Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 MINHA VIDA EM COR DE ROSA: UM OLHAR SOBRE A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SEXUALIDADE Ingrid Silva do Amaral (UFMS) 1 O presente trabalho busca entender os mecanismos de pressão social para enquadramento da manifestação da sexualidade às estruturas convencionais. Alguns indivíduos por serem considerados diferentes acabam sendo rejeitados, desrespeitados e ignorados sistematicamente pelos referenciais de construção social da sexualidade. As crianças e adolescentes que manifestam sinais de uma possível orientação sexual distinta da heterossexualidade sofrem os mais diversos constrangimentos durante a sua formação física, intelectual e psicológica, a qual emana de toda a sociedade, inclusive da família e até de si mesmo, pois não entendem a razão de não se adequarem ao protótipo social de sexualidade. Nesse sentido, criam-se modos representativos ideais de homem e mulher, instituindo assim uma identidade relativamente estável, ocasionando dificuldades de aceitação e convivência com tudo aquilo que é considerado diferente dos padrões estabelecidos. As múltiplas formas de manifestação da sexualidade composta por aspectos culturais, familiares, pessoais, dentre outros que geram a formação da orientação sexual, são completamente ignorados. Na busca de mecanismos para coibir ou pelo menos diminuir os danos praticados contra esse grupo social, o cinema tem papel de extremo relevo, permitindo tanto a divulgação dos horrores praticados em razão de preconceitos, bem como a difusão de conhecimentos a respeito da inexistência de qualquer disfunção na orientação sexual distinta da hegemônica. É neste contexto que problematizaremos no trabalho o filme Minha vida em cor de rosa. Palavras-Chave: Orientação Sexual. Aspectos Culturais. Preconceito. Introdução Muito se tem discutido, notadamente nas últimas décadas, a respeito dos direitos dos homossexuais, o seu reconhecimento como entes detentores dos mesmos direitos daquelas que expressam comportamento heterossexual. A questão é permeada por dogmas e influências diversas, as quais apontam a opinião social sobre o tema. Nesse trabalho será inicialmente apresentado a possibilidade de transformação da sociedade, seu caráter mutante, a ideia de que seus valores não são absolutos e imutáveis. Apresenta-se a noção corrente de comportamento sexual desejável, relatando na sequência os problemas que aqueles que nele não se encaixam sofrem, com ênfase para os problemas enfrentados na infância e adolescência, quando se conhece a peculiaridade de sua orientação sexual, fazendo 1 Graduanda do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Campus de Naviraí. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 1 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 uma análise do filme Minha Vida em Cor de Rosa, de Alain Berliner obra que trata do assunto. O desenrolar da história nos demonstra que a sociedade não é uma estrutura estável e unificada, mas sim um contínuo de transformações e mudanças. Para confirmar esta assertiva basta que façamos uma pequena reflexão sobre relevantes fatos históricos, como por exemplo a questão da escravatura, a qual, há pouco mais de um século ainda era admita e lícita no Brasil, sendo de certa forma um sinal de riqueza, pois somente àquele que tinha posses era viável a utilização desse regime de mão-de-obra, valendo-se de outros seres humanos como se mercadorias/objetos fossem. É certo que hodiernamente a sociedade, de uma forma geral, repugna o trabalho escravo, sendo de se pontuar que o que antes era signo de riqueza hoje além de imoral é crime, situação que nos demonstra a dinâmica da sociedade. Atualmente, as questões que afloram no corpo social são outras, entre elas o preconceito contra aqueles que expressam orientação sexual distinta da dominante. Nessa senda, sabe-se que quanto ao tema gênero e sexualidade a sociedade ainda possui diversos tabus, os quais impedem uma discussão desacompanhada de prévias concepções dogmáticas aceitas sem maiores valorações a respeito das suas pertinências, muitas delas derivadas do matiz judaico-cristão da sociedade ocidental. Dessa forma, as pessoas, até mesmo para serem aceitas na sociedade, buscam sempre apresentar-se da forma que representa a “normalidade”, mesmo quando a orientação seja distinta, o que é absolutamente compreensível, ante a necessidade natural do ser humano de aceitação pelos seus pares. Panorama da Construção da Sexualidade O pesquisador Mario Pecheny2 destaca que “não evidenciar as homossexualidades é poder manejar sua sexualidade de acordo com o grupo no qual está inserido, tencionando entre diferentes níveis de homofobia 3”. Da mesma forma, o pesquisador Guilherme Rodrigues Passamani4 ao apresentar alguns dos resultados da sua pesquisa destaca: meus informantes constroem uma complexa rede de elementos que, em última análise, lhes permitam viver a homossexualidade sem estar em confronto direto com a homofobia e buscam identidades reservadas, isto é, práticas que valorizam o espaço privado, certo modelo de masculinidade hegemônica, bem como atos realizados com muita descrição. No tocante a orientação sexual, a situação não é distinta. Isso porque todo aquele que não se apresenta perante a sociedade com um comportamento 2 Pecheny, 2004 apud Passamani 2009. O Arco- Íris (Des) Coberto. Santa Maria: Ed. UFMS, 2009, p. 109-110. 