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ESCRITA COMO ABERTURA VITAL: POR ENTRE LINHAS DELEUZIANAS
BRITO, Maria dos Remédios de1
RESUMO: Deleuze afirma que escrever é um caso de devir. É impossível impor uma
armadura e expressão na matéria viva da escrita. Escrever é uma forma de estar na
própria vida. A escrita torna-se um gesto de “atletismo”, corpo em movimento, vida em
cena, que rompe o mero estruturado. Do mesmo modo, o próprio corpo, pelo excesso de
esgarçamento, é uma efetiva experimentação da vida, na qual o ato de escrever torna-se
uma luta com a palavra. Contudo, alerta Deleuze que mesmo que a escrita seja uma luta
que atravessa o corpo, ela não está na ordem do sujeito. Assim, não é o sujeito que a
atravessa, pois as cabeças fazem fluxos por campos larvares, em que a fabricação da
experiência desfaz o organismo. A partir desses territórios procura-se abordar a ideia de
que a escrita opera numa zona de experimentação na qual a vida torna-se uma profusão
aberta de linhas de fuga e de agenciamentos múltiplos. Entende-se que a escrita é um
campo aberto para novas paisagens-textos, que exercita estranhamentos, acidentes,
decaimentos, entusiasmos, o que faz dessas paisagens um efetivo devir-escrita.
PALAVRAS-CHAVE: Escrita, Vida, Devir, Experimentação, Deleuze
I
“Escrever como um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua
toca. E, para isso, encontrar seus próprios pontos de
subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo,
seu próprio deserto” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 28-29)
O conceito de Intercessores é fundamental para o pensamento de Deleuze, ele
movimenta todo o seu plano de imanência filosófico. Dessa maneira, conhecimentos,
tais como a literatura, a arte e a ciência, para o filósofo, são também produtores de
pensamentos que são importantes para a sua elaboração conceitual. Deleuze faz dos
saberes outros uma intensidade de produção e criação, pois, como diz Machado (2009,
p. 193), “o objetivo principal de sua filosofia é elucidar o que seja pensar, e o
pensamento não é exclusividade da filosofia: é uma propriedade de qualquer tipo de
saber”.
1
Licenciada em Pedagogia, Bacharel em Filosofia, pós-doutora em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto de Educação Matemática e Científica (IEMCI).
Coordenadora do Grupo “Transitar”, membro do Grupo de Estudos “Cultura, Subjetividade em Educação”/CNPq. Trabalha nas
intercessões da Filosofia e Educação, com a Filosofia da Diferença (Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari). Email: [email protected];
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Com os outros conhecimentos e autores, Deleuze cria conceitos a partir de suas
próprias perspectivas, pois ao fazer conexões entre arte, literatura, ciência e linguagem,
acima de tudo, quer exercitar a sua filosofia da Diferença, tomando o não filosófico e o
não conceitual como exercício fundamental para a sua elaboração filosófica.
Deleuze seleciona seus autores, inclusive na literatura, por demandar certos
pensamentos que favoreçam a sua produção conceitual. Assim, utiliza-a para pensar
conceitos importantes, tais como: força, intensidade, devir.
O importante para Deleuze na literatura vem pela maneira como a linguagem se
engendra em zonas, se potencializa; que palavras são postas em fluxo, em relação; que
movimento ela inventa para a escrita. Desse modo, mais do que os aspectos lexicais, são
os ritmos linguísticos que o interessam, o que o escritor inventa, o que efetivamente ele
faz gaguejar, o que ele cava para o mundo com a linguagem, com as palavras, ou ainda,
que língua põe em força, o que ela pode desestabilizar. Cada escritor, como diz
Machado interpretando Deleuze...
