Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e
Psicologia – ISSN 2178-1281
MINHA VIDA EM COR DE ROSA: UM OLHAR SOBRE A CONSTRUÇÃO SOCIAL
DA SEXUALIDADE
Ingrid Silva do Amaral (UFMS) 1
O presente trabalho busca entender os mecanismos de pressão social
para enquadramento da manifestação da sexualidade às estruturas convencionais.
Alguns indivíduos por serem considerados diferentes acabam sendo rejeitados,
desrespeitados e ignorados sistematicamente pelos referenciais de construção
social da sexualidade. As crianças e adolescentes que manifestam sinais de uma
possível orientação sexual distinta da heterossexualidade sofrem os mais diversos
constrangimentos durante a sua formação física, intelectual e psicológica, a qual
emana de toda a sociedade, inclusive da família e até de si mesmo, pois não
entendem a razão de não se adequarem ao protótipo social de sexualidade. Nesse
sentido, criam-se modos representativos ideais de homem e mulher, instituindo
assim uma identidade relativamente estável, ocasionando dificuldades de aceitação
e convivência com tudo aquilo que é considerado diferente dos padrões
estabelecidos. As múltiplas formas de manifestação da sexualidade composta por
aspectos culturais, familiares, pessoais, dentre outros que geram a formação da
orientação sexual, são completamente ignorados. Na busca de mecanismos para
coibir ou pelo menos diminuir os danos praticados contra esse grupo social, o
cinema tem papel de extremo relevo, permitindo tanto a divulgação dos horrores
praticados em razão de preconceitos, bem como a difusão de conhecimentos a
respeito da inexistência de qualquer disfunção na orientação sexual distinta da
hegemônica. É neste contexto que problematizaremos no trabalho o filme Minha
vida em cor de rosa.
Palavras-Chave: Orientação Sexual. Aspectos Culturais. Preconceito.
Introdução
Muito se tem discutido, notadamente nas últimas décadas, a respeito dos
direitos dos homossexuais, o seu reconhecimento como entes detentores dos
mesmos direitos daquelas que expressam comportamento heterossexual. A questão
é permeada por dogmas e influências diversas, as quais apontam a opinião social
sobre o tema.
Nesse trabalho será inicialmente apresentado a possibilidade de
transformação da sociedade, seu caráter mutante, a ideia de que seus valores não
são absolutos e imutáveis. Apresenta-se a noção corrente de comportamento sexual
desejável, relatando na sequência os problemas que aqueles que nele não se
encaixam sofrem, com ênfase para os problemas enfrentados na infância e
adolescência, quando se conhece a peculiaridade de sua orientação sexual, fazendo
1
Graduanda do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Campus
de Naviraí.
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uma análise do filme Minha Vida em Cor de Rosa, de Alain Berliner obra que trata
do assunto.
O desenrolar da história nos demonstra que a sociedade não é uma
estrutura estável e unificada, mas sim um contínuo de transformações e mudanças.
Para confirmar esta assertiva basta que façamos uma pequena reflexão sobre
relevantes fatos históricos, como por exemplo a questão da escravatura, a qual, há
pouco mais de um século ainda era admita e lícita no Brasil, sendo de certa forma
um sinal de riqueza, pois somente àquele que tinha posses era viável a utilização
desse regime de mão-de-obra, valendo-se de outros seres humanos como se
mercadorias/objetos fossem.
É certo que hodiernamente a sociedade, de uma forma geral, repugna o
trabalho escravo, sendo de se pontuar que o que antes era signo de riqueza hoje
além de imoral é crime, situação que nos demonstra a dinâmica da sociedade.
Atualmente, as questões que afloram no corpo social são outras, entre elas o
preconceito contra aqueles que expressam orientação sexual distinta da dominante.
Nessa senda, sabe-se que quanto ao tema gênero e sexualidade a
sociedade ainda possui diversos tabus, os quais impedem uma discussão
desacompanhada de prévias concepções dogmáticas aceitas sem maiores
valorações a respeito das suas pertinências, muitas delas derivadas do matiz
judaico-cristão da sociedade ocidental.
