PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 Nº 6, junho 2014 PONTO DE VISTA Perspectivas sobre o desenvolvimento i PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 REFORMA GERENCIAL DE 1995: UMA NARRATIVA ANALÍTICA DAS ORIGENS PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 ISSN 1983-733X Daniel Estevão Ramos de Miranda1 1 Doutor em Ciência Política (UFSCar) e Professor Assistente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS ). Contato: [email protected] 1 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 Resumo Este artigo pretende terminar onde a maior parte das pesquisas sobre a reforma administrativa de 1995 começam: seu surgimento. Partindo-se da hipótese de que o MARE (Ministério da Administração e Reforma do Estado) foi um dos principais pontos de concentração dos elementos (propósitos gerais, objetivos específicos, ações efetivas, decisões, argumentos e justificações etc.) que formaram a imagem do governo Fernando H. Cardoso, defende-se que ele se tornou alvo dos críticos do governo não somente enquanto órgão responsável por uma política setorial, mas também enquanto foco difusor de uma nova imagem do Estado. Dentro desse quadro, a origem da reforma gerencial de 1995 será analisada focando-se nos elementos conjunturais que iluminam o sentido das decisões tomadas no plano do curto prazo, decisões estas fundamentais para os rumos e resultados posteriores da reforma. Palavras-chaves: reforma gerencial de 1995; governo FHC; reforma do Estado. Introdução: Reforma gerencial de 1995: uma narrativa analítica das origensi Este artigo pretende terminar onde a maior parte das pesquisas sobre a reforma administrativa de 1995 começam: o surgimento da reforma gerencial. A maioria das pesquisas acadêmicas sobre essa reforma procuraram captar aspectos específicos das propostas, decisões e ações do MARE (Ministério da Administração e Reforma do Aparelho do Estado) ou avaliar suas ações como um todo, sendo escassas pesquisas mais amplas e sistemáticas sobre suas origens. A explicação sobre essas origens está, normalmente, subordinada a uma posição teórica e técnica e\ou opinião política – favorável ou contra – formada em relação à reforma. Assim, a explicação da origem é derivada, ocupando, em geral, posição secundária nas análises sobre o MARE. Normalmente, reformas administrativas são propostas, discutidas, criticadas e aplicadas de maneira “silenciosa”, tanto para a maior parte da sociedade quanto para seus principais setores organizados. Quer dizer, normalmente envolvem apenas os mais diretamente interessados, funcionários públicos dos diversos escalões, restringindo-se a cada repartição pública – ou a um conjunto de repartições – envolvida no processo (BARBOSA e SILVA, 2008, 58). Contudo, a reforma de 1995 assumiu proporções “ruidosas”, devido ao alto grau relativo de visibilidade de suas propostas e ações concretas. Por que ela assumiu tais proporções? Por que ela seguiu rumos, assumiu sentidos e tomou as direções tão peculiares que tomou? Analisando mais profundamente as origens do MARE e dispondo da vantagem do olhar distanciado e mais frio que se tem quando se estuda um fenômeno já encerrado, 2 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 a primeira grande questão que surge, em torno daquele Ministério, não é tanto por que ou em que medida ele não deu certo – tendo em vista os resultados projetados e os efetivamente alcançados. Antes, a questão interessante aqui é como e por que ele conseguiu ir tão longe apesar das limitações e amarras que o envolviam. Os planos iniciais do governo Fernando H. Cardoso eram reformar o Estado. Contudo, por tal propósito entendia-se, basicamente, a reestruturação das relações entre o setor público e o privado até então dominante. E isto através de amplas e profundas alterações nos padrões e esquemas de articulação dos setores da economia, que contavam com forte dose de participação estatal, via administração indireta principalmente. Para a administração direta, a receita não envolvia ações de grandes proporções, mas apenas reforçar os órgãos vitais da burocracia, capacitando-os tecnicamente para as novas tarefas e desafios nacionais colocadas pela “globalização”. E isto de maneira incremental, quer dizer, sem grandes planos e ações, mas antes através de medidas específicas e ações tópicas no sentido de melhorar, paulatinamente, o desempenho da administração pública direta. Por que, então, o ministério concebido para tocar em frente as mudanças na administração direta alcançou o nível de polêmica e visibilidade que alcançou? 1. Hipótese A hipótese principal a ser explorada aqui é a seguinte: o MARE tornou-se um dos principais pontos de concentração dos elementos (propósitos gerais, objetivos específicos, ações, decisões, argumentos e justificações etc.) que formaram a imagem do governo Fernando H. Cardoso diante de boa parte da mídia e, sobretudo, diante da esquerda, partidária ou acadêmica. Diante disso, aquele ministério tornou-se alvo dos críticos do governo não somente em aspectos pontuais de sua proposta de reforma administrativa, mas alvo de críticas em relação à proposta como um todo, dificultando seu processamento político e, assim, determinando em grande parte seus rumos e resultados. Defende-se aqui que o perfil da reforma gerencial de 1995 foi fortemente dependente das propostas e da atuação do ministro da Administração Federal, L. C. Bresser-Pereira. Pode-se argumentar que todo ministério tende a ter a “cara” de seu ministro, que imprime um estilo de trabalho e normalmente representa ou leva consigo 3 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 alguma perspectiva sócio-política e/ou academicamente legitimada, a fim de servir de matriz teórica e de esteio político a uma dada concepção e conteúdo de política pública a ser implementada. O que se aponta aqui, contudo, é a ocorrência de um fenômeno que vai além dessa lógica ministerial “normal”, digamos assim. Um dos principais traços distintivos da reforma gerencial de 1995 é que ela não foi tanto a expressão