Está obrigado a criar uma língua (...) Fundamentalmente, o que
interessa a Deleuze na questão da linguagem literária é o estilo como
uma nova sintaxe que possibilita que o escritor produza um devir-outro
da língua, um “delírio” que a faz sair dos eixos, dos trilhos, que a faz
escapar do sistema dominante. Assim, ele privilegia na literatura o
modo como o escritor decompõe, desarticula, desorganiza sua língua
materna para inventar uma nova língua, uma língua marcada por um
processo de desterritorialização. (MACHADO, 2009, p. 207)
O filósofo privilegia aqueles autores da literatura que criam uma espécie de
língua estrangeira na sua própria língua, que sabem promover disjunções e rasuras com
as palavras. Ademais, o escritor não escreve para si, não escreve para viver, mas para
morrer, furando os blocos firmes das linhas duras, promovendo um campo vibrátil,
desequilibrando formas por meio de sua distância.
Esse experimento disjuntivo, o rompimento com linhas duras e o próprio
renascer como estágios para a vida da escrita, demarca o sentido da literatura para
Deleuze. Não se trata de escrever qualquer literatura e nem de qualquer escritor que
passa pelo crivo de sua escolha. Pensando nessas zonas de movimento, é que a presente
digressão toma forma de paisagens, por entre inspirações deleuzianas sobre a escrita e
suas linhas vitais.
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Para Deleuze, a escrita é atravessada por um experimento2 vital que vaga por
entre ondas, entre fissuras e agenciamentos múltiplos, percorrendo o devir, o inacabado,
promovendo paisagens-textos em buracos, imagens de resistência, de movimento, de
enfrentamento com todo tipo de organismo. “Não há escrita acabada, pronta, encerrada
em si mesma, ao contrário, ela se envolve em um processo, em uma passagem da vida,
nunca é uma integridade, uma totalidade, uma fidelidade a fatos, à história. Escrever é
sempre um passar; é sempre uma passagem” (BRITO, 2011, p. 244).
A escrita é um trabalho de desmontagem dos órgãos, na perspectiva deleuzeana.
Para pensar tal imagem-escrita, este texto terá como composição experimental a ideia de
platô, ensaiado como uma espécie de mosaico, sendo iniciado por um ponto qualquer,
onde os sentidos se aproximam e se desmancham, onde penetram movimentos de
pensamento, variações, contornos, para aproximar o pensamento de um autor que, sem
dúvida, promove rasuras e arrastamentos com as ideias e com o corpo, o que não
demanda nenhuma facilidade para o seu entendimento. A escolha em perfurar ou
caminhar por essas veredas experimentais, pela via do pensamento de Deleuze, é uma
forma de exercitar o pensamento, mobilizando-o para além das categorias formais.
Então, o presente texto não terá nenhuma pretensão de esgotar leituras e nem
enclausurar modos interpretativos, ao contrário, o que se propõe é um mero movimento
do pensamento por afecções textuais, que envolvem a filosofia deste pensador, tão rico
e instigante para o pensamento contemporâneo.
Platô I
Escrita e experimentação
“Partir, partir, evadirmo-nos... Atravessar o horizonte, penetrar numa outra
vida” (DELEUZE, 2004, p. 51)
“Ódio pela activa observação de si mesmo, interpretação da alma como:
ontem estive assim e era por causa disto, hoje estou assado por causa daquilo.
Não é verdade, não por causa disto nem daquilo e por isso também nem assim
nem assado. É preciso suportar com calma, não se precipitar, viver como tem
que ser, não correr em volta de si mesmo como um cão” (KAFKA, F, 1954, p.
132)
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A ideia de experimentação diz respeito à disposição, ao interesse, ao humor, ao afeto, ao súbito, ao imediato, onde
se cai, de-cai, se atravessa, se é perpassado, ou seja, afetado. Esse atravessar, perpassar, é que propriamente dá o
caráter do páthos, de afecções. A experiência é todo um movimento de forças, de contágios, de intensidades, de
deslocamentos de sentidos, que percorre o corpo de quem por ela é atravessado. Tudo isso envolve uma pragmática
das sensações e dos perceptos. Consultar o termo no texto: BRITO, M. R. A escrita-devir como experimentação: Para
uma cartografia de si. In: (orgs). CHAVES, N; BRITO, M. Formação e Docência: Perspectivas da Pesquisa
narrativa e autobiográfica. Belém: Cejup, 2011.
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Deleuze se interessava por uma escrita onda, escrita experimental e cristalina.
