lado, os produtos não duráveis, tais como alimentos, os remédios e combustíveis, em regra in natura, findam com o mero uso, extinguindo-se em um único ato de consumo. O desgaste é, por consequência, imediato. Na hipótese dos autos, há que se reconhecer que o bem em objeto de análise é um vestido de noiva, incluído na classificação de bem de uso especial, tidos como “aqueles bens de consumo com características singulares e/ou identificação de marca, para os quais um grupo significante de compradores está habitualmente desejoso e disposto a fazer um especial esforço de compra (exemplos: marcas e tipos específicos de artigos de luxo, peças para aparelhos de alta fidelidade, equipamento fotográfico”. ( José Geraldo Brito Filomeno, Manual de Direitos do Consumidor, 10ª Edição, São Paulo, Editora Atlas S.A., 2010, p. 47) Logo, o vestuário, mormente um vestido de noiva, é um bem “durável”, pois não se extingue pelo mero uso. Aliás, é notório que por seu valor sentimental há quem o guarde para a posteridade, muitas vezes com a finalidade de vê-lo reutilizado em cerimônias de casamento por familiares (filhas, netas e bisnetas) de uma mesma estirpe. Por outro lado, há pessoas que o mantém como lembrança da escolha de vida e da emoção vivenciada no momento do enlace amoroso, enquanto há RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 363 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA aquelas que guardam o vestido de noiva para uma possível reforma, seja por meio de aproveitamento do material (normalmente valioso), do tingimento da roupa (cujo tecido, em regra, é de alta qualidade) ou, ainda, para extrair lucro econômico, por meio de aluguel (negócio rentável e comum atualmente). Desse modo, o vestido de noiva jamais se enquadraria como bem não durável, porquanto não consumível, tendo em vista não se exaurir no primeiro uso ou em pouco tempo após a aquisição, para consignar o óbvio. Aliás, como claramente se percebe, a depender da vontade da consumidora, o vestido de noiva, vestimenta como outra qualquer, sobreviverá a muitos usos. Com efeito, o desgaste de uma roupa não ocorre em breve espaço de tempo, em especial quando cediço que um dos elementos estimuladores do consumo é a qualidade da roupa. Não é inapropriado dizer que muitas vezes há roupas mais duradouras que produtos eletroeletrônicos (também considerados duráveis) e, não por outro motivo, as roupas, em geral, possuem instruções de uso e lavagem a fim de lhe permitir longa vida útil, ou seja, maior durabilidade. De fato, tanto as roupas são bens considerados duráveis que, não raro, são objeto de doações, pois, mesmo já gastas ainda preservam o estado de uso, em especial para aqueles com menor capacidade econômica, o que deve ser sempre estimulado em um país cuja miserabilidade cresce a cada dia. Ademais, é inegável existirem roupas que têm valor sentimental incomensurável por terem pertencido a membros da família, muitos já falecidos, ou ainda, por terem sido adquiridas na infância. No particular, impõe-se reconhecer que todo produto possui uma “vida útil”. Todavia, o produto durável não tem uma vida efêmera, muito “embora não se exija que seja prolongada, na medida em que é do próprio capitalismo que vivemos que cedo ou tarde todos e qualquer produto ou serviço seja substituído por uma nova aquisição que venha alimentar o ciclo de consumo”. (Caio Augusto Silva Santos e Paulo Henrique Silva Godoy, em obra Coordenada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, O Novo Código Civil – Interfaces no Ordenamento Jurídico Brasileiro – Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2004, p. 99) Registre-se, por oportuno, os inúmeros exemplos de resistência ao tempo das roupas, citando-se, a título ilustrativo: o manto do imperador D. Pedro II, até hoje peça das mais apreciadas do acervo do Museu Imperial de PetrópolisRJ; os vestidos de Carmen Miranda, expostos, inclusive, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM); as vestimentas oficiais do ex-Presidente 364 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Juscelino Kubitschek mantidas no Museu do Catetinho, em Brasília-DF, e, ainda, as vestes intactas do Papa João XXIII, cujo corpo está em exposição permanente em um sarcófago de vidro na Basílica de São Pedro no Vaticano. Em consequência, o prazo decadencial incidente no caso em apreço é o aplicável aos bens duráveis, qual seja, o de 90 (noventa) dias, versando hipótese de vício aparente ou de fácil constatação na data da entrega (tradição), conhecido como aquele que não exige do consumidor médio nenhum conhecimento especializado ou apreciação técnica (perícia), por decorrer de análise superficial do produto (simples visualização ou uso), cuja constatação é verificável de plano, a partir de um simples exame do bem ou serviço, por mera experimentação ou por “saltar aos olhos” ostensivamente sua inadequação. Por outro lado, o CDC estabelece que o prazo decadencial se inicia a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução do serviço (art. 26, § 1º, do CDC), diferentemente dos vícios ocultos, em que o prazo começa a partir de sua manifestação (art. 26, §§ 1º e 3º do CDC). Alegam as autoras que o vestido de noiva entregue não estava em perfeito estado de uso, nem mesmo representava o modelo previamente combinado pelas partes, frustrando as justas expectativas da consumidora às vésperas do evento. Desse modo, por apresentar defeitos substanciais de confecção, precisou buscar outro profissional para realizar os consertos indispensáveis à utilização da roupa pela noiva na cerimônia de casamento. Dentre os defeitos alegados pelas autoras, destacam-se: “o decote foi abaixado, a frente do vestido foi trocada, o forro foi todo trocado, foi usado outro véu, foi colocado cetim sem costura, o babado foi adaptado, alguns tecidos foram trocados (estavam do lado avesso), entre outras alterações” (e-STJ fl. 7) São irrefutáveis a angústia e a frustração de qualquer pessoa que contrate um vestido para uma ocasião especial, tal como o dia da cerimônia do casamento, cujos preparativos permeiam expectativas e sonhos das partes envolvidas, inclusive de familiares e amigos. A situação de inadequação que desafia a responsabilidade por vícios do produto ou serviço apta a merecer reparos pode se referir tanto à quantidade como à qualidade da mercadoria cuja utilização se reputa imprópria ao consumo, estando estampadas nos artigos 18 a 25 do Código de Defesa do Consumidor as alternativas de substituição do produto, o abatimento proporcional do preço, a reexecução do serviço, ou até mesmo a resolução do contrato, com a restituição do preço. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 365 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A tradição da mercadoria defeituosa foi realizada uma semana antes do matrimônio, afirmando as recorrentes que o resultado do objeto do contratado violou a garantia legal de adequação inerente a qualquer produto posto no mercado, deixando de satisfazer a necessidade do destinatário final, o consumidor (art. 24 do CDC), o que deve ser demonstrado na instrução do feito. Saliente-se que tal insurgência há de ser exercida dentro dos exíguos prazos previstos no CDC (art. 26, incs. I e II). No caso, as autoras insurgiram-se tempestivamente, motivo pelo qual não merece guarida a tese da decadência. Esta Corte já teve a oportunidade de se manifestar sobre a incidência dos prazos decadenciais nas hipóteses de produtos duráveis e não duráveis, que são distintos no Código de Defesa do Consumidor, como se vê da seguinte ementa: Direito do Consumidor. Ação de preceito cominatório. Substituição de mobiliário entregue com defeito. Vício aparente. Bem durável. Ocorrência de decadência. Prazo de noventa dias. Art. 26, II, da Lei n. 8.078/1990. Doutrina. Precedente da Turma. Recurso provido. I - Existindo vício aparente, de fácil constatação no produto, não há que se falar em prescrição quinquenal, mas, sim, em decadência do direito do consumidor de reclamar pela desconformidade do pactuado, incidindo o art. 26 do Código de Defesa do Consumidor. II - O art. 27 do mesmo diploma legal cuida somente das hipóteses em que estão presentes vícios de qualidade do produto por insegurança, ou seja, casos em que produto traz um vicio intrínseco que potencializa um acidente de consumo, sujeitando-se o consumidor a um perigo iminente. III - Entende-se por produtos não-duráveis aqueles que se exaurem no primeiro uso ou logo após sua aquisição, enquanto que os duráveis, definidos por exclusão, seriam aqueles de vida útil não-efêmera (REsp n. 114.473-RJ, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 24.3.1997, DJ 5.5.1997 - grifou-se). Em outra oportunidade, a Ministra Fátima Nancy Andrighi, em laborioso voto, sintetizou, de forma didática, as regras do CDC ora em estudo, reconhecendo o direito do consumidor de exigir, dentro do prazo legal, a superação de eventuais vícios de qualidade ou quantidade, bem como que a garantia legal de adequação não afasta nem conflita com a garantia contratual eventualmente pactuada entre as partes: Consumidor. Responsabilidade pelo fato ou vício do produto. Distinção. Direito de reclamar. Prazos. Vício de adequação. Prazo decadencial. Defeito de segurança. 366 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Prazo prescricional. Garantia legal e prazo de reclamação. Distinção. Garantia contratual. Aplicação, por analogia, dos prazos de reclamação atinentes à garantia legal. - No sistema do CDC, a responsabilidade pela qualidade biparte-se na exigência de adequação e segurança, segundo o que razoavelmente se pode esperar dos produtos e serviços. Nesse contexto, fixa, de um lado, a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, que compreende os defeitos de segurança; e de outro, a responsabilidade por vício do produto ou do serviço, que abrange os vícios por inadequação. - Observada a classificação utilizada pelo CDC, um produto ou serviço apresentará vício de adequação sempre que não corresponder à legítima expectativa do consumidor quanto à sua utilização ou fruição, ou seja, quando a desconformidade do produto ou do serviço comprometer a sua prestabilidade. Outrossim, um produto ou serviço apresentará defeito de segurança quando, além de não corresponder à expectativa do consumidor, sua utilização ou fruição for capaz de adicionar riscos à sua incolumidade ou de terceiros. - O CDC apresenta duas regras distintas para regular o direito de reclamar, conforme se trate de vício de adequação ou defeito de segurança. Na primeira hipótese, os prazos para reclamação são decadenciais, nos termos do art. 26 do CDC, sendo de 30 (trinta) dias para produto ou serviço não durável e de 90 (noventa) dias para produto ou serviço durável, ambos os prazos contadas da entrega efetiva do produto ou do término da execução do serviço. A pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou serviço vem regulada no art. 27 do CDC, prescrevendo em 05 (cinco) anos. - A garantia legal é obrigatória, dela não podendo se esquivar o fornecedor. Paralelamente a ela, porém, pode o fornecedor oferecer uma garantia contratual, alargando o prazo ou o alcance da garantia legal. - A lei não fixa expressamente um prazo de garantia legal. O que há é prazo para reclamar contra o descumprimento dessa garantia, o qual, em se tratando de vício de adequação, está previsto no art. 26 do CDC, sendo de 90 (noventa) ou 30 (trinta) dias, conforme seja produto ou serviço durável ou não. - Diferentemente do que ocorre com a garantia legal contra vícios de adequação, cujos prazos de reclamação estão contidos no art. 26 do CDC, a lei não estabelece prazo de reclamação para a garantia contratual. Nessas condições, uma interpretação teleológica e sistemática do CDC permite integrar analogicamente a regra relativa à garantia contratual, estendendo-lhe os prazos de reclamação atinentes à garantia legal, ou seja, a partir do término da garantia contratual, o consumidor terá 30 (bens não duráveis) ou 90 (bens duráveis) dias para reclamar por vícios de adequação surgidos no decorrer do período desta garantia. Recurso especial conhecido e provido (REsp n. 967.623-RJ, julgado em 16.4.2009, DJe 29.6.2009 - grifou-se). RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 367 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Extrai-se dos autos que a última prova do vestido ocorreu no dia 27.7.2006, quando o vestido supostamente danificado foi entregue às consumidoras, tendo a empresa recorrida sido notificada extrajudicialmente dos alegados vícios em 21.8.2006. Por sua vez, as autoras foram cientificadas da contranotificação em 31.8.2006, tendo sido a presente ação judicial proposta em 4.9.2006. Como se vê, qualquer que seja a interpretação que se confira ao verbo obstar constante do art. 26 do CDC, no presente caso não há falar em decadência, porquanto não transcorrido o prazo de 90 (noventa) dias. Portanto, independentemente de se reconhecer a suspensão ou a interrupção da noventena legal, o prazo foi efetivamente “obstado” pela reclamação formalizada pela notificação extrajudicial da recorrida. Consigne-se que a reclamação deve ser comprovada pelo consumidor para que possa se valer do benefício, não exigindo a lei meios específicos para tanto. Segundo Héctor Valverde Santana, “não há uma forma preestabelecida para realizar a reclamação. Efetivamente, pode o consumidor, ou quem o represente legalmente, apresentar sua reclamação perante o fornecedor por todos os meios possíveis, seja verbal, pessoalmente ou por telefone, nos Serviços de Atendimento ao Cliente (SAC), por escrito, mediante instrumento enviado pelo cartório de títulos e documentos, carta registrada ou simples, encaminhada pelo serviço postal ou entregue diretamente pelo consumidor, e-mail, fax, dentre outros” (Prescrição e Decadência nas Relações de Consumo, São Paulo, RT, 2002, p. 128). É recomendável que a reclamação “seja documentada (carta com aviso de recebimento - AR), podendo ser feita junto a qualquer fornecedor que, de alguma forma, interveio na cadeia de consumo e tenha se beneficiado da venda (produtor, comerciante, importador, fabricante), não havendo na lei qualquer ressalva a respeito”. (Fábio Henrique Podestá, Código de Defesa do Consumidor Comentado, Editora Revista dos Tribunais, p. 171) Contudo, esta Corte já se manifestou no sentido de que “a reclamação verbal seria suficiente a obstar os efeitos da causa extintiva (decadência) se efetivamente comprovada” (REsp n. 156.760-SP, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 4.3.2004, DJ 22.3.2004 - grifou-se), desde que direcionada à quem interessa, já que “não obsta a decadência a simples denúncia oferecida oferecida ao Procon, sem que se formule pretensão, e para a qual não há cogitar de resposta” (REsp n. 65.498-SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 11.11.1996, DJ 16.12.1996). 368 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No tocante à controvérsia doutrinária acerca do real significado da expressão “obstam a decadência” (art. 26, § 2º do CDC) a melhor doutrina assegura maior amplitude à tutela dos consumidores, cuja hipossuficiência, em regra, norteia as opções do legislador. Portanto, assiste razão àqueles que entendem que o termo “obstar” versa sobre uma modalidade de interrupção do prazo decadencial, a exemplo de Cláudia Lima Marques, Luiz Edson Fachin, Luiz Daniel Pereira Cintra e Odete Novais Carneiro Queiroz, já que o prazo anterior seria desconsiderado, beneficiando, sobremaneira, o consumidor, que disporia novamente do prazo por completo para exercitar seu direito. Nesse sentido, Rizzatto Nunes observa que “a inserção do termo ‘obstam’ foi justamente para ‘fugir da discussão – especialmente doutrinária – a respeito da possibilidade ou não de que um prazo decadencial pudesse suspender-se ou não, interromper-se ou não, o legislador, inteligentemente, lançou mão do verbo ‘obstar’”. (Curso de Direito do Consumidor, Editora Saraiva, São Paulo, 2005, p. 368) A propósito, Héctor Valverde Santana apresenta forte argumento em favor da tese da interrupção, como salientado por Leonardo de Medeiros Garcia: (...) Segundo o autor, o parágrafo único do art. 27 do CDC foi vetado pelo Presidente da República por reconhecer nele grave defeito de formulação. O dispositivo censurado dizia que seria interrompida a prescrição nas hipóteses do § 1º do art. 26 do CDC (houve um erro de remissão, já que pretendia se referir às causas obstativas do § 2º do art. 26 do CDC). (Direito do Consumidor, Editora Impetus, Niterói, RJ, 2008, p. 167) Não se olvida, ademais, que a interpretação que entende como suspensão, por ser mais prejudicial aos consumidores, deve ser descartada, como acertadamente aponta lição do Ministro Herman Benjamin: (...) Em que pese a dificuldade que a matéria comporta, a melhor posição, considerando a finalidade de proteção ao consumidor, e que os prazos decadenciais do CDC são bastante exíguos, é no sentido de se reiniciar a contagem dos prazos decadenciais a partir da resposta negativa do fornecedor (incido I) ou da data em que se promove o encerramento do inquérito civil (inciso III). Obstar, portanto, tem o sentido de invalidar o prazo já transcorrido, o que se assemelha ou se aproxima das hipótese de interrupção. (Manual de direito do consumidor, Revista dos Tribunais, 2008, p. 165) RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 369 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Dessa forma, afasto as conclusões do juízo de primeira instância, mantidas pelo Tribunal de origem, de que, (...) Neste contexto, fático-legal, tem-se evidenciada a caducidade do direito vindicado na presente ação, mesmo a se considerar a notificação encaminhada pelas autoras como causa suspensiva do curso do prazo decadencial, reiniciado, por sua vez, após a contra-notificação conhecida pelas autoras em 31.8.2006. Conforme elucida o Eminente Juiz de Direito James Eduardo de Moraes de Oliveira, em seu Código de Defesa do Consumidor, Ed Atlas 2005, “A reclamação formulada pelo consumidor acerca dos vícios constatados no produto ou no serviço e o inquérito civil instaurado pelo Ministério Público constituem causas suspensivas - e não interruptivas - da decadência. Isso significa que, uma vez expirada a causa obstativa, o prazo decadencial retoma seu curso até alcançar os 30 ou 90 dias previstos no caput do art. 26”. Na verdade, com o reinício da contagem do prazo mencionado, as autoras ajuizaram a demanda em 8.9.2006, portanto, a destempo vez que o prazo fatal terminou em 4.9.2006 (...) (e-STJ fls. 124-126 - grifou-se). Desse modo, afasto a decadência do direito potestativo de reclamar os eventuais vícios do vestido de noiva, reputado impróprio ao uso (arts. 18, § 6º, e 20, § 2º, do CDC), equivocadamente declarada pelo Tribunal de origem, por incidir, no caso concreto, o prazo de 90 (noventa) dias pertinentes aos “bens duráveis”, nos termos do art. 26, inciso II, do CDC. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial e determino o retorno dos autos às instâncias de origem, para que analise o mérito do pedido de indenização material e moral como entender de direito. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.191.612-PA (2010/0078010-9) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: Sociedade Civil Instituto Vera Cruz Advogado: Marcelo Augusto Teixeira de Brito Nobre e outro(s) Recorrido: Associação Universitária Interamericana Advogado: Haroldo Guilherme Pinheiro da Silva e outro(s) 370 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA EMENTA Recurso especial. Direito Marcário. Colidência entre nome empresarial e marca. Nome empresarial. Proteção no âmbito do Estado em que registrado. Princípio da anterioridade do registro no INPI. Mitigação pelos princípios da territorialidade e da especialidade. Recurso especial provido. 1 - Conflito em torno da utilização da marca “Vera Cruz” entre a empresa sediada em São Paulo que a registrou no INPI em 1986 e a sociedade civil que utiliza essa denominação em seu nome empresarial devidamente registrado na Junta Comercial do Estado do Pará desde 1957. 2 - Peculiaridade da colidência estabelecida entre a marca registrado no INPI e o nome empresarial registrado anteriormente na Junta Comercial competente. 3 - Aferição da colidência não apenas com base no critério da anterioridade do registro no NPI, mas também pelos princípios da territorialidade e da especialidade. 4 - Precedentes específicos desta Corte, especialmente o acórdão no Recurso Especial n. 1.232.658-SP (Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12.6.2012, DJe 25.10.2012): “Para a aferição de eventual colidência entre marca e signos distintivos sujeitos a outras modalidades de proteção - como o nome empresarial e o título de estabelecimento - não é possível restringir-se à análise do critério da anterioridade, mas deve também se levar em consideração os princípios da territorialidade e da especialidade, como corolário da necessidade de se evitar erro, dúvida ou confusão entre os usuários”. 5 - Recurso especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, A Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 371 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Brasília (DF), 22 de outubro de 2013 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 28.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial interposto por Sociedade Civil Instituto Vera Cruz com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas a e c da Constituição da República contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que restou assim ementado (fl. 282): Processual Civil. Apelação cível. Propriedade e registro de marca. Princípio da anterioridade. Direito adquirido, ato jurídico perfeito e segurança jurídica. I Apelada utilizava marca desde 1957, mas nunca requereu no órgão competente o respectivo registro; II Apelante tem registro de propriedade da marca em questão desde 1979, circunstância que não foi impugnada pela recorrente; III Notificação extrajudicial entregue à recorrida datada de 1993. IV Decurso in albis do prazo para apelada impugnar o registro requerido pela recorrente. Registro válido. Utilização indevida. Indenização cabível. Decisão Unânime. Opostos embargos de declaração, estes restaram rejeitados nos seguintes termos (fl. 324): Processual Civil Embargos de declaração Conhecimento e parcial provimento para efeitos aclaratórios I Os embargos declaratórios não devem ser utilizados para rediscussão de matéria já abordada na decisão embargada; II Conhecimento do recurso, já que presentes os pressupostos de admissibilidade; III Parcial provimento em mero efeito aclaratório, acatando a sugestão do votovista da lavra da Exma. Desembargadora Maria de Nazaré Saavedra Guimarães; IV Unânime. 372 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Consta dos autos que Associação Universitária Interamericana ajuizou ação ordinária de abstenção de uso de marca c.c. perdas e danos em desfavor de Sociedade Civil Instituto Vera Cruz. O juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido formulado na petição inicial, condenando a autora ao pagamento das custas e honorários advocatícios. Interposta apelação, o Tribunal de origem deu provimento ao recurso para determinar a cessação do uso da marca pela requerida e o pagamento de indenização a ser calculada por meio de liquidação, conforme a ementa retro transcrita. No presente recurso especial, o recorrente sustentou violação dos art. 8º do Decreto n. 5.772/1975 e do art. 59 da Lei n. 5.772/1971, além de dissídio jurisprudencial. Asseverou que tanto o registro da marca no Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI quanto o registro do nome comercial na Junta Comercial competente asseguram proteção ao seu titular e que, na hipótese de conflito de registros, prevalece o realizado em primeiro lugar. Aduziu que a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que não há ilícito e nem dever de indenizar quando o nome comercial foi registrado na Junta Comercial em momento anterior ao registro da marca perante o INPI. Requereu o provimento do recurso especial. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes Colegas, o recurso especial merece guarida. Inicialmente, vejamos o que asseverou o Tribunal de Justiça paraense quando do julgamento do recurso de apelação (fls. 284-289): (...) A Associação autora possui propriedade industrial da marca Vera Cruz desde 1986, conforme documentos acostados aos autos e, em 1993, foi feita notificação extrajudicial para que o Colégio Vera Cruz se abstivesse da utilização da referida marca. Ocorre que, consoante prova dos autos, o Colégio Vera Cruz não se manifestou sobre a notificação e continuou a utilizar a marca. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 373 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em 1986, a legislação vigente (Lei n. 5.772/1971) determinava: Art. 59. Será garantida no território nacional a propriedade da marca e o seu uso exclusivo aquele que obtiver o registro de acordo com o presente Código, para distinguir seus produtos, mercadorias ou serviços, de outros idênticos ou semelhantes, na classe correspondente à sua atividade. Parágrafo único. A proteção de que trata este artigo abrange o uso da marca em papéis, impressos e documentos relativos à atividade do titular. (SIC) Art. 64. São registráveis como marca os nomes, palavras, denominações, monogramas, emblemas, símbolos, figuras e quaisquer outros sinais distintivos que não apresentem anterioridades ou colidências com registros já existentes e que não estejam compreendidos nas proibições legais. (SIC) Restou claro que o pleito da inicial é referente à marca registrada Vera Cruz e não ao nome comercial utilizado pela instituição de ensino paraense. No que concerne a esse assunto, importante diferenciar os institutos. Conforme definição da Lei n. 9.279/1996, marca é o designativo que identifica produtos e serviços, não se confundindo com o nome empresarial ou comercial, que designa, por sua vez, o empresário e o título do estabelecimento, referido ao local da atividade econômica, ou seja, o nome jurídico da personalidade jurídica da empresa, de forma a identificar o sujeito que exerce o comércio. (http:// www.carula.hpg.ig.com.br/comercial2.htmlhttp://www.carula.hpg.ig.com.br/ comercial2.html). Nesse diapasão, a discussão é a utilização da marca Vera Cruz, pelo estabelecimento comercial paraense, em produtos como uniformes escolares, livros, apostilas, etc., já que permitiria a confusão entre as empresas que, inclusive, estão no mesmo ramo comercial. Analisando a situação por esse aspecto, é visível a probabilidade de confusão. Constam dos autos documentos comprobatórios do registro no Instituto Nacional de Propriedade Industrial da marca Vera Cruz pela apelante. Além disso, restou provado que o Colégio Vera Cruz, apelado, foi fundado em 1957, ou seja, em data anterior ao registro da marca. E, por fim, as provas concluem, pelo laudo pericial, que a recorrida reproduz total e intencionalmente a marca registrada pela recorrente. Se levarmos em consideração o sistema utilizado no Brasil, o atributivo, a prioridade é estabelecida pela data do depósito no órgão público competente. Acontece que, existem exceções a essa regra, utilizando-se o sistema declarativo, que tem em conta a utilização para aquisição da propriedade. (...) 374 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Assim sendo, pelo exposto, a propriedade da marca em questão seria de direito do Colégio Vera Cruz, quem primeiro utilizou o termo para designar seus serviços e materiais. Deve-se, entretanto, aplicar princípios legais, como direito adquirido, prescrição e ato jurídico perfeito, com o fito de garantir a segurança jurídica do ordenamento. Em virtude disso, determina-se limite temporal à preferência citada no artigo supra transcrito. Assim, a partir da ciência, pelo primeiro usuário da marca, de que esta é utilizada por outrem, devem ser tomadas providências no sentido de garantir seu direito com base na anterioridade de uso. Esse prazo é contado de formas diferentes por correntes doutrinárias divergentes: (...) Percebe-se, com isso, que o sistema pátrio protege o direito de precedência, desde que respeitados os prazos legais, afinal de contas o direito também deve primar pela segurança jurídica, garantindo os princípios constitucionais do ato jurídico perfeito e do direito adquirido. In casu, a apelada foi fundada com o nome Vera Cruz em 1957, porém, data de 1979, o primeiro registro do INPI em nome de empresa que foi incorporada pela apelante. E somente em 1993 a apelada foi notificada pelo uso irregular de marca pertencente a outrem, não tomando providências a respeito. Considerando a legislação vigente à época, qual seja, o Código de 1971, sublinha-se a jurisprudência abaixo transcrita: Marca. Registro. Promovido junto ao INPI. Prevalência sobre a “utilização prolongada”. Decorrente da adoção do nome comercial. Marca e nome submetidos a regimes jurídicos diversos. - (...) - Pelo sistema adotado pela legislação brasileira, afastou-se o prevalecimento do regime da “ocupação” ou da “utilização prolongada” como meio aquisitivo de propriedade da marca. O registro no INPI é quem confere eficácia erga omnes, atribuindo àquele que o promoveu a propriedade e o uso exclusivo da marca. Precedentes do STJ. Recurso especial conhecido e provido parcialmente. (STJ, Quarta Turma, Recurso Especial n. 52.106-SP, Relator: Barros Monteiro, data do julgamento: 17.8.1999). Pelo exposto, levando em conta o lapso temporal decorrido e a legislação vigente, restou clara a ausência de direito da apelada em requerer registro da marca Vera Cruz, já devidamente registrada pela recorrente. Deve, portanto, ser reformada a sentença no sentido de dar provimento a ação proposta, determinando a cessação de utilização, pela recorrida, da marca em questão e, ainda, o pagamento da indenização equivalente, a ser calculada conforme artigos 41, 44 e 208 da Lei n. 9.279/1996, por meio de liquidação. (grifei) RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 375 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Verifica-se, assim, do trecho do acórdão recorrido destacado, que o Tribunal de origem entendeu que, não obstante a Sociedade Civil Instituto Vera Cruz (nome de fantasia Colégio Vera Cruz e Escolinha Vera Cruz) estar registrada desde o ano de 1957, este uso não lhe atribuiu a propriedade da marca, sob os fundamentos de que a parte adversa levou a efeito o registro da marca no INPI em 1986 e que, apesar de notificada em 1993, a recorrente restou silente. Por sua vez, a recorrente vergasta o decisum recorrido com arrimo em dois argumentos. Inicialmente, a ocorrência de divergência jurisprudencial, demonstrando dissídio do acórdão recorrido com dois precedentes desta Corte que julga favoráveis a tese por ela defendida, quais sejam, Recurso Especial n. 306.363-SC, de Relatoria do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira e o Recurso Especial n. 67.173-PE, de relatoria do Min. Costa Leite. Por fim, sustenta a violação das normas do art. 8º do Decreto n. 5.772/1975 e do art. 59 da Lei n. 5.772/1971, ao argumento de que a legislação acima indicada protege o nome comercial, ainda que não registrado. Dessa forma, a matéria posta nos presentes autos, cinge-se em determinar se o registro anterior do nome empresarial garante o direito de uso da expressão “Vera Cruz” pela recorrente em seus produtos (uniformes escolares, livros e apostilas) em desfavor da recorrida que realizou o registro da marca junto ao INPI. A questão, portanto, é peculiar, não versando acerca do conflito entre marcas ou da colidência entre nomes empresariais, matérias já exaustivamente debatidas por esta Corte. Assim, para melhor análise da questão controvertida, necessário se faz uma breve análise dos institutos em debate. Inicialmente, destaca-se que a lei define como marca “os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais” (art. 122 da Lei de Propriedade Industrial). O detentor da marca possui a prerrogativa de utilizá-la, com exclusividade, no âmbito de sua especialidade, em todo o território nacional pelo prazo de duração do registro no INPI. Por sua vez, o nome comercial consiste na expressão que identifica o empresário em suas relações jurídicas, ou seja, no âmbito do exercício da atividade empresarial. O art. 1.155, caput, do Código Civil estabelece textualmente que “considerase nome empresarial a firma ou a denominação adotada, de conformidade com este Capítulo, para o exercício de empresa.” 376 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Ainda em relação ao nome empresarial, é cediço que, desde o DecretoLei n. 7.903/1945 (Código de Propriedade Industrial), passando pelas Leis n. 4.726/1965 e 8.934/1994, predomina a orientação de que a proteção do nome comercial se circunscreve à unidade federativa de competência da Junta Comercial em que arquivado, podendo ser estendida a todo o território nacional apenas se, à época de vigência do Decreto-Lei n. 7.903/1945, fosse feito registro simultâneo no Departamento Nacional da Propriedade Industrial (atual INPI) e, a partir da vigência da Lei n. 4.726/1965, realizado pedido complementar de arquivamento nas demais Juntas Comerciais. Nesse sentido o magistério de Rubens Requião (Curso de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 198): (...) No regime da Lei n. 4.726, de 13 de julho de 1965, que dispunha sobre o registro do comércio (e que foi revogada pela Lei n. 8.934/1994), c.c. o Código de Propriedade Industrial, seu contemporâneo, havia o sistema do duplo registro, um assegurando a proteção do uso exclusivo no âmbito territorial da respectiva Junta Comercial, e, o outro, de âmbito nacional, consequente do registro no Departamento Nacional de Propriedade Industrial, hoje Instituto Nacional de Propriedade Industrial, órgão executivo do sistema de propriedade industrial. E arremata o ilustre doutrinador: Como foi dito, a matéria sobre proteção do nome comercial é, finalmente, objeto de legislação ordinária. A Lei n. 8.934/1994, nos arts. 33 e 34 dispôs que a proteção ao nome empresarial decorre automaticamente do arquivamento dos atos constitutivos de firma individual e de sociedade, ou de suas alterações. O nome empresarial obedecerá aos princípios da veracidade e da novidade. Ressalte-se, ainda, que os dois institutos possuem proteção constitucional, conforme assevera o art. 5º, inciso XXIX, da Constituição da República, in verbis: XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; Por fim, a atual Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.279/1996), seguindo o mandamento da Constituição, estabeleceu proteção aos nomes empresariais e RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 377 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA às marcas, conforme previsão dos arts. 124, inciso V e 129, respectivamente, daquele diploma legal, cujo teor é o seguinte: Art. 124. Não são registráveis como marca: (...) V - reprodução ou imitação de elemento característico ou diferenciador de título de estabelecimento ou nome de empresa de terceiros, suscetível de causar confusão ou associação com estes sinais distintivos; Art. 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos arts. 147 e 148. Estabelecidos os contornos jurídicos dos institutos em conflito, passo à análise do caso vertente. No caso dos autos, conforme consta do acórdão recorrido e anteriormente esclarecido, a recorrente (Sociedade Civil Instituto Vera Cruz) registrou seu ato constitutivo na Junta Comercial do Estado do Pará no ano de 1957, sendo certo, ainda, que a Associação Universitária Interamericana registrou a marca “Vera Cruz” junto ao INPI em 1986 no Estado de São Paulo. Não obstante a recorrida tenha realizado o registro da marca “Vera Cruz” no INPI, órgão próprio para esse fim, esse registro não tem o condão de interferir no nome empresarial da recorrente que, consoante o próprio Tribunal de origem reconheceu, está devidamente registrado desde 1º de fevereiro de 1956. Com efeito, restando provado que a recorrente tem o seu nome empresarial devidamente registrado na Junta Comercial do seu Estado (Pará), razão não há para que seja compelida a afastar de sua atividade a denominação “Vera Cruz” nesse âmbito territorial. Em primeiro lugar, a expressão “Vera Cruz” não caracteriza a existência de marca notória, a qual, nos termos do art. 67, caput, da Lei n. 5.772/1971 (antigo Código de Propriedade Industrial), já gozava de proteção especial, impedindo o registro de marcas idênticas ou semelhantes em todas as demais classes e itens, in verbis: A marca considerada notória no Brasil, registrada nos termos e para os efeitos deste Código, terá assegurada proteção especial, em todas as classes, mantido 378 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA registro próprio para impedir o de outra que a reproduza ou imite, no todo ou em parte, desde que haja possibilidade de confusão quanto à origem dos produtos, mercadorias ou serviços, ou ainda prejuízo par a reputação da marca. No mesmo sentido a previsão do art. 126 e parágrafos, da Lei n. 9.279/1996: Art. 126. A marca notoriamente conhecida em seu ramo de atividade nos termos do art. 6º bis (i) da Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade industrial, goza de proteção especial, independentemente de estar previamente depositada ou registrada no Brasil. § 1º A proteção de que trata este artigo aplica-se também às marcas de serviço. § 2º O INPI poderá indeferir de ofício pedido de registro de marca que produza ou imite, no todo ou em parte, marca notoriamente conhecida. Destarte, inexistindo qualquer tipo de notoriedade da expressão, não é possível determinar a abstenção do uso da expressão pela recorrente que, repitase, está devidamente registrada no âmbito local desde 1º de fevereiro de 1956. Em segundo lugar, conforme o entendimento desta Corte, a eventual colidência entre nome empresarial e marca não pode ser resolvida apenas sob a ótica do princípio da anterioridade do registro, devendo-se ter em conta outros dois princípios, quais sejam: a) princípio da territorialidade, relativo ao âmbito geográfico de proteção; b) o princípio da especificidade, referente ao tipo de produto o ou serviço. Nesse sentido, os seguintes precedentes: Comercial. Marca. Proteção. Limites. Aproveitamento parasitário. Requisitos. Colidência com signos distintivos sujeitos a outras modalidades de proteção. Aferiação. 1. A proteção conferida às marcas, para além de garantir direitos individuais, salvaguarda interesses sociais, na medida em que auxilia na melhor aferição da origem do produto e/ou serviço, minimizando erros, dúvidas e confusões entre usuários. 2. Essa proteção varia conforme o grau de conhecimento de que desfruta a marca no mercado. Prevalecem, como regra, os princípios da territorialidade e da especialidade. Esses princípios, no entanto, comportam exceções, notadamente quando se verifica o fenômeno do “extravasamento do símbolo”, ou seja, marcas cujo conhecimento pelo público e/ou mercado ultrapassa o âmbito de proteção conferido pelo registro. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 379 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 3. A LPI reconhece duas formas de “extravasamento do símbolo”, atuando no sentido de mitigar princípios informadores do registro de marcas. Na primeira hipótese temos o que o art. 125 da LPI denomina marca de alto renome, em que há temperamento do princípio da especialidade e no segundo caso o que o art. 126 da LPI chama de marca notoriamente conhecida, em que há abrandamento do princípio da territorialidade. 4. Exceção feita ao caso de alto renome, o registro da marca não confere ao titular a propriedade sobre o signo ou sinal distintivo, mas o direito de dele se utilizar, com exclusividade, para o desenvolvimento de uma atividade dentro de um determinado nicho de mercado. 5. A caracterização do aproveitamento parasitário - que tem por base a noção de enriquecimento sem causa prevista no art. 884 do CC/2002 - pressupõe, necessariamente, a violação da marca. 6. Para a aferição de eventual colidência entre marca e signos distintivos sujeitos a outras modalidades de proteção - como o nome empresarial e o título de estabelecimento - não é possível restringir-se à análise do critério da anterioridade, mas deve também se levar em consideração os princípios da territorialidade e da especialidade, como corolário da necessidade de se evitar erro, dúvida ou confusão entre os usuários. 7. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.232.658-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12.6.2012, DJe 25.10.2012) grifei. Propriedade industrial. Mandado de segurança. Recurso especial. Pedido de cancelamento de decisão administrativa que acolheu registro de marca. Reprodução de parte do nome de empresa registrado anteriormente. Limitação geográfica à proteção do nome empresarial. Art. 124, V, da Lei n. 9.279/1996. Violação. Ocorrência. Cotejo analítico. Não realizado. Similitude fática. Ausência. 1. Apesar de as formas de proteção ao uso das marcas e do nome de empresa serem diversas, a dupla finalidade que está por trás dessa tutela é a mesma: proteger a marca ou o nome da empresa contra usurpação e evitar que o consumidor seja confundido quanto à procedência do produto. 2. A nova Lei de Propriedade Industrial, ao deixar de lado a linguagem parcimoniosa do art. 65, V, da Lei n. 5.772/1971 - corresponde na lei anterior ao inciso V, do art. 124 da LPI -, marca acentuado avanço, concedendo à colisão entre nome comercial e marca o mesmo tratamento conferido à verificação de colidência entre marcas, em atenção ao princípio constitucional da liberdade concorrencial, que impõe a lealdade nas relações de concorrência. 3. A proteção de denominações ou de nomes civis encontra-se prevista como tópico da legislação marcária (art. 65, V e XII, da Lei n. 5.772/1971), pelo que o exame de eventual colidência não pode ser dirimido exclusivamente com base no 380 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA critério da anterioridade, subordinando-se, ao revés, em atenção à interpretação sistemática, aos preceitos legais condizentes à reprodução ou imitação de marcas, é dizer, aos arts. 59 e 65, XVII, da Lei n. 5.772/1971, consagradores do princípio da especificidade. Precedentes. 4. Disso decorre que, para a aferição de eventual colidência entre denominação e marca, não se pode restringir-se à análise do critério da anterioridade, mas deve também se levar em consideração os dois princípios básicos do direito marcário nacional: (i) o princípio da territorialidade, ligado ao âmbito geográfico de proteção; e (ii) o princípio da especificidade, segundo o qual a proteção da marca, salvo quando declarada pelo INPI de “alto renome” (ou “notória”, segundo o art. 67 da Lei n. 5.772/1971), está diretamente vinculada ao tipo de produto ou serviço, como corolário da necessidade de se evitar erro, dúvida ou confusão entre os usuários. 5. Atualmente a proteção ao nome comercial se circunscreve à unidade federativa de jurisdição da Junta Comercial em que registrados os atos constitutivos da empresa, podendo ser estendida a todo território nacional se for feito pedido complementar de arquivamento nas demais Juntas Comerciais. Precedentes. 6. A interpretação do art. 124, V, da LPI que melhor compatibiliza os institutos da marca e do nome comercial é no sentido de que, para que a reprodução ou imitação de elemento característico ou diferenciado de nome empresarial de terceiros constitua óbice ao registro de marca - que possui proteção nacional -, necessário, nessa ordem: (i) que a proteção ao nome empresarial não goze somente de tutela restrita a alguns Estados, mas detenha a exclusividade sobre o uso do nome em todo o território nacional e (ii) que a reprodução ou imitação seja “suscetível de causar confusão ou associação com estes sinais distintivos”. Não sendo essa, incontestavelmente, a hipótese dos autos, possível a convivência entre o nome empresarial e a marca, cuja colidência foi suscitada. 7. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo analítico entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas. 8. Recurso especial provido, para restabelecer a sentença proferida pelo juízo do primeiro grau de jurisdição, que denegou a segurança. (REsp n. 1.204.488-RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22.2.2011, DJe 2.3.2011) Dessa forma, inexistindo, na hipótese dos autos, qualquer risco de confusão entre os produtos e/ou serviços das litigantes ou um possível desvio de clientela, em razão da divergente disposição geográfica existente entres as partes, mostrase perfeitamente possível a convivência do nome empresarial Sociedade Civil Instituto Vera Cruz e a marca Vera Cruz utilizada e registrada pela Associação Universitária Interamericana. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 381 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Nesse sentir, considerando que deve ser efetivada a devida proteção ao nome empresarial e que, igualmente, não pode ficar sem tutela jurídica a marca devidamente registrada, é de rigor o conhecimento do presente recurso especial para declarar que a recorrente possui direito ao uso da expressão “Vera Cruz” apenas no âmbito territorial em que registrado o seu nome empresarial na Junta Comercial do Estado do Pará. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença do juízo de primeiro grau. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.321.655-MG (2012/0090512-5) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: Luiz Cláudio Teixeira Generoso Advogado: Alexandre Pimenta da Rocha de Carvalho e outro(s) Recorrido: Teresa Perez Viagens e Turismo Ltda - Empresa de pequeno porte Advogado: Luciana Rodrigues Atheniense e outro(s) EMENTA Recurso especial. Direito Civil e Consumidor. Rescisão contratual. Pacote turístico. Pagamento antecipado. Perda integral dos valores. Cláusula penal. Abusividade. CDC. Inexistência. 1. Inocorrência de maltrato ao art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido, ainda que de forma sucinta, aprecia com clareza as questões essenciais ao julgamento da lide. 2. Demanda movida por consumidor postulando a restituição de parte do valor pago antecipadamente por pacote turístico internacional, em face da sua desistência decorrente do cancelamento de seu casamento vinte dias antes da viagem. 382 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 3. Previsão contratual de perda total do valor antecipadamente pago na hipótese de desistência em período inferior a vinte e um dias da data do início da viagem. 4. Reconhecimento da abusividade da cláusula penal seja com fundamento no art. 413 do Código Civil de 2002, seja com fundamento no art. 51, II e IV, do CDC. 5. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 6. Recurso especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, A Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Brasília (DF), 22 de outubro de 2013 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 28.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial interposto por Luiz Cláudio Teixeira Generoso com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, assim ementado (fl. 206): Rescisão de contrato. Viagem turística. Cerceamento de defesa. Indeferimento de produção de prova. Prova inútil. Nulidade inexistente. Contrato atípico. Cláusula penal lícita. Cancelamento da viagem imotivada. Devolução do preço. - A prova se destina ao convencimento do magistrado, se as provas acostadas aos autos são suficientes a resolução da lide qualquer requerimento de produção de novas provas devem ser indeferidas porque restariam inúteis. Não obstante o contrato de viagem turística ser modalidade dos chamados contratos inominados ou atípicos, a questão recursal se resume à licitude da multa para o cancelamento da RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 383 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA viagem, que se amolda a figura regulada pela lei civil como cláusula penal. É lícita a estipulação contratual de cláusula penal para o inadimplemento total ou parcial do contrato desde que não exceda o valor da obrigação principal. Opostos embargos de declaração, estes restaram rejeitados nos seguintes termos (fl. 253): Embargos de declaração. Omissão, contradição e obscuridade. Inexistência. Reapreciação do caso. Impossibilidade. Rejeitar os embargos. - Não vislumbro qualquer omissão, contradição ou obscuridade a ser suprida no acórdão. - Nos termos do artigo 535, do CPC, os embargos de declaração são modalidade de recurso especialíssima destinada exclusivamente a suprir eventuais contradições, omissões e obscuridades apresentadas no julgado. Não se prestam, pois, à reapreciação das teses defendidas pelas partes a fim de modificar o acórdão ou para o simples pré-questionamento da matéria. Na Comarca de Belo Horizonte, o autor Luiz Cláudio Teixeira Generoso, ora recorrente, propôs ação de rescisão contratual cumulada com repetição do indébito contra Tereza Perez Tour, postulando a restituição de parte do valor pago antecipadamente por pacote turístico de 14 dias para Turquia, Grécia e França, no montante de R$ 18.101,93, em face do cancelamento de seu casamento. Na sentença, o Juiz de Direito julgou procedentes os pedidos para declarar a rescisão do contrato e determinar a restituição ao autor de 90% do valor total pago. O Tribunal de Justiça, provendo a apelação da empresa requerida, julgou improcedentes os pedidos. Nas suas razões do recurso especial, a parte recorrente alegou violação do art. 535, incisos I e II, do Código de Processo Civil, ao argumento de que houve negativa de prestação jurisdicional. No mérito, o recorrente alegou a contrariedade ao art. 51, incisos II e IV, do Código de Defesa do Consumidor, sob o argumento de que é nula a cláusula penal que estabelece a perda integral do preço pago, tendo em vista que constitui estipulação abusiva e de que resulta enriquecimento ilícito, circunstância vedada pelo ordenamento jurídico pátrio. O recurso especial foi admitido na origem. É o breve relatório. 384 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Inicialmente, não há negativa de prestação jurisdicional no acórdão que decide de modo integral e com fundamentação suficiente a controvérsia posta. Ademais, o juízo não está obrigado a se manifestar a respeito de todas as alegações e dispositivos legais suscitados pelas partes. Nesse sentido: Agravo regimental no recurso especial. Ofensa ao art. 535 do CPC não configurada. Fundamentação deficiente. Necessidade de indicação de dispositivo de lei federal no recurso especial interposto pela alínea c. Súmula n. 284-STF. 1. Não se verifica ofensa ao art. 535 do CPC, tendo em vista que o acórdão recorrido analisou, de forma clara e fundamentada, todas as questões pertinentes ao julgamento da causa, ainda que não no sentido invocado pela parte. 2. A jurisprudência desta Corte orienta-se no sentido de que, para ser apreciado o recurso especial interposto pela alínea c do art. 105 da Constituição Federal, cabe ao recorrente indicar o dispositivo de lei federal violado, pois o dissídio jurisprudencial baseia-se na interpretação divergente da norma federal. Aplica-se, por analogia, o disposto na Súmula n. 284 do Excelso Pretório diante da deficiência na fundamentação do recurso, na espécie, caraterizada pela ausência de indicação da norma federal tida por violada. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp n. 1.099.762-RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS), Terceira Turma, julgado em 12.5.2009, DJe 25.5.2009) SFH. Correção monetária do saldo devedor. TR. Execução extrajudicial. DecretoLei n. 70/1966. Constitucionalidade. - Prevista no contrato, é possível a utilização da Taxa Referencial, como índice de correção monetária do saldo devedor, em contrato de financiamento imobiliário. - É pacífico em nossos Tribunais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça e em nossa mais alta Corte, a constitucionalidade do Decreto-Lei n. 70/1966. - Não merece provimento recurso carente de argumentos capazes de desconstituir a decisão agravada. (AgRg no Ag n. 945.926-SP, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira Turma, julgado em 14.11.2007, DJ 28.11.2007, p. 220) Quanto ao mérito, assiste razão ao recorrente. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 385 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O Tribunal de Justiça a quo considerou válida a cláusula penal que estabelecia a perda integral do valor antecipadamente pago pelo recorrente (R$ 18.101,93) em virtude de desistência de viagem de turismo internacional (Turquia, Grécia e França) em decorrência do cancelamento do casamento do recorrente. Observe-se o seguinte trecho do acórdão recorrido (fls. 210-211): No caso presente, o apelado celebrou com a apelante contrato de viagem turística em que lhe seria fornecida excursão por algumas cidades da Europa com transporte e hospedagem incluídas, por motivo de sua lua de mel. Conforme prova dos autos, o apelado buscou a rescisão do contrato 20 dias antes do início da prestação dos serviços, por causa do cancelamento de seu casamento. Tal fato não pode ser tido como caso fortuito ou força maior de que disciplinam o art. 393, do CC. O fato não se subsume a definição do parágrafo único do dispositivo citado. Pelo contrário, decorre de manifestação negativa de vontade. Descabido divagar sobre os motivos do rompimento do relacionamento do apelado. O fato é que havia um contrato celebrado entre o apelado e a apelante, e nele estava estipulada a cláusula penal de 100% (cem por cento) do valor pago pela viagem para o caso de cancelamento da prestação dos serviços até 21 dias até a data de seu início. Ele buscou o cancelamento 20 dias antes da viagem, o que impossibilita a restituição dos valores pagos aos fornecedores estrangeiros, em função das políticas de não reembolsar, comprovada pelos documentos de fls. 66-67, devidamente traduzidos em fls. 68-69. Por sua vez, sustentou o recorrente que a cláusula penal que estabelece a perda da integralidade do preço pago em caso de cancelamento da prestação dos serviços constitui estipulação abusiva, que resulta em enriquecimento ilícito. Assiste razão ao recorrente. Com efeito, o valor da multa contratual estabelecido em 100% (cem por cento) sobre o montante pago pelo pacote de turismo é flagrantemente abusivo, ferindo a legislação aplicável ao caso seja na perspectiva do Código Civil, seja na perspectiva do Código de Defesa do Consumidor, que é a fundamentação do recurso especial. No Código Civil de 2002, a redução da cláusula penal é regulada pelo seu art. 413, verbis: Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade 386 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio. Note-se que a regra correspondente ao art. 413 do CC/2002 era o artigo 924 do Código Civil de 1916, que facultava ao Juiz a redução proporcional da cláusula penal na hipótese de cumprimento parcial da obrigação, sob pena de afronta ao princípio que veda o enriquecimento sem causa. A redação do dispositivo era a seguinte: Art. 924. Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimplemento. O Código Civil de 2002 alterou a disciplina da cláusula penal, pois, em seu artigo 413, passou a determinar que o juiz deve proceder à redução eqüitativamente, se a obrigação já tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo. Analisando as referidas normas, Jorge Cesa Ferreira da Silva (Inadimplemento das Obrigações - Comentários aos arts. 389 a 420 do Código Civil - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 - P. 279-280) preleciona: A propósito do art. 924 do Código Civil de 1916, não eram raras as vozes no sentido de ser dispositiva a norma nele contida. Assim, por exemplo, manifestaram-se Clóvis Bevilaqua (op. cit., p. 72), Pontes de Miranda (op. cit., p. 80), Caio Mário da Silva Pereira (op. cit., p. 110) e Orlando Gomes (op. cit., p. 161). Partia-se do pressuposto de que cabia à autonomia privada deliberar sobre a multa, além do fato de que a natureza penal da cláusula seria mais bem atendida pela possibilidade de afastar a norma que admitia minorá-la. No plano do direito comparado, tal posição não se sustenta. No direito francês, após a reforma de 1975, os arts. 1.152 e 1.231 expressamente afirmam a sua cogência, do mesmo modo que o faz o art. 812º do Código Civil português. Para o direito italiano, o art. 1.384, tido como excepcional por admitir a revisão judicial, é assim também compreendido (cf. Giorgio De Nova, op. cit., p. 381), no que se assemelha ao § 343 do BGB, cujo texto se mantém vigente desde 1990 (cf. Dieter Medicus, op. cit., p. 225) Com relação ao Código de 2002, parece ser esta, e não aquela, a melhor interpretação. Não se trata aqui exclusivamente da utilização da autonomia privada, mas sim de outros valores especialmente tutelados pelo novo Código. O art. 413 sustenta-se no equilíbrio e na vedação ao excesso, que são especialmente garantidos no novo texto (cf., p. ex., arts. 187, 317, 478), sempre de modo cogente. No mesmo sentido, é da natureza da noção de pena - que, RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 387 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA como se buscou demonstrar, representa o elemento conceitual básico da cláusula penal - que ela se ajuste às circunstâncias concretas do caso. Ademais, partindose do pressuposto de que a regulação da cláusula penal a estrutura de modo proporcionado ao dano sofrido, caso a norma fosse afastável pela vontade das partes, a situação de inadimplemento parcial poderia facilmente apresentar-se muito mais vantajosa ao credor do que a de adimplemento, o que revelaria um contra-senso. Por fim, não é de ser esquecida a mudança do verbo empregado pelo legislador. Ao contrário da faculdade posta no art. 924 do Código de 1916, o art. 413 refere agora a dever judicial (“deve ser reduzida”). Na mesma linha, em comentário ao aludido dispositivo legal, Hamid Charaf Bodine Jr. assevera (Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: 5ª ed. Barueri-SP: Ed. Manole, 2011, p. 469): Diversamente do que estabelecia o art. 924, do Código Civil revogado, o dispositivo é incisivo: o juiz tem o dever, não a possibilidade de reduzir, ao contrário do que constava do diploma legal revogado. A norma é de ordem pública, não admitindo que as partes afastem sua incidência, dispondo que a multa prevista é irredutível. (...) O presente artigo impõe ao juiz a obrigação de reduzir a penalidade nas hipóteses em que ela for superior à legal e aplica-se à multa moratória e à compensatória. Em se tratando de de disposição de ordem pública, nada impede que o juiz a aplique de ofício. Dessa forma, o entendimento adotado pelo Tribunal de origem merece reforma, pois não se mostra possível falar em perda total dos valores antecipadamente pagos por pacote turístico, sob pena de se criar uma situação que, além de vantajosa para a empresa de turismo (fornecedora de serviços), mostra-se excessivamente desvantajosa para o consumidor. Nesse sentido, trago à colação os seguintes precedentes: Recurso especial. Contrato de cessão de uso de imagem. Inadimplemento parcial. Cláusula penal compensatória. Redução com base no art. 924 do CC/1916. Possibilidade. 1. Ação de cobrança referente ao valor de cláusula penal compensatória ajustada em contrato de cessão de uso de imagem diante do inadimplemento de metade das prestações ajustadas para o segundo ano da relação contratual, que se renovara automaticamente. 2. Redução do valor da cláusula penal com fundamento no disposto no artigo 924 do Código Civil de 1916, que facultava ao Juiz a redução proporcional da 388 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA cláusula penal nas hipóteses de cumprimento parcial da obrigação, sob pena de afronta ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa. 3. Doutrina e jurisprudência acerca das questões discutidas no recurso especial. 4. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.212.159-SP, de minha relatoria, Terceira Turma, julgado em 19.6.2012, DJe 25.6.2012) Recurso especial. Contrato bilateral, oneroso e comutativo. Cláusula penal. Efeitos perante todos os contratantes. Redimensionamento do quantum debeator. Necessidade. Recurso provido. 1. A cláusula penal inserta em contratos bilaterais, onerosos e comutativos deve voltar-se aos contratantes indistintamente, ainda que redigida apenas em favor de uma das partes. 2. A cláusula penal não pode ultrapassar o conteúdo econômico da obrigação principal, cabendo ao magistrado, quando ela se tornar exorbitante, adequar o quantum debeatur. 3. Recurso provido. (REsp n. 1.119.740-RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 27.9.2011, DJe 13.10.2011) Em situação semelhante, esta Corte tem o firme entendimento de que, nos contratos de promessa de compra e venda de imóvel, é cabível ao magistrado reduzir o percentual da cláusula penal com o objetivo de evitar o enriquecimento sem causa por parte de qualquer uma das partes. A propósito: Agravo regimental. Recurso especial. Promessa de compra e venda. Rescisão contratual. Inadimplência dos promitentes compradores. Cláusula penal. Perda da totalidade das prestações pagas. Desproporcionalidade. Contrato anterior à vigência do Código de Defesa do Consumidor. Incidência do art. 924 do Código Civil/1916. Possibilidade. I - Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor a contrato celebrado antes da sua vigência. II - Possibilidade de o juiz, com fundamento na regra do art. 924 do Código Civil/1916, reduzir a pena convencional estatuída a um patamar razoável, mormente quando se verifica a perda de todas parcelas pagas. III - Limitação da retenção das parcelas pagas ao percentual de 25% (vinte e cinco), em favor da promitente vendedora. IV - Precedentes específicos, em casos similares, deste Superior Tribunal de Justiça III. Agravo regimental provido RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 389 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (AgRg no REsp n. 479.914-RJ, de minha relatoria, Terceira Turma, julgado em 5.10.2010, DJe 15.10.2010) Agravo regimental. Recurso especial. Civil e Processo Civil. Liquidação de sentença. Juros de mora. Ausência de fixação na decisão liquidanda. Súmula n. 254 do STF e art. 293 do CPC. Compromisso de compra e venda de imóvel. Rescisão contratual. Devolução de parcelas pagas. Termo inicial dos juros moratórios. Trânsito em julgado da decisão condenatória. 1. É de ordem pública a matéria atinente à fixação dos juros de mora nas decisões judiciais. Inocorrência de afronta ao art. 517 do CPC. 2. “Incluem-se os juros moratórios na liquidação, embora omisso o pedido inicial ou a condenação” (Súmula n. 254 do STF). Incidência do art. 293 do CPC. 3. A Segunda Seção deste Tribunal Superior sufragou o entendimento de que “na hipótese de resolução contratual do compromisso de compra e venda por simples desistência dos adquirentes, em que postulada, pelos autores, a restituição das parcelas pagas de forma diversa da cláusula penal convencionada, os juros moratórios sobre as mesmas serão computados a partir do trânsito em julgado da decisão” (REsp n. 1.008.610-RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe 3.9.2008), porquanto somente a partir daí é que surgiu a mora da promitentevendedora. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp n. 759.903-MG, Rel. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS), Terceira Turma, julgado em 15.6.2010, DJe 28.6.2010) No que tange ao Código de Defesa do Consumidor, está efetivamente evidenciada a violação ao art. 51, incisos II e IV, conforme alegado pelo recorrente, cujas disposições estatuem o seguinte: Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - (...) II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código; III - (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; Deve-se, assim, reconhecer a abusividade da cláusula contratual em questão seja por subtrair do consumidor a possibilidade de reembolso, ao menos parcial, 390 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA como postulado na inicial, da quantia antecipadamente paga, seja por lhe estabelecer uma desvantagem exagerada. Merece ainda lembrança o disposto no art. 51, § 1º, inciso III, que complementa o disposto no inciso IV do mesmo dispositivo legal do CDC: Art. 51. § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: (...) III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares do caso. Precisa, como sempre, a lição Sérgio Cavalieri Filho (Programa de Direito do Consumidor, 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 172) sobre o aludido dispositivo legal: O dispositivo deixa claro, em primeiro lugar, que a onerosidade excessiva terá que ser apurada no caso concreto (não em abstrato), atentando o julgador para as circunstâncias particulares do caso, entre as quais a natureza e o conteúdo do contrato, bem como o interesse das partes. Em segundo lugar, que a excessividade deve ser aferida com no desequilibrio do contrato ou na desproporção das prestações das partes, uma vez que ofendem o princípio da equivalência contratual, princípio esse instituído no art. 4º, inciso III - “sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidor e fornecedor” -, bem como no art. 6º, inciso II - “asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações”. Por fim, é de se ressaltar que o cancelamento de pacote turístico contratado constitui risco do empreendimento desenvolvido por qualquer agência de turismo, não podendo esta pretender a transferência integral do ônus decorrente de sua atividade empresarial a eventuais consumidores. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para determinar a redução do montante estipulado a título de cláusula penal para 20% sobre o valor antecipadamente pago, conforme postulado alternativamente na petição inicial, incidindo correção monetária desde o ajuizamento da demanda e juros de mora desde a citação. Como essa pretensão foi articulada na petição inicial, arcará a empresa requerida com as custas e honorários do procurador do autor, que fixo em 15% sobre o valor atualizado da condenação. É o voto. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 391 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 1.323.410-MG (2011/0219578-3) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Paulo Roberto Gomes Ferreira e outro Advogados: Márcio Gabriel Diniz e outro(s) Dalton Max Oliveira e outro(s) Recorrido: Geraldo Magalhães Gomes - Espólio Representado por: Maria José Mesquita Gomes - Inventariante Advogado: Fernanda Corrêa Machado Mourão e outro(s) EMENTA Recurso especial. Ação renovatória de contrato. Locação comercial. Accessio temporis. Prazo da renovação. Artigos analisados: art. 51 da Lei n. 8.245/1991. 1. Ação renovatória de contrato de locação comercial ajuizada em 9.6.2003. Recurso especial concluso ao Gabinete em 7.12.2011. 2. Discussão relativa ao prazo da renovação do contrato de locação comercial nas hipóteses de “accessio temporis”. 3. A Lei n. 8.245/1991 acolheu expressamente a possibilidade de “accessio temporis”, ou seja, a soma dos períodos ininterruptos dos contratos de locação para se alcançar o prazo mínimo de 5 (cinco) anos exigido para o pedido de renovação, o que já era amplamente reconhecido pela jurisprudência, embora não constasse do Decreto n. 24.150/1934. 4. A renovatória, embora vise garantir os direitos do locatário face às pretensões ilegítimas do locador de se apropriar patrimônio imaterial, que foi agregado ao seu imóvel pela atividade exercida pelo locatário, notadamente o fundo de comércio, o ponto comercial, também não pode se tornar uma forma de eternizar o contrato de locação, restringindo os direitos de propriedade do locador, e violando a própria natureza bilateral e consensual da avença locatícia. 5. O prazo 5 (cinco) anos mostra-se razoável para a renovação do contrato, a qual pode ser requerida novamente pelo locatário ao final do período, pois a lei não limita essa possibilidade. Mas permitir 392 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA a renovação por prazos maiores, de 10, 15, 20 anos, poderia acabar contrariando a própria finalidade do instituto, dadas as sensíveis mudanças de conjuntura econômica, passíveis de ocorrer em tão longo período de tempo, além de outros fatores que possam ter influência na decisão das partes em renovar, ou não, o contrato. 6. Ouando o art. 51, caput, da Lei n. 8.2145 dispõe que o locatário terá direito à renovação do contrato “por igual prazo”, ele está se referido ao prazo mínimo exigido pela legislação, previsto no inciso II do art. 51, da Lei n. 8.245/1991, para a renovação, qual seja, de 5 (cinco) anos, e não ao prazo do último contrato celebrado pelas partes. 7. A interpretação do art. 51, caput, da Lei n. 8.245/1991, portanto, deverá se afastar da literalidade do texto, para considerar o aspecto teleológico e sistemático da norma, que prevê, no próprio inciso II do referido dispositivo, o prazo de 5 (cinco) anos para que haja direito à renovação, a qual, por conseguinte, deverá ocorrer, no mínimo, por esse mesmo prazo. 8. A renovação do contrato de locação não residencial, nas hipóteses de “accessio temporis”, dar-se-á pelo prazo de 5 (cinco) anos, independentemente do prazo do último contrato que completou o quinquênio necessário ao ajuizamento da ação. O prazo máximo da renovação também será de 5 (cinco) anos, mesmo que a vigência da avença locatícia, considerada em sua totalidade, supere esse período. 9. Se, no curso do processo, decorrer tempo suficiente para que se complete novo interregno de 5 (cinco) anos, ao locatário cumpre ajuizar outra ação renovatória, a qual, segundo a doutrina, é recomendável que seja distribuída por dependência para que possam ser aproveitados os atos processuais como a perícia. 10. Conforme a jurisprudência pacífica desta Corte, havendo sucumbência recíproca, devem-se compensar os honorários advocatícios. Inteligência do art. 21 do CPC c.c. a Súmula n. 306-STJ. 11. Recurso especial parcialmente provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 393 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausentes, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei Beneti e, ocasionalmente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Brasília (DF), 7 de novembro de 2013 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 20.11.