da emergência de forças na sociedade e/ou dentro do aparelho do Estado pró reforma gerencial, mas antes foi o resultado da articulação e sistematização de uma série de ideias e posicionamentos teóricos e políticos do ministro Bresser-Pereira e de sua equipe. Estes, em busca de legitimação para as propostas de reforma gerencial, buscaram explorar o potencial de descontentamento de diversos setores da sociedade brasileira em relação à efetividade e qualidade da prestação dos serviços públicos por parte do Estado, a fim de consolidar a reforma que se propunha. Supõe-se que aqui está uma das raízes principais tanto dos potenciais quanto da limitação da reforma administrativa de 1995, que não conseguiu concentrar apoio político o suficiente para superar os estreitos limites da política fiscal do governo FHC, principal crítica feita aos resultados da reforma. A hipótese, portanto, baseia-se na ideia de que houve uma tentativa de indução política, por parte do ministro Bresser-Pereira e de seu círculo de auxiliares, de uma determinada resposta à crise, que então se apresentava com toda força, da administração pública brasileira. Nessa tentativa de indução e busca de legitimação, a estratégia foi alinhar as propostas setoriais – administrativas, no caso – aos posicionamentos gerais do governo federal do qual faziam parte, apresentando a reforma administrativa como parte fundamental do empreendimento, que só estava começando, de superação da crise do Estado nacional-desenvolvimentista por meio de um amplo conjunto de reformas no setor público. Foi a partir disso que os apoios e oposições se estabeleceram. Mais precisamente, a ideia era demonstrar a necessidade de uma reforma tal qual propunha o MARE para a consolidação 1) das reformas econômicas, consubstanciadas nas privatizações e desregulamentações. A “reforma é gerencial porque busca inspiração na administração das empresas privadas” (BRESSER-PEREIRA, 1998, 17), isto é, no mercado, assim como as grandes ações empreendidas pelo governo Cardoso. Além disso, a reforma gerencial estaria também em sintonia 2) com o movimento de descentralização e promoção de direitos, impulsionado fortemente pela Constituição 4 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 Federal de 1988. Neste caso, tratava-se das propostas de mudança na administração direta, como a criação das figuras jurídicas das Organizações Sociais, entidades centrais do setor público não-estatal. Em um contexto de crise e reforma do Estado, como a do Brasil entre a década de 1980 e meados da de 1990, a definição das prioridades da agenda pública, assim como a determinação dos conteúdos das reformas, tornou-se crucial para todos os atores e setores da sociedade. Conforme foi avançando, o processo de redemocratização, em suas diversas dimensões – político-institucional, social etc. –, teria que se consolidar num quadro de reformas estruturais de conteúdos novos: não se tratava mais de montar um Estado interventor que suprisse as carências e falhas do mercado no âmbito de um amplo esforço nacional desenvolvimentista, mas sim de “desconstruí-lo” a fim de torná-lo mais apto e adequado a uma ordem mundial cada vez mais globalizada. Se os conteúdos eram novos, não eram, contudo, consensuais. Como o principal desafio da reforma do Estado no Brasil estava em compatibilizar iniciativas em múltiplos planos – financeiro, administrativo-gerencial e de “democratização do Poder público” (ABRÚCIO e COSTA, 1998, 14) –, tal compatibilização implicava, inevitavelmente, em escolhas quanto a prioridades, aliados – e adversários – e custos decorrentes. A partir deste amplo contexto, neste artigo, a origem da reforma gerencial de 1995 será analisada mais detidamente, focando-se nos elementos conjunturais que iluminam o sentido das decisões tomadas no plano do curto prazo, decisões estas fundamentais para os rumos posteriores da reforma. Após uma breve discussão das iniciativas de reforma que foram feitas no período imediatamente anterior à criação do MARE, a análise se deterá na formulação inicial e nas iniciativas primeiras do então recém-criado MARE. 2. Quadro geral A agenda pública brasileira das duas últimas décadas do século XX compunhase não somente das reformas destinadas à reconstrução da democracia e à remoção do entulho autoritário, mas também de iniciativas dedicadas a estabelecer uma nova configuração entre setor público, setor privado e o emergente terceiro setor. 5 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 A persecução desses objetivos gerais estava balizada pela imperiosidade de se atingir e manter a estabilidade monetária e, ao mesmo tempo, promover uma nova inserção internacional do país, o que passava pela resolução do problema da dívida externa. Além disso, após a eleição de Collor, a agenda pública de reformas foi sendo estruturada de tal modo que a reorganização do aparelho do Estado e a redefinição de suas funções apontavam para a abertura de um ciclo revisionista da então recémpromulgada Constituição de 1988. Tudo isso articulado ao avanço da democratização. Constatando-se que a superação da crise não dependia somente de ajustes macroeconômicos pontuais, mas também da criação de novas instituições – paralela e complementarmente à reforma das já existentes –, aumentou-se o nível de complexidade da formulação de soluções para a crise, na medida em que a superação da crise fiscalfinanceira passava pelo aprofundamento do processo de redemocratização, que envolvia não somente uma revisão das relações Estado-sociedade, mas também uma reestruturação do aparato burocrático. 