16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Dinâmicas contemporâneas: o campo expandido da preservação Yacy-Ara Froner, EBA-UFMG Resumo: Os domínios da memória podem ser compreendidos pela pesquisa científica por meio dos registros do passado e do presente pertinentes ao pensamento intelectual como suporte dos conceitos de Cultura Material e História da Arte. Desde que grandes transformações na formulação, gerenciamento e produção da arte contemporânea, bem como dos sistemas de informação, ocorreram nos séculos XX e XXI, o discurso relacionado a estes campos modificaram-se, principalmente no que tange as atitudes dos profissionais de conservação. Novas mídias e arte conceitual alteraram os parâmetros e expandiram os paradigmas da preservação Palavras-chave: Arte Contemporânea; Preservação; Ciência da Conservação; Ciência da Informação. Abstract: The domains of memory are those that are intended for scientific research as the remnants of the past and of the present that are pertinent to intellectual thought as recovered by Material Culture and Art History concepts. Since these great transformations occur in the formulation, management and production of contemporary art and information champs at XX and XXI century, the discourse related to these fields has modified principally with respect to professionals attitudes in the conservation area from this point on. News media and conceptual art changes all conservation parameters and expanded its criteria of preservation. Key words: Contemporaneous Art; Preservation; Conservation Science; Information Science A noção de objeto permeia duas possibilidades de significados na rede das trocas simbólicas: o valor é dado em função da luz que ele traz ao conhecimento; ou é inerente à sua condição estética, fazendo com que os parâmetros oscilem entre esses dois pólos. De fato, tanto a Cultura Material como a História da Arte apropriam-se continuamente dos objetos, os quais não teriam sentido sem este dado imprescindível: a referência ao objeto concreto em relação ao seu valor estético ou valor de uso que concorre para lhe definir a especificidade, ambos interligados pelas várias análises e formulações da estrutura do conhecimento científico e acadêmico. Há pouco mais de cinco décadas que a idéia da Cultura Material circula nas construções epistemológicas das mais diversas áreas das Ciências Humanas. Arqueologia, Antropologia, Sociologia, História, Semiologia e até mesmo algumas áreas da Economia começam a fixar suas análises no objeto, utilizando-o como fonte de pesquisa e investigação. Na História, o enfoque sobre o objeto durante muito tempo se restringia ao campus que discutia a respeito da produção artística: a História da Arte. Com a expansão da História das Mentalidades, História Nova e História da Cultura, a diversificação do 1782 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis enfoque se dá pela inclusão de novos sistemas e fontes de análise: o universo material serve então de referência na produção do conhecimento histórico. É interessante perceber que anterior ao período em que a História inclui os sistemas excluídos – como os objetos cotidianos, o culto do quarto de dormir, a análise de papel de parede –, para a arte, Marcel Duchamp estaria discutindo o lugar desses objetos excluídos no universo artístico já no início do século XX: entre 1913-1914 a pesquisa de Duchamp acolhe a pergunta o que faz um objeto artístico ser uma obra de arte? Esta obsessão faz com que ele desenvolva uma “ação” de coletar, selecionar e assinar objetos produzidos pelo processo industrial, conferindo-lhes status artístico. O “porta-garrafa”, a “roda de bicicleta sobre um banco” e a “pá” são objetos retirados do mundo dos objetos ordinários e transplantados – pela ação artística – para o mundo dos objetos artísticos. O que lhes confere singularidade é a assinatura do artista. Ready made (comprado pronto; pronto para usar), usado especialmente para roupas, adquire uma outra conotação: o processo artístico de transformar nossa percepção para com objetos manufaturados, cotidianos, descartados, produzidos pela indústria de consumo e pelo capitalismo. Colocados em xeque os preceitos racionalistas da produção artística – mantida pelas vanguardas artísticas