O OLHAR NA CLÍNICA DA PSICOSE INFANTIL IVY DE SOUZA DIAS Artigo apresentado ao Curso de Psicologia, Departamento de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, requisito parcial para obtenção do título de Psicóloga. Orientador: professor doutor Mário Fleig Avaliadora:professora doutora Ana Maria Gageiro Endereço para correspondência: Rua Doutor Freire Alemão, 351/302. Bairro: Mont Serra’t Porto Alegre- RS CEP: 90450-060 Telefones: (51) 99854147/(51) 33321119 Endereço Eletrônico: [email protected] São Leopoldo, Dezembro de 2006. 1 O OLHAR NA CLÍNICA DA PSICOSE INFANTIL1 Ivy de Souza Dias2 Mário Fleig3 Resumo A proposta deste artigo é buscar, na teoria psicanalítica, elementos conceituais que sustentem a investigação sobre a questão do olhar na clínica infantil da psicose. Para tanto, parte-se de uma exposição a respeito da construção teórica sobre o Estágio do Espelho, como formador da função do eu. A seguir, faz-se um resgate das noções que situam a estrutura psicótica, por intermédio do estudo sobre os termos relativos à função paterna. Finalmente procura-se, a partir de um caso em atendimento, o qual foi o motivador das questões presentes nesta pesquisa, estabelecer algumas articulações entre teoria e clínica. Palavras-chave: Estágio do Espelho. Psicose. Olhar. Abstract The proposal of this article is to search, in the psychoanalysis theory, conceptual elements that support the inquiry on the question of the look in the infantile clinic of the psychosis. For this, it is initiated with an exposition regarding the theoretical construction about the Mirror Stage, as a constructor of the function of the I. Next, it is done a rescue of the knowledge that point out the psychotic structure, through the study about the relative terms to the paternal function. Finally, through a case in treatment, which was the main reason of the questions in this research, there is a tentative of establishing some connections between theory and clinic. Key words: Mirror Stage. Psychosis. Look. Sumário 1. Introdução. 2. A caminho do espelho. 2.1. O espelho como formador do eu. 3. O sujeito aprisionado no espelho. 4. O menino que não nos olha: fragmentos de um caso clínico. 5. Conclusão. 6. Referências. 1 Artigo apresentado ao Curso de Psicologia, Departamento de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, requisito parcial para obtenção do título de Psicóloga, nov. 2006. 2 Acadêmica do Curso de Graduação em Psicologia, Departamento de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, nov. 2006. 3 Doutor, orientador e professor do Curso de Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, nov. 2006. 2 PARECER DE RECOMENDAÇÃO Porto Alegre, 25 de janeiro de 2007. Ilmos. Srs. Associação de Ensino de Psicologia Prêmio Silvia Lane Recomendo o trabalho de conclusão do curso de Psicologia, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, de minha orientanda, Ivy de Souza Dias, intitulado “O olhar na clínica da psicose infantil”, para concorrer ao prêmio Silvia Lane. A proposta do trabalho de Ivy de Souza Dias foi a de buscar, na teoria psicanalítica, elementos conceituais que pudessem sustentar a investigação sobre a questão do olhar na clínica infantil da psicose. Para tanto, a autora partiu de uma exposição a respeito da construção teórica sobre o Estágio do Espelho, como formador da função do eu, remontando às suas fontes em Wallon, que por sua vez remeteram a ninguém mais do que Darwin. Avançando em direção à sua questão clínica, a autora fez um resgate das noções que situam a estrutura psicótica, por intermédio do estudo sobre os termos relativos à função paterna. Finalmente procurou, a partir de um caso em atendimento, o qual foi o motivador das questões da pesquisa, estabelecer algumas articulações entre teoria e clínica. Percebemos, ao longo do acompanhamento e orientação, o quanto a elaboração deste texto, na relação entre o estudo teórico e o trabalho clínico, foi determinante para o aprendizado e crescimento pessoal e profissional da autora. Posto isso, consideramos oportuno recomendar o trabalho de Ivy de Souza Dias para concorrer ao prêmio Silvia Lane. Atenciosamente, Prof. Dr. Mario Fleig Unisinos – PPG-Filosofia Psicanalista membro da Association lacanienne internacionale e-mail: [email protected] 3 1 INTRODUÇÃO O presente artigo nasce de uma indagação clínica posta a partir do tratamento de uma criança, que veio mediante um encaminhamento psiquiátrico com o diagnóstico de psicose. Desde os primeiros encontros com ela, nos intrigou sua dificuldade/impossibilidade de nos olhar. Esta experiência despertou nosso interesse em pesquisar o seguinte tema: ao considerar o olhar em sua função subjetiva e não somente como função orgânica, como pensar essa questão a partir da clínica infantil da psicose? E mais: é possível afirmar que existe uma singularidade no olhar psicótico? Em caso afirmativo, em que se constitui essa especificidade? Sabemos que atualmente há uma tendência geral de medicalização da sociedade e também um reducionismo ao biológico na explicação do sofrimento psíquico. Trabalhar com a clínica psicanalítica é apontar os limites da medicação e procurar a direção de um trabalho terapêutico no qual o paciente é convocado a participar ativamente. Neste viés de trabalho, o ponto central é o sujeito do inconsciente, quando o terapeuta fica colocado na posição de escuta e o paciente no lugar da palavra. Da mesma forma, esta concepção de subjetividade é levada para o trabalho com a clínica infantil, com a diferença de que a criança é escutada em todas as suas formas de expressão. O estudo das psicoses na clínica revela grande complexidade, uma vez que é muito difícil conviver com a alteridade que a loucura provoca. Talvez por isso se encontrem poucos profissionais dispostos na direção da escuta de tais sujeitos. É comum, no exercício deste trabalho, encontrar equipes que acreditam no silenciamento dos pacientes mediante exclusivas internações hospitalares ou apenas condutas medicamentosas. O presente estudo incluirá a concepção em que o olhar é constituinte do sujeito. A criança antecipa a forma de seu corpo, por meio de uma identificação imaginária com o seu semelhante, para só depois construir a noção de corpo simbólico. Esta construção não obedece somente a um tempo evolutivo, mas indica uma estruturação de ordem psíquica. A questão da constituição da subjetividade e do desenvolvimento da criança apresenta-se a todo o momento na clínica. Assim, entender este tema, em seus desdobramentos, constitui-se a sustentação teórica do trabalho terapêutico com crianças. 4 Ao considerar, então, a grande demanda de casos que envolvem a patologia da psicose e um certo ecletismo que mascara as diferenças teóricas quanto à terapêutica desta clínica, é que se coloca a justificativa para esta proposta de pesquisa. Desta forma, esta busca teórica, sustentada pela abordagem psicanalítica, põe-nos diante da necessidade de entender como se dão as relações do olhar com os momentos iniciais de estruturação psíquica do sujeito. Nesse estudo, procuramos explorar o conceito de Estágio do Espelho na leitura lacaniana, considerando algumas construções teóricas anteriores que abriram caminho para esta definição. A partir destas considerações, discorremos sobre o quadro clínico das psicoses, buscando situar a concepção psicanalítica dessa estrutura, por meio da investigação sobre os termos relativos à função paterna. Neste momento trabalhamos com os conceitos elaborados por Freud e retomados por Lacan. Para finalizar, buscamos nos recortes de um caso clínico em atendimento, questões que produziram e sustentaram as indagações deste artigo. A partir daí procuramos estabelecer articulações entre a prática clínica e a leitura teórica psicanalítica. Como não é possível responder a essas questões de forma a esgotá-las, o esforço será no sentido de vislumbrar algumas possibilidades para sustentar o trabalho clínico com crianças psicóticas, especialmente com relação à questão do olhar. Poder compartilhar o atendimento de Pedro4 significa enriquecer a nossa escuta e, portanto, o nosso trabalho clínico. 