2.1 Antecedentes desfavoráveis De maneira geral, a “aventura Collor”, digamos assim, foi determinante para os rumos da redemocratização brasileira. A partir de seu autoproclamado neoliberalismo, o governo Collor apresentou a primeira proposta de reforma da administração pública pós-redemocratização, levantando “a pauta da década sem conseguir dar-lhe o devido desenvolvimento” (BARBOSA E SILVA, 2008, 56). Analisando-se mais detidamente, contudo, pode-se afirmar que sua iniciativa foi marcada por um ativismo eivado de equívocos. Primeiramente, partiu-se de um “modelo ingênuo de estado minimalista” (MARTINS, 1995, 55). Paralelamente a isto, o governo apoiou-se em um diagnóstico equivocado, baseado em constatações infundadas, como o pretenso excesso de funcionários públicosii. Em seguida, adotou-se uma forma de implantação “autoritária, inconsequente e combativa”, que “gerou mais reação do que ação” (MARTINS, 1995, 55) da parte dos funcionários públicosiii. Tudo isto debaixo de uma concepção muito restrita de gestão governamental, a qual estava centrada e reduzida à Presidência da República. O resultado geral foi uma “paralisia e incapacidade estrutural [por parte do setor público] de elaborar e implementar políticas. ‘O ímpeto modernizante foi mais uma estratégia de marketing do que de realizações’” (MARTINS, 1995, 55). 6 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 A principal contribuição construtiva do período Collor, ainda que limitada, foi a criação do Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade no Setor Público e o Programa Brasileiro de Desregulamentação, que permaneceriam ativos nos governos seguintes, gerando resultados positivos em relação aos objetivos gerais perseguidos pelos governos seguintes, isto é, de melhoria de desempenho do setor público através de sua reorientação para o usuário-cliente e recuo da presença estatal na economia (privatizações, desregulamentações etc.). Com a queda de Collor, o governo Itamar tentou reverter as decisões e iniciativas anteriores. Ao fazê-lo, reorganizou a “macroestrutura governamental nos moldes da Nova República” (MARTINS, 1995, 56), escolhendo assim um caminho menos complicado e menos polêmico para a questão da administração pública que, contudo, representava apenas o adiamento do combate aos problemas centrais da burocracia. Além disso, o governo Itamar estabeleceu uma “política de recomposição salarial no setor público baseada em critérios populistas, dissociada da problemática estrutural da gestão de recursos humanos no setor público” (MARTINS, 1995, 56). Ou seja, o primeiro governo civil escolhido por eleições diretas vagou sem um rumo consistente e contínuo. E isto não somente por causa da mudança no posto político mais importante do país, após o impeachment de Collor, mas também devido, principalmente, ao relativo isolamento deste último e ao caráter do governo Itamar Franco, o qual, fazendo um governo de transição, não se sentia à vontade para empreender grandes reformas (MELO, 2002, 61). Assim, entre idas e vindas, decisões enérgicas foram tomadas, mas sem grandes resultados práticos. Para completar tal quadro, a mudança de Presidente implicou na reversão dos poucos efeitos, positivos e negativos, que eventualmente as iniciativas anteriores tenham gerado. Assim, a administração pública seguia o mesmo destino do conjunto mais amplo de reformas estruturais e institucionais durante a transição: permanecia em compasso de espera. 3. Reforma de 1995: o fim da longa espera? O período FHC também foi intensamente ativo, mas, diferentemente de seus antecessores, apresentou resultados mais concretos e duradouros. Em um primeiro momento, não havia, nem sequer no programa de campanha do candidato FHC, um projeto ou proposta específica para a administração pública. O próprio ministro da 7 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 administração de seu governo, Luís C. Bresser-Pereira, em vários momentos, ressaltou a ausência da reforma administrativa nas propostas eleitorais de FHC. Em uma dessas ocasiões, relatou que Na primeira reunião que tive com o presidente, alguns dias antes de começar o novo governo, disse a ele que planejava realizar essa reforma [administrativa] (...). Fernando Henrique observou que essa reforma não estava na agenda, que não fizera parte dos compromissos de sua campanha. Não me impediu, entretanto, de dar os primeiros passos em direção a ela (BRESSER-PEREIRA, 2008,101, grifos nossos). Contudo, se não havia a previsão de uma reforma de grandes proporções que envolvesse a administração direta, havia, porém, a inclinação presidencial para considerar a superação da “era Vargas” como um dos grandes desafios de seu governo. O fim da “era Vargas” significava também uma revisão dos papéis do Estado e das estratégias de desenvolvimento, até então pautadas no nacional- desenvolvimentismo, diante dos imperativos da globalização (CARDOSO, 2005, 15). Contudo, mesmo assim, o Presidente recém-eleito não considerava necessária uma reforma profunda na burocracia brasileira, mas apenas “ajustes finos e melhorias localizadas”, pois “os órgãos vitais da burocracia pública federal” – como o Banco Central, o Ministério da Fazenda e o Itamaraty, por exemplo – “já estavam otimizados (bons quadros e marcos institucionais bem definidos)” (MARTINS, 2003, 123). No que toca a administração pública, portanto, Bresser-Pereira caminhou na contramão da disposição inicial do governo de mexer o mínimo possível na burocracia e desconstitucionalizar, na medida em que propôs uma “abrangente revisão do capítulo referente à administração pública” na CF/88 (MARTINS, 2003, 153). Analisemos com um pouco mais de detalhamento o surgimento dessas propostas. 