na consolidação do produto artístico bidimensional e tridimensional –, Duchamp deseja desenvolver um paralelo plástico à metáfora de Roussel; o questionamento do “ser ou não ser arte”; o lugar da obra artística em um mundo cujas máquinas e engrenagens são capazes de produzir tudo e, até, substituir a ação humana. Desse modo, Duchamp preconiza uma questão que somente a partir da década de cinqüenta irá fazer parte do repertório das indagações das Ciências Humanas: os objetos fazem parte da estrutura social e, desse modo, poderão de refletir uma mentalidade ou uma cultura? Quando nos deparamos com os conceitos elaborados ao redor da idéia de cultura material podemos selecionar alguns autores: 1) Para Marshall D Sahlins (1979), Cultura Material é o conjunto de artefatos e paisagens culturais que as pessoas criam segundo os conceitos tradicionais, padronizados e freqüentemente tácitos sobre valor e utilidade, desenvolvidos ao longo do tempo por meio do uso e da experimentação; tais artefatos representam objetivamente a visão subjetiva que um grupo tem sobre o 1783 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis costume e a ordem. Para o autor, o universo cultural pode ser representado pelas coisas materiais e por meio delas é possível resgatar estruturas de saber constituído. 2) Para Melville J. Herskovit (1984), Cultural Material é a totalidade de artefatos produzidos numa cultura. Esta visão totalizante coloca em um mesmo saco todas as produções, e impede uma percepção das articulações inerentes a cada estrutura, e até mesmo a singularidade das proposições artísticas. Arte, artefato, bem de consumo, máquinas de produção encontram-se aglutinados, e o autor dá maior importância ao uso do que aos processos singulares, como o da criação artística. 3) Para Jules Prown (1969), a premissa subjacente é que os objetos fabricados ou modificados pelos homens, conscientes ou inconscientemente, direta ou indiretamente, refletem os padrões de crença. Quando a autora estabelece a idéia de crença, as relações afetiva, subjetiva e psíquica interpõem-se à idéia cognitiva e promovem, novamente, uma ruptura com a materialidade da cultura material. 4) Para James Deetz (1971), a Cultura Material é aquele segmento físico do homem que é deliberadamente modelado por ele segundo planos culturalmente dilatados. A exclusão das ações inconscientes age de maneira oposta à premissa anterior. A manutenção apenas da deliberação, da vontade humana para a construção de produtos materiais exclui a percepção da ideologia ou da formulação de um vocabulário anterior/exterior ao indivíduo e que determina, em última análise, sua inclusão/exclusão, manutenção/revolução das idéias circulantes. Com o desenvolvimento do estruturalismo, o objeto torna-se o suporte subjacente sobre o qual a problemática da cultura é investigada: na demografia dos artefatos, sistematizar questões como VALOR-TROCA-MERCADORIAUSO E CONSUMO tornam-se fundamentais para se desvendar as linguagens subliminares, a identidades – individuas e coletivas – e os sistemas culturais, enquanto visão de mundo de uma determinada sociedade. A História da Arte carece de um estudo mais aprofundado em relação à percepção de como as inserções artísticas nos universos da produção cotidiana – tanto para o readymade de Duchamp, quanto para a Pop Art de Andy Warhol – foram precursoras ou contemporâneas aos debates intelectuais ao redor do objeto enquanto fonte 1784 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis de análise e de interlocução cultural. Ao final da década de 50, o interesse pelos objetos de uso cotidiano e o olhar sobre o acaso – não apenas como herança duchampiana, mas como um fortalecimento de uma percepção que explora a noção de que na vida as coisas simplesmente acontecem (ARCHER, 2000: 5) – levaram a arte a um novo senso visual estruturado em duas direções: o Pop e o Minimalismo. Esta condição não é, no entanto, matéria de discussão das pesquisas em Cultura Material. Por sua vez, a História deixa de ver essa conexão devido ao deslumbramento que algumas vezes gera até mesmo a banalização para com os objetos cotidianos não deslocados para a arte. Ao priorizar a idéia de artefato, o paradigma proposto para a História da Cultura restringe a Cultura