conversando
Teresa
Leite
Foto Francisco Sá da Bandeira
A aprendizagem
da música
não é um luxo
Por Sofia Sá da Bandeira
É
no seu consultório em pleno Chiado que Teresa Leite nos recebe.
Um espaço amplo e caloroso, onde logo nos sentimos bem. Psicóloga clínica, professora universitária e Presidente da Sociedade
Portuguesa de Musicoterapia, Teresa fala-nos do seu gosto pela
música, da importância da criatividade e do bem-estar psíquico,
físico e espiritual que a musicoterapia pode proporcionar. Como foi o seu percurso até se tornar
musicoterapeuta?
Quando era adolescente comecei, por iniciativa própria, a estudar
música no Conservatório e, apesar
de adorar a música, sempre soube
que não queria ser pianista nem tão
pouco professora de música. Era
a experiência da música e tudo o
que se podia fazer com pessoas em
torno dela que me fazia estar ali.
O que a fascinava mais?
O que me fascinava era tentar perceber o que estava por detrás das
coisas. Lembro-me de ir muitas
38
perfumes&co.85
vezes sozinha aos concertos da Gulbenkian e, durante um concerto,
interrogar-me sobre o que estaria o
compositor a pensar e a sentir no
momento em que compusera aquele
trecho, ou que experiência emocional estaria por detrás daquele
momento para nós que estávamos
ali. Punha-me a imaginar por que
razão determinada peça era triste e
não alegre e entregava-me às imagens que a música me ia sugerindo.
Ao mesmo tempo interessava-se pela
área da psicologia.
Na altura quis ir para medicina para
seguir psiquiatria, mas acabei por
optar pela psicologia com a qual me
identifico mais. Ao longo do curso,
interessei-me, acima de tudo, pelas
terapias, pelo não-verbal, pelos grupos, psicodrama, pela forma de estar
das pessoas. Interrogava-me: como é
que as pessoas são por dentro, porque é que são como são, por que
é que fazem o que fazem? Paralelamente, pesquisava tudo o que havia
sobre o tema da musicoterapia.
Na psicologia identificava-se como
terapeuta, mas associou à sua prática
a musicoterapia.
Muito naturalmente, fui juntando
as duas coisas e percebi que era
o que queria fazer. Num determinado momento, senti que já tinha
muita informação introdutória e que
me faltava “aprender a fazer”. Ainda
fiz um estágio como psicóloga
num centro de saúde mental infantil onde aliava a terapia às expressões. Foi onde fiz o meu trabalho de
fim de curso. Entretanto, concorri a
uma bolsa de estudos e fui para os
Estados Unidos fazer formação em
Musicoterapia.
Como definiria a musicoterapia?
A musicoterapia é uma forma de
intervenção terapêutica, maioritariamente ligada à saúde mental, onde
o progresso terapêutico é trabalhado na própria experiência musical e através duma relação ativa com
o musicoterapeuta. Tem como objetivo facilitar o relacionamento, a
comunicação e a aprendizagem, e
desenvolver o potencial de cada um,
melhorando a sua qualidade de vida
para além da condição patológica.
Quem deveria recorrer à musicoterapia?
A musicoterapia está especialmente
indicada para pessoas com problemas de relacionamento, comportamento, comunicação e integração social, qualquer que seja a
faixa etária. Pode ser aplicada em
instituições de saúde física e mental, educação, intervenção comunitária e reabilitação. Para além destes
casos, qualquer pessoa com necessidade de intervenção terapêutica que
esteja ligada à música pode beneficiar deste tipo de abordagem, facilitando ou enriquecendo a sua experiência nesta dimensão terapêutica.
Em relação a outro tipo de terapias,
como por exemplo a psicoterapia, privilegia mais o fazer do que o falar?
A psicoterapia baseia-se mais na
palavra. Há pessoas que não lidam
bem com o conversar sobre as suas
coisas. Há ainda outras, como é o
caso dos portadores de certas deficiências, que não tendo mesmo
capacidades de comunicação verbal, beneficiam da musicoterapia
como uma abordagem terapêutica
que recorre a formas alternativas de
comunicação.