2 A CAMINHO DO ESPELHO... Ao publicar “A origem das espécies”, em 1859, Charles Darwin (2004) trazia para o mundo uma descoberta que serviria como pano de fundo para muitas pesquisas posteriores: sua arrojada teoria sobre a evolução das espécies por meio da seleção natural. Preocupado, no entanto, com a aceitação que teriam as suas teses, as quais punham em dúvida a criação do mundo por Deus, resultando essencialmente anticriacionistas, Darwin publicou nos anos seguintes outros textos fundamentais para a sustentação de sua teoria. 4 Nome fictício para que se possa preservar o sigilo ético. 5 Em “A expressão das emoções no homem e nos animais”, de 1872, Darwin (2000) traz a idéia, a partir de descrições minuciosas e curiosos desenhos e fotografias, que também os animais têm emoções – raiva, medo, ciúme – manifestadas por meio das expressões. Ele examina e explica essas expressões do ponto de vista de sua funcionalidade no processo de adaptação do indivíduo ao meio. Ao abordar as complexas emoções e expressões do homem, contudo, ele defende, segundo a teoria da evolução, que nossas expressões são resquícios herdados de antepassados primitivos, comuns tanto ao homem quanto a outros animais. Dessa forma, em um capítulo sobre “as expressões especiais do homem”, nessa mesma obra, Darwin (2000) descreve que a contração dos músculos em volta dos olhos, durante uma expiração violenta ou quando o tórax expandido é fortemente comprimido, está intimamente ligada à secreção de lágrimas. Segundo o autor, isso vale para diferentes emoções, mas também independe delas. O olho e seus apêndices estão sujeitos a um número extraordinário de reflexos e movimentos, sensações e ações associadas, além daquelas relacionadas às glândulas lacrimais, por exemplo, quando os olhos piscam involuntariamente na aproximação de um objeto, ou quando um barulho é subitamente ouvido. Darwin (2000, p. 164) formula uma pergunta: por que há secreção de lágrimas durante um ataque de choro ou em quaisquer outros esforços expiratórios violentos? E responde: Se nossos bebês, durante um período precoce da vida, quando todo o tipo de hábito se estabelece com facilidade, tivessem sido acostumados a soltar gargalhadas (durante as quais os vasos dos olhos se dilatam) quando contentes com a mesma freqüência e duração dos seus berros de insatisfação, provavelmente mais tarde eles derramariam lágrimas com a mesma intensidade, tanto em um estado de espírito quanto no outro. Uma pequena risada, um sorriso ou mesmo um pensamento agradável teriam sido suficientes para provocar uma secreção moderada de lágrimas. Segundo o autor, se os bebês, durante muitas gerações, e cada um por vários anos, tivessem quase diariamente prolongadas crises de sufocação, durante as quais os vasos do olho se dilatam e lágrimas são copiosamente segregadas, seria provável que mais tarde esse comportamento se repetisse continuamente. A explicação para isso está na força do hábito associado, pois um simples pensamento de sufocação, mesmo sem qualquer sofrimento mental, seria suficiente para levar lágrimas aos olhos. Mais tarde, Darwin (2000) aponta para uma associação entre as lágrimas que escorrem do olho humano e um possível sofrimento pelo qual a pessoa vem passando. Ele expõe que, 6 apesar de considerarmos o choro como um resultado incidental, tão desprovido de sentido quanto a secreção de lágrimas provocada por um golpe no olho, ou um espirro causado por uma luz brilhante na retina, isso não dificulta a nossa compreensão de como a secreção de lágrimas serve de alívio para o sofrimento. E acrescenta que quanto mais violento ou intenso for o choro, maior será o alívio – pelo mesmo princípio que faz com que a agonia da dor seja aliviada pelo tremor do corpo inteiro, pelo ranger dos dentes ou por gritos agudos. As idéias anteriormente referidas demonstram a concepção darwiniana que está assentada sobre a base de uma imensa riqueza de observações do mundo natural. Dito de outra forma, Darwin acreditava que toda a transformação de um indivíduo em sujeito é comandada por uma dialética natural. Henri Wallon (1968), baseando-se nas concepções de Darwin, cria suas próprias perspectivas de entendimento em relação ao desenvolvimento psicológico da criança. Ele concorda que nossas funções são orientadas pelo orgânico, mas paralelamente acrescenta a dimensão social. Também afirma, em seus textos, que os dois pólos entre os quais se desenvolve a atividade humana são as necessidades do organismo e as exigências sociais. O autor apóia-se numa escolha teórica em favor do materialismo dialético, que irá servir de suporte para sua concepção da Psicologia: materialista, quando situa a natureza como realidade que existe independentemente da consciência humana; dialético, quando parte do princípio de que a natureza é o resultado de múltiplas relações, condicionamentos e movimentos. Ele a faz assentar-se numa doutrina que admite a coexistência de dois princípios, nos quais a noção de desenvolvimento desempenha um papel central. O fator biológico, ligado à maturação do sistema nervoso, é inseparável do fator social, constituído pelas interações do homem com seu meio. O autor pensa o conjunto da Psicologia a partir da infância. É a sucessão descontínua dos estágios, e depois suas transformações em termos de crises, que fornece a chave da passagem do estado infantil à situação adulta. Segundo René Zazzo (1978), no domínio da Psicologia, a teoria walloniana toma agressivamente o sentido diametralmente oposto à atitude tradicional, arcaica, que apresentava a criança como uma imagem reduzida e simplificada do adulto. Wallon (1968) não revela interesse pelo drama concreto da pessoa, não se prende às constituições estanques e não coloca em cena os fluxos do condicionamento. Por isso, sua ótica consiste em construir uma psicobiologia, isto é, uma teoria das mentalidades, que leve 7 em conta, de um lado, a cultura, e de outro, a hereditariedade. O seu método, portanto, reforça o estudo das condições materiais do desenvolvimento da criança e procura verificar como se edifica, por meio dessas condições, um novo plano de realidade, que é o da personalidade. Na realidade, o que Wallon faz é nunca dissociar o biológico do social, porque um não é redutível ao outro. Ele os situa, no homem, como estritamente complementares desde o seu nascimento. As capacidades biológicas são as condições da vida em sociedade, mas o meio social é a condição do desenvolvimento dessas capacidades. Nesta perspectiva, Wallon renova profundamente as teorias científicas da motricidade e da emoção, como inicialmente Darwin as concebia. Sobre a emoção, Wallon (1968) acrescenta que na medida em que ela é estudada no adulto adquire teorias múltiplas e contraditórias. Recolocada numa perspectiva genética, a toma, então, em seu verdadeiro significado funcional. A emoção é um fato fisiológico do ponto de vista orgânico e um comportamento social nas suas funções primitivas de adaptação. No entendimento de Wallon, a emoção é contraditória nos seus efeitos. Ela oscila entre um estado de confusão, de oposição e de discriminação a outro. Assim, a emoção esboça o pensamento, a representação que lhe é contraditória e não contrária. Igualmente delimita a distinção entre o ego e os outros e antecipa as afirmações