3.1 Reforma gerencial de 1995: uma narrativa de origem O MARE surgiu em fins de dezembro de 1994, quando o presidente recémeleito, FHC, convidou L. C. Bresser-Pereira para assumir a SAF (Secretaria da Administração Federal), um órgão que era diretamente ligado à Presidência da República e que ganhou status de ministério para abrigar um dos principais colaboradores da campanha de FHC. 8 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 Assim, Bresser-Pereira entrou na composição ministerial “na cota de FHC” (MARTINS, 2003, 152), e suas propostas de reforma da administração pública conquistariam um relativo apoio do Presidente, que, se não aderiu entusiasticamente às propostas, pelo menos deu espaço para Bresser trabalhar. A sugestão do nome e a inclusão do termo “Reforma do Estado” foi uma solicitação de Bresser-Pereira. Dentro do governo, o diagnóstico geral (problemas) e as propostas (esboço de soluções) do MARE não eram partilhadas “pelo Presidente e por seus principais Ministros”, como Pedro Malan (Fazenda), José Serra (Planejamento), Paulo Renato de Souza (Educação), Clóvis Carvalho (Casa Civil) e Eduardo Jorge (Secretário Geral) (MARTINS, 1995, 155; COSTA, 2002, 28). O que ocorria é que o bloco político vitorioso nas eleições de 1994 não carregava consigo uma proposta de reformas que implicassem numa revisão do Estado “por dentro”, quer dizer, de seu aparelho. A ideia chave era desregulamentar e privatizar, isto é, cortar o Estado “por fora”, diminuindo seu campo de ação e, consequentemente, elevando a eficiência geral da economia brasileira através da elevação da participação do setor privado nela. A ideia inicial era, portanto, contornar a questão da burocracia, e não enfrentá-la diretamente. É por isso que “a estratégia de reforma institucional de Bresser foi construída por fora do núcleo do governo e sua concepção não se enquadrava facilmente nas linhas de ação prioritárias” (COSTA, 2002, 38). Dentro desse contexto, a proposta de Bresser-Pereira “não lograva atenção em face da lógica pragmática quer do ajuste fiscal (DINIZ, 2007, 49-50)iv, quer da complexa gestão dos universos institucionais da saúde e da educação”, na medida em que as soluções apresentadas pelo Plano Diretor exigiriam “esforços e riscos extras de convencimento” (MARTINS, 2003, 156). Assim, pela lógica pragmática, era preferível buscar resultados por outras formas, introduzindo-se alterações pontuais que otimizassem setores específicos da burocracia. A zona de conflito principal situava-se em torno do Presidente. Para este último, os conselheiros em administração pública de seu governo eram Eduardo Jorge e Clóvis Carvalho. Há claros sinais de que FHC desdenhou da proposta de Bresser, mas pagou para ver, embora de forma desconfiada (há pelo menos um caso de sondagem direta de FHC a um notório especialista em gestão, sobre as ideias de Bresser) e sob a vigilância atenta de seus ministros mais próximos (MARTINS, 2003, 157). 9 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 Fora do Executivo, mas dentro do Congresso, a base aliada, formada, além do PSDB, pelo PFL e pelo PTB, representou um importante apoio à proposta de reforma da administração, apesar de ter causado sérios problemas ao governo em momentos decisivos, quando congressistas “rebeldes” se negaram a votar com o governo na proposta de Emenda Constitucional 19v. Havia também governadores que, ao longo da elaboração da proposta, tornaramse importantes aliados da reforma administrativa, pelo menos naqueles pontos em que lhes interessavam mais. Assim, por exemplo, a proposta de flexibilização da estabilidade do funcionalismo público atraiu muito os governadores, pois era vista como a abertura de uma oportunidade de enxugamento da máquina administrativa através de cortes de gastos na folha de pagamento e liberação de recursos que poderiam ser investidos em outras áreas politicamente mais visíveis e vantajosas, como a infraestrutura. Fora do governo, os principais atritos, sem dúvida nenhuma, seriam com os funcionários públicos e a CUT (Central Única dos Trabalhadores), que tinha no funcionalismo público uma de suas principais bases. Além das novas e polêmicas propostas trazidas pelo MARE e pelo Ministro da Administração, havia ainda acesa a lembrança de sua participação no primeiro governo da Nova República, pois o governo federal estava sendo processado pelos servidores, que alegavam ter sofrido perdas salariais com o plano econômico lançado por BresserPereira quando Ministro da Fazenda do governo Sarney, em 1987. Os principais aliados fora do governo foram os empresários e alguns setores da imprensa. Sempre transitando nos meios empresariais, dos quais Bresser-Pereira já fazia parte há décadas devido às suas relações profissionais com o Grupo Pão de Açúcar, o Ministro da Administração contou na maior parte do tempo com o apoio deste setor. Já com relação à imprensa, parte desta (principalmente comentaristas econômicos e alguns editoriais) também apoiou firmemente a proposta de reforma administrativa do governo, ao mesmo tempo em que Bresser soube usar ativamente o espaço da imprensa para defender as propostas de seu ministério. Desse modo, o tabuleiro do xadrez político estava assim colocado no ano de 1995vi. Dentro deste contexto é que se insere a atuação imediata do ministro BresserPereira no sentido de conquistar apoio às suas ideias e de tornar sua proposta de reforma 10 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 administrativa uma prioridade na agenda do governo, respaldada pelo apoio de setores importantes da sociedade. 3.2 A elaboração da proposta de reforma administrativa Ativo promotor da campanha à presidência de FHC em 1994, da qual foi inclusive tesoureiro nacional, Bresser-Pereira estava sendo cotado para assumir alguma pasta no recém-eleito governo Mário Covas, no estado de São Paulo, possivelmente a Secretaria da Fazenda. Tudo dependia, porém, de saber se ele seria ou não chamado pelo presidente também recém-eleito FHC para algum posto no governo federal. Em meados de dezembro de 1994, a imprensa chegou a anunciar que BresserPereira havia solicitado, e o presidente havia concedido, a pasta das Relações Exteriores. Contudo, assim que a notícia se espalhou pela imprensa, membros influentes do Itamaraty pressionaram o recém-eleito Presidente FHC que, em menos de 24 horas voltou atrás e consultou Bresser-Pereira sobre a possibilidade de este ser alocado na então SAF (Secretaria da Administração Federal), que seria, como o foi, transformada em Ministério para elevar-lhe o status. Desde o primeiro dia em que teve a confirmação de que seria responsável pela administração federal, Bresser-Pereira tinha propostas de mudança na administração pública, mesmo que somente em linhas gerais. Reflexo de décadas de ensino e pesquisa na área de administração pública. Em texto recente, ele afirmou