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de Recurso Especial interposto por Paulo Roberto Gomes Ferreira e Outro, com base no art. 105, III, a da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ-MG). Ação: renovatória de contrato de locação comercial ajuizada por Paulo Roberto Gomes Ferreira e Outro em face de Geraldo Magalhães Gomes - Espólio, alegando que exploram atividade de revenda de combustíveis e derivados de petróleo e álcool, no imóvel dos réus, tendo o primeiro contrato sido firmado em 23.12.1993 e renovado em 23.4.1999, com previsão de término em 23.12.2003. Pretendem a renovação da locação pelo prazo de 10 (dez) anos. Contestação: Geraldo Magalhães Gomes - Espólio sustentou, preliminarmente, a inépcia da petição inicial e, no mérito, (i) o desinteresse na renovação do contrato, pois pretende construir galerias de lojas no local; (ii) que a renovação só poderia ocorrer pelo prazo máximo de 56 meses, que é o tempo da avença anterior, devendo, nesse caso, ser fixado o aluguel provisório no valor de R$ 6.500,00 (seis mil e quinhentos reais). Sentença: julgou procedente o pedido, para “renovar a locação não residencial celebrada entre as partes, no período de 24 de dezembro de 2003 até 23 de dezembro de 2011, cujo valor do aluguel será de R$ 4.942,37 (quatro mil, novecentos e quarenta e dois reais e trinta e sete centavos”, valor esse que deverá ser descontado no período de 4 em 4 meses, nos valores equivalentes aos índices do IGP ou IGPM, bem como sofrerá aumento também de 4 em 4 meses, sempre tomando-se por base o mês de setembro de 2008 (e-STJ fls. 273-278). 394 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Acórdão: deu parcial provimento à apelação dos recorridos para reduzir o prazo da renovação da locação ao tempo do último contrato firmado; e negou provimento ao recurso de apelação interposto pelos recorrentes, nos termos da seguinte ementa (e-STJ fls. 347-391): Civil e Processual Civil. Apelação. Ação renovatória de contrato de locação. Agravo retido. Prova oral dispensável. Recurso não provido. Inépcia da inicial. Inocorrência. Revelia. Não verificação. Renovação da locação. Requisitos legais. Presença. Pedido procedente. Prazo da renovação. Limitação ao prazo do último contrato renovado. Locativo. Perícia conclusiva. Prevalência. Necessidade. Apelações conhecidas, primeira provida em parte e segunda não provida. - Não induz cerceamento de defesa a dispensa das provas inúteis ao julgamento da lide. - Agravo retido conhecido e não provido. - É apta à formação do contencioso a inicial que cumpre os requisitos do art. 282 do CPC e que é acompanhada de documentos que acobertam as teses nela narradas. - O comparecimento do réu, antes de sua citação, pedindo vista dos autos, não dá ensejo à abertura do prazo de 15 dias para contestar se o requerimento foi por procurador sem poderes para receber citação e se sequer foi apreciado o pedido de vista pelo MM. Juiz, não havendo se falar em revelia. - Em se tratando de ação renovatória, cabe ao locatário a prova dos requisitos exigidos pelos artigos 51 e art. 71 da Lei n. 8.245/1991. Se cumpridos os requisitos legais, o pedido de renovação do contrato de locação deve ser julgado procedente. - O prazo para a renovação locatícia é aquele previsto no último contrato, sendo de no máximo cinco anos à luz do caput do art. 51 da Lei n. 8.245/1991, devendo ser reduzido se na sentença foi fixado prazo maior. - Havendo laudo pericial válido e conclusivo, é de se adotá-lo para a fixação do valor dos aluguéis. - Recursos conhecidos, primeiro provido em parte e segundo não provido. Embargos de Declaração: os interpostos por Paulo Roberto Gomes Ferreira e Outro (e-STJ fls. 394-400), foram rejeitados. Os interpostos por Geraldo Magalhães Gomes - Espólio (e-STJ fls. 403-405), foram acolhidos em parte, apenas para alteração da distribuição dos ônus da sucumbência (e-STJ fls. 426447). Recurso especial: interposto por Paulo Roberto Gomes Ferreira e Outro com base na alínea a do permissivo constitucional (e-STJ fls. 450-464), sustenta violação dos seguintes dispositivos legais: (i) art. 51 da Lei n. 8.245/1991, alegando, em síntese, que o prazo da renovação do contrato locatício não deve ser limitado ao prazo do último RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 395 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA contrato a ser renovado, devendo-se levar em consideração o tempo de tramitação do processo, sendo desnecessário que o locatário ajuíze nova ação renovatória em virtude da demora na entrega da tutela jurisdicional; (ii) arts. 20 e 21 do CPC, pois tendo sido reconhecido o direito à renovação do contrato, não houve sucumbência recíproca, devendo ser redimensionados os respectivos ônus. Exame de admissibilidade: o recurso foi inadmitido na origem pelo TJMG (e-STJ fls. 482-483), tendo sido interposto agravo contra a respectiva decisão denegatória, ao qual dei provimento para determinar o julgamento do recurso especial. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a controvérsia a definir qual o prazo da renovação de contrato de locação comercial, considerando a “accessio temporis”. 1. – Do prazo de renovação da locação (art. 51 da Lei n. 8.245/1991). 01. Pelo que se depreende da leitura das decisões recorridas, em 23.12.1993, Geraldo Magalhães Gomes - Espólio firmou contrato de locação não residencial com Comercial Gomes e Lage Distribuidora de Petróleo Ltda., cujo prazo de vigência era até 23.12.2000. 02. Referido contrato, contudo, vigeu efetivamente até 23.4.1999, data em que foi celebrado um segundo contrato de locação, com os recorrentes Paulo Roberto Gomes Ferreira e Outro, sócios da locatária originária, cujo prazo de vigência era de 23.4.1999 a 23.12.2003 – 4 anos e 8 meses, portanto. 03. O Tribunal de origem, após analisar a documentação apresentada pelas partes, que retratava a evolução da locação, entendeu que houve cessão do contrato, sendo, por conseguinte, possível a soma dos prazos com a finalidade de pleitear a renovação do contrato: Como o primeiro contrato teve vigência real de 23.12.1993 a 23.4.1999 – 5 anos e 4 meses – e o segundo foi firmado para o período de 23.4.1999 a 23.12.2003 – 4 anos e 8 meses, a soma dos prazos resulta em 10 anos, restando preenchido o requisito mínimo de 5 anos, previsto no art. 51, II, da Lei n. 8.245/1991 (e-STJ fl. 373). 396 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 04. Por força das Súmulas n. 5 e 7 do STJ, não cabe a essa Corte rever os fatos e as provas produzidas. Assim, as premissas que devem nortear o presente julgamento são aquelas já definidas nas instâncias ordinárias. 05. A questão que se coloca, portanto, é unicamente em relação ao prazo pelo qual o contrato de locação deve ser renovado, tendo em vista o disposto no art. 51, da Lei n. 8.245/1992 e a “accessio temporis”. 06. O acórdão recorrido entendeu que o art. 51 da Lei de Locações, quando menciona que o locatário tem direito à renovação do contrato “por igual prazo”, está fazendo referência ao prazo do “contrato renovando e não ao prazo resultado da soma dos períodos de vigência dos contratos consecutivos e ininterruptos”. Assim, a renovação deveria se dar por 4 (quatro) anos e oito meses – de 23.12.2003 a 23.8.2008 (e-STJ fls. 380). 07. Afirma o TJ-MG, outrossim, que é totalmente desinfluente, para se definir o prazo da renovação do contrato, o fato da sentença de primeiro grau ter sido proferida apenas no ano de 2009, porque (i) a renovação por novo período exige ação própria e (ii) nada impedia que os locatários a ajuizassem antes do julgamento definitivo da presente ação. 08. Os recorrentes, por sua vez, sustentam que a renovação da locação deve ser deferida por prazo superior “ao daquele referido no dispositivo legal pertinente [art. 51, II, da Lei n. 8.245/1991]” (e-STJ fl. 461), devendo, ainda, ser considerado o tempo de tramitação do processo, que, na hipótese, foi superior a 6 (seis) anos. Pleiteiam, assim, a manutenção da sentença de primeiro grau, a qual concedeu a renovação do contrato até 23.12.2011. 09. A ação renovatória do contrato de locação comercial remonta ao início do século passado, tendo sido regulada pelo Decreto n. 24.150/1934 (conhecido como a “Lei de Luvas”), visando proteger o “fundo de comércio” das investidas abusivas do locador, que, quase sempre, exigia do locatário o pagamento de altos valores (“luvas”) para renovar o contrato. 10. A Lei n. 6.649/1979 que, posteriormente, veio dispor sobre as regras da locação predial urbana, não tratou do tema da renovatória, que permaneceu regulada pelo Decreto n. 24.150/1934, conforme determinado no art. 1º, § 2º da própria lei. 11. Assim, conforme a “Lei de Luvas”, exigia-se como requisitos para a renovação, que (i) o contrato de locação dissesse respeito a imóvel comercial ou industrial; (ii) fosse firmado por prazo determinado e de, no mínimo, 5 anos; RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 397 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (iii) a atividade comercial ou industrial fosse exercida pelo locatário por no mínimo 3 anos ininterruptos. 12. Com a entrada em vigor da nova Lei de Locações (Lei n. 8.245/1991), que, por sua vez, tratou expressamente do tema, ampliou-se o direito à renovação, que deixou de visar apenas à proteção do fundo de comércio, para também proteger as outras atividades empresariais, e até as sociedades civis que não têm como objeto a atividade empresarial, desde que visem o lucro. É o caso das escolas, das clínicas, consultórios, etc. 13. Além disso, a novel legislação acolheu expressamente a possibilidade de “accessio temporis”, ou seja, a soma dos períodos ininterruptos dos contratos de locação para se alcançar o prazo mínimo de 5 (cinco) anos exigido para o pedido de renovação, o que já era amplamente reconhecido pela jurisprudência, embora não constasse do Decreto n. 24.150/1934. 14. Contudo, a redação do caput do art. 51 da Lei n. 8.245/1991, ao dispor que “Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito a renovação do contrato, por igual prazo” - desde que preenchidos os demais requisitos legais, cumulativamente, previstos nos respectivos incisos -, acabou por suscitar discussões e diferentes interpretações doutrinárias e jurisprudenciais sobre qual seria esse prazo de renovação, principalmente, nas hipóteses de “accessio temporis”. 15. Com efeito, a dúvida que surgiu está relacionada ao alcance da expressão “por igual prazo”. Discute-se, nesse sentido, se ela estaria se referindo (i) ao prazo de 5 (cinco) anos exigido para que o locatário tenha direito à renovação (inciso II do art. 51 da Lei n. 8.245/1991); ou (ii) à soma dos prazos de todos os contratos celebrados pelas partes; ou (iii) ao prazo do último contrato, que completou o quinquênio. 16. A Súmula n. 178-STF editada sob a égide do antigo Decreto n. 24.150/1934, mencionava ser de 5 (cinco) anos o prazo máximo da renovação contratual, ainda que o prazo previsto no contrato a renovar fosse superior. E a doutrina aponta como principal justificativa, para essa limitação temporal, as questões inflacionárias da época, que tornariam inviável a renovação por período de tempo maior, sem prejuízo do próprio locador. 17. Ademais, vale consignar que a renovatória, embora vise garantir os direitos do locatário face às pretensões ilegítimas do locador de se apropriar patrimônio imaterial, que foi agregado ao seu imóvel pela atividade exercida pelo locatário, notadamente o fundo de comércio, o ponto comercial, também 398 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA não pode se tornar uma forma de eternizar o contrato de locação, restringindo os direitos de propriedade do locador, e violando a própria natureza bilateral e consensual da avença locatícia. 18. Nesse contexto, 5 (cinco) anos mostra-se um prazo razoável para a renovação do contrato, a qual pode ser requerida novamente pelo locatário ao final do período, pois a lei não limita essa possibilidade. Mas permitir a renovação por prazos maiores, de 10, 15, 20 anos, poderia acabar contrariando a própria finalidade do instituto, dadas as sensíveis mudanças de conjuntura econômica, passíveis de ocorrer em tão longo período de tempo, além de outros fatores que possam ter influência na decisão das partes em renovar, ou não, o contrato. 19. Esse entendimento propagou-se na jurisprudência pátria, tendo essa Corte, em inúmeros julgados, também decidido pelo limite máximo de 5 (cinco) anos para a renovação contratual. Observe-se nesse sentido: AR n. 4.220-MG, Rel. Min. Jorge Mussi, 3ª Seção, DJe de 18.5.2011; REsp n. 693.729-MG, Rel. Min. Nilson Naves, DJU 23.10.2006; REsp n. 267.129-RJ, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU 6.11.2000; REsp n. 170.589-SP, Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 12.6.2000; REsp n. 202.180-RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 22.11.1999; REsp n. 195.971-MG, Rel. Min. Felix Fischer, DJU 12.4.1999. 20. Mesmo diante da redação do art. 51, caput, da Lei n. 8.245/1991, vozes importantes da doutrina permaneceram defendendo o prazo máximo de 5 (cinco) anos para a renovação, cumprindo mencionar nesse sentido: José Roberto Neves Amorim, Revisional e Renovatória de Locação, in Francisco Antonio Casconi e José Roberto Neves Amorim (coord.), Locações Aspectos Relevantes, aplicação do Novo Código Civil, São Paulo: Método, 2004, p. 113121; Sylvio Capanema de Souza, A Lei do Inquilinato Comentada, 6ª ed., Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009, p. 215. 21. Não se desconhece, por outro lado, o entendimento de alguns doutrinadores, no sentido de que, se o contrato inicial já fora celebrado por prazo superior e o art. 8.245/91, caput, afirma que a renovação deve-se dar por igual prazo, não haveria razão para limitá-lo a 5 (cinco) anos, sob pena de ferir a própria autonomia das partes. Nesse sentido: Silvio de Salvo Venosa, Lei do Inquilinato Comentada – Doutrina e Prática, São Paulo: Atlas, 2010, p. 228; José Carlos de Moreira Salles, Ação Renovatória de Locação Comercial, 2ª ed, São Paulo: RT, 2002, p. 61. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 399 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 22. Contudo, pelas razões já expostas, notadamente, a contrariedade à própria finalidade do instituto, bem como o perigo de eternização do contrato de locação, aliados à própria praxe comercial, no sentido de que há direito à renovação da avença locatícia por 5 (cinco) anos, não vejo razão para alterar esse entendimento, inclusive já firmado por esta Corte. 23. Por essa razão, a pretensão inicial dos recorrentes, no sentido de que a renovação do contrato deveria se dar por 10 anos, haja vista ser esse o resultado da soma da vigência dos dois contratos celebrados pelas partes, não merece prosperar. Repita-se: o prazo máximo da renovação é de 5 (cinco) anos. Nesse sentido, outrossim, a lição de José Carlos de Moreira Salles: De fato, firmando contratos sucessivos e com prazos inferiores a cinco anos, locador e locatário manifestaram, inicialmente, a intenção de não submeter a locação ao regime do art. 51 da Lei n. 8.245/1991. Se, posteriormente, por desídia ou até por mudança de intenção, o locador aquiesceu em firmar um último contrato, sabendo que a soma do prazo deste com os prazos dos anteriores faria a locação cair sob o domínio da ação renovatória, não se eximirá ele dos efeitos desta. Porém, não será justo que, nesta hipótese, se submeta à renovação por prazo superior ao de cinco anos porque nunca, nos contratos anteriores, se sujeitou sequer ao prazo mínimo para o exercício daquela ação (cinco anos). Também não será justo que o locatário – que pelos contratos anteriores, isoladamente considerados, não tinha nenhum direito à renovação – passe, pela soma dos prazos contratuais, a ter esse direito e, ainda, por prazo superior ao mínimo exigido pela lei para o exercício da ação renovatória” (Op. Cit. p. 61) 24. Estabelecido o prazo máximo da renovação na hipótese, resta definir qual deve ser o prazo mínimo. A questão ganha relevância quando é necessária a soma dos prazos dos contratos para se chegar ao mínimo de 5 anos (“accessio temporis”). 25. Com efeito, nessas hipóteses, o último contrato de locação, que serviu para completar o prazo, pode ter sido firmado por períodos reduzidos de tempo, como 1 (um), 2 (dois) anos, ou até menos. 26. Nesse particular, ao interpretar o art. 51, caput, da Lei n. 8.245/1991, a 3ª Seção desta Corte firmou entendimento no sentido de que a renovação devese dar pelo prazo previsto no último contrato, seja ele qual for. Assim é o teor dos julgados já mencionados no item 20 supra. 27. Todavia, quando o artigo de lei supramencionado dispõe que o locatário terá direito à renovação do contrato “por igual prazo”, entendo que ele esteja se referido ao prazo mínimo exigido pela legislação, previsto no inciso II do art. 400 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 51, da Lei n. 8.245/1991, para a renovação, qual seja, de 5 (cinco) anos, e não ao prazo do último contrato celebrado pelas partes. É esse, no meu sentir, o espírito da lei. 28. Admitir o contrário implicaria termos de conviver com situações absurdas, como aquela apontada por Sylvio Capanema de Souza: Se o último contrato, que é objeto da renovação e que completou o quinquênio, foi celebrado pelo prazo de um ano, por exemplo, qual deverá ser o prazo do contrato novo? Se adotarmos uma interpretação literal, o novo contrato será, também, de um ano, para se respeitar o mesmo prazo. Mas isso nos levará a situações absurdas, contrárias ao espírito da lei e que colidem, inclusive, com o princípio da economia processual. Se a renovação, no exemplo acima formulado, se fizer por um ano, teria o locatário que ajuizar ações renovatórias semestrais, assoberbando o Poder Judiciário, e criando um grande tumulto processual, já que as ações se atropelariam, em pleno curso (Op. Cit., p. 214) (sem destaque no original) 29. A interpretação do art. 51, caput, da Lei n. 8.245/1991, portanto, deverá se afastar da literalidade do texto, para considerar o aspecto teleológico e sistemático da norma, que prevê, no próprio inciso II do referido dispositivo, o prazo de 5 (cinco) anos para que haja direito à renovação, a qual, por conseguinte, deverá ocorrer, no mínimo, por esse mesmo prazo. 30. No mesmo sentido, a lição de Amador Paes de Almeida, Locação Comercial – Ação renovatória, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 53; José Carlos de Moreira Salles, Ação Renovatória de Locação Comercial, 2ª ed., São Paulo: RT, 2002, p. 57; José Roberto Neves Amorim, Revisional e Renovatória de Locação, in Francisco Antonio Casconi e José Roberto Neves Amorim (coord)., Locações Aspectos Relevantes, aplicação do Novo Código Civil, São Paulo: Método, 2004, p. 113-121; Silvio de Salvo Venosa, Lei do Inquilinato Comentada – Doutrina e Pratica, São Paulo: Atlas, 2010, p. 228; e o Enunciado n. 6 do extinto 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo. 31. Em síntese, nos termos do art. 51 da Lei n. 8.245/1991, a renovação do contrato de locação não residencial, nas hipóteses de “accessio temporis”, dar-se-á pelo prazo de 5 (cinco) anos, independentemente do prazo do último contrato que completou o quinquênio necessário ao ajuizamento da ação. O prazo máximo da renovação também será de 5 (cinco) anos, mesmo que a vigência da avença locatícia, considerada em sua totalidade, supere esse período. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 401 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 32. Outrossim, no que tange ao argumento dos recorrentes de que deve ser levado em consideração o tempo de tramitação da ação renovatória, para se definir o prazo de renovação do contrato, podendo, em razão disso, ser superado o limite de 5 (cinco) anos, conforme entendeu a sentença de primeiro grau, não merece prosperar. 33. Nesse ponto, o acórdão foi preciso: “ao Juiz não é dado renovar por período que exige ação própria”. E, conquanto demorado, nada impedia que, no curso do processo, os locatários ajuizassem nova ação renovatória. 34. Com efeito, o art. 51, § 5º, da Lei n. 8.245/1991 dispõe sobre o prazo decadencial para propositura da ação renovatória, que, como todo prazo decadencial, não se interrompe nem se suspende. 35. Consequentemente, se, no curso do processo, decorrer tempo suficiente para que se complete novo interregno de 5 (cinco) anos, ao locatário cumpre ajuizar outra ação renovatória, a qual, segundo a doutrina, é recomendável que seja distribuída por dependência para que possam ser aproveitados os atos processuais como a perícia. Nesse sentido, mencione-se Silvio de Salvo Venosa, Lei do Inquilinato Comentada – doutrina e Pratica, São Paulo: Atlas, 2010, p. 228; e Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, Locação Questões Processuais e Substanciais, São Paulo: Malheiros, 5ª ed., 2009, p. 215. 36. Diante de todo o exposto, o acórdão recorrido deve ser reformado para que a vigência do contrato renovado seja de 5 (cinco) anos, ou seja, de 23.12.2003 a 23.12.2008. 2. Dos honorários advocatícios (violação dos arts. 20 e 21 do CPC) 37. Sustentam os recorrentes que, na hipótese, a sucumbência não foi recíproca, mas parcial, não podendo, assim, ser igualmente distribuídos os ônus e compensados os honorários. 38. Contudo, conforme o acórdão recorrido, na hipótese, houve sucumbência dos recorrentes quando ao prazo de renovação do contrato e também quanto ao valor do aluguel oferecido, justificando-se a distribuição equitativa dos respectivos ônus. 39. Esse entendimento coaduna-se com a jurisprudência pacífica desta Corte, no sentido de que, havendo sucumbência recíproca, devem-se compensar os honorários advocatícios. Inteligência do art. 21 do CPC c.c. a Súmula n. 306STJ. 402 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 40. Assim, ausente qualquer violação dos arts. 20 e 21 do CPC. Forte nestas razões, dou parcial provimento ao recurso especial apenas para alterar o prazo de vigência do contrato renovado, nos termos do voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.351.005-RJ (2012/0225898-0) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: Inducom Comunicações Ltda Advogados: Herlon Monteiro Fontes Márcio Vieira Souto Costa Ferreira e outro(s) Frederico Jose Ferreira Recorrente: Telecomunicações Brasileiras S/A - Telebrás Advogados: Gabriel Francisco Leonardos Elisa Bastos Mutschaewski e outro(s) Rafael Lacaz Amaral e outro(s) Recorrido: Os mesmos Recorrido: Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI Advogado: Márcia Vasconcelos Boaventura e outro(s) EMENTA Recurso especial. Direito Civil. Propriedade industrial. Invenção. Patente. Sistema Automático para Chamadas Telefônicas a Cobrar. Ação anulatória do cancelamento do registro da patente. Violação do art. 58 da Lei n. 5.772/1971. Falta de prequestionamento. Novidade. Suficiência descritiva do depósito. Reexame de provas. Inadequação da via. Súmula n. 7-STJ. Compartilhamento da titularidade da invenção entre o autor e terceiro. Pedido não compreendido nos limites da lide. Julgamento extra petita. Arts. 128 e 460 do CPC. Saneamento do vício. Art. 257 do RISTJ. 