da personalidade. Dessa forma, o enxerto do social no orgânico tem na espécie humana uma importância decisiva, porque está ligado à condição de existência do indivíduo desde o seu nascimento. Em relação à descoberta freudiana, mesmo Wallon (1968) reconhecendo a sua importância, ele rejeita a idéia de um primado absoluto do inconsciente e não propõe à Psicologia a questão do seu estatuto. Tenta, antes, articulá-la com um novo domínio do saber, situado no cruzamento das Ciências Sociais. De fato, ele introduz no campo da Psicologia um certo número de conceitos que serão empregados pela segunda geração de psicanalistas, e notadamente por Jacques Lacan, dentro do contexto de uma reformulação “francesa” da doutrina freudiana, isto é, mediante uma releitura de Freud. Assim sendo, ele participa, num primeiro momento, da introdução do freudismo e, num segundo momento, de sua renovação. Em 1931, seis anos antes de ser nomeado professor do Colégio da França, Wallon (1989) redige um texto admirável sobre a questão do espelho e a noção de corpo próprio. Seus principais elementos serviriam de alicerce para Lacan elaborar dois conceitos fundamentais de seu ensino: o imaginário e o simbólico. 8 A aventura do espelho, apresentada como uma aparelhagem científica, é lançada por Wallon da seguinte forma: quando um pato é privado de sua fêmea e encerrado num cômodo revestido de espelhos, ele toma sua própria imagem pela da companheira ausente. Em circunstâncias idênticas, um cão tem uma reação de evitação. Responde aos afagos, mas recusa seu reflexo e se volta para seu experimentador. Comparando as atitudes dos animais com a das crianças, Wallon (1989) constata a presença de posturas diferentes, dependendo da idade. Argumenta que até o fim dos três meses, a criança é insensível à imagem do espelho, mas no decorrer do quarto mês produzemse mudanças. O olhar se fixa e o bebê observa seu reflexo como se fosse estranho a sua pessoa. O bebê, entretanto, esboça um sorriso. Dois meses depois, ainda sorri quando se olha no espelho e, posteriormente, para a imagem de seu pai. Quando, porém, escuta a voz do pai vinda de trás, volta-se para examinar se é seu pai mesmo que está ali. Ainda não consegue fazer coincidirem no mesmo tempo e espaço um reflexo e uma imagem real. A criança percebe com perfeição a relação existente entre a imagem e o seu modelo, mas não apreende a existência de uma relação de dependência entre ambos. No décimo mês a criança estende os braços para sua imagem e olha para ela quando chamamos por seu nome. Assim, ela representa o seu corpo próprio por meio de fragmentos e ao fim de um longo processo de exteriorização. Para unificar seu eu no espaço, a criança tem de obedecer a uma necessidade dupla: é preciso que admita a existência de imagens que pareçam com o real e deve afirmar a realidade de uma existência que escapa à percepção. Assim, segundo Wallon (1989), a criança se acha presa em duas formas contraditórias da representação: de um lado, encontra imagens sensíveis, mas não reais e, de outro, imagens reais, mas subtraídas ao conhecimento sensorial. A prova do espelho serve para a criança introduzir as distinções e equivalências entre o eu e o mundo. Nela, forma-se a noção de corpo próprio, que conduz à unidade do eu. Num primeiro tempo essa prova situa-se no âmbito da especularidade: não há relação entre a imagem refletida no espelho e a real. Num segundo tempo, ao contrário, estabelece-se uma relação que permite a constituição de um eu unificado num espaço imaginário que escapa ao efeito especular. Wallon também compara essa etapa a uma forma antecipada de uma terceira etapa, simbólica, que dará à criança os meios para organizar sua experiência sensível. Afirma também que, por volta de um ano de idade, a capacidade de estabelecer distinções no espaço define a função simbólica, e esta inaugura o campo para uma verdadeira aprendizagem da 9 realidade subjetiva e objetiva. Neste estágio a criança já não se contenta em estabelecer uma relação entre a imagem real e a imagem refletida. Aos 15 meses, o espelho assume uma nova feição. Para mostrar sua mãe, a criança a percebe, primeiro, pelo espelho e depois, se volta para ela sorrindo. Wallon (1989, p. 320) afirma: “Ela (a criança) finge atribuir a preponderância à imagem, precisamente porque acaba de reconhecer claramente nesta a irrealidade e o caráter puramente simbólico.” Segundo Elisabeth Roudinesco (1988), quando Wallon redige o texto sobre a psicogênese do corpo próprio e da unidade do eu, não estabelece nenhuma relação com o seu trabalho e o de Freud. Situa sua experiência dentro dos limites de uma Psicologia centrada, prioritariamente, em uma consciência dialética, na qual o inconsciente quase não tem lugar. Wallon (1989) ignora que suas experiências irão desempenhar um papel fundamental na história moderna do movimento psicanalítico francês, as quais serão fundamentais para Lacan fazer sua leitura e retirar o seu Estádio do Espelho.5 Sabemos que todas as ciências, em especial as que estão sendo criadas, vão pedir modelos emprestados a outras ciências. Lacan (1986) cita como exemplo a Geologia, pois sem ela não poderíamos pensar que se pudesse passar, ao mesmo nível, de uma camada recente à outra camada muito anterior. Freud [1895 (1972)], quando se refere ao processo inconsciente, põe no seu interior as diferentes camadas que se distinguem do nível perceptivo, ou seja, da percepção instantânea (S1, S2, etc...), ao mesmo tempo em que evidencia as imagens e recordações. Esses vestígios registrados são posteriormente recalcados no inconsciente. Assim, Lacan (1986) constrói a idéia de lugar psíquico, na referência freudiana da explicação de um aparelho microscópio, que foi a forma encontrada para nos fazer compreender o arranjo do mecanismo psíquico. Lacan (1986, p. 108), entretanto, busca no aparelho da óptica, “muito mais simples que um microscópio complicado”, a explicação para o surgimento da imagem. As imagens ópticas apresentam diversidades singulares – algumas são puramente subjetivas, as chamadas imagens virtuais, ao passo que outras são reais, ou seja, comportam-se sob certos aspectos como objetos e podem ser tomadas como tais. O olhar e a imagem tomam entre si uma referência. Um não existe sem o outro. É através do olhar que a imagem se constitui e esse, por sua vez, não tem um sentido sem a 5 Aqui, entenda-se da mesma forma a grafia “Estágio” do Espelho ou “Estádio” do Espelho. 10 imagem, “é a dependência do visível em relação àquilo que nos põe sob o olho do que vê.” (LACAN, 1998, p. 73). O ato de “ver-se vendo” instaura no indivíduo a sensação de existir no mundo e compõe a constituição de um eu6 fora de si mesmo, com função de entender-se, “saber-se” dentro de um espaço e de um tempo. Um olhar o surpreende na função de voyeur, o desorienta, o desmonta, e o reduz ao sentimento de vergonha. O olhar de que se trata é mesmo presença de outrem enquanto tal. Mas é de se dizer que, originalmente, é na relação de sujeito a sujeito, na função da existência de outrem como me olhando, que percebemos de que se trata no olhar? Não estará claro que o olhar só intervém na medida em que não é o sujeito nadificante, correlativo do mundo da objetividade, que se sente surpreendido, mas o sujeito se sustentando numa função de desejo? (LACAN, 1998, p. 84). Lacan (1986) defende que toda a óptica repousa inteira numa teoria matemática sem a qual é absolutamente impossível estruturá-la. Para que haja uma óptica é necessário que a qualquer ponto dado, no espaço real, corresponda um só ponto no outro espaço, que é o espaço imaginário. Para ele, esta é a hipótese estrutural fundamental, a qual, apesar de simples, sem ela não se