Ele talvez pudesse dizer que Marguerite Duras faz tal escrita, de algum modo. Pois,
como a autora diz: “A história da minha vida não existe. Ela não existe. Nunca há um
centro. Nem caminho, nem linha” (DURAS, M. 2007, p. 12). O escritor para Deleuze é
esse que deseja a dissolução de si mesmo, sendo assim, nas palavras de Duras...
(...) a escrita não é uma maneira de conseguir viver, é simplesmente
uma maneira de viver. Nem todos podem escrever ou fazer literatura,
essa vida não é para todo mundo. Alguns morrem por ela. Mais do que
uma maneira de viver, a literatura é uma maneira de morrer, de morrer
para si mesmo. (DURAS, 2007, p. 90).
Deleuze, sem dúvida, assinaria esse pensamento sem inclinações ou receios.
Logo, a escrita, para o autor, é um modo de estar na vida, uma vida que vai sendo
desenhada no horizonte daquele que a experimenta entre traçados, entre gestos e
encontros. Ela opera por uma força, por uma potência, por uma zona de experimentação
que passa efetivamente pelo corpo do escritor, que o faz produzir um devir escrita,
desmobilizando os sentidos, fissurando o papel em branco, pois...
Experiência paradoxal e cruel, a escrita é uma produção
desapropriadora. Nela tudo se perde: o porto seguro, o lugar
confortável. O corpo logo se transforma em líquido, líquido-tinta que
borra a página branca e que torna suspeita a própria inocência de um
fluxo paralisado na grafia de um gozo. Gozo que escreve com o líquido
o terror epidérmico de um corpo em demasia, de um corpo engolido
pela saliva, pingo de fogo dançando às margens da loucura em que o
conteúdo absorve o continente. (LINS, 2002, p. 21)
Não há como capturar tudo aquilo que se escreve ou se pensa quando se narra,
pois a palavra é sempre inapropriada, tal como o pensamento, que, como um córrego,
tornar-se uma espécie de zona indomável. A escrita não permite limite e forma para a
linguagem, pois a palavra escrita ou narrada não completa o signo. O que se narra é um
fluxo, o que se escreve é uma intensidade, não há como oferecer uma forma pura para o
que é vida. Por isso, o escritor é aquele que desenha a sua vida por um modo esgarçado,
percorre linhas sem saber a sua continuidade, nas quais o ato de escrever torna-se um
movimento selvagem e a palavra vai sendo desfeita, a linguagem vai sendo gestada e
experimentada.
Com isso, o escritor...
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Como sujeito de enunciação, é antes de mais nada um espírito: ora se
identifica com as suas personagens, ou faz com que nos identifiquemos
com elas, ou com a ideia de que são portadoras; ora, pelo contrário,
introduz uma distância que lhe permite a ele e nos permite a nós
observar, criticar, prolongar (...) O autor cria um mundo, mas não existe
um mundo à nossa espera para ser criado. Nem identificação, nem
distância, nem proximidade nem afastamento, porque, em todos os
casos, é-se levado a falar por, ou no lugar de... Ora pelo contrário, é
necessário falar com, escrever com. Com o mundo, com uma porção de
mundo, com pessoas. (DELEUZE, 2004, p. 70)
Escrever é sempre uma relação com a “ordem” do movimento, do inacabamento,
do agenciamento, onde o corpo na escrita vai sendo desmontado, montado, um efeito de
territorializar e de desterritorializar3. Por isso, o ato da escrita não se refere a significar,
mas, efetivamente, a agrimensar, a cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir,
como alerta Deleuze (2007).
A vida passa pela escrita quando vai operando uma máquina de produção das
intensidades que percorrem o entre, o devir4, o meio.
Pelo que Deleuze diz:
A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devirmulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num
devir-imperceptível. Esses devires encadeiam-se uns aos outros segundo
uma linhagem particular (...) O Devir não vai no sentido inverso, e não
entramos num devir-Homem, uma vez que o homem se apresenta como
uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a matéria, ao
passo que mulher, animal ou molécula têm sempre um componente de
fuga que se furta a sua própria formalização (...) Devir não é atingir uma
forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de
vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação (...) O devir está
sempre “entre” ou “no meio”(DELEUZE, 2007, p. 11).