3 Homofobia é a modalidade de preconceito e de discriminação direcionada contra homossexuais. 4 PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. O Arco- Íris (Des) Coberto. Santa Maria: Ed. UFMS, 2009, p.114. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 2 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 heterossexual é visto com reservas, muitas vezes deixado de lado, vítima de chacotas e constrangimentos de toda ordem. O caminho das pessoas para esse comportamento começa desde cedo, com a família, escola e igreja repassando os caracteres preconceituosos e, homofóbicos a respeito daqueles que possuem atração pelo mesmo gênero sexual. Nota-se que sempre que não há correspondência do comportamento da pessoa com o dito “jeito de ser homem” ou “jeito de ser mulher” a mesma sofre com atitudes hostis de outros membros da sociedade, pois sempre se espera que o homem seja o provedor, viril, masculino, agressivo, etc., enquanto a mulher deve ser delicada, amável, mãe, recatada. A mulher, assim como o homem, confinados a estes modelos adquiriram um jeito de ser feminino e um jeito de ser masculino, respectivamente, que se naturalizaram e cristalizaram ao longo do tempo, movidos por modos de pensar, gestos, funções, que se caracterizaram como inerentes a “natureza” de cada sexo, criando distinções entre condutas consideradas socialmente anormais e normais. As mulheres e os homens são moldados aos tipos socialmente legitimados, por constituir e instituir a masculinidade e a feminilidade hegemônica através de processos corporais de disciplinarização na escola, na família, na igreja e em outras instâncias. Nesse cenário, a título de exemplo do tamanho do descompasso entre o direito de manifestação de acordo com a orientação sexual e o pensamento da sociedade, basta trazer a lume a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, julgamento conjunto em 05.05.2011, pelo qual a Corte reconheceu de forma unânime a possibilidade de união estável entre pessoas do mesmo sexo, chancelando, inclusive, a possibilidade de obtenção de pensão por morte e herança. Todavia, curioso o fato de que mesmo após a cúpula do Poder Judiciário Nacional ter reconhecido a possibilidade da aludida comunhão de vida, pesquisa realizada pelo Instituto Ibope5, divulgada em 28.07.2011 demonstra que 55% (cinqüenta e cinco por cento) dos brasileiros, muito provavelmente em razão de valores morais arraigados, ainda são contra a união estável entre pessoas do mesmo sexo, sendo que entre os homens este índice alcança 63% (sessenta e três por cento) e entre as mulheres 48% (quarenta e oito por cento), tudo a revelar que o reconhecimento jurídico da união estável não pode ser considerado como o último ato para o pleno reconhecimento da isonomia para os casais homossexuais. De outro lado, para uma boa compreensão das dificuldades enfrentadas pelas pessoas que não se encaixam no “padrão da normalidade” é assaz importante distinguir gênero de sexualidade. A criança ao nascer é identificada como menina ou menino através do sexo biológico que se desenvolve de forma “natural” para todos os indivíduos. Contudo, o gênero não é necessariamente o que percebemos como masculino e feminino, ou seja, a diferença de gênero não necessariamente deverá ser biológica, todavia as inscrições identitárias que os indivíduos trazem ao nascer modelam, de forma definitiva, as suas relações com o mundo, pois o sexo é a primeira distinção social dos indivíduos. 5 Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/, acessado em 04.09.2011, às 01h:14m. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 3 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 Destarte, a definição dos papeis sociais, em razão da ordem cultural vigorante, determina as funções em razão do sexo do agente, predispondo que traços de personalidade devem ser mais bem desenvolvidos, bem como quais manifestações são inapropriadas para o sexo masculino e feminino. O entendimento dos organismos de construção da identidade social é fundamental para compreender os motivos pelos quais a sexualidade se constitui como um tema problemático na contemporaneidade, visto que algumas identidades sexuais são negadas, ou seja, não se leva em consideração a construção e reconstrução da identidade a partir de múltiplos fatores que podem ser culturais, familiares, pessoais, dentre outros. Nessa análise é imprescindível que se tenha uma correta compreensão do significado dos termos gênero e sexualidade, assinalando que nem sempre a sua utilização corriqueira corresponde àquela de ordem técnica. De acordo com Maria Lygia Quartim de Moraes6: “Sob o substantivo gênero se agrupam todos os aspectos psicológicos, sociais e culturais da feminilidade/masculinidade, reservando-se sexo para os componentes biológicos [...]”. Maria Rita Kehl7: “Gênero é um conceito que inclui o sexo biológico, investido de valores e atributos que a cultura lhe oferece”. Maria Luiza Heilborn 8 preconiza que: a categoria de gênero não deve ser acionada como um substituto de referência para homem ou mulher. Seu uso designa ou deveria fazêlo, a dimensão inerente de uma escolha cultural e de conteúdo relacional. Por outro lado, traz embutida a articulação desse código, que se apropria da diferença sexual tematizando-a em masculino e feminino, com outros níveis de significação do universo, porquanto no que respeita, por exemplo, às sociedades primitivas e não apenas nelas, o gênero interage com outros códigos. É fundamental ressaltar que o gênero se transforma histórica e socialmente, pois se nota que a construção dos papeis masculino e feminino é realizada de forma diversa, conforme a sociedade analisada e o corte histórico que seja feito, o que traz consigo diferentes modelos e imagens de homem e de mulher. Ao se fixar as identidades de gênero, socialmente se confirma a sexualidade ao desempenho de “papeis sociais” de homens e mulheres, naturalizando assim a heterossexualidade (normalidade) em oposição à homossexualidade (anormalidade) ocasionando aversão a tudo que escape da dita normalidade. Não obstante, a definição de sexualidade é distinta da de gênero. Isso porque a sexualidade encontra-se envolta por regras que regulamentam a reprodução biológica e social de uma determinada sociedade, o que demonstra que 6 MORAES, Maria Lygia Q. “Usos e Limites da categoria gênero”. In. Trajetórias do Gênero, masculinidades. Cadernos Pagu (11). Campinas: UNICAMP, 1998, p. 102. 7 Kehl, 1998 apud Moraes, 1998. “Usos e Limites da categoria gênero”. In. Trajetórias do Gênero, masculinidades. Cadernos Pagu (11). Campinas: UNICAMP, 1998, p.103. 8 Heilborn, 1999, apud Moraes, 1998. “Usos e Limites da categoria gênero”. In. Trajetórias do Gênero, masculinidades. Cadernos Pagu (11). Campinas: UNICAMP, 1998, p. 100. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 4 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 embora diversa não é estanque, de modo que o gênero influencia a sexualidade, apreendendo-se a sua mutabilidade no tempo e espaço. Nesse sentido, Maria Luiza Heilborn9 destaca que: “o manejo da atividade sexual por parte dos sujeitos é capital para constituição de suas identidades de gênero”. A mesma autora10 poucas linhas antes expressa: a sexualidade deve considerar que esta não é sinônimo de atividade sexual (...) uma dimensão interna aos sujeitos, profundamente imbricada num modelo particular de constituição da pessoa, no qual interiorização e individualização são traços modeladores da subjetividade. Maria Andréa Loyola11 ao destacar a importância da sexualidade verbera: a sexualidade constitui o pilar sobre o qual se assenta a própria sociedade e que, portanto, está sujeita a normas; normas que podem variar de uma sociedade para outra, mas que constituem um fato universalmente observável, sendo o tabu do incesto a mais básica e fundamental dentre todas Apresentando um conceito abrangente de sexualidade através de Ana Maria Gomes e Mateus de Castro Castelluccio12: a sexualidade é uma palavra que diz respeito a um conjunto fenômenos ligados aos prazeres não apenas obtidos a partir do ato sexual. Portanto, sexualidade engloba os afetos, as emoções, os diferentes tipos de relacionamentos, os sentimentos, as identidades de gênero (masculino, feminino, transexual, travesti, gay, lésbica, etc.) e os desejos. Estabelecendo um fecho aos pontos de contato e de distinção entre gênero e sexualidade, relevante trazer à baila as palavras de Judith Butler13: se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado; tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é meio discursivo/cultural 9 HEILBORN, Maria Luiza. “Construção de si, gênero e sexualidade” In: HEILBORN, M.L (org) Sexualidade: o olhar das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999, p.43. 