Poderíamos então dizer que a ideia da
musicoterapia é constituir-se como
complemento ou como alternativa à
palavra?
Na musicoterapia a pessoa é convidada a exprimir-se, sem ter de passar obrigatoriamente pela palavra,
e a participar ativamente de forma
criativa, recorrendo ao que é seu e
desbloqueando certos obstáculos
ao seu desenvolvimento. À medida
que o processo se vai desenrolando,
a pessoa vai descobrindo, muitas
vezes com surpresa, capacidades
que não imaginava ter e transformando, pela experiência interativa
mais do que pela autoanálise, a sua
forma de estar. Lentamente começa
a perceber as pequenas diferenças
no que escreve, no que canta, na
forma como comunica consigo próprio e com os outros. Isto pode ser
feito em alternativa ou em complementaridade com outras intervenções que não deixam de ser necessárias nos casos onde há patologias
de maior gravidade.
Nesse sentido poderá ser mais “libertador” do que uma terapia que se baseia
só na palavra?
É diferente, porque traz experiência
para dentro da sessão. Numa terapia verbal há casos em que se corre
o risco de se falar muito do que se
passa lá fora e sentir pouco o que se
passa aqui dentro. As terapias não-verbais, não só a musicoterapia, mas,
também, a dança-terapia, drama-terapia ou a arte-terapia são ricas em
expressão e representam uma excelente forma de induzir a que se passe
qualquer coisa aqui dentro, qualquer
coisa que ainda não é palavra e que
poderá mesmo nunca vir a sê-lo.
Que tipo de pessoas a procura?
Como psicoterapeuta tenho mais
pacientes com problemas de relacionamentos, ansiedade e depressão. Como musicoterapeuta, tenho
sobretudo crianças e adolescentes
porque, em Portugal, ainda prevalece a ideia de que a musicotera-
pia é só para crianças, o que não
é verdade. São miúdos com problemas de aprendizagem ou de comportamento, os chamados “miúdos
difíceis”, que na realidade são miúdos muito sofridos, magoados, que
se defendem pelo ataque.
Crianças ou adolescentes que não se
adaptam à escola?
São normalmente crianças que já
ninguém consegue trabalhar numa
sala de aula, jovens que recusam a
terapia verbal e portanto quem está
com eles apercebe-se de que precisam de ajuda, mas sabe que não
irão sentar-se a falar diretamente
dos seus problemas.
Aí pode entrar a musicoterapia. É um
processo demorado?
É, de facto, um trabalho moroso,
mas é, também, um grande trunfo.
Os jovens sabem que eu sou psicóloga, sabem que vêm a uma sessão de musicoterapia, ninguém
lhes mente sobre isso, mas tomam
este espaço como uma espécie de
estúdio onde vêm fazer música,
experimentar, improvisar, até que
os assuntos sérios das suas vidas
começam a emergir. É um processo
demorado porque é preciso trabalhar a ligação. Sem ligação afetiva
não há mudança.
E hoje em dia parece que se procuram
soluções muito rápidas, quase mágicas…
Sim. E não há curas repentinas, nem
mudanças milagrosas, é um trabalho
que vai sendo amadurecido. Muitas
vezes, até parece que não se está
a passar nada e que as sessões são
“apenas música”, mas está. A ligação afetiva não falada vai-se estabelecendo através do projeto musical. São normalmente miúdos que
se dão com muito poucas pessoas.
O trabalho musical fá-los ter novas
Maio/junho2013
39
conversando
“A prática artística é multidimensional,
prepara-nos de forma indireta para
as atividades mais estruturadas.”
experiências, sentir as emoções de
forma mais segura e controlada, e
neste percurso vai-se construindo
um projeto cheio de simbolismo e
significado pessoal.
aula. Mas enquanto os governantes e as pessoas que distribuem os
dinheiros nas escolas não compreenderem isto, parece-me muito difícil que as coisas melhorem.
Quando chega à conclusão de que
um paciente está apto a terminar uma
terapia?
