A GESTÃO NÃO PARTILHADA DAS BACIAS IBÉRICAS – NO REMOINHO DA CRISE Afonso do Ó Doutorado em Ambiente e Recursos Naturais Especialista em Gestão Trasnfronteiriça da Água e do Risco de Seca A gestão partilhada das bacias hidrográficas e recursos hídricos que atravessam as fronteiras político‐ administrativas entre territórios vizinhos (ou seja, o princípio comum do ‘condomínio’) é atualmente um princípio reconhecido pelo Direito Internacional – nomeadamente através da Convenção das Nações Unidas de 1997 sobre Cursos de Água Internacionais (UN Watercourses Convention), e da Convenção da Água da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa (UNECE Water Convention, 1996), um protocolo regional que se prevê seja acedido por signatários de todo o mundo a partir de 2014. Na União Europeia (UE), o princípio da gestão partilhada das bacias transfronteiriças foi consagrado na legislação em vigor que transpõe para cada Estado‐membro a Diretiva‐Quadro da Água (DQA). Esta Diretiva obriga os países e regiões que partilham bacias hidrográficas a se coordenarem na planificação e getão dos recursos comuns, sugerindo‐se que essa coordenação contemple a planificação territorial conjunta das bacias em causa em todas as componentes que afetem significativamente o ciclo da água. Isto significa que o quadro geográfico de referência já não é apenas ‘da nascente até à foz’, mas inclui as águas costeiras adjacentes, os ramos atmosférico e subterrâneo, e todos os usos da água. Além disso, tem subjacente o reconhecimento da água como recurso não‐territorial, transfronteiriço por natureza – aquilo que o norte‐americano Corey Johnson considerou como uma forma de ‘governança ambiental pós‐soberana’, na sua análise às alterações de escala implícitas no projeto de construção europeu. Sabendo das dificuldades que tal inovação de conceitos poderia implicar, na hora de cada país abrir mão da sua própria autoridade e soberania sobre os recursos que atravessam o seu território, os legisladores tiveram o cuidado de deixar ao critério de cada um a arquitetura institucional adotada em cada caso, por forma a garantir a gestão da água por bacia hidrográfica – e já não apenas de acordo com as fronteiras político‐administrativas dos territórios. Definiram ainda um patamar mínimo de coordenação, com base no qual os territórios vizinhos que não puderem ou não desejarem alcançar já em 2015 uma planificação conjunta dos recursos hídricos partilhados, ficam apenas obrigados a coordenarem os seus planos separados, procurando conciliar diagnóstico, objetivos, e planos de medidas. Mesmo que involuntariamente, Portugal e Espanha encontram‐se no centro desta questão desde que ela se coloca. Em primeiro lugar, porque pertencem à região mediterrânica: esse berço civilizacional onde a água desempenha um papel fundamental desde os seus primórdios, onde a vincada sazonalidade e irregularidade climáticas exercem forte condicionalidade (sobretudo na agricultura e no turismo, atividades basilares da sociedade e economia regionais), e onde os problemas de escassez e de vulnerabilidade aos fenómenos extremos e às alterações climáticas se fazem sentir de forma agravada. Em segundo lugar, porque pertencem à União Europeia e estão vinculados aos princípios do Direito Boletín especial del Día Mundial del Agua Marzo, 2014 Internacional, conforme referido no início deste artigo. E por último, mas provavelmente razão primeira, porque partilham um espaço comum de enorme unidade física, que se manifesta na geografia ibérica da água de forma vincada – de facto, as bacias hidrográficas partilhadas entre os dois Estados representam praticamente metade quer do seu território, quer dos seus recursos hídricos disponíveis. Por todas estas razões, a partilha da água na Península Ibérica é uma velha questão. Existem acordos políticos sobre a água entre os dois Estados ibéricos desde 1864, sendo que desde 1998 vigora a Convenção de Albufeira – ou melhor dizendo, a ‘Convenção sobre a Cooperação para a Protecção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso‐Espanholas’. Esta Convenção permitiu alargar o espectro da cooperação ibérica da esfera estritamente económica anteriormente dominante (centrada na distribuição do potencial hidroeléctrico), para um quadro alargado que abrange os diversos usos e recursos partilhados. A preparação e adoção da Convenção pelos dois países não foi um simples ato de altruísmo, solidariedade ou boa vizinhança (mas também, como é óbvio). Antes resultou de um processo fortemente impulsionado pela conjugação temporal de alguns acontecimentos chave, nomeadamente: ‐ em 1993, a apresentação do Plano Hidrológico Nacional por parte do Governo Espanhol, que previa a transferência de elevados volumes de água das bacias partilhadas do Douro e do Tejo para as bacias do Levante espanhol; ‐ entre 1991 e 1995, a ocorrência de uma grave Seca, nomeadamente no Sul da Península, que pôs a nu as limitações