10 HEILBORN, Maria Luiza. “Construção de si, gênero e sexualidade” In: HEILBORN, M.L (org) Sexualidade: o olhar das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999, p.40. 11 LOYOLA, Maria Andréa. “Sexo e Sexualidade na Antropologia”. In. LOYOLA, M.A. (org.) A sexualidade nas Ciências Humanas. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998, p. 18. 12 GOMES. A. M.; CASTELLUCCIO, M.C. Relações de Gênero Diversidade Sexual. Programa Escola de Conselhos PREAE-UFMS, 2010, p.17. 13 Buther, 2003 apud Passamani, 2009. O Arco- Íris (Des) Coberto. Santa Maria: Ed. UFMS, 2009, p. 40. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 5 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 pelo qual a „natureza sexuada‟ ou „um sexo natural‟ é produzido e estabelecido como „pré-discursivo‟, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura. Ao cabo da exposição das definições suprarrealizadas, impende destacar que aquelas pessoas que fogem da „normalidade‟ sofrem toda espécie de pressão social, única e exclusivamente em razão desse caractere, ainda que não tenha de nenhuma forma provocado danos a terceiros ou tentado confrontar a orientação do outro com a sua. Referida pressão vem de todos os segmentos sociais, entre eles a escola, na qual os fatores discriminantes são potencializados, mormente por se tratarem de crianças e adolescentes, pessoas ainda em formação, as quais manifestam as suas opiniões e preconceitos sem maiores censuras e maiores digressões mentais. Verifica-se que os processos educativos continuam a produzir e a reproduzir as mesmas condutas socialmente representadas, visto que a escola não distingue entre corpo e conhecimento, contribuindo para a manutenção do estágio atual, em nada auxiliando a superação do processo do sujeito sujeitado. A escola por ser um espaço de pluralidade com suas especificidades possui relevância na organização social, pois atua na sociedade e também é mediada pelos indivíduos que a compõem. Nesse sentido, a escola possui papel relevante na construção de espaços para que os grupos oprimidos se representem e se confrontem numa perspectiva na qual as subjetividades são consideradas e as singularidades não se perdem em nome da homogeneidade. Nota-se cotidianamente os frequentes e incessantes abusos cometidos contra os „fora da normalidade‟, os quais recentemente passaram a ser noticiados pela mídia com ênfase para o móvel das agressões, seja de ordem psicológica ou físicas. Tais pessoas pelo simples fato de não compartilharem da orientação comum na sociedade são vítimas de inúmeros preconceitos. Os preconceitos, é bom que se diga, não ficam restritos aos campos da agressão, os quais por si e na sua extensão já são intoleráveis, mas são expandidos para todas as sendas da vida, entre elas as oportunidades de emprego, de crescimento dentro de uma empresa, formação psicológica do indivíduo, relacionamentos sociais e em comunidades religiosas tidas por tradicionais. De crucial relevo na formação psicológica e intelectual da pessoa é o momento do reconhecimento da sua orientação sexual, sendo que aqueles que se encaixam no perfil atual na sociedade, via de regra, não encontram maiores dificuldades, haja vista que bem recepcionados pelos adultos e até incentivados a práticas naturalizadas de gênero e sexualidade. Todavia, a questão passa a ser mais séria e exige maior detença no seu lidar quando estamos diante do indivíduo que foge do padrão „normal‟ de sexualidade, pois as consequências dos estigmas causados pela maior parte da sociedade podem causar marcas indeléveis, que irão acompanhar o sujeito no processo de desenvolvimento com consequências para toda sua vida. Esse momento exige uma particular percepção dos agentes envolvidos no processo, sendo necessário um comportamento receptivo e acolhedor, demonstrando para a criança/adolescente que ela não é defeituosa pela simples divergência sexual. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 6 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 Ressalta destacar que esse cuidado é imprescindível e exige acuidade daqueles que estão envolvidos, haja vista que o sujeito em formação ainda não detém valores depreciativos, não conseguindo visualizar a razão que leva aos valores socialmente aceitos lhe sub-julgarem, cabendo destacar que nesse momento da vida a pessoa ainda não possui defesas psíquicas para enfrentar os demais membros da sociedade. Outro ponto que merece destaque é que muitas vezes o preconceito e a discriminação partem de dentro da família, até porque os pais não enxergam razão para o filho ser „diferente‟, muitas vezes exigindo sua adequação ao comportamento predominante, inclusive