pode escrever a menor equação, nem simbolizar nada – a óptica tornar-se-á impossível. O espaço imaginário e o espaço real se confundem. Na óptica, o simbólico conta na manifestação de um fenômeno. Por outro lado, em óptica há uma série de fenômenos que podemos afirmar perfeitamente reais, posto que é a experiência que nos guia, mas na qual, contudo, a subjetividade está constantemente comprometida. Assim, Lacan (1986) inicia a descrição de seu entendimento do aparelho óptico: um caldeirão, que próximo a uma semi-esfera bem polida no interior, ou seja, um espelho esférico, produz uma imagem real. A cada ponto de um raio luminoso emanando de qualquer ponto de um objeto colocado a uma certa distância, corresponde no mesmo plano, por convergência dos raios refletidos na superfície da esfera, outro ponto luminoso – o que dá ao objeto uma imagem real. Ele faz uma suposição de que tem a sua frente uma caixa, oca de um dos lados, que está colocada sobre um suporte, no centro da semi-esfera. Em cima desta caixa há uma jarra real. Por baixo há um ramo de flores. Lacan percebe que todos os raios emanados de um ponto dado vêm ao mesmo ponto simétrico. A partir daí, forma-se uma imagem real. Ele aponta para o fato de que no seu esquema os raios não se cruzam 6 A partir da segunda tópica freudiana, a teoria lacaniana concebe o eu no isso, dividindo-o num eu (moi) e num Eu (Je), que indica o sujeito determinado por um significante. Neste trabalho, o eu grafado em itálico compreende as duas dimensões do conceito. 11 perfeitamente, mas afirma que isso também ocorre na realidade, e para todos os instrumentos de óptica – só se obtém uma aproximação. Para além do olho, os raios continuam o seu caminho e redivergem. Em direção ao olho, porém, são convergentes e dão uma imagem real, uma vez que a característica dos raios, que impressionam um olho sob uma forma convergente, é dar uma imagem real. Convergentes vindo para o olho, divergem quando dele se afastam. Se os raios vêm impressionar o olho em sentido contrário forma-se uma imagem virtual. É o que se passa quando olham para uma imagem no espelho – vêem-na lá onde ela não está. Pelo contrário, aqui, vocês vêem lá onde ela está – com a única condição de que o nosso olho esteja no campo dos raios que já vieram cruzar-se no ponto correspondente. (LACAN, 1986, p. 111). Ainda segundo Lacan (1986), esse esquema não pretende mudar a nossa afinidade com o que manejamos em análise: relações ditas reais, objetivas e imaginárias. Explica, no entanto, que permite ilustrar de uma maneira particular e simples o que resultar da estreita relação entre o mundo imaginário e o mundo real na estrutura psíquica. Lacan (1986, p. 112) admite não ter sido ele quem inventou essa experiência do “ramo de flores invertido”, mas acrescenta que os autores que a inventaram acabaram auxiliando o pensamento psicanalítico. “Com efeito, o domínio próprio do eu primitivo constitui-se por clivagem, por distinguir-se do mundo exterior. O que está incluído lá dentro distingue-se do que é rejeitado pelos processos de exclusão e de projeção.” Assim, surgem as primeiras concepções analíticas do estágio primitivo da formação do eu: continente e conteúdo. A partir do processo de maturação fisiológica do sujeito, este pode integrar efetivamente as suas funções motoras e ter acesso a um domínio real de seu corpo. Só que é antes desse momento que o sujeito toma consciência do seu corpo como totalidade. Dessa maneira, Lacan (1986) reafirma a sua teoria do Estádio do Espelho – a visualização total do corpo humano dá ao sujeito um domínio imaginário, prematuro e antecipatório de seu corpo em relação ao domínio real. Esta formação é separada do processo de maturação e não se confunde com ele. É, nas palavras de Lacan (1986, p. 113), “a aventura original por onde o homem faz, pela primeira vez, a experiência de se ver, de se refletir e de conceber outro do que aquele que é – dimensão essencial do humano que estrutura toda a sua vida fantasmática.” Lacan (1986, p. 113) levanta a idéia de que é a imagem do corpo próprio que dá ao sujeito a primeira condição que lhe permite situar o que é do eu e o que não é. A imagem do 12 corpo, posta no esquema apresentado anteriormente, é como a jarra imaginária que contém o ramo de flores real. Assim, podemos representar o sujeito antes do nascimento do eu e o surgimento deste. Então, o autor propõe que se vire ao contrário o esquema – a jarra por baixo e as flores por cima. “Podem à vontade tornar imaginário o que é real, com a condição de conservar a relação dos sinais + - + ou - + -.” Para que a ilusão se produza, ou seja, para que o olho que olha um mundo em que o imaginário pode incluir o real e, com o mesmo gesto, formá-lo, onde o real também pode incluir e, com o mesmo gesto, situar o imaginário, é preciso que esteja presente uma condição: o olho deve estar no interior do cone. Dessa forma, não vê o que é imaginário, pois nada do cone de emissão virá impressioná-lo. Com isso, o sujeito que olha verá as coisas no seu estado real, ou seja, o interior do mecanismo e uma jarra vazia, ou flores sozinhas, dependendo do caso. Então, a caixa é o corpo, o ramo são os instintos e desejos. Nesse campo, o olho é o símbolo do sujeito. Na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal qual daí resulta, tudo depende da situação do sujeito. E esta é essencialmente caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico, ou seja, no mundo da fala. 2.1 O Espelho como Formador do eu No Congresso Internacional de Psicanálise, em julho de 1949, Lacan abordou novamente a concepção do Estágio do Espelho, porém, naquela ocasião, seus esclarecimentos recaíram sobre a função do eu na experiência psicanalítica. Inicialmente ele partiu do aspecto comportamental na explicação do Estágio do Espelho, em que comparou o filhote humano ao filhote do chimpanzé. O humano, apesar de ser superado pelo chimpanzé em inteligência instrumental, já reconhece sua imagem no espelho. Esse ato, com efeito, logo repercute na criança mediante uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos pela imagem com o seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidade que ela reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas e os objetos que estão ao seu redor. Esse acontecimento pode introduzir-se a partir dos seis meses e se encerra aos dezoito meses de idade, revelando um dinamismo libidinal, até então problemático, de uma estrutura 13 ontológica do mundo humano que se insere em nossas reflexões sobre o conhecimento paranóico. Compreendemos o Estádio do Espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, uma transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem. A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação [...], parece manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. (LACAN, 1998, p. 97). Conforme Lacan (1998), o importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua determinação pelo social, até seu reconhecimento pelo Outro primordial. A função do Estádio do Espelho revela-se como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade. Essa relação com a natureza, porém, é alterada no homem por uma certa abertura espontânea do organismo em seu meio. Esse desenvolvimento é vivido como uma dialética temporal que projeta decisivamente na história do indivíduo a sua formação: o Estádio do Espelho é um momento cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado na ilusão da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Nesse sentido, percebe-se que o conceito de eu, em Lacan (1998), está fundamentalmente alienado ao Outro. Aliás, é esta idéia que produz a enigmática afirmação lacaniana: “o eu é um Outro”. Ou