das políticas nacionais da água em ambos os países, bem como a escassez dos recursos existentes face ao contínuo e crescente aumento dos usos; ‐ a partir de 1995 (e com alguns antecedentes), a preparação nas instâncias europeias de uma Política Comunitária no domínio da Água, que viria a resultar na aprovação em 2000 da Diretiva‐Quadro da Água. Apesar das inquestionáveis virtudes institucionais, jurídicas e diplomáticas resultantes da adoção da Convenção, o tempo foi demonstrando que a sua aplicação e desenvolvimento (propósitos explícitos na própria designação do secretariado técnico bilateral, a CADC – Comissão para a Aplicação e Desenvolvimento da Convenção de Albufeira) tem estado quase sempre refém da oportunidade política. E esta, por sua vez, tem surgido sobretudo quando há incumprimento espanhol do regime de caudais aprovado. Assim se explica que as duas Conferências das Partes (órgão deliberativo que reune os Executivos dos dois países) realizadas até hoje tenham surgido na sequência desse mesmo incumprimento, em 2005 (incumprimento no Douro) e 2008 (incumprimento no Tejo); ou que a regularidade dos Plenários da CADC (órgão técnico) tenha seguido de perto os ciclos pluri‐anuais de períodos secos (com mais conflitos, e com mais plenários) e períodos húmidos que caraterizam o nosso clima Mediterrânico. Em 2008, combinam‐se dois acontecimentos de sentido contrário: na 2ª Conferência das Partes, cientes das limitações da Convenção face aos desafios e problemas de gestão das águas partilhadas, em geral, e em particular face à ocorrência de eventos extremos de Seca, os dois Estados aprovam uma revisão do acordo. Esta revisão determinou, em particular, o estabelecimento de um novo regime de caudais (mais detalhado e rigoroso), e a criação de um Secretariado Técnico Permanente da CADC, a funcionar Boletín especial del Día Mundial del Agua Marzo, 2014 alternamente entre Lisboa e Madrid a cada 2 anos, capacitado para aprofundar de forma siginificativa o nível de cooperação entre os dois países – e nomeadamente para cumprir a obrigação europeia de proceder à planificação conjunta e gestão partilhada das bacias hidrográficas transfronteiriças, a partir de 2015. Só que, no Verão desse mesmo ano e do outro lado do Atlântico, o grupo financeiro norte‐americano Lehman Brothers declarou falência, e deu início a uma espiral recessiva e a uma crise que ainda hoje se fazem sentir, com particular intensidade nos países da Europa do Sul, e com Portugal e Espanha no centro (Grécia à parte) do turbilhão. Inicialmente financeira e dita ‘das dívidas soberanas’, esta crise tornou‐se progressivamente económica, social e política (no sentido mais lato), e ditou um emagrecimento repentino e radical do aparelho administrativo dos dois Estados. Essa transformação não contempla prioridades técnicas ou cálculos de custo‐benefício a médio ou longo prazo, e conduziu à quase completa anulação (quando não mesmo eliminação) de diversas funções e competências das Administrações do Estado – entre elas, a cooperação ibérica em matéria de água. Durante a Cimeira Ibérica realizada em 2012, centrada sobre a crise da zona Euro, ainda se incluiu a água na agenda, impulsionada mais uma vez pela ocorrência de Seca na Península). Embora aí, com pompa e circunstância, ambos os chefes de Estado tenham anunciado que os dois países iriam optar pela via da planificação conjunta (e não apenas coordenada) dos seus recursos hídricos comuns, a partir daí a Convenção praticamente morreu: o site na Internet foi desativado, não voltaram a haver quaisquer contactos de alto nível (pelo menos oficialmente), e houve apenas uma reunião da CADC sem que tenham sido anunciados quaisquer resultados oficiais. E o famigerado Secretariado Técnico Permanente nunca chegou sequer a tomar forma. Neste contexto, é impossível que haja qualquer gestão ou planificação coordenada das águas comuns. O ciclo de planificação que se inicia em 2015 ao abrigo da DQA é para já um nado‐morto no que à planificação conjunta diz respeito – embora seja expetável que se cumpra algum ritual burocrático que permita passar no crivo de Bruxelas. Mas é uma questão de tempo até que ambos os países se vejam obrigados a enfrentar esta questão de frente. Há duas décadas atrás, foi a ocorrência de uma Seca extrema e prolongada, que afetou de forma duríssima a Andaluzia, o Alentejo, a Extremadura ou o Algarve, a contribuir de forma determinante para a mobilização da opinião pública e da classe política, que permitiu depois a preparação e entrada em vigor da Convenção de Albufeira; esperemos que não seja necessário que torne a ocorrer um evento tão ou mais severo, para que os dois países se ponham de novo no caminho de uma gestão partilhada dos recursos hídricos que a ambos pertencem. Agradecimentos ‐ à Amparo Sereno e ao Leandro del Moral, companheiros imprescindíveis nesta ‘cruzada’ ibérica. Boletín especial del Día Mundial del Agua Marzo, 2014