mediante ameaças e agressões. Análise do filme Minha Vida em Cor-de-Rosa Retratando esse momento há o filme Minha Vida em Cor de Rosa (Direção de Alain Berliner, 1997), qual conta a história de um menino de nome Ludovic Fabre com 7 anos de idade, que se entende como menina, comportando-se dessa forma. Considerando que o filme apresenta uma boa abordagem da situação, a título de ilustração de alguns dos problemas enfrentados nessa fase passa-se a relatar e discutir, ainda que de forma sucinta, algumas passagens da obra cinematográfica. O fator biológico é problematizado no filme quando Ludovic descobre que é menino, segundo a biologia, mas psiquicamente seu universo simbólico é feminino. Para melhor entender a situação, Ludovic procura sua irmã e pergunta se ele é menino ou menina? Sua irmã já cansada das indagações de seu irmão vale-se dos ensinamentos da biologia, mencionando que as mulheres portam cromossomos sexuais “XX” e os homens “XY”, relatando a Ludovic que seus cromossomos sexuais são “XY”. A criança com apenas 7 (sete) anos de idade, passa a se perguntar por que seus cromossomos sexuais são distintos das sensações que possui, sendo que enquanto sua irmã lhe passa a lição de biologia acima indicada, no alto da sua inocência, Ludovic passa a desenvolver uma resposta para a disfunção, chegando a conclusão de que quando a cegonha foi entregar os cromossomos, que seriam passados pela chaminé na “brincadeira de médico” dos pais, um dos cromossomos sexuais „X‟ bate no lado de fora da chaminé e cai no lixo. Ao chegar a esta conclusão, Ludovic passa a acreditar que em determinado estágio de sua vida se tornaria menina, corrigindo-se o problema do cromossomo que caiu no lixo e um dia poderia se casar com um menino. Tendo em vista sua identificação com o universo cor de rosa, Ludovic desde sempre melhor se reconheceu nos espaços ditos femininos, usava as roupas da mãe, gostava de usar batom, colares, sapatos de salto alto, brincava com bonecas, não gostava de cortar o cabelo, se reconhecia como a mulher de um desenho animado que assistia. No desenrolar do enredo, quando Ludovic completa 7 (sete) anos de idade, a família passa a exigir dele uma alteração de seu comportamento, vez que até esta data achavam suas atitudes naturais no processo de formação da identidade e engraçadas, mas que daquele marco em diante, considerando que sua vida social passaria a ser mais intensa, aquele anterior comportamento não era mais adequado, ante as exigências comunitárias. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 7 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 Com isso, seus familiares passaram a lhe cobrar um comportamento masculinizado, reforçando em Ludovic a necessidade de se comportar como os demais meninos de sua idade, frequentando os espaços reservados à masculinidade, bem como adotando posturas mais viris. Exemplo dessa cobrança familiar é o fato de seu pai, após algumas cobranças sociais, passar a adotar medidas que antes eram ignoradas, chegando à conclusão de que deveria passar mais tempo com seu filho para que ele se sociabilizasse como o homem que a sociedade esperava. Para isso, levou Ludovic para participar de uma partida de futebol na escola em que estudava. Durante o jogo a tentativa se revelou um fracasso, mas o pai não desistia, e mesmo sabendo que o filho não tinha vontade de continuar jogando, o incentivava, falando que Ludovic estava indo bem em sua nova empreitada esportiva. Mesmo a contragosto Ludovic continuou participando dos eventos futebolísticos, sendo que após uma partida, no vestiário, Ludovic ficou envergonhado, não queria tirar sua camisa na frente dos outros meninos, os quais, ao perceberem a atitude de Ludovic, passaram a rechaçá-lo e constrangê-lo na busca de sinais físicos de feminilidade, cabendo destacar que seu irmão estava presente e, em razão das cobranças que sofria pelo “estranho” comportamento de Ludovic, nada fez para evitar as agressões. Quando a situação fugiu do controle dos pais, que tentaram aconselhamento psicológico, o casal teve severas discussões, sendo que o pai passou a atribuir a responsabilidade pelo comportamento de Ludovic à sua esposa, mãe de Ludovic, por ser responsável pelos afazeres domésticos e ter que cuidar dos filhos, inclusive os impedindo de manter brincadeiras e comportamentos inadequados. Essa situação, além de abranger outra questão de gênero, qual seja, a responsabilidade exclusivamente materna sobre a criação dos filhos, com a figura do pai como simples provedor material, demonstra que nos casos de comportamentos dos filhos diferentes do esperado, os pais não estão preparados para lidar com situação. O filme mostra a família de Ludovic transferindo seu domicílio