que “embora não estivesse ainda claro para mim como seria a reforma [administrativa], eu conhecia a matéria o suficiente para estar convencido da sua necessidade e oportunidade” (BRESSER-PEREIRA, 2008, 11). De modo geral, a proposta de reforma administrativa de Bresser-Pereira procuraria combinar a visão que já vinha construindo desde meados da década de oitenta sobre a crise brasileira – que para ele seria fundamentalmente uma crise do Estado desenvolvimentista, isto é, de sua forma de intervenção, de sua estrutura burocrática e da estratégia de desenvolvimento que havia feito do Estado o ator principal no processo de industrializaçãovii – com as concepções de reforma do aparelho do Estado que se agrupavam em torno da chamada administração pública gerencialviii. O documento mais importante, que representa a síntese dessas duas visões, é o Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado (1995). Nele apresenta-se um diagnóstico do Estado e da administração pública brasileiros grandemente tributários da 11 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 interpretação sobre a crise do Estado de Bresser-Pereira e um conjunto sistemático de propostas de reforma que giram em torno dos princípios da reforma gerencial organizados em três dimensões: a institucional-legal, a cultural e a que diz respeito à gestão pública propriamente dita. Durante a elaboração desse Plano Diretor, os eventos marcantes foram: (1) em março de 1995, o encontro em Brasília com David Osborne, um dos autores de Reinventando o Governo (1994), na época uma espécie de livro de cabeceira de quem estava envolvido em reformas da administração pública. Nesse encontro, Osborne apontou para a experiência britânica e neo-zelandesa de reforma do Estado (BRESSER-PEREIRA, 2008, 18-20); (2) em maio do mesmo ano, Bresser faz uma “visita de cooperação à GrãBretanha”, de onde veio a inspiração para os modelos de Agência Executiva e Organizações Sociais, “com escala em Santiago de Compostela, sede de um congresso sobre gestão pública na época”, onde Bresser-Pereira montou o quadro de referência do Plano Diretor, combinando “setores do Estado com diferentes formas de propriedade e formas de administração” (MARTINS, 2003, 154), isto é, a “matriz teórica da reforma” (BRESSER-PEREIRA, 2008, 22, itálico do autor). (3) entre maio e julho de 1995, houve a redação preliminar do Plano Diretor, assim como discussões intragovernamentais, levantamento de dados e elaboração de diagnósticos, que se estenderam até novembro, quando ocorreu o lançamento do Plano Diretorix. 3.3 A reforma administrativa no primeiro ano do governo FHC: breve análisex Em poucas palavras, o ano de 1995 foi marcado pela tentativa de delineamento de uma proposta geral para a reforma do Estado que fosse politicamente viável, mas sem deixar de ter impacto positivo realmente marcante na administração pública brasileira. Contudo, esse primeiro ano foi dominado por questões e declarações relacionadas ao cotidiano da administração federal. Sendo o MARE o “Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado”, a parte que cabia à “Reforma do Estado”, ou seja, as iniciativas de maior envergadura e potencialmente inovadoras, nesse primeiro ano, acabou sendo sufocada pela que coube à “Administração Federal”, ou seja, pelas decisões rotineiras sem maiores impactos 12 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 sobre o aparelho estatal e suas relações com a sociedade e o sistema político. Era o prenúncio do destino que caberia a esse ministério. Sem dúvida nenhuma, o assunto que prevaleceu nas discussões e nos protestos durante o período considerado foi a proposta de flexibilização da estabilidade dos servidores públicos com inclusão de novos critérios de demissão. Anunciada desde o primeiro momento em que assumiu seu cargo, tal proposta geraria atritos e conflitos entre Bresser-Pereira e os representantes sindicais do funcionalismo durante todo o ano de 1995, dividiria a base aliada em momentos decisivos e atrairia críticas inclusive de membros do próprio governo. Outro ponto polêmico foi o anúncio da meta de Bresser-Pereira de transformar as entidades responsáveis pela prestação de serviços sociais, como educação, saúde e cultura, de entidades públicas e estatais em entidades públicas não-estatais, com base na figura jurídica das “organizações sociais”. Os primeiros passos da reforma gerencial no Brasil foram, assim, no sentido de (a) aproximar as regras de funcionamento do mercado de trabalho público às do privado e de (b) sustentar uma tentativa de desestatização de alguns serviços públicos. Tais iniciativas e propostas foram vistas, por importantes setores da sociedade, como um símile das privatizações que estavam sendo anunciadas e preparadas para as empresas públicas. De fato, ressaltando que hodiernamente a esfera pública não se identifica ou não se reduz à esfera estatal, a proposta de reforma do Estado do ministério Bresser-Pereira baseava-se em uma reestruturação que visava: (1) reforçar o “núcleo estratégico” do Estado; (2) “publicizar” os serviços sociais – educação e saúde, principalmente – e científicos; (3) privatizar a produção de bens e serviços fornecidos pelas empresas estatais e terceirizar o fornecimento de vários bens e serviços intermediários – como limpeza, segurança etc. – na administração públicaxi. Havia, portanto, forte complementaridade entre esta proposta de reforma do aparelho do Estado e a política econômica que vigorou durante o governo FHC, política esta marcada pela austeridade fiscal e pelo programa de privatizações. Ao elaborar uma proposta sistemática e teoricamente bem embasada de concessão de maior autonomia às entidades responsáveis pelos serviços sociais e de privatização das empresas estatais, Bresser estava em sintonia – ou pelo menos buscando estar – com o governo do qual fazia parte. 