Material aos esquemas da produção serial dos objetos utilitários, deixando, mais uma vez de reconhecer na produção artística uma fonte importante para a análise das estruturas culturais. Será possível estabelecer uma distinção entre objeto de uso e objeto artístico? Essa distinção, que em um primeiro momento parece óbvia, repousa na história da produção e da construção do pensamento; na intenção poética ou técnica; na elaboração contínua do viver em sociedade: homens e objetos estabelecem suas posições dentro desses acordos sociais. Ao marginalizar o artesanato que constrói objetos de uso – panelas, tapetes, rendas etc. –, a História da Arte ocupa-se da qualidade e do caráter estético desses produtos “inúteis” que são as obras de arte, afirma Cesare de Seta (1984). Porém, o que está em jogo não é a utilidade das coisas, pois desse modo seríamos mecanicistas, mas o lugar que as coisas ocupam no meio social. A manutenção das tradições manufatureiras faz parte, hoje, das discussões acerca da memória tecnológica de cada povo; resgatar as pinturas, tramas, urdiduras, pontos, tinturas, modelagens não é apenas manter vivos elementos exóticos em um mundo de produção em série, mas compreender a identidade que mantém coesa certa organização social. Porém, George Kubler afirma que, apesar de ligados entre si por um ponto comum, uso e beleza mantêm-se irredutivelmente diferenciados: nenhum utensílio será alguma vez cabalmente explicado como obra de arte, ou vice-versa. Por mais elaborado que seja o seu mecanismo, o utensílio será sempre intrinsecamente simples; ao passo que a obra de arte, que é um complexo de vários estados e níveis de 1785 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis intenções intrincadas, por muito simples que o seu efeito possa parecer será sempre uma coisa intrinsecamente complicada. As obras de arte não são utensílios: e está é a questão de fundo (apud DE SETA, 1984: 96). Não há como negar a propriedade cultural que permeia o artesanato, sua importância reside em representar uma identidade que vai além da subsistência de um grupo, mas que reflete uma linguagem própria, um modo de ver e de se relacionar com a sociedade. Porém, é importante olhar o objeto artístico a partir de um ponto de vista que lhe confira uma autonomia que lhe é inerente e que o diferencia do objeto de uso, mesmo que ele próprio seja um objeto utilitário deslocado pelo devir artístico. Para a categoria de “objetos artísticos”, Baudrillard (2002, p: 81) afirma que estes são marginais, acidente do sistema, pois não correspondem à funcionalidade dos objetos modernos: Toda uma categoria de objetos parece escapar ao sistema que acabamos de analisar: são os objetos singulares, barrocos, folclóricos, exóticos, antigos. Parecem contradizer as exigências do cálculo funcional para responder a um propósito de outra ordem: testemunho, lembrança, nostalgia, evasão. Pode-se ser tentado a ver neles uma sobrevivência da ordem tradicional e simbólica. Mas tais objetos, ainda que diferentes, fazem parte eles também da modernidade e dela retiram seu duplo sentido. Contudo, o sistema os absorve e com eles rege uma outra ordenação de valor. Assim, são adquiridos, colecionados, expostos, estudados. O significado do visível e do invisível; do dito e do inaudito desses objetos é colocado a partir do confronto de significados. As coleções são apenas um mecanismo de comunicação entre dois mundos, a unidade e o universo. A gênese deste significado – a necessidade de comunicar – se perpetua na compreensão das relações entre as coleções, os objetos, os monumentos e a sociedade. Cada período da história se relacionou de maneira distinta com os objetos que produziu, com as construções que ergueu ou com as obras de arte que elaborou. É, no entanto, na segunda metade do século XIV que começam a surgir na Europa novas atitudes mentais no que diz respeito às coleções; a valorização do passado aparece sob a forma de retorno aos ideais da Antigüidade Clássica. É justamente nesse período que as grandes famílias burguesas – os Strozzi, Pazzi, Martelli, Capponi, Mancini, Medicis, Visconti – 1786 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis ostentaram seu patrimônio financeiro por meio da coleção de obras de arte, antigas e