Dessa forma, as pessoas, até mesmo para serem aceitas na sociedade,
buscam sempre apresentar-se da forma que representa a “normalidade”, mesmo
quando a orientação seja distinta, o que é absolutamente compreensível, ante a
necessidade natural do ser humano de aceitação pelos seus pares.
Panorama da Construção da Sexualidade
O pesquisador Mario Pecheny2 destaca que “não evidenciar as
homossexualidades é poder manejar sua sexualidade de acordo com o grupo no
qual está inserido, tencionando entre diferentes níveis de homofobia 3”.
Da mesma forma, o pesquisador Guilherme Rodrigues Passamani4 ao
apresentar alguns dos resultados da sua pesquisa destaca:
meus
informantes
constroem
uma
complexa
rede
de
elementos que, em última análise, lhes permitam viver a
homossexualidade sem estar em confronto direto com a homofobia e
buscam identidades reservadas, isto é, práticas que valorizam o
espaço privado, certo modelo de masculinidade hegemônica, bem
como atos realizados com muita descrição.
No tocante a orientação sexual, a situação não é distinta. Isso porque
todo aquele que não se apresenta perante a sociedade com um comportamento
2
Pecheny, 2004 apud Passamani 2009. O Arco- Íris (Des) Coberto. Santa Maria: Ed. UFMS, 2009,
p. 109-110.
3
Homofobia é a modalidade de preconceito e de discriminação direcionada contra homossexuais.
4
PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. O Arco- Íris (Des) Coberto. Santa Maria: Ed. UFMS, 2009,
p.114.
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heterossexual é visto com reservas, muitas vezes deixado de lado, vítima de
chacotas e constrangimentos de toda ordem.
O caminho das pessoas para esse comportamento começa desde cedo,
com a família, escola e igreja repassando os caracteres preconceituosos e,
homofóbicos a respeito daqueles que possuem atração pelo mesmo gênero sexual.
Nota-se que sempre que não há correspondência do comportamento da
pessoa com o dito “jeito de ser homem” ou “jeito de ser mulher” a mesma sofre com
atitudes hostis de outros membros da sociedade, pois sempre se espera que o
homem seja o provedor, viril, masculino, agressivo, etc., enquanto a mulher deve ser
delicada, amável, mãe, recatada.
A mulher, assim como o homem, confinados a estes modelos adquiriram
um jeito de ser feminino e um jeito de ser masculino, respectivamente, que se
naturalizaram e cristalizaram ao longo do tempo, movidos por modos de pensar,
gestos, funções, que se caracterizaram como inerentes a “natureza” de cada sexo,
criando distinções entre condutas consideradas socialmente anormais e normais.
As mulheres e os homens são moldados aos tipos socialmente
legitimados, por constituir e instituir a masculinidade e a feminilidade hegemônica
através de processos corporais de disciplinarização na escola, na família, na igreja e
em outras instâncias.
Nesse cenário, a título de exemplo do tamanho do descompasso entre o
direito de manifestação de acordo com a orientação sexual e o pensamento da
sociedade, basta trazer a lume a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4277 e da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, julgamento conjunto em 05.05.2011, pelo qual
a Corte reconheceu de forma unânime a possibilidade de união estável entre
pessoas do mesmo sexo, chancelando, inclusive, a possibilidade de obtenção de
pensão por morte e herança.
Todavia, curioso o fato de que mesmo após a cúpula do Poder Judiciário
Nacional ter reconhecido a possibilidade da aludida comunhão de vida, pesquisa
realizada pelo Instituto Ibope5, divulgada em 28.07.2011 demonstra que 55%
(cinqüenta e cinco por cento) dos brasileiros, muito provavelmente em razão de
valores morais arraigados, ainda são contra a união estável entre pessoas do
mesmo sexo, sendo que entre os homens este índice alcança 63% (sessenta e três
por cento) e entre as mulheres 48% (quarenta e oito por cento), tudo a revelar que o
reconhecimento jurídico da união estável não pode ser considerado como o último
ato para o pleno reconhecimento da isonomia para os casais homossexuais.