13 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 Contudo, tal sintonia não foi suficiente para evitar conflitos dentro do alto escalão do Executivo federal e entre os técnicos responsáveis por tais reformas e os congressistas, preocupados com suas convicções e com sua imagem perante o eleitorado. Essa sintonia também não foi suficiente para deslanchar por completo a reforma do Estado pretendida por Bresser-Pereira, que terminou por circunscrever-se, pelo menos em um primeiro momento, à “administração federal”. 3.4 As limitações contextuais do projeto de reforma gerencial do Estado brasileiro A partir de agora já há elementos suficientes para contrapor a hipótese formulada inicialmente a esta pequena reconstituição factual, que serviu de pilar empírico a este estudo de caso, da elaboração do projeto de reforma do Estado do MARE. A hipótese geral deste estudo de caso diz respeito às origens e limitações da reforma do Estado durante o primeiro governo FHC. Pois bem, a conclusão a que se pode chegar é que os limites dessa reforma encontram-se, principalmente, em suas origens, isto é, em sua fase inicial de formulação, enquanto política pública, e de armação de seu suporte institucional. A proposta de reforma gerencial do Estado de 1995 não representou a culminância, no governo, de um movimento que havia surgido e se articulado na sociedade e que agora estaria sendo implementado pelo Estado. A insatisfação da maioria da população com relação à má qualidade e pouca cobertura de boa parte dos serviços prestados pelo Estado tinha caráter altamente difuso. Segundo Valeriano Costa, a transformação da Secretaria da Administração Federal em MARE mostrava que a reforma não era uma prioridade governamental. Como órgão responsável por atividades-meio, o MARE não possuía densidade própria, não representava interesses sociais relevantes, não atraía a atenção da opinião pública e, pelo contrário, tendia a enfrentar resistências generalizadas da burocracia federal, especialmente nos ministérios maiores, ciosos de sua autonomia. Sem a vinculação direta à Presidência da República, o MARE seria apenas um pequeno ministério sem recursos (COSTA, 2002, 30). Não sendo uma prioridade governamental e não contando com recursos, apoios e condições tão favoráveis, a proposta de reforma gerencial do Estado surgiu das vicissitudes e pressões durante a montagem do ministério do presidente FHC. 14 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 Seu perfil e os avanços que conseguiu ao longo de seu primeiro ano de existência (período coberto por este estudo de caso), assim como a atenção que veio a receber da opinião pública, podem ser atribuídos, em grande parte, à militância pessoal do ministro Bresser-Pereira e de sua equipe e à sua capacidade de aproximar as propostas de mudança institucional das propostas de ajuste fiscal, então dominantes no governo. Isto estava relativamente claro desde os primeiros momentos do MARE e desde as suas primeiras ações de envergadura. Na “reunião solene de lançamento do Plano Diretor”, o presidente FHC “encerrou a sessão expressando: ‘Agora cabe ao Ministro Bresser convencer o Governo, o Congresso e a Sociedade” (MARTINS, 2003, 154) de suas propostas de reforma administrativa. É por isso que o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, que sintetizava as propostas gerais e serviria de base para a elaboração e a implantação de ações específicas, pode ser considerado como “uma ‘carta de crédito’ a Bresser, que teria de lutar para torná-lo operacional” (COSTA, 2002, 31). Como já foi apontado acima, Bresser-Pereira fora um ativo e importante aliado do presidente à época da campanha, cuja lealdade e dedicação seriam recompensadas com aquela “carta de crédito”, isto é, com a “abertura de uma janela a um empreendedor” de políticas públicas (MARTINS, 2003, 159). Tendo em vista que, de uma maneira geral, o ímpeto inicial da reforma concebido pelo MARE foi marcado (1) por uma forte crítica a determinados dispositivos da Constituição de 1988, especialmente seu capítulo sobre a Administração Pública, e (2) pela elaboração de uma reforma que estava em sintonia com as experiências internacionais recentes de reformas administrativas em países que estiveram sob forte hegemonia neoliberalxii, a visão dos principais atores, principalmente da oposição, seria condicionada por essa marca de origem do MARE, reforçada pela visão geral do governo FHC como um experimento neoliberal nos trópicos sul-americanos. Tentando diminuir o peso negativo e relativizar a influência das experiências internacionais sobre a reforma que propunha, Bresser-Pereira tentara vincular a proposta de reforma gerencial de 1995 às reformas administrativas brasileiras anteriores, principalmente a configurada em torno do Decreto-lei 200, de 1967, afirmando que esta 15 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 fora “um primeiro momento da administração gerencial no Brasil” (BRESSERPEREIRA, 2005, 244). Contudo, era perceptível e inegável que a chegada e a absorção das ideias da Nova Administração Pública ao Brasil orientaram a apropriação dessa herança de reformas administrativas brasileiras. O Decreto-lei 200/1967 pode ter sido uma primeira e importante experiência gerencial, mas não será em relação a ela, a seus sucessos e fracassos, que a reforma de 1995 será concebida e implantada. Na verdade, entra aquele decreto e a criação do MARE há a Constituição Federal de 1988. “A Constituição de 1988 ignorou completamente as novas orientações da administração pública” e os constituintes “decidiram completar a Reforma Burocrática” ao invés de atentar para os “princípios da administração pública gerencial, que estava sendo implantada em alguns países do primeiro mundo” (BRESSERPEREIRA, 1998, 175). A reforma promovida pela Constituição de 1988 fora, segundo Bresser-Pereira, uma “contrarreforma”, um “retrocesso burocrático” motivado por uma legítima reação ao clientelismo, mas também por “privilégios corporativistas e patrimonialistas” (BRESSER-PEREIRA, 2005, 247-8). Na conjuntura em que se encontrara, logo após assumir o recém-criado MARE e se envolver em polêmicas após anunciar as metas de sua pasta, entre elas a de flexibilizar a estabilidade dos funcionários públicosxiii, o ministro Bresser-Pereira encontrou forte oposição principalmente dos estratos médios e baixos do funcionalismo público. Por outro lado, o chamado “alto escalão” da burocracia apoiou as propostas de reforma gerencial. 