contemporâneas. Se, por um lado, os herdeiros dessas famílias se fizeram promotores do humanismo, protegendo artistas, filósofos e cientistas, a natureza de suas fortunas provinha, geralmente, da prática comercial, de transações bancárias e da própria tirania de alguns pequenos déspotas do século XV (BURCKHARDT, 1943). Dessa relação de poder e riqueza, é que a figura do mecenas – burguês, nobre ou religioso – emerge. Não há como lembrar de Michelangelo, sem pensar no Papa Júlio II; de Rembrandt, sem lembrar da Companhia do Capitão Frans Banning Cocq; ou Bernini sem lembrar de Luiz XIV. Entre os séculos XV e XVIII, a arte permanece atrelada aos desejos do encomendante: a autonomia do artista é relativa, vinculada, tradicionalmente ao tema solicitado. Com a formação da estética ou filosofia da arte, a atividade do artista não é mais considerada como um meio de conhecimento do real, de transcendência religiosa ou exortação moral. Com o pensamento clássico de uma arte como mimese (que implica em dois planos do modelo e da imitação), entra em crise a idéia da arte como dualismo de teoria e práxis, intelectualismo e tecnicismo: a atividade artística torna-se uma experiência primária e não mais derivada, sem outros fins além do seu próprio fazer-se. À estrutura binária da mimesis segue-se a estrutura monista da poesis, isto é, do fazer artístico, e, portanto, a oposição entre a certeza teórica do clássico e a intencionalidade romântica (ARGAN, 1996, p: 11). Desta categoria emerge o artista romântico que ao afirmar a autonomia da arte, desconstrói a relação do sistema de mecenato e inaugura novas articulações, construídas agora dentro do sistema capitalista de mercado. Ao assumir responsabilidade para com sua produção, confere a ela historicidade, não mais do tempo histórico como utopia do passado, mas como compreensão de seu próprio tempo. Assim compreendida, a arte romântica implica em uma tomada de posição – tanto em relação à História quanto à Arte –, uma vez que depois de Winckelmann (1764 – História das artes na antiguidade) a teorização da percepção artística compõe uma nova formulação: se o tratado estabelece normas, a estética formula conceitos. Para a construção da modernidade, o Impressionismo surge como o modelo de quebra dos paradigmas anteriores e desde os escritos de Baudelaire (O pintor 1787 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis da vida moderna, 1863), impõe-se como projeto de ruptura, inaugurando a “Arte Moderna”. Dois problemas surgem desta percepção: a modernidade artística não corresponde à modernidade histórica; a Arte Moderna, considerando principalmente as vanguardas artísticas, não estabelece uma linguagem coesa ou um propósito coerente, ou melhor, à luz dos propósitos múltiplos reside uma intencionalidade comum: a ruptura e a experimentação. Desses signos movediços, a arte encontra formas distintas, discordantes, dissidentes de se relacionar com o real. Desta consciência de transgressão, surgem os movimentos vanguardistas do início do séc. XX. Para além dessas questões, arte e artesanato; objeto de uso e produção artística; reprodução serial e reprodução singular; fica uma outra questão para a percepção da produção artística enquanto possibilidade de fonte para a História da Cultura ancorada na idéia de Cultura Material: como lidar com a imaterialidade da arte proposta no decorrer do século XX? No início dos anos 60, o interesse pelos objetos de uso cotidiano, o deslocamento da sociedade de consumo para a galeria e as conexões baseadas no acaso levaram a arte a um novo campo visual. Contudo, é na década de 70 que a desmaterialização da obra e a impessoalidade da execução da produção artística marcaram o cenário mundial. Entre o que o artista quis fazer e o que o espectador acredita ver, há uma realidade: a obra. Sem ela é impossível a recriação do espectador. A obra faz o olho que a contempla – ou, ao menos, é um ponto de partida: desde ela e por ela o espectador inventa outra obra. O valor de um quadro, um poema ou qualquer outra criação de arte se mede pelos signos que nos revela e pelas possibilidades de combiná-los que contém. Uma obra é uma máquina de significar (PAZ, 1990, p:56). Mesmo quando Bonito Oliva afirma na década de 80 a retomada do fazer artístico, com