1. A ausência de prequestionamento da matéria suscitada no recurso especial, a despeito da oposição de embargos declaratórios, impede o conhecimento do recurso especial (Súmula n. 211-STJ). RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 403 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2. O conhecimento do recurso especial, no que se refere à aferição da natureza de novidade da invenção objeto do depósito de patente, bem como da suficiência descritiva deste, demanda nova incursão fático-probatória, inviável tendo em vista a incidência da Súmula n. 7-STJ. 3. O interesse em recorrer resulta da conjugação de dois fatores: (i) da utilidade da interposição do recurso - que consiste na possibilidade de obtenção pelo recorrente de um resultado que corresponda à situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que aquela resultante da decisão recorrida e (ii) da necessidade de sua utilização - que se revela por sua imprescindibilidade para que o recorrente alcance a vantagem almejada. 4. Carece de interesse recursal a parte ré quanto à pretensão de extipar do acórdão impugnado matéria estranha, configuradora de julgamento extra petita, mas que não lhe diz respeito por versar sobre relação jurídica distinta - havida entre a parte autora da demanda e terceiro não chamado a integrar a lide. 5. Reconhecido o cabimento do especial, cumpre ao Superior Tribunal de Justiça julgar a causa aplicando o direito à espécie, a teor do art. 257 do RISTJ. 6. Consoante o disposto pelo art. 128 do CPC, o autor fixa os limites da lide e da causa de pedir na petição inicial, cabendo ao juiz decidir de acordo com esse limite. É justamente por tal motivo que não é dado ao julgador proferir sentença acima, fora ou aquém daquilo que foi postulado. 7. Estando o pedido autoral adstrito à anulação da decisão administrativa do INPI, que, a pedido da Telebrás, cancelou o registro da patente do “Sistema Automático para Chamadas Telefônicas a Cobrar”, não é dado ao julgador, sob pena de incorrer em julgamento extra petita, decidir sobre a existência de relação jurídica diversa, relativa à eventual necessidade de divisão da titularidade do registro entre a parte autora e empresa distinta, que não pretendeu tal solução em juízo e sequer chegou a integrar a presente lide. 8. Recurso especial da Telebrás não conhecido e recurso especial da Inducom provido para, aplicando o direito à espécie, afastar do acórdão recorrido o capítulo que configurou julgamento extra petita. 404 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA ACÓRDÃO A Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial de Inducom Comunicações Ltda e não conhecer do recurso especial de Telecomunicações Brasileiras S/A - Telebrás, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Dr(a). Frederico Ferreira, pela parte recorrente: Inducom Comunicações Ltda Brasília (DF), 1º de outubro de 2013 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 7.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de dois recursos especiais, o primeiro interposto por Inducom Comunicações Ltda. (e-STJ fls. 2.080-2.087) e o segundo interposto por Telecomunicações Brasileiras S.A. Telebras (e-STJ fls. 2.093-2.113), ambos com fulcro na alínea a do artigo 105, inciso III, da Constituição Federal, contra acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Consta dos autos que, em junho de 1980, Adenor Martins de Araújo, então empregado da Telecomunicações de Santa Catarina - TELESC (subsidiária, à época, do sistema Telebras) depositou no Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI pedido de registro de patente de invenção a que denominou “Sistema Automático para Chamadas Telefônicas a Cobrar”, que também se tornou conhecida como “DDC” - abreviação de “discagem direta a cobrar”. Durante o processamento do pedido de registro da patente, o depositante, pretenso inventor do sistema, transferiu sua titularidade à primeira recorrente - Inducom Comunicações Ltda. Esta, tão logo concedido o registro da patente (por despacho publicado em janeiro de 1984), passou a contactar as diversas empresas de telefonia do Brasil objetivando estabelecer negociações para fins de recebimento dos royalties que lhe seriam devidos pelo uso do invento patenteado. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 405 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ocorre que, em 17.1.1985, a segunda recorrente - Telebras - protocolizou no INPI pedido de cancelamento da carta patente expedida (de n. 8003673-0). Naquela oportunidade, a então requerente fundou seu pleito em dois principais argumentos: (i) que a suposta invenção, na data do depósito, não teria a característica da novidade, por já estar compreendida no estado de técnica e (ii) que o relatório descritivo apresentado pelo depositante seria insuficiente para a concessão da patente, por tornar inexequível o sistema por técnico no assunto. Após o regular trâmite administrativo, mais especificamente em 2.7.1985, deferiu-se o pedido de cancelamento da patente. Referida decisão foi objeto, ainda, de recurso administrativo, indeferido por decisão publicada em 13.1.1987. Diante dos fatos narrados, Inducom Comunicações Ltda. ajuizou, em maio de 1988, a ação que deu origem aos presentes autos, objetivando única e exclusivamente a anulação da decisão administrativa de cancelamento, para que seja a patente considerada em plena valia. O Juízo de primeiro grau julgou procedente o pedido formulado na exordial para declarar “nulo o ato administrativo do INPI, através do qual cancelou a Carta Patente n. 8003673 (depósito), de 24.1.1984, bem como os atos administrativos posteriores, ao depósito vinculados” e reconhecer “a validade da carta patente, n. do depósito 8003673, desde a sua expedição em 24.1.1984”. Na ocasião, condenou o INPI e a Telebras ao pagamento das custas judiciais e dos honorários periciais e sucumbenciais, estes últimos fixados em 20% (vinte por cento), incidentes sobre o valor atualizado da causa (e-STJ fl. 1.276). Inconformados, INPI e Telebras interpuseram recursos de apelação (e-STJ fls. 1.292-1.295 e 1.309-1.353). A Corte de origem, por maioria de votos, deu provimento aos apelos interpostos, bem como à remessa necessária, para, reformando a sentença, concluir pela legalidade do ato administrativo de cancelamento da patente, invertendo os ônus sucumbenciais (e-STJ fls. 1.677-1.772). A autora da demanda - Inducom - interpôs embargos infringentes (e-STJ fls. 1.831-1.867), pretendendo fazer prevalecer o voto vencido, que negava provimento aos apelos e à remessa necessária, para confirmar a sentença primeva (e-STJ fls. 1.764-1.765). A Primeira Seção Especializada do TRF da 2ª Região, também por maioria de votos, deu parcial provimento aos embargos em aresto assim ementado: Propriedade industrial. Patente. Invenção. Novidade. Estado da técnica. Inventor. Definição. 406 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 1. Nos embargos infringentes, o órgão julgador não está adstrito às razões invocadas no voto minoritário, não obrigando, com isso, o recorrente a proceder a uma repetição dos fundamentos esposados no voto vencido. Assim, o que prevalece efetivamente é a divergência entre a conclusão dos votos vencedores e vencidos e não, exclusivamente, fundamentos. 2. A novidade de um determinado pedido de patente é excluída pelo uso anterior ou pela divulgação anterior do seu objeto. No caso vertente, o voto vencedor menciona o fato de que vários jornais haviam se manifestado sobre o invento em si e que isso seria suficiente para revelar o conteúdo do pedido da patente. Ocorre que, uma leitura das aludidas notícias jornalísticas demonstra que estas guardavam um cunho meramente informativo e comercial, não divulgando dessa forma, os pontos característicos da patente. 3. Define-se estado da técnica como tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data do pedido de patente, por uso ou por qualquer meio no Brasil ou no exterior. Tornar público um conhecimento implica necessariamente em se constatar suficiência na divulgação, isto é, uma transmissão de conhecimento da regra técnica que não esteja subordinada a uma obrigação de guardar segredo, ainda que implícita, vez que o direito à proteção não pode ser afetado por fatos que configuram a própria dinâmica da inovação. 4. Quando o INPI define que há suficiência descritiva, que é um dado objetivo, não pode, posteriormente, modificar a sua opinião, principalmente se a insuficiência descritiva era em relação a aspectos meramente formais. Se fosse um aspecto material, ainda seria razoável, mas não em se tratando de um aspecto meramente formal. 5. À causa em análise deve ser aplicado o art. 42 do antigo CPI, considerando que o empregado desenvolveu um invento de moto-próprio, sem qualquer colaboração, mas ele precisou do empregador para proceder aos testes, ou seja, ele precisou de recursos, dados, meios, materiais, instalações, equipamentos, do empregador para empregar nos testes. Assim, seria o caso de se dividir meio a meio qualquer ganho relacionado ao invento. 6. Embargos infringentes parcialmente providos (e-STJ fls. 2.029-2.030). Ao assim decidir, a Corte de origem, consoante se extrai da parte dispositiva do voto condutor do julgado, anulou o ato administrativo que cancelou a Carta Patente n. 8003673, determinando, contudo, a aplicação do art. 42 da Lei n. 5.772/1971 para dividir os ganhos advindos da invenção entre a pessoa de seu inventor e sua empregadora à época do invento, Telecomunicações de Santa Catarina - TELESC (a que o Tribunal Regional afirmou ter sido sucedida pela Telebras). RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 407 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Contra o julgado, tanto a Telebras quanto a Inducom opuseram embargos de declaração (e-STJ fls. 2.036-2.044 e 2.048-2.051). Em suas razões de embargar, a Telebras apontou a existência de obscuridades, objetivando, nesse particular, conferir efeitos infringentes ao aresto embargado. Afirmou a existência de erro material, visto que, ao contrário do decidido, a TELESC (empregadora do suposto inventor do sistema cuja patente se discute) teria sido sucedida pela Brasil Telecom S.A., parte que sequer figurou na demanda. Sustentou, ainda, que a Corte de origem promoveu julgamento extra petita, haja vista não estar a questão relativa à necessidade de divisão dos ganhos oriundos da patente compreendida no pedido autoral, mesmo porque diz respeito à relação jurídica existente entre autora e pessoa jurídica distinta, que não foi chamada a integrar o polo passivo da demanda. A Inducom, por sua vez, afirmou omisso o julgado no tocante à distribuição dos ônus sucumbenciais. Pugnou, ainda, que fosse levado em consideração, para o afastamento da incidência do art. 42 da Lei n. 5.772/1971, o teor de despacho proferido pelo então Diretor de Operações da TELESC, no qual se revelaria a abdicação, por parte da empresa, de quaisquer direitos pelos testes do sistema “DDC” ali realizados. A Corte de origem acolheu parcialmente ambos os embargos apenas para: (i) com relação aos primeiros, admitir a existência de erro material na indicação da sucessora da TELESC, reconhecendo como tal a Brasil Telecom S.A., e (ii) com relação aos segundos, fixar a distribuição dos ônus sucumbenciais. Segue a ementa do aresto dos aclaratórios: Processual Civil. Embargos de declaração em apelação cível. 1. Os embargos de declaração não são meio próprio ao reexame da causa, devendo limitar-se ao esclarecimento de obscuridade, contradição ou omissão. 2. O acórdão incorreu em erro material, uma vez que a Telecomunicações Brasileiras S/A - Telebrás, ao contrário do afirmado no acórdão embargado, não é sucessora da TELESC, papel que cabe, na verdade, a Brasil Telecom S/A. Além disso, o acórdão incorreu em omissão em relação à fixação dos ônus de sucumbência, razão pela qual, considerando que o acórdão concluiu por dar parcial provimento aos embargos infringentes, mostra-se razoável a fixação do pagamento de custas e honorários de sucumbência no patamar de 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, pro rata. 3. Embargos de declaração parcialmente providos (e-STJ fl. 2.076). 408 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Diante de tais circunstâncias, deu-se a interposição dos recursos especiais que ora se apresentam. Em suas razões (e-STJ fls. 2.080-2.087), a primeira recorrente - Inducom Comunicações Ltda. - aponta ofensa ao art. 42 da Lei n. 5.772/1971 (atual art. 91 da Lei n. 9.279/1996), sob dois fundamentos: (i) porque “a melhor interpretação da norma em referência não pode permitir que a simples execução de testes pelo empregador se equipare aos mecanismos facilitadores descritos no texto legal”, não se justificando, assim, a divisão da propriedade da patente entre a TELESC - empregadora - e seu empregado, o inventor (e-STJ fl. 2.085) e (ii) porque o referido dispositivo legal não teria aplicação à hipótese por força de despacho proferido pelo superior hierárquico do empregado inventor nos seguintes termos: “o teste poderá ser executado e a aplicação pela TELESC do projeto não implicará em direitos por parte da mesma e sim como mero consentimento pelo inventor” (e-STJ fl. 2.087). Por seu turno, a segunda recorrente - Telecomunicações Brasileiras S.A. - Telebras - aduz, em seu arrazoado recursal (e-STJ fls. 2.093-2.113), estar configurada a violação dos arts. 6º, caput e §§ 1º e 2º, 7º e 55, alínea a, todos da Lei n. 5.772/1971. Nesse ponto específico, insiste na alegação de que o invento, quando do depósito, não era mais patenteável. Reafirma que os testes públicos do sistema “DDC” realizados pela TELESC, com autorização de seu pretenso inventor, em momento anterior ao depósito da patente, retiraram sua novidade, requisito legalmente indispensável para o registro, que, desse modo, teria sido acertadamente cancelado pelo INPI. Afirma que a Corte de origem negou vigência ao art. 58 da Lei n. 5.772/1971, tendo em vista que este autorizaria o cancelamento, pelo INPI, do registro da patente não só pela falta de novidade suscitada, mas, também, pela constatada insuficiência do relatório descritivo do depósito da patente. Ao final, aponta como violado o art. 460, caput, do Código de Processo Civil, porquanto configuraria julgamento extra petita a incursão promovida pelo aresto recorrido na questão relativa à eventual divisão dos ganhos resultantes do reconhecimento da validade da Carta Patente n. 8003673 entre o empregado inventor e a TELESC. Sustenta, nesse particular, que o objeto da presente ação está adstrito à discussão a respeito da validade da patente e, que, além disso, a Brasil Telecom S.A., sucessora da TELESC, sequer figurou como parte na demanda. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 409 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Apresentadas contrarrazões (e-STJ fls. 2.218-2.232 e 2.234-2.246), e admitidos ambos os apelos nobres, ascenderam os autos a esta Corte Superior. O Ministério Público Federal emitiu parecer (e-STJ fls. 2.268-2.271), opinando pelo não conhecimento dos recursos. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): Antes de proceder à análise das pretensões encartadas nas razões dos dois recursos especiais ora trazidos à apreciação, impõe-se discorrer brevemente sobre as premissas fáticas da demanda e que, seja porque incontroversas, seja porque definitivamente dirimidas pelas instâncias ordinárias com esteio no acervo probatório carreado aos autos, devem ser tomadas por verdadeiras. No final da decáda de 70, o Sr. Adenor Martins de Araújo, então empregado da TELESC, inventou, com recursos próprios, o sistema que permite a realização de chamadas telefônicas a cobrar de forma totalmente automatizada. Com ele, permitiu-se ao usuário do serviço de telefonia que, na realização de chamada telefônica, a partir da inclusão do dígito 9 (nove) ao número de telefone chamado precedido do prefixo nacional (zero) e do código de área de destino (composto de dois outros dígitos), conseguisse realizar chamada que, de modo automático, possibilitasse ao destinatário assumir o ônus de custear a ligação que recebia, o que se dava pelo simples fato de o destinatário permanecer “na linha”, aguardando a reprodução da gravação: “Chamada a cobrar. Para aceitá-la, continue na linha após a identificação”. A invenção, antes de ter seu uso massificado, foi objeto de testes realizados em Municípios do interior de Santa Catarina, com autorização concedida ao inventor pela própria TELESC. O Sr. Adenor, em junho de 1980, depositou o requerimento do registro da patente, que foi concedida e anos depois cancelada pelo INPI. Cancelamento este que se deu a requerimento da Telebras. A ação que deu origem aos presentes recursos especiais foi ajuizada em maio de 1988 e encerra, tão somente, a pretensão da empresa Inducom (que adquiriu do inventor - Sr. Adenor - a titularidade dos direitos da patente) de ver reconhecida a nulidade da decisão que, administrativamente, cancelou a Carta Patente n. 8003673-0, relativa ao invento supra descrito. 410 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Integram o polo passivo da demanda somente o INPI e a Telebras. Após mais de 22 anos em curso, a causa foi definitivamente julgada pela Primeira Seção Especializada do TRF da 2ª Região que, ao dar parcial provimento aos embargos infringentes interpostos pela empresa autora, reconheceu a procedência do único pedido formulado na exordial - de nulidade do cancelamento do registro e, consequentemente, da declaração de validade da Carta Patente n. 8003673-0). No entanto, foi além, decidindo também sobre a necessidade de aplicação à hipótese da inteligência do art. 42 do revogado Código da Propriedade Industrial (Lei n. 5.772/1971), dividindo, assim, entre a autora da demanda e a TELESC (na condição de empregadora do inventor) a titularidade da patente. O objeto de ambos os recursos especiais que se afiguram é o aresto naquela ocasião exarado. Feita a breve introdução, passa-se à apreciação pontual de cada um dos recursos, a começar pelo especial intentado pela Telebras, apenas para facilitar o desencadeamento lógico de ideias. DO RECURSO ESPECIAL DE TELECOMUNICAÇÕES BRASILEIRAS S.A. - TELEBRAS (e-STJ fls. 2.093-2.113). Consoante o já relatado, a irresignação recursal da Telebras está assentada nas alegações de supostas ofensas aos seguintes dispositivos legais com as respectivas teses: (i) arts. 6º, caput e §§ 1º e 2º, 7º e 55, alínea a, da Lei n. 5.772/1971 - porque resultaria evidente das provas colhidas nos autos que o sistema “DDC”, quando do depósito não era mais patenteável. Isso porque os testes públicos realizados pela TELESC, com autorização de seu pretenso inventor, em momento anterior ao depósito da patente, retiraram sua novidade, requisito legalmente indispensável para o registro que, deste modo, teria sido acertadamente cancelado pelo INPI; (ii) art. 58 da Lei n. 5.772/1971 - porque este dispositivo legal autorizaria o cancelamento, pelo INPI, do registro da patente não só pela falta de novidade suscitada, mas, também, pela constatada insuficiência do relatório descritivo de seu depósito, e (iii) art. 460, caput, do Código de Processo Civil - pois configuraria julgamento extra petita a incursão promovida pelo aresto recorrido no ponto RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 411 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA relativo à eventual divisão dos ganhos resultantes do reconhecimento da validade da Carta Patente n. 8003673 entre o empregado inventor e a TELESC, matéria que não está adstrita ao pedido formulado na inicial, além de ser de interesse de pessoa jurídica que não integrou a lide, a empresa Brasil Telecom S.A., real sucessora da TELESC. Como se vê, cingem-se as pretensões da recorrente ao cancelamento da patente e ao reconhecimento de que a Corte de origem promoveu julgamento extra petita ao avançar sobre a discussão acerca da aplicação ao caso do art. 42 da Lei n. 5.772/1971. Não merecem acolhida as pretensões recursais. Isso porque, o apelo nobre não se faz merecedor de conhecimento. Com efeito, no tocante à aludida violação do art. 58 da Lei n. 5.772/1971, verifica-se que a matéria versada no referido dispositivo legal - relativa à possibilidade de cancelamento administrativo do privilégio da patente - não foi objeto de debate pelas instâncias ordinárias, sequer de modo implícito, apesar da oposição de embargos declaratórios. Por esse motivo, ausente o requisito do prequestionamento, incide o disposto na Súmula n. 282-STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. Desatendido, portanto, o requisito do prequestionamento também nos termos da Súmula n. 211-STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo”. Nesse sentido: Agravo regimental. Agravo de instrumento. Recurso especial. Execução. Princípio da menor onerosidade. Interesse do credor. Prequestionamento. Súmula n. 211-STJ. Reexame de provas. Súmula n. 7-STJ. 1.- O princípio da menor onerosidade ao devedor deve estar em harmonia com o interesse do credor. 2.- O prequestionamento, entendido como a necessidade de o tema objeto do recurso haver sido examinado pela decisão atacada, constitui exigência inafastável da própria previsão constitucional, ao tratar do recurso especial, impondo-se como um dos principais requisitos ao seu conhecimento. Não examinada a matéria objeto do especial pela instância a quo, mesmo com a oposição dos embargos de declaração, incide o Enunciado n. 211 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça. 412 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA (...). 4.- Agravo Regimental improvido. (AgRg no AREsp n. 158.707-SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 22.5.2012, DJe 5.6.2012). Agravo regimental. Agravo de instrumento. Ausência de prequestionamento. Súmula n. 211-STJ. Ação rescisória. Violação à coisa julgada. Verificação. Impossibilidade. Reexame de provas. Súmula n. 7-STJ. 1. Carece do necessário prequestionamento a matéria não debatida pelo Tribunal de origem, ainda que opostos embargos de declaração. Incidência da Súmula n. 211-STJ. (...). 