De outro lado, para uma boa compreensão das dificuldades enfrentadas
pelas pessoas que não se encaixam no “padrão da normalidade” é assaz importante
distinguir gênero de sexualidade.
A criança ao nascer é identificada como menina ou menino através do
sexo biológico que se desenvolve de forma “natural” para todos os indivíduos.
Contudo, o gênero não é necessariamente o que percebemos como masculino e
feminino, ou seja, a diferença de gênero não necessariamente deverá ser biológica,
todavia as inscrições identitárias que os indivíduos trazem ao nascer modelam, de
forma definitiva, as suas relações com o mundo, pois o sexo é a primeira distinção
social dos indivíduos.
5
Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/, acessado em 04.09.2011, às 01h:14m.
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Destarte, a definição dos papeis sociais, em razão da ordem cultural
vigorante, determina as funções em razão do sexo do agente, predispondo que
traços de personalidade devem ser mais bem desenvolvidos, bem como quais
manifestações são inapropriadas para o sexo masculino e feminino.
O entendimento dos organismos de construção da identidade social é
fundamental para compreender os motivos pelos quais a sexualidade se constitui
como um tema problemático na contemporaneidade, visto que algumas identidades
sexuais são negadas, ou seja, não se leva em consideração a construção e
reconstrução da identidade a partir de múltiplos fatores que podem ser culturais,
familiares, pessoais, dentre outros.
Nessa análise é imprescindível que se tenha uma correta compreensão
do significado dos termos gênero e sexualidade, assinalando que nem sempre a sua
utilização corriqueira corresponde àquela de ordem técnica.
De acordo com Maria Lygia Quartim de Moraes6: “Sob o substantivo
gênero se agrupam todos os aspectos psicológicos, sociais e culturais da
feminilidade/masculinidade, reservando-se sexo para os componentes biológicos
[...]”.
Maria Rita Kehl7: “Gênero é um conceito que inclui o sexo biológico,
investido de valores e atributos que a cultura lhe oferece”.
Maria Luiza Heilborn 8 preconiza que:
a categoria de gênero não deve ser acionada como um substituto de
referência para homem ou mulher. Seu uso designa ou deveria fazêlo, a dimensão inerente de uma escolha cultural e de conteúdo
relacional. Por outro lado, traz embutida a articulação desse código,
que se apropria da diferença sexual tematizando-a em masculino e
feminino, com outros níveis de significação do universo, porquanto
no que respeita, por exemplo, às sociedades primitivas e não apenas
nelas, o gênero interage com outros códigos.
É fundamental ressaltar que o gênero se transforma histórica e
socialmente, pois se nota que a construção dos papeis masculino e feminino é
realizada de forma diversa, conforme a sociedade analisada e o corte histórico que
seja feito, o que traz consigo diferentes modelos e imagens de homem e de mulher.
Ao se fixar as identidades de gênero, socialmente se confirma a
sexualidade ao desempenho de “papeis sociais” de homens e mulheres,
naturalizando assim a heterossexualidade (normalidade) em oposição à
homossexualidade (anormalidade) ocasionando aversão a tudo que escape da dita
normalidade.
Não obstante, a definição de sexualidade é distinta da de gênero. Isso
porque a sexualidade encontra-se envolta por regras que regulamentam a
reprodução biológica e social de uma determinada sociedade, o que demonstra que
6
MORAES, Maria Lygia Q. “Usos e Limites da categoria gênero”. In. Trajetórias do Gênero,
masculinidades. Cadernos Pagu (11). Campinas: UNICAMP, 1998, p. 102.
7
Kehl, 1998 apud Moraes, 1998. “Usos e Limites da categoria gênero”. In. Trajetórias do Gênero,
masculinidades. Cadernos Pagu (11). Campinas: UNICAMP, 1998, p.103.