seja, pelo seu estado de prematuridade, a criança é tomada pelo reflexo especular. É este processo que produz a apreensão da forma global do corpo e ao mesmo tempo contribui para a formação do eu. Antes de se constituir, o eu se confunde com esta imagem que o forma e o aliena. Segundo Lacan (1998, p. 116), há uma organização paranóica constitutiva da própria emergência do eu. O autor relaciona esta questão com o conceito de transitivismo: crianças pequenas com idades semelhantes, quando juntas confundem-se quanto aos gestos. Serão seus ou do outro? São cenas privilegiadas que revelam a ambivalência entre o eu e o Outro: 14 A criança que bate diz ter sido batida, aquele que vê cair, chora. Igualmente, é em uma identificação a outro que ela vive toda a gama de reações de imponência e ostentação, das quais suas condutas revelam com evidência a ambivalência estrutural: escravo identificado a déspota, ator ao espectador, seduzido ao sedutor. Assim, é próprio da constituição do eu uma dimensão de desconhecimento. O elemento paranóico não aponta para uma psicopatologia e sim para o fato de que o eu se forma fora de nós e, portanto, pode se tornar persecutório. É uma situação que pode ocorrer no cotidiano de qualquer um: às vezes realmente temos a impressão de que alguém está nos seguindo, ou atrás de nós. Aí, nesse momento, podemos afirmar que o olhar é imaginário. Desse modo, é possível inferir que o sujeito jamais chega a identificar um eu, pois este não cessa de escapar na medida em que o drama humano é justamente a constante busca da identidade. Para Lacan (1998, p. 102), o momento que se conclui o Estádio do Espelho é inaugurado pela identificação com a imago do semelhante e pela cena do ciúme primordial, que desde então liga o eu a situações sociais. É esse momento que decisivamente faz todo o ser humano abrir-se para participar do desejo do outro, e que faz do eu esse mecanismo para o qual qualquer impulso dos instintos será perigoso, ainda que corresponda a um amadurecimento natural – “passa desde então a própria normalização dessa maturação a depender, no homem, de uma intermediação cultural, tal como se vê no que tange ao objeto sexual, no complexo de Édipo.” 3 O SUJEITO APRISIONADO NO ESPELHO Conforme refere Charles Melman (1991), o título original do seminário de Lacan não deveria ser “As Psicoses” mas “Estruturas Freudianas das Psicoses”. Tomar o termo somente como psicoses poderia fazer supor que estas constituiriam um objeto que nos seria naturalmente proposto, ou seja, algo como retomar o mito de uma espécie de conhecimento natural. O autor afirma que é muito diferente falar de estruturas freudianas das psicoses, pois aí sublinham-se os fatos de estrutura, tais como Freud os inaugurou e os delimitou e Lacan conceituou como forclusão do Nome-do-Pai. Melman inaugura a denominação Estruturas Lacanianas das Psicoses, uma vez que desde os trabalhos de Lacan sobre o espelho, a importância está situada na forma paranóica da 15 formação do eu. O autor ainda acrescenta que para Freud o eu seria o guardião, o protetor, o organizador da realidade, constituindo-se na instância combativa para manter um pedaço de realidade, lutando contra o isso, contra o supereu, contra a própria realidade. Dessa forma, percebe-se que aí, quando para Freud o eu seria o guardião da realidade, para Lacan: ele é o responsável por um desconhecimento que irá projetar sua sombra hostil sobre o mundo de nossos objetos, e que introduz a loucura no âmago do ser, uma vez que a busca de sua identidade ao ser não pode conduzir senão ao aprofundar da alienação fundadora. E, nesse ponto inicial, o que Lacan introduz sobre o direcionamento da psicose é que essa alienação fundadora, de algum modo, revela a autonomia, a independência desse eu. Na psicose, é esse eu, nos diz ele, que achar-se-ia em condições de tomar posse da palavra, de se pôr a falar por sua própria conta. (MELMAN, 1991, p. 8). Antes da Psicanálise, o quadro da psicose não havia sido abordado senão de um ponto de vista filosófico, epistemológico ou fenomenológico. Freud, em 1915, quando analisa o Homem dos Lobos, vai introduzir o termo Verwerfung, primeiramente traduzido por “rejeição”. Este termo especificará a psicose, uma vez que na neurose o que está em questão é a Verdrängung, isto é, o recalque. Na verdade, desde “As Psiconeuroses de Defesa” [1894 (1972)], Freud começa a delimitar a distinção entre a neurose e a psicose. Ao analisar o texto das “Memórias do Presidente Schreber”, em 1903, Freud não utilizou a palavra Verwerfung. Foi só em 1915, na análise do Homem dos Lobos que este conceito tornou-se necessário. Foi a alucinação do dedo cortado neste caso clínico que permitiu a Freud observar um efeito da relação do sujeito à castração: este efeito é diferente daquele que Freud tinha observado na neurose. É importante destacar que o Homem dos Lobos só reencontrou esse episódio alucinatório muitos anos mais tarde, a partir das cicatrizes no nariz, quando se encontrou novamente confrontado com a rejeição primordial, isto é, uma parte separada do corpo aparecendo sob forma alucinatória. Esse modo de castração implica como pai um “personagem terrificante” que ameaça uma castração real. Diz-se, então, que Freud chegou ao pai, agente da castração. Em relação ao caso Schreber, quando Freud sublinhava a relação do sujeito ao pai, Lacan avança para a questão da relação do sujeito ao significante. 16 Lacan (1985), no seu Seminário 3 sobre “As Psicoses”, analisa em profundidade o Caso Schreber trabalhado por Freud, bem como o próprio texto em que Freud se baseou, “Memórias de um Neuropata”. Observa que na psicose se trata de “uma outra língua”. Além disso Lacan (1985, p. 23), no mesmo texto, destaca que, como no sujeito normal a relação com a fala é ambígua, no psicótico, por sua vez, há uma relação completamente identificada com o seu eu: é justamente o que se apresenta no fenômeno na alucinação verbal. No momento em que ela aparece no real, isto é, acompanhada desse sentimento de realidade, que é a característica fundamental do fenômeno elementar, o sujeito fala literalmente com o seu eu, e é como se um terceiro, seu substituto de reserva, falasse e comentasse sua atividade. É em 1956 que Lacan escolhe, para traduzir Verwerfung, o conceito de forclusão, especificando que se trata de uma forclusão do significante, a qual produz uma posição subjetiva que, ao apelo do Nome-do-Pai, responda não o pai real, mas a carência do próprio significante. A Verwerfung implica, portanto, que logo no início algo não é admitido em termos de significantes primordiais, constituindo um buraco no simbólico. A conseqüência é o sujeito ficar situado fora do campo simbólico, no que se refere a estes significantes, que Lacan relaciona com o Nome-do-Pai. Dito de outro modo, não havendo a inscrição dos significantes primordiais, o efeito pode ser apreendido no dizer do paciente psicótico. No que respeita à psicose infantil, Lacan (1985, p. 135) faz uma observação precisa no Seminário de 2 de fevereiro de 1955: “A psicose não é estrutural, de jeito nenhum, da mesma maneira na criança e no adulto [...] sobre este ponto ainda não temos doutrina nenhuma [...] sobre a psicose do adulto, a fortiori sobre a da criança, reina ainda a maior confusão.” Com isso, consideramos que a psicose, no tempo da infância, no tempo da passagem que conduz o infans ao estatuto de falasser, é um campo a definir. Segundo Leda Bernardino (2004), se à Psicanálise interessa o tempo lógico e não o tempo cronológico do desenvolvimento, como pensar o momento de inscrição desta referência à falta – o Nome-doPai? E, acrescenta, no caso da psicose, que pressupõe a não-inscrição ativa deste significante, em