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag n. 1.327.008-GO, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 15.3.2012, DJe 21.3.2012). Ademais, não há como aferir, na via especial, se existente a suscitada ofensa aos arts. 6º, caput e §§ 1º e 2º, 7º e 55, alínea a, da Lei n. 5.772/1971. Isso porque, nesse ponto específico, a pretensão da recorrente repousa no anseio de ver infirmadas as conclusões da Corte de origem pela novidade da invenção e suficiência descritiva do depósito. Tais requisitos, acaso afastados, revelariam a viabilidade do cancelamento pretendido pela Telebras administrativamente. Todavia, da simples leitura do voto condutor do julgado hostilizado, extraise que as mencionadas conclusões resultaram do exame de provas e fatos que permearam a demanda. A propósito, merece destaque o seguinte excerto do aresto impugnado: Inicio a minha análise pela avaliação do requisito da novidade. Uma breve cronologia dos fatos revela que, em outubro de 1979, ocorreu o pedido do Sr. Adenor Martins de Araújo à Telecomunicações de Santa Catarina S.A. - TELESC S.A. para realização dos testes, tendo estes se iniciado em dezembro de 1979, e, em 12 de junho de 1980, o pedido da patente de invenção foi depositado. Com efeito, a novidade de um determinado pedido de patente é excluída pelo uso anterior ou pela divulgação anterior do seu objeto. Em relação às notícias de jornal, a douta Juíza Federal convocada Márcia Helena Nunes, menciona, no voto vencedor, que vários jornais haviam se manifestado sobre RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 413 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA o invento em si e que isso seria suficiente para revelar o conteúdo do pedido da patente. Ocorre que, uma leitura das aludidas notícias jornalísticas demonstra que estas guardavam um cunho meramente informativo e comercial, não divulgando, dessa forma, os pontos característicos da patente. Em outras palavras, as características essenciais da patente não foram desvendadas a ponto de um técnico no assunto poder, efetivamente, produzir o mesmo objeto. Tal circunstância está, inclusive, disposta na resposta ao quesito n. 6 do laudo do perito judicial (fls. 1.090). Assim, entendo que, com relação às noticias publicadas nos jornais, não houve ferimento à obrigatoriedade da novidade. Já com relação aos testes realizados pela Telecomunicações de Santa Catarina S.A. - TELESC S.A., o voto vencedor se pronunciou nos seguintes termos: (...) Que os testes tenham sido realizados em Blumenau (15.1.1980 central 22), até então concordo com a autora e com o perito: era necessário. Entretanto, creio que a situação escapou ao controle de Adenor, na medida em que, de acordo com o noticiado nos autos do procedimento administrativo, antes mesmo do depósito da patente, o sistema já havia sido instalado comercialmente em várias cidades do Estado de Santa Catarina, com Brusque, Itajaí, Balneário de Camboriú, Itapema, Porto Belo e Piçarras (desde 15.2.1980), Florianópolis (desde 10.4.1980, e também 6.5.1980, central 44) e Criciúma (também 6.5.1980), tudo conforme as notícias no jornal catarinense O Estado, de 15.12.1980 (fl. 106 do apenso), de 10.4.1980 (fls. 107-8 do apenso) e 6.5.1980 (fl. 109 do apenso). Além disso, a matéria no jornal O Estado dizia que: ‘Este sistema foi testado e aprovado em Blumenau e até o final do ano a Telesc pretende implantá-lo em todos os municípios do estado que dispõe de DDD (fls. 1.634-1.635). Resta, pois, definir se os testes feitos pela TELESC correspondem, efetivamente, a uso, considerando que a questão está sob a égide do antigo Código de Propriedade Industrial, uma vez que os fatos datam de 1980. Nessa seara, observa-se que, com base no antigo Código de Propriedade Industrial, assim como o faz a LPI, a definição do que seja novidade exclui o teste. Define-se estado da técnica como tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data do pedido de patente, por uso ou por qualquer outro méio no Brasil ou no exterior. Tornar público um conhecimento implica necessariamente em se constatar suficiência na divulgação, isto é, uma transmissão do conhecimento da regra técnica que não esteja subordinada a uma obrigação de guardar segredo, ainda 414 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA que implícita, vez que o direito à proteção não pode ser afetado por fatos que configuram a própria dinâmica da inovação. Nesse sentido, inexiste, nos autos, prova de que o produto tenha sido divulgado a terceiros que não à TELESC, demonstrando, ainda que implicitamente, a existência de uma obrigação de segredo travada entre esta e o inventor. Ademais, um teste não pode ser tido como a mesma coisa que uso, ou seja, esses dois conceitos não podem ser equiparados. Desta forma, entendo que o teste feito pela TELESC não impede a concessão da patente de invenção. Passo, em seguida, a avaliar se a questão saiu realmente do controle do inventor, assim como entendeu a douta Juíza Federal Convocada Márcia Helena Nunes no voto vencedor. Com efeito, teria saído do controle apenas se tivesse havido exploração comercial, o que não ocorreu na hipótese em tela, na qual houve apenas a continuação dos testes. Outro aspecto alegado é a insuficiência descritiva. Nesse particular, o voto do eminente Desembargador Federal Sérgio Feltrin Côrrea bem abordou a questão: O relatório descritivo contém a definição do invento, sua área de aplicação, o estado da técnica considerado pelo depositante, a solução proposta para o problema técnico existente, bem como as vantagens do invento. Observa-se que o INPI, inicialmente, entendeu que o relatório descritivo era suficiente, tanto que deferiu a patente e, posteriormente, chegou à conclusão de que a descrição era insuficiente. Ocorre que, como bem ponderado no voto vencido, as exigências realizadas pelo INPI possuíam aspecto meramente formal, como, por exemplo, deslocar uma reivindicação de um item para outro. Cumprida a exigência, o parecer final do INPI foi dados nos seguintes termos: O depositante cumpriu, satisfatoriamente, as exigências publicadas na RPI n. 632 e o pedido se encontra agora em condições de obter o privilégio requerido. Opinamos pelo deferimento, devendo integrar a carta-patente os seguintes documentos (...) Assim, os aspectos meramente formais foram amplamente superados, tanto que o parecer da autarquia marcária foi favorável, ou seja, o examinador do INPI analisou e entendeu que houve a suficiência descritiva. Destaque-se que a suficiência descritiva se constitui em um dado objetivo do processo administrativo. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 415 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Partindo dessa premissa, surge a pergunta: se objetivamente o INPI entendeu que havia suficiência descritiva, um outro técnico, em um, momento posterior, pode concluir por sua inexistência, tratando-se de um dado objetivo? Parece-me que se sujeitar a diversas opiniões, sobretudo quando diametralmente opostas, em situações limites, significaria nunca dar fim ao processo. Cada vez que um servidor examinasse, ia achar que havia suficiência e um outro achar que havia insuficiência. Dessa forma, creio que, quando o INPI define que há suficiência descritiva, que é um dado objetivo, não pode, posteriormente, modificar a sua opinião, principalmente se a insuficiência descritiva era em relação a aspectos meramente formais. Se fosse um aspecto material, ‘ainda seria razoável, mas não em se tratando de um aspecto meramente formal (e-STJ fls. 2.021-2.025 - grifou-se). Assim como posta a matéria, a verificação da procedência dos argumentos expendidos no recurso - pela ausência de novidade da invenção no momento do depósito ou pela insuficiência descritiva deste - exigiria que esta Corte Superior promovesse, na via especial, profundo reexame de matéria fático-probatória, o que é vedado pela Súmula n. 7-STJ, consoante iterativa jurisprudência desta Corte. No tocante à alegação de que malferido o art. 460, caput, do CPC, a pretensão da recorrente de extipar do acórdão impugnado matéria estranha, configuradora de julgamento extra petita, encontra óbice em sua falta de interesse recursal para tanto. Como consabido, a noção de interesse processual está diretamente relacionada à conjugação da utilidade da providência judicial almejada e da necessidade da via escolhida para que tal providência seja alcançada. O interesse da parte em recorrer é aferido a partir dessa mesma ótica, sendo oportuna, nesse particular, a lição de José Carlos Barbosa Moreira, para quem o interesse em recorrer “resulta da conjugação de dois fatores: de um lado, é preciso que o recorrente possa esperar, da interposição do recurso, a consecução de um resultado a que corresponda situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que a emergente da decisão recorrida; de outro lado, que lhe seja necessário usar o recurso para alcançar tal vantagem” (Comentários ao Código de Processo Civil, 12ª ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 298). Com efeito, a incursão da Corte de origem no debate acerca da possibilidade de divisão dos ganhos advindos da patente entre o empregado inventor e sua empregadora TELESC não atinge em nada os direitos da Telebras, fato que, por si só, já revela sua ausência de interesse recursal quanto ao tema. 416 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA O eventual provimento do presente recurso, para que fosse ceifada do acórdão atacado a discussão referente à aplicação ou não do art. 42 da Lei n. 5.772/1971, não resultaria, do ponto de vista prático, em situação mais vantajosa para a Telebras. Além disso, não se pode admitir que seja por ela formulada pretensão em defesa de direito alheio, no caso, eventual direito da Brasil Telecom S.A. de, na condição de sucessora da TELESC, demandar a titularidade da patente em tela através do ajuizamento de ação própria. Desse modo, também no que diz respeito à suscitada ofensa ao art. 460 do CPC, não merece conhecimento o recurso especial, desprovido que é de utilidade prática aos interesses da Telebras. Antecipe-se, todavia, que a questão relativa à ocorrência, no caso em apreço, de julgamento extra petita não está completamente superada. Será retomada logo adiante, quando da apreciação do recurso especial interposto por Inducom Comunicações Ltda. DO RECURSO ESPECIAL DE INDUCOM COMUNICAÇÕES LTDA. (e-STJ fls. 2.080-2.087). Versa o recurso especial de Inducom Comunicações Ltda. apenas sobre a suposta violação do art. 42 da Lei n. 5.772/1971 (atual art. 91 da Lei n. 9.279/1996). Pretende a recorrente afastar a conclusão da Corte de origem pela divisão da titularidade da patente entre ela (atual titular dos direitos do empregado inventor) e a Brasil Telecom S.A. (sucessora da TELESC - empregadora do inventor). Para tanto, firma sua irresignação recursal no fundamento de que “a melhor interpretação da norma em referência não pode permitir que a simples execução de testes pelo empregador se equipare aos mecanismos facilitadores descritos no texto legal” (e-STJ fl. 2.085). Aduz, ainda, que o referido dispositivo legal não teria aplicação à hipótese vertente por força de despacho proferido pelo superior hierárquico do empregado inventor nos seguintes termos: “o teste poderá ser executado e a aplicação pela TELESC do projeto não implicará em direitos por parte da mesma e sim como mero consentimento pelo inventor” (e-STJ fl. 2.087). Impõe-se destacar, inicialmente, que aberta está a via especial. O recurso preenche os requisitos de admissibilidade. É tempestivo, teve regularmente realizado seu preparo e a matéria federal inserta no dispositivo legal apontado como malferido encontra-se devidamente prequestionada. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 417 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Reconhecido o cabimento do especial, cumpre ao Tribunal julgar a causa aplicando o direito à espécie, a teor do art. 257 do Regimento Interno desta Corte Superior. Importante firmar tal premissa porque, no caso concreto, o exame acurado dos autos chama a atenção para a peculiaridade de que o único tema ventilado no especial diz respeito à questão que, por não estar compreendida nos limites da lide, não deveria ter sido apreciada pela Corte Regional. Consoante o disposto pelo art. 128 do CPC, o autor fixa os limites da lide e da causa de pedir na petição inicial, cabendo ao juiz decidir de acordo com esse limite. É justamente por tal motivo que não é dado ao julgador proferir sentença acima, fora ou aquém daquilo que foi postulado. Dessa ordem de ideias é que resulta a inteligência do art. 460 do CPC, segundo o qual “É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado. Na ação anulatória em apreço, o pedido formulado pela recorrente, a autora, se restringiu única e exclusivamente à anulação da decisão administrativa que cancelou o registro da patente do “Sistema Automático para Chamadas Telefônicas a Cobrar”. O debate a ser promovido durante o processamento e julgamento da demanda deveria, assim, permanecer adstrito a saber se o procedimento administrativo que concedeu o registro originário da patente carregava mácula que ensejasse seu posterior cancelamento pelo INPI. O juízo de origem, como já relatado, julgou procedente o pedido autoral. Reconheceu ser nulo o ato administrativo de cancelamento da Carta Patente n. 8003673, restabelecendo sua plena valia. A Corte de origem, em sede apelação e remessa necessária, entendeu de modo diametralmente oposto, mantendo hígida a decisão administrativa de cancelamento. Até então, ambas as instâncias ordinárias mantiveram-se adstritas ao pedido, situação que se altera quando do julgamento dos embargos infringentes. A Primeira Seção Especializada do TRF da 2ª Região, ao dar parcial provimento aos embargos infringentes interpostos pela empresa autora, reconheceu a procedência do único pedido formulado na exordial - de nulidade do cancelamento do registro e, consequentemente, da declaração de validade da Carta Patente n. 8003673-0. 418 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Nesse ponto, não se pode imputar ao julgado nenhum vício relativo à observância da necessidade de restringir a decisão ao pedido e à causa de pedir. Ocorre, porém, que a Corte Regional foi além do que devia, decidindo, por equívoco - provavelmente decorrente do fato de acreditar ser a Telebras e não a Brasil Telecom S.A. a sucessora da TELESC - sobre a necessidade de aplicação à hipótese da inteligência do art. 42 do revogado Código da Propriedade Industrial (Lei n. 5.772/1971), dividindo entre a autora da demanda e a TELESC (na condição de empregadora do inventor) a titularidade da patente. Ao assim decidir, a Corte de origem extrapolou os limites da demanda, proferindo julgamento extra petita, pois, repita-se, o pedido formulado pela recorrente se restringiu única e exclusivamente à anulação da decisão administrativa que cancelou o registro da patente, consoante se extrai da peça inaugural: (...) B) Se desacolhida a preliminar, no mérito, seja a ação julgada procedente, para o fim de ser anulada a decisão administrativa e seja considerada a patente, em plena valia, com condenação daquelas na forma da lei (e-STJ fl. 34 - grifou-se). Ademais, a um só tempo, impôs à autora da demanda o ônus de dividir a patente com empresa que nunca formulou tal pretensão e retirou desta, que sequer integrou a lide, o direito de pretender a integral titularidade do registro em ação própria. É clara a ofensa ao art. 460 do CPC. Impõe-se chamar o presente feito a ordem e extirpar daquele julgado, por óbvio, apenas aquilo que excedeu o pedido e a causa de pedir insculpidos na petição inaugural. Solução nesse sentido importa no reconhecimento da procedência do pedido autoral para, tal como fez o juízo de primeiro grau, (i) declarar “nulo o ato administrativo do INPI, através do qual cancelou a Carta Patente n. 8003673 (depósito), de 24.1.1984, bem como os atos administrativos posteriores ao depósito vinculados”; (ii) reconhecer “a validade da carta patente, n. do depósito 8003673, desde a sua expedição em 24.1.1984” e (iii) condenar o INPI e a Telebras ao pagamento das custas judiciais e dos honorários periciais e sucumbenciais, estes últimos fixados em 20% (vinte por cento) incidentes sobre o valor atualizado da causa (e-STJ fl. 1.276). Não se afigura razoável entendimento distinto, que imporia a esta Corte Superior a tarefa de decidir sobre a aplicação do art. 42 da Lei n. 5.772/1971 e definir se existente ou não eventual direito de compartilhamento da patente RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 419 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA entre a autora e a Brasil Telecom S.A., que não é parte na presente demanda. Título judicial nesse sentido, por estar carregado do vício de descumprimento do princípio da correlação entre pedido e sentença, se revelaria ineficaz, porquanto incapaz de produzir os efeitos da coisa julgada. Assim, reconhecida, de ofício, a ofensa ao art. 460 do CPC, e decotado do aresto recorrido a parte relativa ao julgamento extra petita, fica prejudicada a análise acerca da suposta violação do art. 42 da Lei n. 5.772/1971. DO DISPOSITIVO. Ante o exposto, não conheço do recurso especial interposto por Telecomunicações Brasileiras S.A. - Telebras (e-STJ fls. 2.093-2.113) e conheço do recurso especial interposto por Inducom Comunicações Ltda. (e-STJ fls. 2.0802.087) para, aplicando-se o direito à espécie, dar-lhe provimento para afastar do acórdão recorrido o capítulo que configurou julgamento extra petita, pelo que fica reconhecida a higidez da Carta Patente n. 8003673, com a condenação das partes recorridas, solidariamente, ao pagamento das custas processuais e honorários periciais e advocatícios, estes últimos fixados em 20% (vinte por cento) do valor atualizado da causa. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.370.109-DF (2011/0151132-8) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Emília Silva Mello e outros Advogado: Antônio Carlos de Oliveira e outro(s) Recorrido: ASMUT - Associação dos Mutuários e Consumidores de Imóveis e outros Advogado: Claudio Maranhao Queiroz e outro(s) EMENTA Direito Processual Civil. Ação de prestação de contas. Interesse de agir. Interesse de agir. Adequação da via eleita. 420 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 1.- A ação de prestação de contas não comporta a decretação de rescisão ou resolução contratual ou a anulação de negócios jurídicos nem tampouco a condenação pela prática de atos ilícitos. 2.- Não há que se falar em inadequação da via eleita, porém, quando se discute se o desconto dos valores repassados pelo advogado ao seu cliente correspondiam, de fato, aos honorários contratuais avençados. 3.- Admite-se, no âmbito da ação de prestação de contas, o acertamento das questões fáticas e jurídicas relacionadas à alegação de descumprimento contratual. 4.- Recurso Especial provido em parte. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedida a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Brasília (DF), 22 de outubro de 2013 (data do julgamento). Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 4.11.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Emília Silva Mello e Outros interpõem Recurso Especial com fundamento nas alíneas a e c, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Relator o Des. Jose Divino de Oliveira, assim ementado (fls. 290): Processo Civil. Ação de prestação de contas. Serviços advocatícios. Propósito de discutir as cláusulas relativas aos percentuais de êxito sobre as demandas propostas. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 421 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Inadequação da via eleita. Extinção do processo. 1- A ação de prestação de contas não é a via adequada para discutir eventual abusividade de cláusulas relativas a contrato de prestação dos serviços advocatícios. 11 - Negou-se provimento. 2.- Os Embargos de Declaração foram rejeitados (e-STJ fl. 305-306). 3.- Os recorrentes alegam que o Tribunal de origem teria violado o artigo 535 do Código de Processo Civil ao deixar de se manifestar adequadamente sobre os temas suscitados nos embargos de declaração. Alegam ofensa ao artigo 551 do Código de Processo Civil, porque a revisora teria recebido os autos em um dia e no dia seguinte, pedido dia para julgamento, o que demonstra, segundo sustentam, que ela não teria estudado o processo e, portanto, não teria exercido com critério o papel de revisora. Ressalta que o seu voto não foi suscinto, mas inexistente. Argumentam que a ação de prestação de contas seria via adequada para discutir a distribuição e recebimento de verba honorária entre advogados e cliente, sendo que que o Tribunal de origem, assim não entendendo, teria violado os artigos 914; 915, I; e 917 do Código de Processo Civil e ainda divergido do entendimento fixado em precedente desta Corte indicado como paradigma. 4.- Não admitido na origem, o Recurso Especial teve seguimento por força de Agravo provido em sede de Agravo Regimental (fls. 424). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 5.- Consta dos autos que os Recorrentes, condôminos do edifício Place Vendôme, teriam contratado os Recorridos para ajuizar três ações judiciais contra o Grupo OK: A primeira delas, uma ação cautelar, tinha por objetivo consignar as prestações que alguns adquirentes deviam ao Grupo OK. A segunda ação, a principal, visava a condenar o Grupo OK a indenizar defeitos de construção. A terceira ação, tinha por objetivo a outorga das escrituras públicas referentes às unidades habitacionais. 6.- Nesta última ação foi concedida tutela antecipada, determinadose a expedição das escrituras públicas, sob pena de multa diária. Transitada 422 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA em julgado a sentença que confirmou a antecipação de tutela, deu-se início à execução da multa, com levantamento pelos Recorridos, da quantia de R$ 173.482,56, dos quais teriam sido repassados aos Recorrentes, após descontados os honorários advocatícios contratados, apenas R$ 21.616,79. 7.- Os Recorrentes ajuizaram, então, ação de prestação de contas contra os Recorridos (fls. 05-16), alegando que estariam estes cobrando honorários indevidos. Argumentam que o contrato celebrado entre as partes estipulava estipulava a remuneração dos Recorridos com base em duas cláusulas de êxito: uma correspondente a 3% sobre o valor venal dos imóveis e outra de 10% sobre o montante que eventualmente viesse a ser recebido pelos Recorrentes, em razão do trabalho contratado. Afirmaram que não poderia ser cobrada a remuneração referente à 3% sobre o valor venal dos imóveis, porque, segundo contratado, isso somente seria possível depois que estivessem resolvidas todas as pendências existentes sobre a documentação dos imóveis, o que não teria ocorrido. Da mesma forma sustentaram que não poderia ter siso cobrada a verba correspondente a 10% sobre o montante recebido a título de multa cominatória, porque esse percentual remuneratório, estava relacionado aos valores que eventualmente viessem a ser recebidos na ação principal de indenização por vícios de construção, e não na ação proposta com o objetivo de receber as escrituras públicas dos imóveis. Além disso, a cláusula em referência teria sido revogada por outro contrato, não escrito, que estipulava a incidência do percentual de 10% sobre o valor dos imóveis indicados no IPTU ou no ITBI, e não sobre o valor venal do imóvel. 8.- A sentença extinguiu o feito sem julgamento do mérito, afirmando que os Autores, ora Recorrentes, pretendiam, em última análise, revisar as cláusulas do contrato, o que seria inviável em sede de ação de prestação de contas (fls. 232-234). 9.- O Tribunal de origem negou provimento ao recurso de apelação, sob o fundamento de que a ação de prestação de contas não era via adequada para se discutirem a validade e a forma de incidência das cláusulas contratuais relativas à remuneração dos serviços contratados. 10.- O Recurso Especial colhe êxito apenas em parte. 11.- Não prospera a indicada ausência de prestação jurisdicional, porquanto a matéria em exame foi devidamente enfrentada, emitindo-se pronunciamento RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 423 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de forma fundamentada e sem contradições. A jurisprudência desta Casa é pacífica ao proclamar que, se os fundamentos adotados bastam para justificar o concluído na decisão, o julgador não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos utilizados pela parte. 12.- Também não se acolhe a alegação de ofensa ao artigo 551 do Código de Processo Civil. A alegação de que o revisor não poderia ter pedido dia para julgamento da apelação no dia seguinte ao do recebimento do processo não serve para sustentar a tese de ofensa à regra prevista naquele dispositivo legal, muito pelo contrário serve para ratificar que o procedimento formal foi regularmente observado. O que ocorre é que os Recorrentes, muito embora tenham apontado como violado o artigo 551 do Código de Processo Civil questionam, na verdade, a própria fundamentação ou ausência de fundamentação do voto revisor e, nesse sentido, o artigo tido por violado é insuficiente. Incide, assim, nesse particular, a Súmula n. 284-STF. 13.