8
Heilborn, 1999, apud Moraes, 1998. “Usos e Limites da categoria gênero”. In. Trajetórias do
Gênero, masculinidades. Cadernos Pagu (11). Campinas: UNICAMP, 1998, p. 100.
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embora diversa não é estanque, de modo que o gênero influencia a sexualidade,
apreendendo-se a sua mutabilidade no tempo e espaço.
Nesse sentido, Maria Luiza Heilborn9 destaca que: “o manejo da atividade
sexual por parte dos sujeitos é capital para constituição de suas identidades de
gênero”. A mesma autora10 poucas linhas antes expressa:
a sexualidade deve considerar que esta não é sinônimo de atividade
sexual (...) uma dimensão interna aos sujeitos, profundamente
imbricada num modelo particular de constituição da pessoa, no qual
interiorização e individualização são traços modeladores da
subjetividade.
Maria Andréa Loyola11 ao destacar a importância da sexualidade verbera:
a sexualidade constitui o pilar sobre o qual se assenta a própria
sociedade e que, portanto, está sujeita a normas; normas que podem
variar de uma sociedade para outra, mas que constituem um fato
universalmente observável, sendo o tabu do incesto a mais básica e
fundamental dentre todas
Apresentando um conceito abrangente de sexualidade através de Ana
Maria Gomes e Mateus de Castro Castelluccio12:
a sexualidade é uma palavra que diz respeito a um conjunto
fenômenos ligados aos prazeres não apenas obtidos a partir do ato
sexual. Portanto, sexualidade engloba os afetos, as emoções, os
diferentes tipos de relacionamentos, os sentimentos, as identidades
de gênero (masculino, feminino, transexual, travesti, gay, lésbica,
etc.) e os desejos.
Estabelecendo um fecho aos pontos de contato e de distinção entre
gênero e sexualidade, relevante trazer à baila as palavras de Judith Butler13:
se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não
faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O
gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural
de significado num sexo previamente dado; tem de designar também
o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos
são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura
como o sexo para a natureza; ele também é meio discursivo/cultural
9
HEILBORN, Maria Luiza. “Construção de si, gênero e sexualidade” In: HEILBORN, M.L (org)
Sexualidade: o olhar das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999, p.43.
10
HEILBORN, Maria Luiza. “Construção de si, gênero e sexualidade” In: HEILBORN, M.L (org)
Sexualidade: o olhar das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1999, p.40.
11
LOYOLA, Maria Andréa. “Sexo e Sexualidade na Antropologia”. In. LOYOLA, M.A. (org.) A
sexualidade nas Ciências Humanas. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998, p. 18.
12
GOMES. A. M.; CASTELLUCCIO, M.C. Relações de Gênero Diversidade Sexual. Programa
Escola de Conselhos PREAE-UFMS, 2010, p.17.
13
Buther, 2003 apud Passamani, 2009. O Arco- Íris (Des) Coberto. Santa Maria: Ed. UFMS, 2009,
p. 40.
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pelo qual a „natureza sexuada‟ ou „um sexo natural‟ é produzido e
estabelecido como „pré-discursivo‟, anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura.
Ao cabo da exposição das definições suprarrealizadas, impende destacar
que aquelas pessoas que fogem da „normalidade‟ sofrem toda espécie de pressão
social, única e exclusivamente em razão desse caractere, ainda que não tenha de
nenhuma forma provocado danos a terceiros ou tentado confrontar a orientação do
outro com a sua.
Referida pressão vem de todos os segmentos sociais, entre eles a escola,
na qual os fatores discriminantes são potencializados, mormente por se tratarem de
crianças e adolescentes, pessoas ainda em formação, as quais manifestam as suas
opiniões e preconceitos sem maiores censuras e maiores digressões mentais.
Verifica-se que os processos educativos continuam a produzir e a
reproduzir as mesmas condutas socialmente representadas, visto que a escola não
distingue entre corpo e conhecimento, contribuindo para a manutenção do estágio
atual, em nada auxiliando a superação do processo do sujeito sujeitado.