a entrada das novas tecnologias vemos uma desmaterialização gerada por propostas que questionam o tempo e o espaço a partir dos conceitos de realidade e irrealidade; de imagem e movimento. O modelo ancorado na percepção da arte enquanto fonte de análise e Cultura Material será possível nesse contexto? Como se comportar diante do não-objeto ou da imagem efêmera? Como resgatar a identidade material da cultura em uma cultura baseada na imaterialidade, na dinâmica de uma propriedade que é 1788 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis traduzida pelo substituir, mudar constantemente, novas versões e impossibilidade do registro estático? A preservação diante das mudanças nos paradigmas da cultura Diante do campo expandido da cultura e da arte, qual o papel do conservador? Esta é a primeira pergunta que deve ser feita por cada um de nós. Profundas alterações conceituais nos formatos de produção artística, nos registros de produções culturais e nas formas de produções materiais impelem a área da preservação a pensar sua atuação por meio de uma reflexão dilatada, que já não pode ficar restrita apenas ao seu campo de saber específico. Perante a produção da informação por meio de novas mídias – com o uso do micro-filme; da digitalização e da construção de uma rede interativa de informações e reflexões – como atuar na esfera da preservação das informações produzidas? Há um tempo atrás a arquivologia, a biblioteconomia e a conservação/restauração de documentos consideravam o suporte em papel – e suas variações, como a fotografia, as películas e fitas imagéticas e sonoras – a matéria básica para o desenvolvimento de protocolos de catalogação, guarda, acessibilidade, manipulação, conservação e restauração. Considerando a rapidez nos fluxos de informação e as alterações dos meios de suporte, reprodução e fruição dessa tipologia de fonte, os procedimentos que muitas vezes eram pensados por meio de atuações e interferências estanques passam a depender de um novo paradigma: a Ciência da Informação tende a incorporar os modelos, conceitos e metodologias anteriores destas áreas específicas, atuando, porém, de maneira integrada, coesa e estreita na manutenção e preservação dos documentos de memória, agregando à área a interface das novas tecnologias e a interferência da Ciência da Computação na articulação dos projetos que envolvem a preservação e o uso de fontes documentais. Por sua vez as relações impostas pelas alterações nos conceitos de arte, do dadaísmo do início do século XX à arte eletrônica do século XXI, alteram profundamente o meio artístico obrigando aos colecionadores, curadores, conservadores de coleções, museus e demais instituições artísticas a repensar as formas de gerir o campo expandido da arte. No momento da desmaterialização da arte e da formulação daquilo que compreendemos como arte conceitual, mas uma vez o objeto de preservação passa a ser a memória. 1789 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Não mais a matéria física das coisas materiais, mas a matéria fluída das poéticas do processo. São nos rastros, nos registros, nos relatos que o processo artístico, denominado processo em poética, se concretiza. A natureza do trabalho/obra/produto artístico é a pergunta confrontada pelo ready-made: evidentemente, uma das repostas sugeridas pelos ready-made é a de que um trabalho de arte pode não ser um objeto físico, mas sim uma questão, e que seria possível reconsiderar a criação artística, portanto, como assumindo uma forma perfeitamente legítima no ato especulativo de formular questões (KRAUSS, 2001, p: 91). O desdobramento desta nova forma de encarar o universo artístico resultou os mais variados processos da arte e da anti-arte, fazendo com que o processo reflexivo tivesse a mesma relevância que o procedimento técnico. Desde que a modernidade descolou o sentido da arte de sua relação imediata com a produção manual, infligiu ao processo criativo uma maior responsabilidade em relação ao processo reflexivo. É óbvio que o processo reflexivo evolve todas as esferas da produção humana – da arte ao artesanato – e que o significado conceitual desenvolvido em uma obra de Vermeer (Moça com brinco de pérolas, Haia, 1665) tem dimensão equivalente a uma obra de Gina Pane (Ação Psíquica, Paris, 1974). No entanto, desde que outras relações foram estabelecidas na modernidade – objetos, contra-relevos, ready-mades – e na pós-modernidade – instalações, arte conceitual, land-art, happenings – o fazer artístico dispensou sua dependência imediata do modus operante tradicional – a manufatura – e passou a construir novas teias de relações filosóficas, sociais e históricas. Pierre Bourdieu e Hans Haacke produziram um estudo decorrente de seus encontros na década de oitenta – “Livre-Troca: diálogos entre ciência e arte” – em que aquele sociólogo e este artista discutiram as profundas transformações no meio artístico. A obra de Haacke condensa uma análise crítica do mundo da arte e das próprias condições da produção artística, questionando as relações de poder a partir de sua percepção crítica – nas palavras de Bourdieu, quase sociológica – do contexto. Para além das novas linguagens, a inclusão de novas tecnologias – como o vídeo-arte –, a promoção de um diálogo cada vez mais próximo com as Ciências Duras – como a op-art, a arte cinética etc. – e o contato direto com as Ciências Humanas – como o pensamento estruturalista, a Sociologia e a 1790 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis História – transformaram as relações da arte contemporânea com a sociedade. Assim como todos nós, o artista contemporâneo é impelido a desenvolver um pensamento crítico e uma maior intimidade com as ferramentas tecnológicas disponíveis, caso contrário, corre o risco de permanecer à margem dos meios de divulgação, das instituições e do debate. A alteração do paradigma da arte da arte impõe, portanto, a alteração dos modelos, dos conceitos e das premissas para a preservação da arte: diante de um happening, uma performance, uma instalação ou um projeto virtual, o conservador deverá atuar mais uma vez diante de um campo expandido, integrado ao curador, ao museológo, ao colecionador e/ou ao pesquisador da arte na proposição de soluções relacionadas à preservação dos registros e da memória. Aquilo que antes poderia ser considerado informação complementar – como rascunhos, esquemas, esboços, esqueletos, maquetes, fotos de montagem, vídeos de performance, entrevistas, cadernos, reportagens, relatos, portifólios, provas-de-artista –, torna-se matéria principal. A equivalência entre obra e documentação é central na estética desde os anos 60-70. Para os artistas conceituais, são as informações, textos, fotografias, fotocópias, esquemas que documentam não tanto um objeto ou uma ação in absentia, mas a idéia, por natureza invisível (Anne Moeglin-Delcroix, apud REY, Sandra, 1996). Deste modo, os registros do processo de criação, bem como as instalações provisórias de projetos determinados passam a ocupar um espaço institucional anteriormente não previsto. Nesse contexto a materialidade desses registros e suas relações de conservação devem ser discutidas amplamente entre todos aqueles que deverão construir protocolos de elaboração, guarda, catalogação, manutenção e disponibilização desses documentos/objetos. Aqui reside a alteração dos paradigmas de um campo de saber recente: a Ciência da Conservação. Uma ciência tecida por meio da trama de áreas correlatas, gerada por meio de competências multidisciplinares, cuja urdidura é operada por um campo de reflexão, metodologia, conceitos e critérios integrados, portanto, interdisciplinares, cujo objetivo final é a preservação de determinadas formas de saberes, poderes, criação e processos valorizados – portadores de significados a partir de parâmetros específicos desenvolvidos nos meios sociais. 1791 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Referências ARCHER, Michel. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ARGAN, G.C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002. BENJAMIN, Walter. Magia/Técnica; Arte/Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. BLAKE & FRASCINA. Modernidade e Modernismo. 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Currículo: Doutora em História pela FFLCH-USP; especialista nas áreas de Arte e Cultura Barroca pelo IAC-UFOP e Conservação pelo CECOR-UFMG. Atualmente, professora da área de Teoria no Curso de Graduação em Artes Visuais e PósGraduação em Artes Visuais da EBA-UFMG. 1792