- A matéria de fundo merece aprofundamento maior. 14.- A ação de prestação de contas apresenta, como se sabe, duas fases. Na primeira fase, diz o caput do artigo 915 do Código de Processo Civil: “Aquele que pretender exigir a prestação de contas requererá a citação do réu para, no prazo de 5 (cinco) dias, as apresentar ou contestar a ação”. Nessa fase, que é a do presente processo, o que se decide, portanto, ao menos em princípio, é apenas se o réu da ação está ou não obrigado a prestar as contas exigidas pelo autor, ou seja, se as partes estão ligadas em relação jurídica de que decorra, por sua natureza, o dever de prestar contas e, bem assim, se tal obrigação foi descumprida de modo a justificar a exigência judicial. Na segunda fase é que cabe, propriamente, examinar as contas apresentadas de modo a definir a eventual existência de saldo credor em favor de alguma das partes. A sentença que encerra essa segunda fase é que vai, não só declarar a conta certa, mas também criar a certeza quanto à existência de saldo devedor, afirmando quem é credor e quem é devedor desse saldo. Enquanto a natureza condenatória da sentença proferida na primeira fase dessa peculiar ação funda-se, eminentemente, em declaração de obrigação de fazer - de prestar contas, a natureza condenatória daquela proferida na segunda fase estabelece concretamente, uma obrigação de pagar, inclusive com eficácia executiva. 424 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 15.- No caso dos autos, o pedido de prestação de contas é dirigido a Advogados que teriam recebido, em nome dos autores recorrentes, valores a estes devidos. Não há dúvida, portanto, de que, ao menos em princípio, está configurada a obrigação de prestar contas resultante do princípio universal segundo o qual todos aqueles que administram ou têm sob sua guarda bens alheios, devem contas do fruto de sua gestão ao titular do direito administrado. No caso específico do profissional Advogado, essa obrigação ainda mais se impõe ante o disposto no artigo 34, XXI, da Lei n. 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), nos termos do qual constitui infração disciplinar do advogado “recusar-se, injustificadamente, a prestar contas ao cliente de quantias recebidas dele ou de terceiros por conta dele”. 16.- As instâncias de origem, como relatado, extinguiram o processo sem julgamento de mérito, por falta de interesse de agir. 16.1.- A mera existência de uma relação jurídica material de gestão de bens ou interesses alheios não basta, como se pode imaginar, para afirmar que a prestação de contas deva sempre ser feita em juízo. Se as partes se dispõem ao acerto direto ou extrajudicial das contas, faltará, por óbvio interesse de agir, configurando-se hipótese de carência de ação. Havendo, porém, recusa de prestar contas, ou, ainda, verificada controvérsia sobre a composição das verbas que hajam de integrar a o acerto, aí sim estará presente o interesse de agir, assim entendido como o interesse-necessidade. No caso dos autos, não há notícia de que as contas prestadas extrajudicialmente tenham sido aceitas pelos Recorrentes, o que permite concluir pela presença, em concreto, do interesse-necessidade no ajuizamento da ação de prestação de contas. 16.2.- Também não falta aos Recorrentes interesse de agir sob a perspectiva da utilidade no ajuizamento da ação (interesse-utilidade). Admitindo-se que a segunda fase da prestação de contas pode resultar em provimento judicial condenatório passível de execução, é de se concluir, por força de consequência, no sentido de consubstanciar-se posição jurídica favorável aos Recorrentes. 16.3.- Finalmente, no que concerne à adequação da via eleita (interesseadequação) é de se reconhecer que, ao contrário do que afirmado pelas instâncias de origem, a pretensão deduzida não está voltada, ao menos não em sua integralidade, à revisão de cláusulas contratuais. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 425 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A sentença, destaca uma passagem da petição inicial (tópico 15) para sustentar que a pretensão deduzida tem caráter revisional (fls. 09): Não assiste razão aos réus quando pretendem receber 3% sobre o valor dos imóveis de cada um dos autores; além de pretender mais 10% sobre o montante eventualmente recebido pelos autores, a título de cláusula de êxito. A interpretação de uma peça processual não pode ser feita, todavia, a partir de partes estanques, devendo-se buscar o pedido e a causa de pedir manifestados pela parte a partir da interpretação conjunta de toda a petição inicial. No caso, não se podem desconsiderar as seguintes passagens (fls. 09-10): 15. Não assiste razão aos réus quando pretendem receber 3% sobre o valor dos imóveis de cada um dos autores; além de pretender mais 10% sobre o montante eventualmente recebido pelos autores, a título de cláusula de êxito. 16.- A uma, porque nos contratos de prestação de serviços advocatícios firmados pelas partes a cláusula de êxito tem a seguinte redação: (...) 16.- Ora, está evidente que a obrigação assumida pelos réus foi de resolver todas as pendências existentes sobre a documentação dos imóveis em questão, inclusive a indisponibilidade determinada (...). 18.- A duas, porque os autores não firmaram contrato com os réus para pagamento desta cláusula de êxito de 10% sobre eventual recebimento de quantias. É importante destacar que esta cláusula de êxito de 10% sobre eventuais recebimentos de quantias ficou estipulada para a propositura da ação principal que teve por objeto a indenização por defeitos de construção nas áreas comuns do Condomínio e também nas áreas privativas das unidades (...) 19.- Assim, os réus, valendo-se dessa situação, tentam confundir os autores para cobrar honorários que são indevidos. (...) Como se vê, a tônica do pedido não remete à pretensão de revisão de cláusulas. O que os Recorrentes sustentaram na petição inicial, em síntese, foi que os Recorridos retiveram a título de honorários contratuais, valor superior àquele que, nos termos do próprio contrato, estavam autorizados a reter. Afirmou-se que os Recorridos não poderiam reter 3% sobre o valor venal dos imóveis, na ação destinada à regularização da situação registrária relativa a eles, porque esse seria o percentual devido em caso de adimplemento integral das obrigações assumidas para aquele feito. Assim, se não foi realizado o serviço contratado, não seria possível cobrar o percentual integral. A questão, como se 426 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA vê, não suscita revisão do contrato, mas a apuração do alegado descumprimento contratual. Afirmou-se, também, que, igualmente, não poderia ser retido o valor correspondente a 10% sobre o valor recebido, porque essa era a remuneração contratualmente estipulada para o êxito da ação em que se discutia os vícios de construção do empreendimento. Assim, havia uma remuneração prevista de forma independente, para caso de êxito de cada ação. Também aqui inexiste qualquer pretensão revisional, sendo o caso, unicamente, de saber se os Recorridos estavam ou não autorizados, por contrato, a reter o valor em referência. 14.- HUMBERTO THEODORO JÚNIOR ensina que o objeto do procedimento especial em análise não comporta a definição de situações complexas, como as que envolvem a decretação de rescisão ou resolução contratual ou a anulação de negócios jurídicos. Tampouco seria possível obter, em sede de ação de prestação de contas, acrescenta o autor, a condenação pela prática de atos ilícitos. Esses acertamentos devem ser todos realizados pelas vias ordinárias (Curso de Direito Processual Civil. v. III. 42ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 82). Esta Corte já teve a oportunidade de reconhecer essa circunstância, conforme, aliás, bem identificado pelo próprio Tribunal de origem, no julgamento do AgRg no Ag n. 276.180-MG, 4ª Turma, Relator o E. Ministro Aldir Passarinho, cujo acórdão recebeu a seguinte ementa: Processual Civil. Ação de prestação de contas. Propósito de discutir a validade de cláusulas contratuais. Impropriedade da via eleita. I. Configurado, segundo o quadro fático dos autos delineado na instância a quo, o real propósito da autora em discutir a própria validade das cláusulas contratuais, inservível a tanto o uso da ação de prestação de contas. II. Agravo improvido. (AgRg no Ag n. 276.180-MG, 4ª Turma, Relator o E. Ministro Aldir Passarinho, DJ de 5.11.2001). No caso dos autos, porém, como assinalado, não se busca solucionar questão de elevada complexidade. A pretensão formulada, ao menos em sua maior parte, não é de revisar, nem de anular, nem de rescindir o contrato. O que se pede, essencialmente, que se seja verificado os Recorridos estavam ou não RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 427 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA autorizados, pelo próprio contrato, a reter a título de remuneração pelos serviços prestados, o valor que efetivamente retiveram. Com efeito, a única parte da petição inicial em que se veicula, realmente uma pretensão revisional, é aquela, em que os Recorrentes afirmam que a remuneração correspondente a 3% sobre o valor do imóvel deveria tomar por base o valor do bem indicado no IPTU, e não o valor venal, como consta do contrato escrito, porque assim, acordado verbalmente. Quanto ao mais, o acertamento das questões fáticas e jurídicas envolvidas na causa está absolutamente compreendido nos parâmetros normais que, ordinariamente, se apresentam em uma ação de prestação de contas, não havendo, por isso, que se falar em falta de interesse de agir, por inadequação da via eleita. 15.- Ante o exposto, dá-se parcial provimento ao Recurso Especial, determinando-se o retorno dos autos ao Juízo de 1º Grau a fim de que, superada a preliminar de carência de ação, prossiga no julgamento da causa como entender de direito. RECURSO ESPECIAL N. 1.371.842-SP (2012/0218194-1) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Ricardo Nicotra Advogados: Reinaldo José Fernandes André Luis Bergamaschi e outro(s) Recorrido: União Central Brasileira da Igreja Adventista do Sétimo Dia Advogados: Misael Lima Barreto Júnior Adriana C F L de Carvalho José Sérgio Miranda e outro(s) EMENTA Recurso especial. Ação de revogação de doação com restituição de valores. Dízimos e outras contribuições. Improcedência do pedido. 428 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 1.- A contribuição do dízimo como ato de voluntariedade, dever de consciência religiosa e demonstração de gratidão e fé não se enquadra na definição do contrato típico de doação, na forma em que caracterizado no art. 538 do Código Civil, não sendo, portanto, suscetível de revogação. 2.- Ademais, a doação lato sensu a instituições religiosas ocorre em favor da pessoa jurídica da associação e não da pessoa física do pastor, padre ou religioso que a representa. Desse modo, a rigor, a doação não pode ser revogada por ingratidão, tendo em vista que o ato de um membro - pessoa física - não tem o condão de macular o pagamento do dízimo realizado em benefício da entidade, pessoa jurídica. 3.- Recurso Especial improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Dr(a). José Sérgio Miranda, pela parte recorrida: União Central Brasileira da Igreja Adventista do Sétimo Dia Brasília (DF), 19 de novembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 17.12.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Ricardo Nicotra interpôs Recurso Especial fundamentado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, contra Acórdão unânime do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Rel. Des. Alvaro Passos), assim ementado (e-STJ fls. 360): RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 429 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Revogação de doação c.c. restituição de valores. Improcedência. Contribuição do dízimo. Dever de consciência religiosa que não tem natureza de doação. Pagamentos que se constituíam em obrigação. Devolução. Descabimento. Quantias que foram dadas em cumprimento a regra estabelecida pela igreja e aceita espontaneamente pelo fiel. Ratificação dos fundamentos do decisum. Aplicação do art. 252 do RITJSP. Recurso improvido. 2.- Houve a interposição de Embargos de Declaração (e-STJ fls. 367-370), que foram rejeitados (e-STJ fls. 372-376). 3.- As razões recursais alegaram violação dos arts. 538 e 557, III, do Código Civil, além de dissídio jurisprudencial, sustentando, em síntese, que as doações realizadas pelo recorrente à igreja são passíveis de revogação por ingratidão. 4.- Contra-arrazoado (e-STJ fls. 468-480), o recurso não foi admitido (e-STJ fls. 485-486), ensejando a interposição de Agravo (e-STJ fls. 491-499), o qual foi improvido (e-STJ fls. 511-513), tornando-se sem efeito essa decisão, com a determinação de reautuação do Agravo como Recurso Especial, em juízo de reconsideração em Agravo Regimental (e-STJ fls. 539-540). É o breve relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 5.- Narram os autos que o autor, ora recorrente, frequentou a igreja ré, ora recorrida, para a qual destinou contribuições em dinheiro, no período compreendido entre 16.12.1992 e 1.12.1999, atingindo a importância de R$ 34.179,70 (já acrescidos de juros de 6% ao ano e correção monetária), e que a partir do ano de 2000, teria deixado de fazer as referidas contribuições. 6.- Todavia, em 23.3.2002, um pastor da igreja ter-lhe-ia dirigido palavras ofensivas, quando saía de um culto na companhia da namorada, ocasião em que teria sido chamado de “diabo, invejoso e vagabundo”, vindo a ser expulso da instituição religiosa. 7.- Afirmou que o comportamento do representante da igreja teria sido causado por um artigo denominado “Pastor do Milhão”, publicado na internet, cuja autoria lhe teria sido equivocadamente imputada. 8.- Sustentou que os fatos narrados o levaram a solicitar a instauração de inquérito policial para apuração de crime contra a honra, o qual foi arquivado, e 430 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA a ajuizar ação de indenização por danos morais no Juizado Cível, bem como a propor a presente ação de revogação das doações, com a consequente restituição das quantias doadas. 9.- Julgado improcedente o pedido (e-STJ fls. 314-319), o autor, ora recorrente, apelou (e-STJ fls. 321-329), tendo sido o recurso improvido pelo Tribunal estadual, aos seguintes fundamentos (e-STJ fls. 363): (...). Como sustentado com singular precisão na r. sentença apelada, os pagamentos ao longo dos anos se deram em razão do cumprimento de preceito religioso, apoiado na crença do autor que o levou a aceitar e a se submeter ao pagamento de dízimo como prova, justamente, de sua fé e aceitação dos mandamentos de sua igreja. Neste sentido, os pagamentos vão muito além de meras doações, feitos por liberalidade ou gratidão. Eram mais do que isso, constituíam-se em obrigação e como tal foram cumpridas. 10.- Duas são as finalidades deduzidas no presente recurso: primeiro, definir a qualificação jurídica das contribuições feitas por fiéis a entidades religiosas – em especial da contribuição denominada “dízimo” – como sendo contrato de doação; e, segundo, determinar a consequência da revogação por ingratidão. 11.- O art. 5º , VI, da Constituição Federal consigna que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e às suas liturgias. 12.- Por sua vez, a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação com base na Religião ou Crença, adotada em 1981, documento fundamental que protege os direitos religiosos, inclui entre os direitos relativos à liberdade de pensamento, consciência e religião, o de solicitar e receber contribuições financeiras voluntárias e outras de indivíduos e instituições. 13.- É longa a história do denominado dízimo religioso, cujas características vem se ajustando nos diversos sistemas jurídicos. Clássicas exposições históricas colhem-se em MANUEL DE ALMEIDA E SOUSA DE LOBÃO (“Dízimos Eclesiásticos e Oblações Pias”, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867) e DOM OSCAR DE OLIVEIRA, Arcebispo de Mariana (“Os Dízimos Eclesiásticos do Brasil nos Períodos da Colônia e do Império”, Belo Horizonte, Universidade RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 431 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de Minas Gerais, 1964). Inquestionáveis nos tempos históricos, “a partir do século XIII, o poder laico inicia contra os dízimos uma luta, de que se encontram abundantes traços nos estudos comunais” (Enciclopedia Italiana di Scienze, Lettere ed Arti”, Istituto Giovanni Treccani, MCMXXXXI-X, p. 461, Verbete “Le Decime Ecclesiatiche”). Na “História da Igreja em Portugal”, de FORTUNATO DE ALMEIDA, anota-se que “era antiga na igreja e foi tirada do Antigo Testamento a tradição dos dízimos eclesiásticos, aos que se deu também o nome de décimas, por consistirem no pagamento da décima parte dos frutos” (“História da Igreja em Portugal, Porto, Portucalense Editora, Nova Edição preparada e dirigida por Damião Peres, Nova ed., vol. 1, p. 114). 14.- Ressalta JOSÉ FERNANDO SIMÃO (Natureza jurídica do dízimo e da doação: aparente semelhança, mas grandes e insuperáveis diferenças, RIDB, Ano 2 (2013) n. 9, 10.357) que “Ao lado das ofertas, sacrifícios ou oferendas de cunho religioso, cujo primeiro registro bíblico sobre o tema aponta Caim trazendo à Divindade os frutos que plantara, e Abel, as primícias do seu rebanho (Gen. 4, 3-4), um dos registros mais antigos do ato de dizimar encontra-se também na Torah, constituída pelos Cinco Livros de Moisés (Pentateuco), livro considerado sagrado pelos hebreus e fonte primeira do direito da-quela nação (cerca de 1500 anos antes da era cristã), conforme ensina Vicente Ráo, e verifica-se no fato de Abraão – considerado pai dos hebreus e dos árabes –, após sair-se vitorioso em batalha que empreendera contra cinco reis que haviam levado cativo seu sobrinho Ló juntamente com diversos morado-res e bens de cidades adjacentes, como ato de gratidão pelo êxito na libertação dos cativos e recuperação de seus bens, ao ser saudado e abençoado por Melquisedeque, rei de Salém, mencionado também como ‘sacerdote do Deus Altíssimo’, entregou-lhe o dízimo de tudo quanto possuía (Gen. 14, 12-20). obra “Ao lado das ofertas, sacrifícios ou oferendas de cunho re-ligioso, cujo primeiro registro bíblico sobre o tema aponta Caim trazendo à Divindade os frutos que plantara, e Abel, as primícias do seu rebanho (Gen. 4, 3-4), um dos registros mais antigos do ato de dizimar encontrase também na Torah, cons-tituída pelos Cinco Livros de Moisés (Pentateuco), livro considerado sagrado pelos hebreus e fonte primeira do direito da-quela nação (cerca de 1500 anos antes da era cristã), conforme ensina Vicente Ráo, e verifica-se no fato de Abraão – considerado pai dos hebreus e dos árabes –, após sair-se vitorioso em batalha que empreendera contra cinco reis que haviam levado cativo seu sobrinho Ló juntamente com diversos moradores e bens de cidades adjacentes, como ato de gratidão pelo êxito na libertação dos cativos e recuperação de seus bens, ao ser saudado e abençoado por Melquisedeque, rei de Salém, mencionado também como ‘sacerdote do 432 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Deus Altíssimo’, entregou-lhe o dízimo de tudo quanto possuía (Gen. 14, 12-20).” (ob. cit, p. 10.362 e ss). 15.- Nesse norte histórico, extrai-se que a contribuição realizada pelos membros das igrejas, como regra, decorre de um dever de consciência religiosa, representado por ato que caracteriza como manifestação da própria fé, bem como da gratidão pelas dádivas recebidas, sendo de se salientar que nenhuma instituição religiosa teria condições de manter as suas atividades sem as contribuições financeiras dos fiéis. 16.- Diante da sua origem no dever religioso, avulta a dificuldade de se inserir o pagamento do dízimo no conceito de doação, previsto no Código Civil como o “contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.” É de se ter presente que o vocábulo doação admite duas acepções: a doação em sentido amplo, assim como é entendido pelo senso comum, e o negócio jurídico denominado doação, este último, como contrato típico, é objeto do dispositivo legal retro transcrito. Em sentido amplo, qualquer atribuição patrimonial a alguém, sem contrapartida, pode ser considerada doação, mas no sentido estrito, só a doação como contrato típico sujeita-se às disciplinas deste, entre as quais a revogabilidade. 17.- Uma doação que ocorre como cumprimento de um dever de consciência, porém, como é o caso das contribuições realizadas às instituições religiosas, é, sob o aspecto jurídico, fruto de liberalidade derivada da consciência religiosa. Lembre-se que, segundo o magistério de J. M. CARVALHO SANTOS, nem toda liberalidade é doação: De fato, a liberalidade não é incompatível com o pagamento, mas este o é com a doação, o que é coisa muito diversa, de vez que nem toda liberalidade é doação. Para que haja doação, é essencial que a liberalidade seja toda espontânea, sem nenhum resquício de constrangimento nem de violência. Por isso mesmo, onde há o cumprimento de uma obrigação, não é de doação, em suma, embora seja liberalidade, exige mais alguma coisa do que esta. Essa alguma coisa que ela exige é precisamente que o doador não empobreça ou desfalque seu patrimônio, enriquecendo o do donatário. Ora, na hipótese de pagamento de uma obrigação de consciência, em rigor, não há o enriquecimento do credor, por isso que, ele, para ser havido como credor, embora sem direito à ação para exigir o pagamento, algum serviço prestou, alguma importância desembolsou. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 433 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Quer dizer: pagando uma obrigação de consciência, não faz uma doação o devedor. Cumpre um dever, faz uma liberalidade, que não é doação. (Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. XVI, 1986, Ed. Livraria Freias Bastos, 12ª ed., p. 322). 18.- Nessa linha de entendimento, deve-se concluir que o pagamento do dízimo não constitui contrato típico de doação, o qual pressupõe a existência do animus donandi, ou seja, o desejo do doador de que a vantagem implique em enriquecimento do donatário. 19.- Em verdade, no caso em análise, corretamente ressaltou o Juiz sentenciante, Alexandre David Malfatti: “quando o autor contribuiu com os chamados ‘dízimos santos’ para a igreja ré (fls. 25-80), o fez como parte de sua fé e dentro de uma liberalidade sua, mas para satisfação dos preceitos de sua religião. Poderia se dizer, fora do campo da pura liberalidade, que cumpriu uma obrigação religiosa - aliás, o dízimo é figura comum a várias religiões, como é cediço.” (e-STJ fls. 317) Anote-se, destacando a exaustiva fundamentação, Acórdão de natureza penal do Superior Tribunal Militar, concluiu, com a maior largueza, que “o Estado não pode controlar dízimos” (Rel. Min. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, DJe 22.2.2011, em “Ciência Jurídica”, ano XXV, vol. 159, Maio/ junho/2011, p. 99-138). 20.