A escola por ser um espaço de pluralidade com suas especificidades
possui relevância na organização social, pois atua na sociedade e também é
mediada pelos indivíduos que a compõem. Nesse sentido, a escola possui papel
relevante na construção de espaços para que os grupos oprimidos se representem e
se confrontem numa perspectiva na qual as subjetividades são consideradas e as
singularidades não se perdem em nome da homogeneidade.
Nota-se cotidianamente os frequentes e incessantes abusos cometidos
contra os „fora da normalidade‟, os quais recentemente passaram a ser noticiados
pela mídia com ênfase para o móvel das agressões, seja de ordem psicológica ou
físicas. Tais pessoas pelo simples fato de não compartilharem da orientação comum
na sociedade são vítimas de inúmeros preconceitos.
Os preconceitos, é bom que se diga, não ficam restritos aos campos da
agressão, os quais por si e na sua extensão já são intoleráveis, mas são expandidos
para todas as sendas da vida, entre elas as oportunidades de emprego, de
crescimento dentro de uma empresa, formação psicológica do indivíduo,
relacionamentos sociais e em comunidades religiosas tidas por tradicionais.
De crucial relevo na formação psicológica e intelectual da pessoa é o
momento do reconhecimento da sua orientação sexual, sendo que aqueles que se
encaixam no perfil atual na sociedade, via de regra, não encontram maiores
dificuldades, haja vista que bem recepcionados pelos adultos e até incentivados a
práticas naturalizadas de gênero e sexualidade.
Todavia, a questão passa a ser mais séria e exige maior detença no seu
lidar quando estamos diante do indivíduo que foge do padrão „normal‟ de
sexualidade, pois as consequências dos estigmas causados pela maior parte da
sociedade podem causar marcas indeléveis, que irão acompanhar o sujeito no
processo de desenvolvimento com consequências para toda sua vida.
Esse momento exige uma particular percepção dos agentes envolvidos no
processo, sendo necessário um comportamento receptivo e acolhedor,
demonstrando para a criança/adolescente que ela não é defeituosa pela simples
divergência sexual.
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Ressalta destacar que esse cuidado é imprescindível e exige acuidade
daqueles que estão envolvidos, haja vista que o sujeito em formação ainda não
detém valores depreciativos, não conseguindo visualizar a razão que leva aos
valores socialmente aceitos lhe sub-julgarem, cabendo destacar que nesse
momento da vida a pessoa ainda não possui defesas psíquicas para enfrentar os
demais membros da sociedade.
Outro ponto que merece destaque é que muitas vezes o preconceito e a
discriminação partem de dentro da família, até porque os pais não enxergam razão
para o filho ser „diferente‟, muitas vezes exigindo sua adequação ao comportamento
predominante, inclusive mediante ameaças e agressões.
Análise do filme Minha Vida em Cor-de-Rosa
Retratando esse momento há o filme Minha Vida em Cor de Rosa
(Direção de Alain Berliner, 1997), qual conta a história de um menino de nome
Ludovic Fabre com 7 anos de idade, que se entende como menina, comportando-se
dessa forma. Considerando que o filme apresenta uma boa abordagem da situação,
a título de ilustração de alguns dos problemas enfrentados nessa fase passa-se a
relatar e discutir, ainda que de forma sucinta, algumas passagens da obra
cinematográfica.
O fator biológico é problematizado no filme quando Ludovic descobre que
é menino, segundo a biologia, mas psiquicamente seu universo simbólico é
feminino. Para melhor entender a situação, Ludovic procura sua irmã e pergunta se
ele é menino ou menina? Sua irmã já cansada das indagações de seu irmão vale-se
dos ensinamentos da biologia, mencionando que as mulheres portam cromossomos
sexuais “XX” e os homens “XY”, relatando a Ludovic que seus cromossomos sexuais
são “XY”.