que momento esta poderia ser situada? Seria uma não-inscrição definitiva? Lacan (1998) situa a forclusão do Nome-do-Pai como um significante primordial e específico. Forclusão no sentido de “ficar fora”, “rechaçar”, de não ter ocorrido uma simbolização primordial. Isto é, a rede significante fica desamarrada, solta, por não haver um 17 significante organizador, que situe um lugar fálico para o sujeito. Este significante refere-se à função de lei que aponta para o reconhecimento de uma filiação. Na falta desse lugar de referência, é o próprio sujeito que precisa tecer a rede, procurando um lugar no mundo. Dessa forma, o psicótico entra numa errância infinita tentando construir e reconstruir esta rede, mas nunca garantindo sustentação. Sabemos, com base na teoria psicanalítica, que a função paterna opera a separação entre mãe e filho. E também que, para que a proibição simbólica possa operar a castração, é necessário que toda uma série de efeitos tenham sido produzidos antes, como frustração e privação. Lacan (1995) no Seminário IV, sobre a relação de objeto, considera a frustração como um conjunto de impressões reais, vividas pelo sujeito numa fase do desenvolvimento em que sua relação com o objeto real está centrada na imagem primordial do seio materno. Conforme Jorge Volnovich (1991), a frustração se processa no campo real e seus efeitos são observados no plano imaginário. Por exemplo, se uma criança é frustrada no seio materno, o que irá imaginarizar? A frustração é, então, sentida imaginariamente pelo sujeito como um dano. Ele se sente lesado por não lhe ter sido dado um objeto precioso e real. Em relação à privação, Lacan (1995) sublinha que a falta está no real, significando que ela não está no sujeito. Para que o sujeito tenha acesso à privação é preciso que ele conceba o real como podendo ser diferente do que é, ou seja, que possa simbolizar. Volnovich (1991), seguindo Lacan, assevera que é uma falta que se processa no simbólico. O sujeito se ressente da ausência de um objeto simbólico. É a privação do Nome-do-Pai, da função paterna, lugar do terceiro. Se a criança é privada da palavra do pai, do simbólico, os efeitos aparecem no real inconsciente em forma de buraco, podendo apenas ser preenchido com delírios. Em relação à criança, conforme citado anteriormente, a Lei que efetua corte chega por meio de um terceiro. Para que este possa aparecer é condição que tenha ocorrido a experiência de que o bebê não é Um, nem com o mundo, nem com sua mãe. Em outras palavras, que ele tenha atravessado a experiência do Estágio do Espelho. Dentro dos casos de psicose é típica a situação de uma mãe capaz de libidinizar seu bebê de forma a introduzi-lo no júbilo do Estágio do Espelho, mas do qual essa criança não pode mais sair. Então, segundo Elza Coriat (1997), uma das condições necessárias para que ocorra a produção de uma psicose infantil é a impossibilidade de o bebê sair do momento especular da estruturação psíquica. Esta autora assinala o tempo de origem de uma psicose da seguinte forma: se o significante Nome-do-Pai não fez marca antes do primeiro ano de vida 18 do bebê, poderá conseguir fazê-la aos três e bastante menos aos seis. O importante a ressaltar é que ao longo dos diferentes tempos da infância, é possível ir acompanhando como se produzem as sucessivas inscrições do Nome-do-Pai, dentre elas: se não há angústia dos oito meses, se não há interesse de brincar de fort-da, se continua a dizer eu ao invés de tu, se não há criatividade no brincar. Nessa vertente teórica, o quadro clínico da psicose porta uma concepção estrutural, que pode ter múltiplas possibilidades fenomênicas: mutismo permanente ou verborragias; hipercinesias ou imobilidades; crianças brilhantes em cálculos numéricos ou que apresentam deficiências extremas, sem causa orgânica; crianças “mal-educadas”, que atraem obrigatoriamente sobre si todos os olhares, ou crianças tão cuidadosas que sua existência pode passar despercebida. Qualquer um destes indicadores comportamentais pode ser encontrado também em uma criança não psicótica, mas o que determina a inclusão de uma criança nesse quadro? Conforme Coriat (1997), real, simbólico e imaginário não se enlaçam, por carência da inscrição do Nome-do-Pai. Carência não é o mesmo que falha: na neurose a inscrição é sempre falha, mas possibilita à criança o ordenamento necessário para se orientar neste mundo e chegar a ter seu próprio desejo. Piera Aulagnier (1993) alerta que, nos casos de psicose, há uma espécie de impossibilidade para a mãe imaginarizar o corpo de sua criança que vai nascer. A relação parece se dar entre a mãe e uma massa em seu próprio interior, uma espécie de preenchimento corporal. O que decorre é que, se normalmente a presença do “corpo imaginado” é o que permite um investimento libidinal da criança como corpo separado, neste caso ocorre um desinvestimento narcísico da mãe em favor da futura criança. Há, porém, um superinvestimento narcísico no próprio corpo da mãe. A conseqüência é que o corpo real da criança não terá outro reconhecimento a não ser como testemunha da onipotência maternal. Nos diferentes modos de entrada da criança na psicose, está sempre presente a ausência de uma hipótese elaborada feita pela mãe sobre a demanda do filho. Desta forma, ele precisa produzir funções defensivas, chamadas de psicóticas, pois as mensagens maternas só contêm necessidade e não linguagem. Sobre a linguagem, Françoise Dolto (1999), seguindo as proposições de Lacan, assegura que a psicose é uma experiência de desumanização da criança, uma vez que nada 19 pode ser tão humano como a linguagem e a palavra. Afirma, ainda, que a palavra não é um elemento a mais na humanização, mas o traço essencial na constituição da subjetividade. O que a clínica psicanalítica ensina é que quando a criança se oferece, na transferência, sempre do mesmo modo cristalizado nos seus sintomas psicóticos, é que podemos afirmar que a defesa se organizou em estrutura e, com isso, afirmar que se trata de um quadro psicótico. É por isso que Bernardino (2004) conclui em seu trabalho sobre as psicoses que a proposta de um diagnóstico como ainda não decidido, além de necessitar de tempo para a conclusão, aponta para uma escuta que não fecha caminhos. 4 O MENINO QUE NÃO NOS OLHA: FRAGMENTOS DE UM CASO CLÍNICO É interessante, para avançar nas questões sobre o tema proposto, trazer pequenos recortes de um caso clínico em atendimento7 há aproximadamente um ano. O protagonista é Pedro, um menino de 12 anos, que vem, junto com a mãe, para uma primeira entrevista. Ele iniciou o atendimento psiquiátrico, neste mesmo serviço, aos oito anos, devido a uma “hiperatividade”. Desde então, aguarda na lista de espera um possível atendimento individual. De imediato, constatamos que ele não se detém em nenhuma atividade. Seus sintomas aparentes são de um menino agressivo, que perambula pela sala de atendimento sem ter um destino fixo. Nitidamente apresenta uma falta de coordenação e de orientação no espaço. Estes, no entanto, são os menores de seus problemas, na medida em que ele não sabe nada sobre si e tampouco sua mãe consegue lhe propor algo. A mãe relata que, após o menino ter iniciado o uso da medicação, seu filho mostra-se mais calmo, já consegue se comunicar com os outros, apesar de não ter um bom relacionamento com seus colegas de escola. É verdade que essa mãe se põe no lugar de uma mulher que se completa no filho, pois diz nunca ter precisado de ninguém para cuidá-lo. Quando questionada sobre o pai do menino, diz que ele tem uma nova família, mora em uma outra cidade e “nunca deu bola para o Pedro” (sic). O seu discurso é representativo de sua própria infância perdida e inenarrável, uma vez que ao trazer fragmentos de sua história aponta para situações de abandono e dificuldades de relacionamento com o pai. 7 Esse atendimento clínico a que nos referimos tem como cenário uma instituição pública, vinculada à prefeitura de uma cidade na região do Vale dos Sinos. 