Quando sinto que a pessoa consegue ser mais criativa consigo própria, quando a vejo a conseguir
arriscar novos caminhos, a fazer
as coisas de uma forma diferente e
aguentar-se face às tensões que o
desconhecido, que é sempre ansiogénico, lhe provoca. No fundo,
quando sinto que está emocionalmente mais autónoma, mais forte e
pronta para caminhar sozinha.
Há escolas que iniciaram alguns projetos interessantes.
Sim, claro. Há escolas que tiveram
a inteligência de perceber que, mais
importante do que ter salas de apoio
onde basicamente se dão explicações, é usar os recursos dos professores de apoio com experiências
artísticas que levam esses alunos a
fazer expressão dramática, escultura, artes plásticas ou música. E já
tem acontecido os jovens que não se
aguentavam numa sala de aula irem
para estas salas alternativas e começarem a ganhar ânimo e a criar projetos. Ao perceberem que até tinham
jeito para isto ou para aquilo, gera-se
um importante reforço positivo para
estas crianças, quase nem são precisas palavras, a mudança acontece e é
gratificante para todos. Mas quando
o governo corta financiamentos e
os sistemas de avaliação argumentam que nestes casos não se está
a cumprir o curriculum, estes miúdos acabam por não estudar mais.
Infelizmente, ainda há dinheiro para
projetos pontuais e vistosos, mas não
para o trabalho mais “silencioso” de
mudança gradual.
A educação musical nas nossas escolas
sempre foi limitada e a situação parece
ter vindo a piorar.
Infelizmente, a música recebe cada
vez menos verbas. Em Portugal,
considera-se que a educação musical é uma coisa extra, qualquer
coisa de menor importância, o que
não é verdade. De facto, a investigação mostra o quanto a música
pode trabalhar aspetos que desbloqueiam obstáculos à aprendizagem. Por exemplo, envolver uma
criança ou adolescente em atividades rítmicas ou a trabalhar questões
melódicas pode ser crucial para que
venha a conseguir aprender a matemática. A música é intrinsecamente
matemática. A aprendizagem musical não é um luxo. Se for praticada
de forma lúdica, despreocupada e
criativa, ela desbloqueia a aprendizagem que é necessária nas salas de
40
perfumes&co.85
O que se poderia fazer para melhorar
essa situação?
Acredito que a verdadeira mudança
está em cada um de nós fazer o que
pode, acedendo ao que tem. Eu
vou fazendo o que posso com os
casos que tenho e os profissionais
com quem tenho contacto. Faço
muitas formações e sensibilizações
para professores de música. Há muitos professores de educação musical que foram “formatados” para
o ensino da música de uma forma
muito limitada. É preciso pôr as pessoas a vivenciar situações onde não
interessa se o aluno se enganou em
duas ou três notas ou se o dedo está
mais para cima ou mais para baixo.
Interessa, sim, que a pessoa está a
tocar ou a cantar e que confia o suficiente no que está a fazer para querer que soe bem e arriscar um outro
nível. Trabalho muito os professores neste sentido. É preciso conseguir brincar com as coisas para se
progredir a sério.
Até porque no ensino primário e
básico o objetivo à partida, não será
formar músicos, mas, acima de tudo,
tentar ampliar consciências.
Claro! Estamos, acima de tudo, a formar pessoas. Se os alunos quiserem
vir a ser músicos, mais tarde poderão optar por se inscrever numa
escola de música e aprender um
dado instrumento com exigências
técnicas. O papel de um professor
no ensino primário ou secundário
é o de fazer os alunos vivenciarem
a música de forma flexível e gratificante, diversificando as suas formas de pensar de tornando-os mais
interventivos naquilo que fazem.
Não é: “ou cantas bem ou o melhor
é estares calado”. Ninguém pode
fazer música boa sem experimentar,
sem arriscar, sem errar. O papel da
educação musical no ensino básico
é o de sensibilizar as pessoas para
a música, mas acima de tudo, será
o de as trabalhar psicologicamente
para que possam fazer uma coisa
que lhes dê gosto e que seja construtiva para as suas vidas. 
Download

Conversando | Edição n.º 85 | Teresa Leite