A criança com apenas 7 (sete) anos de idade, passa a se perguntar por
que seus cromossomos sexuais são distintos das sensações que possui, sendo que
enquanto sua irmã lhe passa a lição de biologia acima indicada, no alto da sua
inocência, Ludovic passa a desenvolver uma resposta para a disfunção, chegando a
conclusão de que quando a cegonha foi entregar os cromossomos, que seriam
passados pela chaminé na “brincadeira de médico” dos pais, um dos cromossomos
sexuais „X‟ bate no lado de fora da chaminé e cai no lixo.
Ao chegar a esta conclusão, Ludovic passa a acreditar que em
determinado estágio de sua vida se tornaria menina, corrigindo-se o problema do
cromossomo que caiu no lixo e um dia poderia se casar com um menino.
Tendo em vista sua identificação com o universo cor de rosa, Ludovic
desde sempre melhor se reconheceu nos espaços ditos femininos, usava as roupas
da mãe, gostava de usar batom, colares, sapatos de salto alto, brincava com
bonecas, não gostava de cortar o cabelo, se reconhecia como a mulher de um
desenho animado que assistia.
No desenrolar do enredo, quando Ludovic completa 7 (sete) anos de
idade, a família passa a exigir dele uma alteração de seu comportamento, vez que
até esta data achavam suas atitudes naturais no processo de formação da
identidade e engraçadas, mas que daquele marco em diante, considerando que sua
vida social passaria a ser mais intensa, aquele anterior comportamento não era mais
adequado, ante as exigências comunitárias.
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Com isso, seus familiares passaram a lhe cobrar um comportamento
masculinizado, reforçando em Ludovic a necessidade de se comportar como os
demais meninos de sua idade, frequentando os espaços reservados à
masculinidade, bem como adotando posturas mais viris.
Exemplo dessa cobrança familiar é o fato de seu pai, após algumas
cobranças sociais, passar a adotar medidas que antes eram ignoradas, chegando à
conclusão de que deveria passar mais tempo com seu filho para que ele se
sociabilizasse como o homem que a sociedade esperava.
Para isso, levou Ludovic para participar de uma partida de futebol na
escola em que estudava. Durante o jogo a tentativa se revelou um fracasso, mas o
pai não desistia, e mesmo sabendo que o filho não tinha vontade de continuar
jogando, o incentivava, falando que Ludovic estava indo bem em sua nova
empreitada esportiva.
Mesmo a contragosto Ludovic continuou participando dos eventos
futebolísticos, sendo que após uma partida, no vestiário, Ludovic ficou
envergonhado, não queria tirar sua camisa na frente dos outros meninos, os quais,
ao perceberem a atitude de Ludovic, passaram a rechaçá-lo e constrangê-lo na
busca de sinais físicos de feminilidade, cabendo destacar que seu irmão estava
presente e, em razão das cobranças que sofria pelo “estranho” comportamento de
Ludovic, nada fez para evitar as agressões.
Quando a situação fugiu do controle dos pais, que tentaram
aconselhamento psicológico, o casal teve severas discussões, sendo que o pai
passou a atribuir a responsabilidade pelo comportamento de Ludovic à sua esposa,
mãe de Ludovic, por ser responsável pelos afazeres domésticos e ter que cuidar dos
filhos, inclusive os impedindo de manter brincadeiras e comportamentos
inadequados.
Essa situação, além de abranger outra questão de gênero, qual seja, a
responsabilidade exclusivamente materna sobre a criação dos filhos, com a figura do
pai como simples provedor material, demonstra que nos casos de comportamentos
dos filhos diferentes do esperado, os pais não estão preparados para lidar com
situação.
O filme mostra a família de Ludovic transferindo seu domicílio para um
pacato bairro de classe média, logo após o seu pai conseguir um bom emprego.
Com a chegada no bairro, a família Fabre faz uma festa de apresentação para o
bairro, que tinha características tradicionais de sociabilização e trato próximo entre
os vizinhos.
Na referida festa, Ludovic aparece com vestido, sapato, maquiagem e
acessórios de sua mãe, o que causou um certo estranhamento por parte dos
vizinhos, tendo seu pai para evitar o constrangimento apresentado Ludovic como
“mestre em disfarces”.