- Há que se considerar, outrossim, que a doação lato sensu a instituições religiosas ocorre em favor da pessoa jurídica da associação e não da pessoa física do pastor, padre ou da autoridade religiosa que a representa. Nesse contexto, a doação não pode ser revogada por ingratidão, tendo em vista que o ato de um membro - pessoa física - não tem o condão de macular a doação realizada em benefício da entidade, pessoa jurídica, como dever de consciência religiosa. Nessa esteira, quanto à Igreja Adventista do Sétimo Dia, ora recorrida, veja-se que no art. 8º, § 1º, do seu Estatuto Social dispõe: A União Central é a única entidade patrimonial, sendo vedado aos Órgãos Administrativos Regionais e demais estabelecimentos formalizar a aquisição em nome destes. 21.- Em suma, o que se deve concluir é que o dízimo como ato de voluntariedade fundado no dever de consciência religiosa e demonstração de gratidão e fé não se enquadra na definição de doação, como contrato típico, na 434 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA forma do que dispõe o art. 538 do Código Civil, não sendo suscetível, portanto, de revogação. Assim, em que pese a injúria já submetida a julgamento no âmbito penal, não cabe, no presente caso, impor a devolução das quantias que foram dadas em cumprimento à regra estabelecida pela igreja e aceitas espontaneamente em razão da crença religiosa. 22.- Destaque-se, todavia, que o presente julgamento atém-se aos fundamentos jurídicos e ao pedido em que formulados, os quais fornecem a identificação da lide ora julgada, não abrangendo outros eventuais fundamentos jurídicos e pedidos diversos, ensejados pela questão relativa a pagamento de dízimo (p. ex., vício de ato jurídico, coação moral irresistível etc), matéria passível de variada espécie de questionamentos (p. ex., por todos, LUIZ FELIPE RIBEIRO COELHO, “O Dízimo Ilegal”, Direito & Justiça, Correio Braziliense, 6.10.2008, p. 3), de modo que outras eventuais questões que em outros processos porventura se apresentem sobre a matéria deverão ser solucionadas ao exame de cada caso concreto. 23.- Pelo exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.413.192-RJ (2013/0219831-9) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Recorrido: Clube de Regatas do Flamengo Advogados: Rafael Cavalcanti Cid Andre Toste Van e outro(s) EMENTA Civil. Consumidor. Estatuto do Torcedor. Recurso especial. Programa Sócio Torcedor. Passaporte rubro-negro. Validade. 1. Ação coletiva de consumo ajuizada pelo recorrente em fevereiro de 2010. Recurso especial distribuído em 27.8.2013. Decisão RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 435 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA determinando a reautuação do agravo em recurso especial publicada em 9.10.2013. 2. Recurso especial no qual se discute a validade de parte do programa de relacionamento do Clube de Regatas Flamengo, e seus torcedores, denominado “cidadão rubro-negro”, notadamente do chamado passaporte rubro-negro, que outorga facilidades na aquisição de ingressos para jogos de futebol, entre outras prerrogativas. 3. O torcedor, frente ao ordenamento protetivo, acha-se resguardado, primeiro, por Lei específica (Lei n. 10.671/2003 Estatuto do Torcedor) e também, pelo CDC - Lei n. 8.078/1990 -, a segunda sendo utilizada em caráter subsidiário, tanto na sua aplicação principiológica, quanto normativa – quando não houver regulação específica. 4. Os programas de relacionamento entre clubes e torcedores, têm, por característica comum, a fidelização do torcedor aos eventos do clube – mormente às partidas de futebol nas quais o mando de campo pertença ao time – sendo esse o objetivo primário perseguido pela agremiação desportiva, da qual decorrem, por óbvio, acréscimos financeiros diretos – oriundos das contribuições dos torcedores e do aumento da freqüência aos estádios –, e indiretos – como aumento no valor de quotas de transmissão televisiva e de negociações de patrocínios, existindo vantagens, também para o torcedor, que além do imaterial amor ao clube, recebem como estímulo, para a filiação ao programa, descontos na compra de ingressos, facilidades na obtenção desses, pagamento direto na catraca, no dia do jogo, etc. 6. As balizas para a verificação de possível perpetração de ilegalidade, passa então pela análise, in casu, de possível agressão dos contornos garantistas preconizados nos arts. 13 e 20, § 2º, da Lei n. 10.671/2003 – o primeiro exigindo a segurança dos locais das competições antes, durante e depois dos eventos, e o segundo prevendo a agilidade e acesso à informação, na venda de ingressos. 7. Essa proteção é impositiva, mas a circunstância de um determinado programa de fidelização prever facilidades outras, não o torna discriminatório, ou ilegal, tão só pelo plus que agrega. É necessário se constatar a existência de vulneração ao mínimo, legalmente ou contextualmente, fixado. 436 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 8. A singela homogeneização de tratamento entre os sócios torcedores e os demais torcedores, ou possíveis expectadores de um determinado jogo de futebol, frustra a implementação desse válido sistema de apoio ao Clube, pois, os programas que premiam, de alguma forma, a participação do torcedor na vida financeira do seu clube têm, por ínsito, a outorga de vantagens aos sócio-torcedores, essas tidas como qualquer elemento diferenciador em relação aos demais torcedores não participantes do programa, que superam os padrões legais mínimos, pois esses são garantias mínimas, não vantagens. 9. Possível inadequação do clube em relação ao legal dever de qualidade no fornecimento do serviço deve ser discutida judicialmente, de forma solteira, sem o indevido atrelamento ao lídimo programa de relacionamento estabelecido pelo clube recorrido. 10. Recurso não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Brasília (DF), 19 de novembro de 2013 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 29.11.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto por Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, fundamentado na alínea a do permissivo constitucional. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 437 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ação: coletiva de consumo, com pedido liminar, ajuizada pelo recorrente, em face de Clube de Regatas do Flamengo, pela qual se busca fixar obrigação de fazer consistente na disponibilização a todos os torcedores interessados, sem custo prévio, do cartão pré-pago, recarregável, denominado passaporte rubro-negro, assim bem como, a devolução do que já foi cobrado dos atuais possuidores do referido cartão. Sentença: julgou improcedente o pedido. Acórdão: negou provimento à apelação interposta pelo recorrente, em julgado assim ementado: Apelação Cível. Ação Civil Pública. Sentença de improcedência. Práticas abusivas por Clube de Futebol não comprovadas. Programa que visa benefícios para o torcedor filiado. Sentença que se mantém. Desprovimento do recurso. Embargos de declaração: interpostos pelo recorrente, foram rejeitados. Recurso especial: alega violação dos arts. 6º do CDC; 13, 20 e 21 do Estatuto do Torcedor. Sustenta que a prática de condicionar a venda com facilidades à aquisição do passaporte rubro-negro fere a igualdade nas contratações de onde se origina sua abusividade. Aponta também, que as referidas vantagens ofertadas não se consubstanciam como tal, porquanto são serviços que deveriam ordinariamente ser oferecidos aos torcedores. Parecer do Ministério Público Federal: de lavra do Subprocurador-Geral da República Moacir Guimarães Morais Filho, pelo não provimento do recurso especial. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): 1. Cinge-se a controvérsia em dizer da validade de parte do programa de relacionamento do Clube de Regatas Flamengo, e seus torcedores, denominado “cidadão rubro-negro”, notadamente do chamado passaporte rubro-negro que outorga facilidades na aquisição de ingressos para jogos de futebol, entre outras prerrogativas. 438 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 1. Do prequestionamento 2. Embora o acórdão recorrido seja extremamente sintético na apreciação da insurgência construída pelo Ministério Público Estadual, na origem, é possível se vislumbrar o debate que é mote central deste recurso especial, o que basta para suprir a exigência de prequestionamento da matéria. 3. De outro turno, a questão, tal qual formulada no recurso especial, não atrai o empeço da S. n. 7-STJ, pois se trata, na essência de se discutir a possibilidade, frente às leis de defesa dos torcedores e dos consumidores, de se criar prerrogativas para alguns destes, mediante paga e filiação à programa de relacionamentos clube-torcedor. 2. Lineamentos gerais 4. Os programas de relacionamento que atualmente proliferam entre os clubes e seus torcedores, de regra, estabelecem uma determinada contribuição ao Sócio-Torcedor que, além de obter algumas vantagens como compra antecipada de ingressos e descontos variados no valor dos mesmos, proporciona-lhe o retorno imaterial de estar ajudando seu clube. 5. Colhe-se, do site do recorrido, os padrões de regulamentação do programa de relacionamentos que mantém, atualmente denominado Nação Rubro-Negra: O que é o Nação Rubro-Negra? É a chance de cada um dos 40 milhões de torcedores fazer a diferença. Você assina e ajuda o Flamengo a se transformar no time que você sempre quis ver em campo: com muitos títulos para o Mengão! E ainda ganha uma série de benefícios, como compra de ingressos, promoções exclusivas e acesso à rede de descontos do Movimento por Um Futebol Melhor. Para onde vai o dinheiro do pagamento do Nação Rubro-Negra? O Nação Rubro-Negra é uma nova fonte de receitas do Mengão para investir em contratações e infraestrutura. Com a sua assinatura e a da massa rubro-negra seremos a grande potência esportiva do planeta. O que eu ganho ao me tornar um integrante do Nação Rubro-Negra? Além de colaborar para o Flamengo voltar a ser o maior time de futebol do mundo, você também recebe benefícios como: compra online antecipada de ingressos, acesso à rede de descontos do Movimento Por Um Futebol Melhor, cartão ingresso personalizado, perfil no site oficial do clube e participação em RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 439 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA promoções exclusivas. Os integrantes dos planos +Paixão, Paixão e +Amor também tem direito a uma comunicação direta sobre informação de abertura de venda de ingressos e countdown de fechamento das vendas. (Disponível em “https://www.nrnoficial.com.br/site/faq/categoria/1”). 6. Em seu recurso especial, o Ministério Público Estadual pugnou pela declaração da ilegalidade do chamado “passaporte rubro-negro” item constante do programa de relacionamento, sobre o qual discorre: (...) é manifesto o equívoco do posicionamento adotado. Não colhe argumentar que se trata de mero programa de estreitamento de laços com o clube. Dúvida não padece que o Flamengo pode instituir um programa de relacionamento (Cidadão Rubro Negro) com seus torcedores, concedendo benefícios àqueles que se associarem. No entanto, ao estipular entre as vantagens do referido programa o “Passaporte Rubro Negro”, cartão recarregável que possibilita a aquisição de ingressos para os jogos com, no mínimo, dois dias de antecedência da abertura das vendas na bilheteria e que pode ser usado diretamente nas catracas dos estádios, mediante a cobrança de R$ 396,00, o Clube recorrido está outorgando ao portador do passaporte aquilo que tem a obrigação legal de conceder a todos os torcedores: a compra do seu ingresso com agilidade, segurança, racionalidade e conforto. (fls. 312-313, e-STJ). 3. Da validade do passaporte rubro negro – violação dos arts. 13, 20 § 2º e 21 da Lei n. 10.671/2003 – Estatuto do Torcedor –, e art. 6º, II e IV do CDC. 7. A validade dos programas de relacionamento entre clubes de futebol e seus torcedores, como bem salientou o próprio recorrente, nas razões de seu recurso, não é questionada neste recurso especial, que apenas se volta contra uma fração desse programa implementado pelo recorrido. 8. No entanto a matriz orientadora da criação desses programas tem reflexos em todos os aspectos do seu desenvolvimento, repercutindo, in casu, inclusive no denominado passaporte rubro negro. 9. Vislumbrando, por primeiro, a condição do torcedor frente ao ordenamento protetivo, vê-se que, embora haja umbilical aproximação entre o torcedor e o consumidor, que é dessumida, inclusive, do amarrilho feito pelo legislador quando equiparou, por exemplo, a entidade organizadora da competição e a agremiação detentora do mando do jogo, a fornecedores caracterizados pela Lei n. 8.078/1990 (art. 3º da 10.671/2003), impossível não 440 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA se reconhecer que o torcedor ostenta traços distintivos, que exigem ponderações próprias, tanto assim que mereceram legislação protetiva particular. 10. Fração desses peculiares estigmas é vislumbrada na redação do art. 2º do Estatuto do Torcedor, onde se fixa que “Torcedor é toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva” (sem grifos no original). 11. As várias facetas admitidas como forma de ser torcedor: o apreciador, o apoiador, o associado ou o mero expectador que obtém informações ou assiste aos eventos esportivos pela televisão, dão o tom singular desses relacionamentos, pois a cada um se reservam expectativas protegidas legalmente, e outras tantas não amparadas pela lei consumerista, pois dizem respeito às peculiaridades desse microcosmo. 12. Note-se, não se está repudiando a aplicação do CDC à espécie, mas tão só, dando-lhe caráter subsidiário, tanto na sua aplicação principiológica, quanto normativa – quando não houver regulação específica. 13. Assim, cabe se analisar a existência da alegada abusividade ou vulneração da obrigatoriedade de igualdade nas contratações, sob o foco conjugado do Estatuto do Torcedor e suas singularidades e do Código de Defesa do Consumidor. 14. Rizzato Nunes, tratando do tema isonomia, em sua obra sobre o Direito do Consumidor, afirma que: Mas para aferição da adequação ao princípio da igualdade é necessário levar em conta outros aspectos. Todos eles têm de ser avaliados de maneira harmônica: se adotado o critério discriminatório, este tem de estar conectado logicamente com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada. Além disso, há que existir afinidade entre essa correição lógica e os valores protegidos pelo ordenamento constitucional. Ou seja, nenhum elemento, isoladamente, poderá ser tido como válido ou inválido para verificação da isonomia. É o conjunto que poderá designar o cumprimento ou não da violação da norma constitucional (NUNES, Rizzato, in: Curso de direito do Consumidor, 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 74). 15. E sob esse enfoque, solve-se a controvérsia, não pela vedação de situações distintas – essas não impedidas por lei –, mas pela verificação sobre a efetividade dos padrões legais mínimos de atendimento para qualquer torcedor – circunstância que fragilizada, daria ensejo à declaração de abusividade ou de agressão à igualdade. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 441 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 16. Além dessa questão, também merece crivo a justificativa lógica da desigualdade verificada, porque somente atendido esse requisito, se perquirirá sobre o anterior. E quanto a esse, de se dizer que a fórmula de marketing denominada de “marketing de relacionamento dirigido” se calca em três elementos básicos, descritos por Tatiana de Albuquerque como triplo pilar: O primeiro é o relacionamento, que estabelece um canal de comunicação direta com o cliente, uma relação interativa. O outro pilar é o reconhecimento, a oferta de benéficos que diferencie o cliente dos demais, que o faça se sentir parte de um grupo especial, e por último, a recompensa, que oferece prêmios proporcionais ao seu consumo, visando incentivar o cliente a aumentar o seu consumo tradicional. (disponível em: http://www.mktdireto.com.br/mrd.html). 17. Tratando especificamente de programas de relacionamento entre clubes e torcedores, têm, por característica comum, a fidelização do torcedor aos eventos do clube – mormente às partidas de futebol nas quais o mando de campo pertença ao clube – sendo esse o objetivo primário perseguido pela agremiação desportiva, da qual decorrem, por óbvio, acréscimos financeiros diretos – oriundos das contribuições dos torcedores e do aumento dos torcedores em estádios –, e indiretos – como aumento no valor de quotas de transmissão televisiva e de negociações de patrocínios. 18. De parte do torcedor, também existem vantagens consubstanciadas no que o excerto denomina de vantagens, que além do imaterial amor ao clube, vêm como estímulo à filiação ao programa, e se traduzem em descontos na compra de ingressos, facilidades na obtenção desses, pagamento direto na catraca, no dia do jogo, etc. 19. Recente matéria jornalística, analisando esse fenômeno que cada vez mais se dissemina no desporto nacional, traduziu bem esse relacionamento: Ser torcedor fiel de um time se tornou bom negócio dentro e fora dos estádios. Frequentadores habituais dos jogos de seus clubes têm vantagens como preferência na compra dos ingressos, que em muitas situações podem ser adquiridos com desconto. E mesmo quem não tem o hábito ou não pode acompanhar o time in loco tem benefícios. Dispõe, por exemplo, de descontos no preço de centenas de produtos e de vários serviços. Para isso, é preciso fidelidade, estar ligado ao clube por meio de um plano de sócio-torcedor. Tais programas já existem há alguns anos no País e atualmente são adotados pelos principais clubes. Têm passado por mudanças constantes, dentro de um processo de aperfeiçoamento, e em janeiro deste ano ganharam 442 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA um significativo empurrão: o lançamento do Movimento por um Futebol Melhor, que agregou benefícios aos projetos tocados pelos clubes. (Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/esportes, clubes apostam-em-programas-de-socio-torcedor-como-fonte-de-renda,1085059,0. htp). 20. Agrega-se a todos esses dados, um elemento imaterial que talvez seja a principal força motriz desses programas: a paixão do torcedor pelo seu clube, fato que, não raras vezes, leva-o a se associar a um programa de relacionamento, tão-só para ajudar seu clube financeiramente. 21. Assim, não é possível se divisar nesses programas de relacionamento – mesmo quando tisnam alguns torcedores com algumas vantagens – alguma abusividade ou vulneração da obrigatoriedade de igualdade nas contratações (art. 6º, II e IV do CDC), pois dizem de relacionamento ímpar, onde a motivação nem sempre é a obtenção de regalias, mas sim de contribuição efetiva com a melhoria do clube. 22. Bordas objetivas, que transpassadas, inquinem um desses programas com ilegalidade, somente ocorrerão se os serviços mínimos preconizados em lei não forem disponibilizados a todos, e sim, somente aos associados a determinado programa de relacionamento. 23. Vem daí os contornos garantistas dos arts. 13 e 20, § 2º, da Lei n. 10.671/2003 – o primeiro exigindo a segurança dos locais das competições antes, durante e depois dos eventos, e o segundo prevendo a agilidade e acesso à informação, na venda de ingressos. 24. Essa proteção é impositiva, mas a circunstância de um determinado programa de fidelização prever facilidades outras, não o torna discriminatório, ou ilegal, tão só pelo plus que agrega. É necessário, repita-se, constatar-se a existência de vulneração ao mínimo, legalmente ou contextualmente, fixado. 25. E aqui, em subsunção do contexto fático à tese firmada, o sintético acórdão recorrido consignou que: como bem salientado pelo juízo a quo, “ao contrário do afirmado na inicial, não constitui condição para aquisição do ingresso, pela internet ou pelo call center, a prévia aquisição do Passaporte Rubro Negro”. Não há duvida de que o passaporte não é um cartão pré-pago, tanto que o torcedor de posse do referido passaporte terá que recarrega-lo para comprar o ingresso. (fls. 287-288, e-STJ). RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 443 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 26. Vê-se, do excerto, que diferentemente do que foi afirmado pelo Ministério Público estadual, os torcedores mesmo sem aderirem ao programa de relacionamento do clube recorrido, continuam tendo acesso à compra de ingressos, tanto fisicamente quanto por meio eletrônico. 27. Frise-se, pela apreciação dos fatos na origem, o programa de relacionamento não cria, por meio do referido passaporte rubro-negro, empeço intransponível ou dificuldade maior na aquisição dos ingressos, tanto assim, que dificilmente se verifica a completa lotação dos estádios de futebol e, mesmo quando essa ocorre, não se veda a aquisição de ingressos àqueles que não tenham o passaporte, mas apenas os remete para os meios comuns. 28. De outra banda, não se descura das dificuldades hoje existentes para o cidadão adquirir ingressos para determinados espetáculos esportivos, tanto assim, que Luiz Flávio Gomes, e outros, afirmam sobre o tema que: O que se vê, na maioria das vezes, é o sacrifício do torcedor-consumidor em filas enormes, casos de violência causada pela desorganização das vendas e o assédio de cambistas que usam dos mais condenáveis artifícios para achacar torcedores e “obrigá-los” a optar pela compra por preços escorchantes, ao invés de busca-los nos pontos de venda oficiais e previamente estabelecidos. (GOMES, Luiz Flávio ...[et al.], in: Estatuto do Torcedor comentado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 63). 29. Porém, se esse serviço ofertado ao torcedor é tão deficiente quanto pugna o recorrente, a solução passa por pedido expresso de cumprimento das determinações do Estatuto do Torcedor, notadamente dos próprios dispositivos citados, e não pela homogeneização de tratamento entre os sócios torcedores e os demais torcedores, ou possíveis expectadores de um determinado jogo de futebol. 30. A própria norma é o fiel para verificação das garantias mínimas do torcedor: disponibilização de ingressos com o mínimo de 72 h (art. 20, caput, da Lei n. 10.671/2003); implementação de sistemas de facilitação de compra de ingressos (art. 20, § 2º, da Lei n. 10.671/2003); pulverização dos pontos de venda (art. 20, § 2º, da Lei n. 10.671/2003) etc. 31. As prerrogativas que venham a ser instituídas em favor do sóciotorcedor, personagem, que como dito anteriormente, representa relevante aporte de recursos diretos e indiretos ao clube, não infirmam esse mínimo legal. 32. Os programas que premiam, de alguma forma, a participação do torcedor na vida financeira do clube têm, por ínsito, a outorga de vantagens aos 444 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA sócio-torcedores, essas tidas como qualquer elemento diferenciador em relação aos demais torcedores não participantes do programa, devendo ainda, superarem os padrões legais mínimos, pois esses são garantias, não vantagens. 33. Atendidos esses pressupostos, não se vislumbra a ilegalidade do denominado passaporte rubro-negro. 34. Possível inadequação do clube em relação ao legal dever de qualidade no fornecimento do serviço deve ser discutida judicialmente, de forma solteira, sem o indevido atrelamento ao lídimo programa de relacionamento estabelecido pelo clube recorrido. 35. Forte em tais razões, nego provimento ao recurso especial. RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014 445