20 As primeiras sessões com Pedro revelam-se difíceis, é como se não houvesse ninguém com ele, apontando para um “sem lugar” transferencial. Desta forma, inicialmente, parece que não se cria um vínculo que possa sustentar um processo terapêutico. Ele quer brincar com um brinquedo, mas logo troca, não brincando com nenhum. Fica perambulando pela sala e emitindo sons. O espaço da sala de atendimento é insuficiente para ele. Pede que se abra a porta para brincar lá fora, circula pelo pátio um pouco, mas logo desiste, e volta para a sala, pegando outros brinquedos. Pedro é uma criança inteligente, ativa e extremamente criativa graficamente, que apresenta dificuldades de relacionamento interpessoal, uso ecolálico da linguagem e, ao mesmo tempo, uma dificuldade de abertura para as intervenções do Outro. Na sessão seguinte Pedro encontra algumas cartas de um jogo de memória e diz que são “cartas holográficas”, que mais tarde entendemos que possuem esse nome porque mudam o desenho geométrico tridimensional conforme a posição do olhar de quem as examina. Passa a brincar com as cartas durante muitas sessões, não só observando seus desenhos um a um, mas também propondo o jogo da memória, jogo esse que o toma por muitas semanas. Em uma sessão pede que joguemos as cartas no pátio, dentro da casinha de brinquedos. É então que começamos a perceber que em nenhum momento ele nos olha, nem quando o interpelamos. Seu olhar, apressadamente, desvia do nosso rosto: ou ele olha para o teto ou para o chão. A intervenção avança, então, para o ambiente escolar de Pedro. Em uma conversa com a professora, esta conta que o menino circula pela sala, agredindo os outros colegas, não conseguindo dividir nada e não participando das atividades em grupo. Menciona ainda que a mãe o trata como bebê (ele ainda toma mamadeira pela manhã e após o almoço). Em relação ao pai do menino, a professora nada sabe dizer, uma vez que este nunca fora ao colégio. Explica ainda que quando mencionou a importância de chamá-lo, a mãe respondeu que ele jamais contribuiu na criação de Pedro e que nem mesmo quer saber do menino. Assim, ela prefere mantê-lo afastado do pai. A professora também interroga sobre o olhar do menino. Diz preocupar-se e não entende porque ele nunca olha para ela. Conta que ele desvia o olhar do rosto dela quando é questionado e que, se em algum momento os seus olhares se cruzam, ele não consegue sustentar e começa a gritar e agredir os outros, perdendo o controle. 21 Detenhamo-nos um momento na fala desta professora e façamos uma reflexão. Um impasse já pode ser apontado como paradigmático na clínica com Pedro: algo do seu olhar não consegue deslizar e produz-se uma impossibilidade de se voltar para o outro. Para tentar abordar a questão, nos deixamos guiar pelo fio condutor do olhar, pelos elementos que o caso clínico apresenta. Será que esse olhar está tão carregado de uma força ameaçadora? O que Pedro encontraria ao sustentar esse olhar? Contardo Calligaris (1989), ratificando a tese freudiana enuncianda já no “Projeto” [1895 (1972)] e sustentada ininterruptamente, comenta que qualquer tipo de estruturação, seja neurótica ou psicótica, é uma estruturação de defesa. Isso porque, na medida em que para se subjetivar, para existir como sujeito (barrado pela castração, na neurose, ou não, na psicose) ou ainda para obter alguma significação, é necessário que o sujeito seja diferente do real do seu corpo. Por isso, o sujeito se estrutura em uma operação de defesa. “De defesa contra quê? Contra o que seria, imaginariamente, o seu destino se ele não se defendesse, se estruturando: ser – reduzido ao seu corpo – o objeto de uma Demanda imaginária do Outro, se perder como objeto do gozo do Outro.” (CALLIGARIS, 1989, p. 14). Conforme Gabriel Balbo e Jean Bergès (2003), o olhar implicado nas funções defensivas no psicótico deve ser abordado em suas relações com a imagem especular, porque é exatamente na relação da função do olhar com seu objeto que esta função defensiva vem se sobrepor e jogar com o funcionamento do próprio olhar: funcionamento de abandono do objeto; olhar errante; vazio; olhar grudado no teto. Por outro lado, na situação inversa, o olhar da criança sempre buscando o olhar dos outros está ligado à função defensiva de fixar, demonstrando que o olhar é o próprio objeto, isto é, a mãe pré-especular, o grande Outro de onde nada pode cair. Pelo fato de que na psicose é predominante a alienação no grande Outro e a separação é problemática, o sujeito psicótico fica aprisionado na dualidade mãe-filho, como puro objeto, sem o estabelecimento da diferença entre o eu e o Outro. No momento do Estágio do Espelho, quando a criança entra em júbilo deve fazer o luto de que não é ele no meio de tudo o que enxerga por todos os lados, em particular a mãe. Isso porque tudo olha o psicótico: uma árvore, um animal... Ou seja, para esses pacientes não há queda no olhar, dado que este não foi libidinizado, restando apenas como visão. Então, Balbo e Bergès (2002) destacam que é preciso que a mãe transitive, que ela faça hipóteses a respeito do filho, que não admita 22 certezas a respeito deste. É quando a mãe articula uma demanda que não somente o atravesse na ordem da necessidade. Enfim, pode-se pensar que o Espelho sem limite é o Espelho sem significante. Dessa forma, para avançar na questão do olhar na psicose, é preciso advertir que sem a experiência estruturante do espelho, o eu será prisioneiro das fantasias do corpo despedaçado. Sem esta captação da imagem unitária do corpo no espelho, a confrontação futura do sujeito com sua própria imagem será angustiante e esta angústia poderá se manifestar de diversas maneiras: angústia de ser devorado pelo espelho; angústia do corpo multiplicado; angústia de ser arrancado do próprio corpo e de ser projetado como corpo estranho no mundo das coisas. Assim sendo, para Pedro se proteger do despedaçamento, ele necessita perder o olhar? E, se o olhar for sustentado, ele é mortífero para Pedro? Para Marie-Christine Laznik Penot (1991), o olhar, justamente no que ele tem de contrário à visão, enxerga não o que está aí, mas um vir-a-ser. Quando a mãe dá sua falta, possibilita inscrever um sujeito barrado, ou seja, é esta operação de doação que permite ver surgir uma criança marcada pela falta. Isso poderia ser descrito como a falicização da criança, que na leitura freudiana corresponde à noção de investimento libidinal. É importante observar que essa falicização, segundo Penot (1998), se situa somente no olhar do Outro, pois na sua relação à imagem, ao outro semelhante, o sujeito só pode se ver como marcado pela falta. Por isso, como na psicose o sujeito não tem inscrição simbólica devido à ausência do significante Nome-do-Pai, o olhar dos outros se revela ameaçador. A autora ainda acrescenta que para poder ser colocada no lugar de Ideal para o olhar de sua mãe, a criança já deve se situar para ela como objeto perdido. Para a mãe do psicótico, no entanto, a criança não pode converter-se em objeto de desejo, mas aparecer como uma peça orgânica. Diante de uma mãe que aparece como um grande Outro absoluto, a criança cede seu corpo antes de tê-lo. O que parece determinante são os efeitos relativos à instalação, ou não, do Estágio do Espelho: o sujeito que é psicótico não pode se sustentar no olhar e na voz da mãe, ou seja, se confronta com a impossibilidade de uma apropriação simbólica. Talvez fosse possível pensar que ele não vai ser capturado no mundo, onde poderia projetar o que lhe acontece, mas acaba ficando fora do mundo, num fora absoluto. 