A escrita, assim, torna-se um atletismo, que se exerce na fuga, no
desaparecimento, compondo uma relação entre morte e vida, perfazendo um movimento
por entre lugares e formas; que vai arrastando as palavras, a linguagem, para um mundo
desconhecido e inacabado. Há uma luta corporal junto à palavra. Nesse ínterim, pode-se
dizer que escrever é sempre uma relação dessa ordem. Contudo, a escrita, a vida e o
3
Sobre esses termos verificar a obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Sobre tal conceito dizem Deleuze e Guattari: “Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é
ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação (...) Devir não é progredir nem regredir
segundo uma série. E sobretudo devir não se faz na imaginação, mesmo a imaginação atinge o nível cósmico ou
dinâmico mais elevado (...) O devir não produz outra coisa senão ele mesmo (...) O que é real é o próprio devir, o
bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna (...) Enfim, devir não é
uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação
seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança (...) O devir é
involutivo, a involução é criadora. Regredir é ir em direção ao menos diferenciado. Mas involuir é formar um bloco
que corre seguindo sua própria linha” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 1997, p. 18-19).
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corpo não têm ligações com um sujeito, uma vez que ela vai desfazendo os órgãos, vai
cortando membros e decepando cabeças. Como diz Deleuze ao se referir ao caso
exemplar de Thomas Hardy na construção de seus personagens que não são sujeitos e
nem pessoas,
As personagens nele não são pessoas ou sujeitos, são coleções de
sensações intensivas, cada uma é uma coleção dessas, um pacote, um
bloco de sensações variáveis. Há um curioso respeito pelo indivíduo,
um respeito extraordinário: não porque ele se apreenda a si mesmo
como uma pessoa, e seja reconhecido como uma pessoa (...), pelo
contrário, porque ele se vive e porque vive os outros como outras tantas
“possibilidades únicas” – a possibilidade única que tal ou tal
combinação tenha sido produzida. Individuação sem sujeito. E estes
pacotes de sensações vivas, estas coleções ou combinações, fogem por
linhas de acaso ou de azar, aí onde se fazem os seus encontros, se
necessário os seus maus encontros, que vão até à morte, até ao
homicídio (...) (DELEUZE, 2004, p. 55).
O ato de escrever percorre zonas. Textos-imagens se desfazem e resistem aos
nomes, às formas, às normas e às leis. Cada escritor fabrica sua própria experiência com
a escrita, com a imagem-texto, ao mesmo tempo em que fabrica seu desmoronamento.
O corpo passa por uma força, uma potência percorrida pela imanência fugidia do devir.
Escreve-se para alcançar uma espécie de zona de vizinhança, de indiscernibilidade.
(...) uma escrita-corpo, um corpo que dança, um corpo textual
impenetrável. Impenetrabilidade que faz, porém, com que o
leitor se deixe atravessar não pela reprodução deformada dos
pensamentos, mas pelo ressentir, mediante o qual ele se abre à
contaminação, recusando assim a compreensão de um
pensamento violentado pela escrita (LINS, 2002, p. 26)
Com isso, a linguagem vai operando com sua incompletude e desenhando um
corpo liso, experiências, movimentos, entre passagens, textos e personagens. A
linguagem vai desmontando rastros e constrói um bilinguismo e arrasta a gagueira por
entre perigos, que aproximam movimentos de resistências, de intervalos, promovendo
um tempo menor, uma escrita menor5, o que demarca a efetiva seleção de Deleuze por
determinados autores, que para ele são criadores de outra língua na sua própria língua e
faz para si uma estilística escritural.
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Sobre essa questão ver: DELEUZE, G.; GUATTAERI, F. In: Kafka: por uma literatura menor.
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Tudo vai passando por uma espécie de arrombamento, encontros, acasos, voltas,
ideias, violência, nos quais o escritor foge de qualquer possibilidade natural de
pensamento e, por isso, ele está sempre no entre, entre devires, pois “não pensamos sem
nos tornarmos uma outra coisa, outra coisa qualquer que não pensa, um animal, um
vegetal, uma molécula, uma partícula, que regressem ao pensamento e o voltam a
lançar” (DELEUZE, 1992, p. 42). O escritor sente todo o potencial das palavras que vai
esburacando seu corpo “habitado por um medo desmesurado, ele espera o instante que
o leve a abandonar os órgãos e enveredar pela inocência do devir, para um corpo não
mais sufocado pelo organismo” (LINS, D. 2012, p. 109),pois, para Deleuze, todos os
escritores que formam uma língua menor querem promover fluxos no interior do
sistema linguístico fechado e estruturado.