4. O MARE debaixo dos holofotes Em suma, a crítica de Bresser-Pereira à Constituição de 1988 e a acusação de esta não ter atentado para os princípios da Nova Administração Pública, desenvolvida e aplicada em contextos de reformas neoliberais; o anúncio e concretização progressiva de um amplo conjunto de reformas estruturais pelo governo do qual fazia parte; o apoio de organismos internacionais criticados e vistos como instrumentos de interferência externa nos problemas nacionais, como o Banco Mundial, entre outros fatores, “empurraram o MARE e sua proposta para debaixo dos holofotes” (BARBOSA e SILVA, 2008, 67). 16 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 Como este artigo procurou mostrar, as propostas do MARE não eram consensuais dentro do governo, frequentemente entrando em choque com o “núcleo duro” responsável pelo ajuste fiscal. O MARE também não foi diretamente responsável pelas ações de maior envergadura destinadas a conformar uma nova estrutura para o Estado brasileiro, como as privatizações, por exemplo. O MARE, portanto, não foi, concretamente, o responsável único e direto pela consolidação e implementação de uma agenda de reformas estruturais de conteúdos novos. Apesar disso, elaborou uma visão sistemática e ambiciosa de Estado, ainda que muito criticada – uma visão de Estado que estava sendo coroada como hegemônica no Brasil. Assim, a elaboração de um Plano Diretor e de todo um conjunto de publicações e estudos que se destinavam não somente a dar subsídios técnicos à atuação dos responsáveis pela implementação da reforma proposta pelo MARE, mas também a propagar e justificar uma nova visão de Estado e de administração pública consubstanciou a ativa e combativa atuação do ministro Bresser-Pereira através dos meios de comunicação de massa. Tudo isso não somente resultou em uma exposição pública extremamente aberta a discussões e críticas, como também acabou por atrair a atenção – e, em alguns casos, a ira – de importantes atores não diretamente vinculados à administração pública, aumentando o número de atores envolvidos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A era das reformas no Brasil contemporâneo abriu-se com a crise dos anos oitenta. O mais importante dos fatores condicionantes das posições dos principais atores estratégicos da democracia brasileira naquele momento dizia respeito à resolução dos impasses gerados pela crise do nacional-desenvolvimentismo. A redemocratização do sistema político fora uma condição necessária, porém não suficiente nem para aglutinar os grandes interessesxiv nem para propiciar coalizões entre atores estratégicos que resultassem em uma linha de ação clara e consistente, com mínimo apoio político de curto e médio prazo, que encaminhasse para a construção de um novo modelo de desenvolvimento. Somente com a eleição de Fernando H. Cardoso, em 1994, é que tais nós e impasses começaram a ser desatados e resolvidos. 17 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 A reforma gerencial de 1995 apresentava não somente propostas “negativas”, de redução, corte, enxugamento no e do Estado, mas também carregava em si uma forte carga construtiva e propositiva, com boas intenções e respaldada por algumas experiências internacionais concretas. Contudo, em contexto de predominância de ajuste fiscal, os esforços de convencimento dos atores situados nos principais postos de comando do governo federal teriam que ser fortes. Em tal contexto, o MARE, ao tentar justificar e angariar apoio para suas propostas pela formulação sistemática de uma visão geral do governo e de seu lugar dentro dele, tornou-se um dos principais focos difusores de uma nova imagem do Estado e, assim, veículo simbólico de legitimação do governo Fernando H. Cardoso. “Bresser foi o elemento perturbador do sistema de crenças estáveis que reinava na alta e na baixa burocracia governamental. Foi o elemento de ruptura, cujo ruído provocaria mudança” (MARTINS, 2003, 159). Dentro do governo e em relação à burocracia, sua visão “não era hegemônica – era sectária” (MARTINS, 2003, 159). Porém, se ela não era hegemônica dentro do governo, seria tomada como hegemônica, ou pelo menos em forte afinidade com a orientação hegemônica do governo como um todo, pelos críticos do neoliberalismo do governo FHC. As propostas construtivas que o MARE apresentou para a administração pública brasileira foram engolidas pelo peso e hegemonia do ajuste fiscal. Ao mesmo tempo, a estratégia adotada para implantação da reforma – superação paradigmática do modelo burocrático weberiano por outro modelo global, o gerencial, e não incrementalismo de ajustes – elevou seu grau de visibilidade, o que contribuiu tanto para seus êxitos relativos quanto para seu fracasso global. Adotar aquela estratégia foi uma jogada arriscada, fadada a não ter muita consistência e força política suficiente para sobreviver no médio prazo. Provavelmente, tal estratégia foi adotada como um lance ambicioso dentro um contexto restritivo. A reforma de 1995, com sua “falha sequencial” (REZENDE, 2004), aponta para um ciclo concreto de política pública incompleto, marcado por um processo ultracriativo em sua fase decisão e formulação, mas com fortes dificuldades de implementação e, assim, de avaliação – razão de ser dos debates travados quanto ao sucesso ou fracasso da reforma gerencial no Brasil. 