Com o desenrolar da estória e novas atitudes de Ludovic fora do padrão
tradicional de masculinidade, a vizinhança passou a afastar a família dos espaços
comunitários, deixando de chamá-los para os eventos daquela pequena comunidade
em razão dos valores prezados pela sociedade.
Em razão do comportamento de Ludovic, seu pai perde o emprego, seu
chefe que era pai de Jerônimo, por quem Ludovic estava apaixonado, sendo que dali
em diante a família tem que se mudar para um bairro mais modesto.
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Tal situação não é bem assimilada pela família, mormente pela mãe de
Ludovic, pois aquele emprego era o signo de ascensão social da família e foi perdido
em razão do comportamento “anormal” de seu filho, sendo que suas atitudes
passam a importar em danos psicológicos a Ludovic.
Interessante destacar que a recepção e assimilação de ditos
comportamentos “anormais” é diferente dentro da mesma sociedade, variando
conforme o espaço em que é realizada a interação. Tanto é assim que no bairro
para o qual transferiram a residência, a situação singular de Ludovic não causava a
mesma estranheza, denotando a presença de outros valores, os quais assimilam de
forma mais tranqüila as variações de comportamento.
Nesse bairro Ludovic conhece Cristina, uma menina que tinha situação
inversa a sua, pois a mesma se sentia menino, tendo comportamento próprio de
meninos segundo os padrões culturais, tais como subir em árvores, brincar de
estilingue, brincadeiras de guerra, lutas, etc.
Nesse novo bairro, com uma cobrança menor sobre o comportamento de
Ludovic e em razão da presença de Cristina, a mãe de Ludovic passa a aceitar
melhor a condição de seu filho.
Considerações Finais
O relato do filme bem nos demonstra que muitos dos problemas,
sofrimentos passados pelas crianças com orientação sexual “anormal” e seus
familiares decorrem das cobranças sociais por um comportamento idealizado,
pautado na heteronormatividade, pela qual todos devem se encaixar no padrão, sob
pena de exclusão e, até, perseguição. Nesse sentido fugir das determinações ditas
“naturais” implica admitir a possibilidade de ser incluído em alguma categoria
desviante.
Da abordagem realizada neste texto é possível verificar que a razão maior
do sofrimento das pessoas com orientação sexual distinta da predominante não é a
sua simples condição de diferente, mas sim tudo aquilo que isso acarreta, como
exclusão social, homofobia, dificuldades de relacionamento, as quais acabam se
espraiando para distúrbios psicológicos graves, algumas vezes culminando com a
retirada da vida pelo sujeito que sofre tais agressões.
É certo que nas últimas décadas, em decorrência de ações dos
movimentos sociais, vários direitos foram reconhecidos aos homossexuais, o que
demonstra que a discussão sobre o tema é necessária, bem como que a atitude de
se esconder e aceitar resignado uma falsa condição de inferioridade, mas o cenário
está longe de ter eliminado o preconceito, conforme relato nesse texto.
O espaço que hoje os movimentos pelos direitos homossexuais têm na
mídia, como, por exemplo, com as “paradas gays”, discussão do assunto em
telenovelas demonstra que as discussões teóricas e movimentos de rua têm sido
exitosos, muito em razão do empenho dos militantes e ativistas, os quais, cansados
com os comportamentos seculares de preconceito, assumem o compromisso de
combatê-lo, permitindo que as futuras gerações gozem de um espaço plural, onde a
orientação sexual não seja mais vista como um problema.
Dessa forma, percebe-se que o combate e eliminação do preconceito é a
única saída para que tais pessoas tenham uma vida com dignidade, o que, no Brasil,
consiste em fundamento da República, conforme art. 1, III, da Constituição Federal,
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de modo que a situação exige pronta e eficaz intervenção estatal, o qual com sua
omissão faz com que uma grande quantidade de brasileiros viva em situações de
inferioridade e humilhação sem que nada devam ou tenham feito para isso.
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