A escrita, assim, “conjuga-se sempre com outra coisa, que é o seu próprio devir”
(DELEUZE, 2004, p. 60). O escritor é aquele que faz vazar mundos e esburacar o rosto
quando opera com fluxos na sua escrita e no uso que faz com as palavras, que não
percorre a imitação, mas a conjunção, a involução. O “escritor é penetrado por um devir
não escritor” (DELEUZE, 2004, p. 60). Ele é uma espécie de traidor de si próprio,
quando a escrita percorre uma dissolução da identidade, tornar-se desconhecido para
promover uma perfuração do devir imperceptível.
Para Deleuze, um “escritor não pode desejar ser „conhecido‟, reconhecido”
(DELEUZE, 2004, p. 60), visto que a escrita não tem outra finalidade que não perfurar
o muro, limá-lo pacientemente. Isso posto, registra-se que ela forma uma linha de fuga
quando maquina a clandestinidade, quando ela não abraça palavras de ordem
estabelecidas, permitindo desenhar todo um devir minoritário, como forma de resistir
aos buracos de significações dominantes, cito-o...
Estamos sempre cravados no muro das significações dominantes,
estamos sempre mergulhados no buraco da nossa subjetividade, o
buraco negro do nosso Eu que nos é mais caro que qualquer outra coisa.
Muro onde se inscrevem todas as determinações objetivas que nos
fixam, nos quadriculam, nos identificam e nos fazem reconhecer;
buraco onde nos alojamos, com nossa consciência, os nossos
sentimentos, as nossas paixões, os nossos pequenos segredos demasiado
conhecidos, a nossa vontade de nos tornar conhecidos. E embora o rosto
seja um produto deste sistema, é também uma produção social: grande
rosto de faces brancas, com o buraco negro dos olhos. As nossas
sociedades precisam produzir rostos. Cristo inventou o rosto. O
problema de Miller (que já era o de Lawrence): como desfazer o
rosto, libertando em nós as cabeças exploradas que traçam linhas
de devir? Como passar o muro, Como sair do buraco negro, em vez
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de rodopiar no fundo, que partículas fazem sair do buraco negro?
(DELEUZE, 2004, p. 61). (grifo meu)
A escrita como uma forma de vida opera com uma máquina dos desvios e
desenha a vida pelas imagens do acabamento, fazendo um enlace produtivo entre vida e
morte, deslizando fora dos segredos, desfigurando a subjetividade, desmobilizando
sistemas arborescentes de pensamentos. Dessa maneira, Deleuze seleciona uma forma
de literatura e de escrita errantes, procura por intercessores que operam com a máquina
produtiva da afirmação, da invenção de outra língua que experimenta outros cortes,
saltos, fragmentos, e que faz da sintaxe o conjunto efetivo dos desvios (DELEUZE,
2007), onde as palavras cavam buracos, desordem, para ver e ouvir outros nomes.
Todos os nomes e palavras criados pela escrita devir compõem uma espécie de
geografia, de personagens que figuram pela reinvenção e criação. O rosto vai sendo
desfeito diante da montagem móvel do escritor.
Por esse território...
Muitos diferentes são os desvios contidos na escrita quando ela não
abraça palavras de ordem estabelecidas, mas linhas de fuga. Dir-se-ia
que a escrita por si própria, quando não é oficial, reencontra
forçosamente “minorias”, que não escrevem necessariamente o seu
nome, sobre as quais também não se escreve, no sentido em que não são
tomadas por objeto, mas nas quais se é apanhado, voluntária ou
involuntariamente, pelo simples fato de se escrever. (DELEUZE, 2004,
p. 59).