para um pacato bairro de classe média, logo após o seu pai conseguir um bom emprego. Com a chegada no bairro, a família Fabre faz uma festa de apresentação para o bairro, que tinha características tradicionais de sociabilização e trato próximo entre os vizinhos. Na referida festa, Ludovic aparece com vestido, sapato, maquiagem e acessórios de sua mãe, o que causou um certo estranhamento por parte dos vizinhos, tendo seu pai para evitar o constrangimento apresentado Ludovic como “mestre em disfarces”. Com o desenrolar da estória e novas atitudes de Ludovic fora do padrão tradicional de masculinidade, a vizinhança passou a afastar a família dos espaços comunitários, deixando de chamá-los para os eventos daquela pequena comunidade em razão dos valores prezados pela sociedade. Em razão do comportamento de Ludovic, seu pai perde o emprego, seu chefe que era pai de Jerônimo, por quem Ludovic estava apaixonado, sendo que dali em diante a família tem que se mudar para um bairro mais modesto. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 8 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 Tal situação não é bem assimilada pela família, mormente pela mãe de Ludovic, pois aquele emprego era o signo de ascensão social da família e foi perdido em razão do comportamento “anormal” de seu filho, sendo que suas atitudes passam a importar em danos psicológicos a Ludovic. Interessante destacar que a recepção e assimilação de ditos comportamentos “anormais” é diferente dentro da mesma sociedade, variando conforme o espaço em que é realizada a interação. Tanto é assim que no bairro para o qual transferiram a residência, a situação singular de Ludovic não causava a mesma estranheza, denotando a presença de outros valores, os quais assimilam de forma mais tranqüila as variações de comportamento. Nesse bairro Ludovic conhece Cristina, uma menina que tinha situação inversa a sua, pois a mesma se sentia menino, tendo comportamento próprio de meninos segundo os padrões culturais, tais como subir em árvores, brincar de estilingue, brincadeiras de guerra, lutas, etc. Nesse novo bairro, com uma cobrança menor sobre o comportamento de Ludovic e em razão da presença de Cristina, a mãe de Ludovic passa a aceitar melhor a condição de seu filho. Considerações Finais O relato do filme bem nos demonstra que muitos dos problemas, sofrimentos passados pelas crianças com orientação sexual “anormal” e seus familiares decorrem das cobranças sociais por um comportamento idealizado, pautado na heteronormatividade, pela qual todos devem se encaixar no padrão, sob pena de exclusão e, até, perseguição. Nesse sentido fugir das determinações ditas “naturais” implica admitir a possibilidade de ser incluído em alguma categoria desviante. Da abordagem realizada neste texto é possível verificar que a razão maior do sofrimento das pessoas com orientação sexual distinta da predominante não é a sua simples condição de diferente, mas sim tudo aquilo que isso acarreta, como exclusão social, homofobia, dificuldades de relacionamento, as quais acabam se espraiando para distúrbios psicológicos graves, algumas vezes culminando com a retirada da vida pelo sujeito que sofre tais agressões. É certo que nas últimas décadas, em decorrência de ações dos movimentos sociais, vários direitos foram reconhecidos aos homossexuais, o que demonstra que a discussão sobre o tema é necessária, bem como que a atitude de se esconder e aceitar resignado uma falsa condição de inferioridade, mas o cenário está longe de ter eliminado o preconceito, conforme relato nesse texto. O espaço que hoje os movimentos pelos direitos homossexuais têm na mídia, como, por exemplo, com as “paradas gays”, discussão do assunto em telenovelas demonstra que as discussões teóricas e movimentos de rua têm sido exitosos, muito em razão do empenho dos militantes e ativistas, os quais, cansados com os comportamentos seculares de preconceito, assumem o compromisso de combatê-lo, permitindo que as futuras gerações gozem de um espaço plural, onde a orientação sexual não seja mais vista como um problema. Dessa forma, percebe-se que o combate e eliminação do preconceito é a única saída para que tais pessoas tenham uma vida com dignidade, o que, no Brasil, consiste em fundamento da República, conforme art. 1, III, da Constituição Federal, Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 9 Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281 de modo que a situação exige pronta e eficaz intervenção estatal, o qual com sua omissão faz com que uma grande quantidade de brasileiros viva em situações de inferioridade e humilhação sem que nada devam ou tenham feito para isso. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281 10