23 Essa direção de abordagem enlaça-se com a questão do olhar, como espelho que imaginariamente contorna, proporcionando certa consistência ao eu, na medida em que não captura o sujeito como puro objeto. É, então, esta marca – a suposição de sujeito – que aparece no olhar, possibilitando a saída do lugar de objeto para a constituição subjetiva. Assim, trabalhar com esse elemento na clínica infantil da psicose é inscrevê-lo como significante, convocando a criança na diferenciação de interior e exterior, de próprio ou alheio, de responsabilizar seus atos perante os outros. Uma criança está psicótica porque seus atos não se sustentam na elaboração e no enlace das próprias marcas, mas sim no olhar e no gozo de um Outro encarnado em qualquer outro. A criança psicótica, por suas questões estruturais, mantém-se na posição de criança objeto e neste caso, o analista terá de entrar no lugar do Outro primordial, adianta Ângela Vorcaro (1992). Nesta condição, o analista procura produzir o que não teve lugar: corte, separação, negativização, furo, operações de subtração que levam ao engendramento de um sujeito. A cada vez que nos lançamos na clínica da psicose compreendemos que se trata de uma experiência limite, em que o conhecimento, a experiência e a análise são apenas pontos de partida, pois não temos idéia do caminho que faremos a cada vez, nem sabemos muito bem aonde vamos chegar. É uma clínica temerária: sabemos que implica riscos, mas não sabemos quais serão. A escuta das crianças que são assim diagnosticadas e que recebemos para tratamento representa um desafio. Enfrentar esse desafio pressupõe que teremos de apostar. Por isso, tomando como inspiração Bernardino (2001, p. 83), “há uma inversão que é necessário produzir: um só-depois que tem de estar posto de saída.” Assim, nesta clínica, as possibilidades de trabalho devem estar postas primeiramente, pelo lado do desejo de quem trata. Isto é o mesmo que dizer da importância da implicação do analista nesta escolha de trabalho. Sobre o trabalho com a psicose infantil, ainda uma palavra: quando recebermos um paciente com esse diagnóstico, sempre apostaremos que há um sujeito em constituição, por mais remota que essa hipótese possa parecer. Um segundo ponto a legitimar é a importância da palavra, produzindo um convite à possibilidade de apropriação da linguagem pelo paciente. Outro ponto imprescindível nesta clínica refere-se ao brincar: ao instalar um campo lúdico 24 entre nós e a criança, queremos encantá-la com o faz-de-conta que povoa o universo infantil e que possibilita à criança se reconhecer. A escuta atenta ainda requer nossa disposição para validar tudo aquilo que a criança conseguir expressar de sua história, seja por uma marca, uma letra ou um desenho. CONCLUSÃO Existe todo um universo organizado em leis, linguagem, cultura, que antecede o nascimento de um bebê. Para que essa criança tenha acesso a esse novo espaço, que é também o espaço dos outros, o lugar em que intervêm sons, olhares, sensações táteis, é demandada uma sustentação a ser cumprida necessariamente por um cuidador – representado, primeiramente, pelo grande Outro materno. É esse sujeito que precisará dar conta do desamparo originário desse bebê, qualificando os processos puramente orgânicos. Nesse momento em que a criança ainda não consegue integrar suas sensações e experiências corporais, vai sendo tomada pelas redes significantes do desejo do Outro. No tempo da infância, os momentos-chave no processo de constituição subjetiva referem-se, primeiramente, à inscrição primordial e ao estabelecimento do narcisismo primário, fundador do tempo especular. Um segundo momento alude à passagem do Estágio do Espelho, fundador do sujeito enquanto falasser, compreendendo a constituição do primeiro esboço do eu. A criança percebe na imagem do semelhante ou na sua própria imagem especular, uma forma na qual antecipa uma unidade corporal que objetivamente lhe falta e identifica-se com essa imagem. Com isso, entende-se a experiência de júbilo da criança diante dessa imagem, pois ela antecipa imaginariamente a forma total de seu corpo. Para corresponder a essa imagem narcísica, o eu terá de se defender de toda a vivência de perda. O desejo inconsciente de completude terá de ser recalcado, pois a separação mãe/bebê é fundamental para a constituição do sujeito. A elaboração do Édipo é a prova de que o sujeito abdicou do desejo primitivo por meio das identificações. Neste processo as vivências de perda angustiam, ou seja, para enfrentar o luto da completude perdida a criança precisa passar por privações, frustrações e castrações. Então, é lançada na busca de uma nova alternativa: entra no discurso e faz um sintoma de estrutura. 25 A entrada da função paterna vai fazer um apagamento da pura marca da linguagem que advém do desejo materno inconsciente, instituindo o recalque que barra a dualidade mãe/filho. Resta, então, esta falta, referente ao objeto para sempre perdido, resgatável somente na fantasia, enquanto representação, determinando uma saída neurótica para o sujeito. Essa condição de sujeito não se verifica na psicose. Quando a forclusão se instala o efeito é de negação da falta mediante a rejeição da castração. Assim sendo, a rede que deveria amarrar os significantes para a criança encontra-se solta, produzindo como efeito a errância que caracteriza a psicose. O significante organizador, Nome-do-Pai, que deveria situar um lugar fálico para o sujeito, fica apagado. Na leitura psicanalítica, o olhar não é o mesmo que visão. Ele aponta para investimentos, atenção, cuidados. Exatamente no que ele é contrário à visão, enxerga não o que está aí, mas um vir-a-ser, ou seja, trata-se do olhar fundador do Outro. Por isso, como na psicose o sujeito não tem inscrição simbólica devido à ausência do significante Nome-do-Pai, o olhar dos outros se torna ameaçador. A partir do caso de Pedro, buscamos refletir sobre sua impossibilidade de nos olhar. Assim, as concepções teóricas de Estágio do Espelho e forclusão nos possibilitaram algumas considerações para avançar no estudo da psicose. Um dos pontos importantes assinalou o fato de que sem a passagem pela experiência estruturante do espelho o paciente psicótico fica aprisionado na imaginarização do corpo esfacelado. A confrontação com sua própria imagem representará seu aniquilamento. Com isso, entendemos o quão desestruturante é para Pedro sustentar o seu olhar. Então, para se defender ele olha para o teto, para o chão, para as coisas... Neste artigo muito se alcançou, mas muitas questões permanecem. Durante o trajeto de leituras, descobrimos que o caminho não é único. Procurou-se mostrar que a clínica psicanalítica tem um corpo conceitual que sustenta uma clínica de crianças psicóticas. Além disso, a postura ética encontrada na leitura freudo-lacaniana aponta para um profissional que se interessa, antes de tudo, em despertar o desejo desta criança que está aprisionada no Outro. 26 REFERÊNCIAS AULAGNIER, Piera. Observações sobre a Estrutura Psicótica. In: Psicose: uma leitura psicanalítica. São Paulo: Escuta, 1993. BALBO, Gabriel; BERGÈS, Jean. Jogo de posições da mãe e da criança. Ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC, 2002. ______. Psicose, autismo e falha cognitiva na criança. Porto Alegre: CMC, 2003. BERNARDINO, Leda. As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. ______. A clínica das psicoses na infância: impasses e invenções. In: Revista Estilos da Clínica. São Paulo: USP, Instituto de Psicologia, 2001. v. 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