A escrita torna-se um acontecimento no qual as palavras e a linguagem não têm
o que dizer sobre “o sentido”. As palavras compõem sua cor, seu delírio como
acontecimento, em que nada há por trás. A escrita é uma passagem, uma viagem, um
traçado, uma linha, uma rota...nunca um fim. Com isso, o escritor nunca sabe o que
escreveu, mesmo que tenha escrito na tentativa de saber, já que o texto não figura uma
subsistência, um em si. O texto, por outro lado, vai comportar uma dobra que retira a
escrita daquilo que é. Do mesmo modo, o escritor vai sendo desfeito na medida em que
põe vida à escrita.
Para a escrita, cabe uma espécie de partida “evadirmo-nos...atravessar o
horizonte, penetrar numa outra vida” (DELEUZE, 2004, p. 51). Quando a escrita
compõe uma linha de fuga, ela nada mais promove para si do que uma
desterritorialização, ela deixa vazar um sistema. Fugir, como diz Deleuze (2004), é
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deixar “traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia” (DELEUZE, 2004, p. 51). Então,
a escrita percorre mundos por longas linhas em fluxos.
Assim, Deleuze faz um efetivo elogio à literatura nas figuras de Lawrence,
Virginia Wolf, Henry Miller, Melville, Thomas Hardy, Kafka, Lewis Carrol. Isso
porque nesses escritores há sempre linhas de fugas, devir, passagens, entre lugares,
criações, multiplicações e desvios, que cavam uma escrita menor6. É como se o escritor
fosse atravessado por demônios que transpõem os limiares, que extraem vibrações,
singularidades, encontros desconhecidos. A alma do escritor passa por uma fonte de
força, de potência, aquilo que não para de agir, de agitar, sendo dobrado em todos os
sentidos e que provoca o desassossego, que o amplifica e o desfaz.
Existe na escrita desses autores uma experimentação, uma terra ainda por vir, há
passagens, linhas geográficas, que perfuram o muro, fazem canais e platôs. Esses
autores, para Deleuze, ao contrário dos franceses, estão para além da imagem raiz, por
eles construírem rastros rizomáticos. Para eles, existe um jogo criador das errâncias, dos
espaços lisos, das traições, dos corpos esgotados, resistentes, dos devires-animais, que
inferem, fazem repúdios, que desencadeiam fluxos minoritários e invadem toda uma
máquina estrutural e edificante. Esses autores arrastam consigo todo um processo de
demolição. Tudo isso só pode ser entendido ao fomentar a linha, mas, ao mesmo tempo,
desfazê-la pelo meio e nunca pelos extremos.
O ato de escrever, como sugere Deleuze (2007), tem como motivação liberar a
vida onde ela parece estar amarrada ou enclausurada. A escrita é uma experimentação,
uma linha de fuga, que reivindica uma vida não subjetiva, pois como diz Deleuze:
“Escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos,
sonhos e fantasmas” (DELEUZE, 2007, p. 12). Não se escreve com as próprias
neuroses, pois elas não são passagens da vida, mas estados. Escreve-se para desfazer o
rosto, o nome e as neuroses.
Por isso, o mais interessante entre escrita e a vida é a experimentação, é ela que
tangencia um vínculo entre saúde e doença. O escritor não escreve porque está doente,
mas efetivamente por estar trespassado por uma saúde. A “literatura é um
empreendimento de saúde” (DELEUZE, 2007, p. 14).
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O termo remete a ideia desenvolvida por Deleuze e Guattari sobre a literatura menor. Ele passa por um desafio
político. Pois, como diz François Dosse: “Está em jogo a preservação de micropolíticas plurais e resistentes para que
não desapareçam na axiomática estatal” (2010, p. 218). Regular os polos: aparelho de captura e máquina de guerra. A
literatura menor é uma espécie de máquina de guerra que tem como potência o movimento, o nomadismo. Forjando
outra linguagem e pensamento fora das perspectivas dogmáticas.