18 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 O processo de formulação da reforma – seu aspecto mais rico e de consequências mais duradouras, ainda que difusas – desdobrou-se em vários níveis: a) Técnico, envolvendo a administração pública strictu sensu; b) Político, pela tentativa de vinculação da proposta setorial de reforma administrativa ao leque de reformas do governo como um todo; 3) Retórico-discursivo, representado por artigos, declarações e até mesmo documentos oficiais que visavam à difusão de uma nova imagem do Estado e de seu aparelho administrativo e, consequentemente, à justificação da reforma gerencial; 4) Teórico, na medida em que envolveu e ativou um amplo movimento de pesquisas – na ciência política, administração pública, economia, direito etc. – em diversas áreas, envolvendo a proposta de reforma como um todo ou determinados temas específicos. Esses quatro pontos ajudam a compreender o sentido do MARE: não havendo condições, políticas principalmente, para a implementação efetiva de sua dimensão técnica – pelo menos no que tange as propostas que iam para além da administração rotineira –, engendrou-se uma estratégia política de vinculação de suas propostas a outros projetos mais prioritários do governo. Porém, não conseguindo ir muito além das dimensões retórico-discursiva e teórica, a visibilidade decorrente desta última foi quase que inversamente proporcional a sua capacidade operacional e impacto efetivos sobre os rumos do governo FHC. É por isso que chama atenção não tanto o insucesso da reforma, em termos de implementação, mas sim os debates e polêmicas despertados em torno dela. Neste último ponto, sem dúvida, a reforma gerencial de 1995 foi longe. BIBLIOGRAFIA ABRUCIO, F. L. e COSTA, V. M. F. Reforma do Estado e o contexto federativo brasileiro. 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Tecnoburocracia e Contestação. 1a ed., Petrópolis: Editora Vozes, 1972. ________________. A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia. 1a ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. ________________. A crise do Estado. São Paulo: Nobel, 1992. ________________. “Reformas econômicas e crescimento econômico: eficiência e política na América Latina”. In: BRESSER-PEREIRA, L. C.; MARAVALL, J. M.; PRZERWORSKI, A. Reformas Econômicas em democracia novas: Uma proposta social-democrata. Tradução de Antônio S. Rocha, São Paulo: Nobel, 1996. ________________. Reforma do Estado para a cidadania: A reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo, Editora 34, Brasília, ENAP, 1998. ________________. “Os primeiros passos da reforma Gerencial do estado de 1995”. Trabalho escrito para ser publicado em livro organizado por Maria Angela d’Incao sobre o governo Fernando Henrique Cardoso. Versão de 11 de setembro de 2008. Manuscrito digitalizado. BRESSER PEREIRA, L. C. e SPINK, P. 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Júnior, 2º edição, Brasília, MH Comunicação, 1994. 20 PONTO DE VISTA, Nº 6, junho 2014 PÓ, Marcos Vinicius e ABRUCIO, Fernando Luiz. “Desenho e funcionamento dos mecanismos de controle e accountability das agências reguladoras brasileiras: semelhanças e diferenças”. RAP – Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro 40(4): 679-98, Jul. /Ago. 2006. REZENDE, F. da C. Por que falham as reformas administrativas? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. SALLUM JR., B. e KUGELMAS, E. “O Leviathan declinante: a crise brasileira dos anos 80”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 13, dez. 1991. SANTOS, W.G dos. “Mitologias institucionais brasileiras: do Leviatã paralítico ao Estado de natureza”. Estudos Avançados, vol. 7, n. 17, pp. 101-116, 1993. VIANNA, L. W. A transição: da Constituinte à sucessão presidencial. Rio de Janeiro, Editora Revan, 1989, “Série Pensamento Brasileiro”. Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa desenvolvida junto ao Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos – PPG-Pol/UFSCar. Agradecemos ao professor Marco A. Nogueira pela orientação, e à CAPES pelo financiamento da pesquisa. i Estima-se que por volta de 108 mil funcionários públicos foram demitidos ou colocados em disponibilidade durante o governo Collor (MARTINS(b), 1997, 31) ii Abrúcio (2007, 70) vai na mesma direção ao afirmar que o governo Collor transformou o funcionalismo público em “bode expiatório”. iii Cf. Rezende (2004), que elaborou toda uma tese de doutorado para explicar a “falha sequencial” da reforma de 1995 a partir da predominância da lógica do ajuste fiscal sobre a da mudança institucional. iv v Cf. a pesquisa de Melo (2002, 47-58), para uma análise mais profunda do processo e do conteúdo da mudança. vi A reprodução desse contexto baseia-se principalmente em depoimentos de atores diretamente envolvidos com a reforma de 1995, notícias veiculadas pela imprensa escrita à época e em trabalhos acadêmicos dedicados ao tema. Para maiores detalhes, cf. Miranda (2010). Cf. Bresser-Pereira, 1992; e Bresser-Pereira, Maravall e Przerworski, 1996 vii Cf. Osborne e Glaeber (1994), livro considerado clássico na bibliografia da reforma gerencial; e Abrúcio (2005), que realiza um levantamento sobre as principais experiência de reforma gerencial em âmbito internacional. viii ix Em relação a esse ponto, cf. também a cronologia de Barbosa e Silva (2008, 59-60) e a do próprio BresserPereira (2008, 27-9), acerca dos primeiros passos da reforma administrativa de 1995. Consultar também, para os principais acontecimentos citados ao longo deste artigo, a cronologia que se encontra no Anexo I de Miranda (2010). Esta seção baseia-se, principalmente, em levantamentos realizados junto ao jornal Folha de S. Paulo correspondente ao período que vai de meados de 1994 a dezembro de 1995. x xi Cf., para todos esses pontos listados, Bresser-Pereira, 1998 e 2005. xii Duas das principais inspirações de Bresser-Pereira foram as experiências estadunidenses, como as recolhidas no livro de Osborne e Glaeber (1994), e as iniciativas britânicas (ABRÚCIO, 2005). Nos anos 1980, EUA e Grã-Bretanha ficaram internacionalmente marcados pela ascensão de governos – Ronald Reagan e Margaret Thatcher, respectivamente – declaradamente neoliberais. xiii Cf. Folha de S. Paulo, 3/11/1995 e Miranda (2010, Anexo I). xiv Cf. Diniz, que analisa a atuação dos empresários entre fins da década de oitenta e início da de noventa, e aponta a incapacidade desse grupo em “transcender os interesses localizados e negociar propostas de teor mais abrangentes” (1997, 16). 21