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Platô - II
Escrita e saúde
“Só há palavras inexatas para designar exatamente alguma coisa”
(DELEUZE, 2004, p. 13)
Contudo, não é que o escritor tenha uma grande saúde, ele goza de uma frágil
saúde irresistível. Ele entra nesse frágil e forte limiar, porque vê e ouve com uma força
sagrada. “Vê a vida no vivente ou mesmo o vivente no vivido com toda a sua potência,
seu corpo faz todo um atletismo, todo um movimento, pois o escritor traça as palavras
no papel, na medida em que é atravessado por um encontro violento. Ele vê algo tão
forte que retorna sempre com os olhos vermelhos e o fôlego curto” (DELEUZE, 1992,
p. 152).
Há todo um bloco de sensações que o atravessa, que o desagrega sem cessar, que
o desequilibra, que o desarticula e o leva para outros lugares, outros devires. O corpo do
escritor torna-se um cadáver que desafia o verbo, a palavra e a linguagem; e os desertos
vão sendo proliferados, arrancados de qualquer possível. O corpo vai sendo arrastado
por esse devir saúde-doença que promove conexões variáveis e paradoxais, como sugere
a escrita de Lewis Carroll, em “Alice no país das maravilhas” ou de Kafka em seu
texto “A metamorfose” ou de Melville com a sua novela Bartleby, o copista.
Na literatura, o que atrai Deleuze são os modos, são os personagens que se
colocam como resistência a tudo que seja intolerável, deixando atravessar pelo seu
corpo de muitas maneiras, que liberta as identidades, os nomes e as palavras. Modos de
vidas são inventados para salientar a infâmia, a morte e a servidão. Do mesmo modo, a
linguagem utilizada para certos escritores, ressoa de forma insólita, extravagante,
passando por entre as convenções linguísticas, desenhando outra lógica extrema na
escrita, passando por um “„irracionalismo superior‟ que não quer explicar, esclarecer,
justificar o comportamento dos seus personagens” (MACHADO, R, 2009, p. 209).
Deleuze elogia os literatos quando o escritor leva a razão para longe das
formalidades e cria personagens que voam e deslizam no vazio, tal como Melville o fez.
Esse tipo de escritor faz a língua delirar, saltar, para promover a invenção de outras
palavras. Assim, ocorre uma espécie de tensão, alguma coisa passa que não é sintática e
desliza sobre a linguagem, vai para fora. É um de-fora da linguagem, que não é algo
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interior e nem exterior, mas é uma vida que a percorre, um saber que passa entre a vida
e pela vida. A literatura percorre os fios da intensidade e das afecções. A linguagem
tende a afrontar alguma coisa mortificante que atravessa a vida, da mesma forma que
ela procura mostrar a vida entre as coisas.
Então, para Deleuze, a vida que a literatura acessa é a capacidade de resistir, é
uma vida que flutua entre as ondas da singularidade e não da pessoa e nem do
indivíduo. A literatura por essas veredas implica em inventar uma linguagem com a
potência do fora, atravessada por sensações, visões, audições, que faz parir outras
palavras cheias de intensidades, violentadas pela força do mundo. A linguagem é levada
ao extremo, libertada da reatividade para promover outros nascimentos com a palavra e
a escrita. O escritor tornar-se alguém capaz de ver o invisível, de ouvir o inaudível. Ele
vê para além dos olhos e ouve para além dos ouvidos comuns, ele entra nos interstícios
e faz andanças nos campos da crítica e da clínica, pois é sensível ao mundo e a vida,
liberando-a da semelhança.
É por isso que o escritor promove em si um devir-saúde-doença quando se deixa
atravessar por gritos, forças, organismos vazantes, bem como por uma pulsão sem
órgãos, fazendo de sua dor, de sua tristeza, a sua grande saúde.
Assim, a tarântula, que tanto Nietzsche (2011) recusa, é arrastada pelo devir
escrita experimentação, pois ele faz da dança o movimento para as palavras e para a
linguagem, desafiando o moralismo e o pensamento do julgamento. Por esse viés, o
escritor que faz da sua fragilidade a sua grande saúde, faz as palavras delirarem e
perderem os sentidos únicos e os multiplica em perspectivas e olhares, fazendo do seu
corpo uma potência infernal da criação, para, ao mesmo tempo, desmontar a mediação
do diálogo projetado como harmonia e consenso, pois não há como negar que o mundo
deve resistir ao que difere sobre a positividade do não.
Esse escritor que é atravessado por essa potência da saúde, tal como Nietzsche o
foi, percorre em seu fora um entre criança, que o força a maquinaria de uma escrita
perfurada por palavras em rastros e fragmentos nômades, uma escrita em aforismos, em
pedaços, entre poemas e ensaios. Tudo isso põe em questão conceitos e formas
determinadas, tal como fez Nietzsche com seu labor escrita. Não foi à toa que este
mesmo pensador fez a filosofia passar por entre linhas e pensamentos outros. Criticando
o pensamento dogmático da filosofia, ele afirma que o seu papel não é impor uma
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verdade, mas criar conceitos, por meio de um pensamento agitado pelo mundo e pela
vida.
A literatura, diferentemente de um pensamento dogmático filosófico, deixa as
verdades para trabalhar com as fabulações, com as construções de povos e reivindica
para o pensamento, para o corpo, novas formas de conceber o mundo, a vida, e provoca
uma exigência rara e efetiva uma nova forma de escrita e expressão.
Platô III
Corpo e escrita
“Quem escreve em sangue e em máximas não quer ser lido, quer ser aprendido de cor” (NIETZSCHE,
2011, p.40)
Para efetivar essa potência de expressão que não passa pela verdade, mas por um
puro processo de invenção, criação de mundos e singularidades o corpo do escritor
exercita uma mistura violenta de afecções, envolvida por entre signos e encontros.
A cena desse corpo escrita é afetada por uma coreografia anunciadora de
intensidades, canais, danças, fragmentos, órgãos sensuais, na qual o escritor pinta seios,
pernas, orifícios, vulva, rosto, nudez, situações, intrigas, abandonos, solidão, fadiga,
cansaço, devir-animal, signos de amores, signos mundanos, signos de contestações. O
escritor desterritorializa e territorializa mundo e individuações outras. Ele permite
atravessar na sua escrita, várias conexões, múltiplos regimes de vida e de órgão. Mistura
signos para fugir das codificações fixas. O corpo do escritor transporta o amor, o ódio, a
paixão, uma emoção desmedida que faz a experiência da escrita, uma multiplicidade. As
palavras dançam, promovem um precioso guia de viagem que ilumina o fora da escrita e
a violência do pensamento, transversalizando modos e formas de vida que impregna o
pensamento de outras perspectivas, abertas a sensações, a vibrações.
Pensar para Deleuze é uma experimentação e não uma interpretação, porque a
singularidade se encontra sempre onde não espera estar, sempre às margens, em bordas,
em picos de ondas, em vagas impiedosas. Um pensamento, portanto, exige da escrita e
do escritor vida e movimento. Daí as sensações, as fissuras e aberturas para as
transversalizações.
O devir escrita não é privilégio da literatura, mas de todo pensamento que se
deixa afetar pelo fora, seja o pensamento do filósofo, do escritor ou do artista. Ele abre
fissuras para outros mundos, provocando o rapto da representação fincada nos sistemas
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de igualdade, semelhança e generalidade, quando se pensa em um devir escritor não
dogmático, pois como diz Daniel Lins “Para alguns escritores e pensadores não foi uma
experiência perpassada pela escrita, como experimento extremo que fez emergir o
inumano do humano? Humano, ser humano, categorias recentes, mas que sofrem o seu
cansaço e deliram como se comessem o ventre, e os ventres de seu ventre por dentro”
(LINS, 2012, p. 104). Experienciar outras formas de escrita e pensamento é o que
sugere Deleuze por entre seus programas de pensamento envolvidos por um devir
menor. Por isso, a sua escrita perpassa toda uma imanência, toda uma vida.
O convite é: não interprete, experimente outros modos de pensamento, escritas e
vida que estejam a favor da diferença, proliferando povos, vidas e sensações, pois todo
o interesse de Deleuze pela literatura e outros saberes, estava ligado à repetição da
diferença e não do mesmo. Que o pensamento invente outros modos de vida, que
estejam em ressonância com domínios diversos, deslocando certezas e que possam
encontrar suas maiores vocações nas forças que mergulham em outras composições,
sem receio do perigo.
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