Galactus: um mito tecnológico moderno
Gabriel Goes – psicólogo componente da equipe do NPPI
Recentemente venho observando que minha mente ferve como uma sopa, composta
por variadas reflexões tecnológicas. Das muitas que posso identificar e definir, percebo
que todas falam da eterna busca, na qual nos empenhamos continuamente, ao longo da
vida.
Mas, o que buscamos ? Simplesmente buscamos o sentido nas coisas. Muito se diz que
buscamos prazer ou sobrevivência, coisas estas que parecem tão óbvias e fundamentais
– como se o resto… fosse apenas o resto. Mas se pararmos para pensar, a definição do
que buscamos (prazer, sobrevivência, amor, etc.) vem depois da busca. Buscamos
porque, sem isso, morremos. Já ouvi dizer que tudo na vida deve ter um propósito. Mas
repare: antes dessa afirmação houve uma busca, uma procura de sentido, que levou a
esta conclusão: devemos ter um propósito.
Buscamos porque esta é a nossa condição como seres humanos. Podemos também não
buscar, isto é possível. Isto seria, então, nossa morte; ou, como diria a psiquiatria, uma
depressão. A depressão não deixa de ser uma espécie de morte, mesmo que
incompleta, por não ser física (mas podendo, inclusive chegar a tal ponto).
Você pode estar se perguntando: mas o que isso tem a ver com tecnologia? Disse, no
início, que trataria aqui sobre reflexões tecnológicas, e não existenciais... Para me fazer
entender, gostaria de apresentar - para quem ainda não a conhece - a fantástica
mitologia de Galactus.
Galactus não é um ser mitológico no sentido comum do termo. Não faz parte, por
exemplo, da antiga mitologia grega. Mas nem por isso deixa de ser um mito, pois
contém símbolos que dizem da nossa cultura e da relação entre as pessoas. Ele é um
mito moderno. Trata-se de um personagem criado na década de 60 por Stan Lee e Jack
Kirby, quadrinistas norte-americanos, os mesmos que criaram tantos outros
personagens que hoje povoam a indústria cinematográfica, como o Homem-Aranha e o
Homem de Ferro, só para citar dois dos mais presentes na atualidade. Na época, Lee e
Kirby tinham um objetivo simples e direto, que era apenas vender mais revistas. E para
isso queriam fugir do estereótipo do grande vilão que pretende conquistar o mundo.
É difícil dizer quem é Galactus em poucas palavras, pois se trata de um personagem
extremamente complexo. Mas tentarei. Ele é a primeira e mais antiga entidade viva do
Universo. Sua idade gira em torno dos vinte bilhões de anos, tendo surgido em um
planeta chamado Taa, que existiu antes do que hoje conhecemos cientificamente como
“Big-Bang”. (É conhecida entre a classe científica a teoria de que o universo possui um
movimento de retração e expansão, onde o auge da retração é conhecido como “Big
Crunch” seguido pelo início da expansão – o “Big Bang”). De alguma forma, Galactus
conseguiu sobreviver a essa transição de existência de um Universo anterior para este
em no qual vivemos hoje.
Claro que um ser com uma origem tão espetacular não poderia deixar de ser uma
espécie de deus, ou semideus. Assim como não poderia deixar de possuir poderes
fantásticos como, por exemplo, consciência cósmica, capacidade de criar seres
sencientes, ressuscitar os mortos e transmutar a matéria. Mas, o que o faz ser um vilão,
é o fato de ser obrigado a consumir a energia de mundos vivos inteiros. E o resultado
disso, claro, é a completa destruição desses planetas, nada sobrando nesses mundos
além de rochas e cinzas. Esta é a condição da sua existência.
O que chama a atenção em relação a esse personagem, e a razão pela qual eu o trago
aqui, é que apesar de ser possuidor de tanto poder, ele não abdica de possuir sua
própria nave (construída por ele mesmo). Trata-se de um objeto tecnológico formidável,
com as dimensões de uma estrela, a ponto de planetas orbitarem ao seu redor. Mais do
que isso: é uma ferramenta que alcançou o limite do possível e imaginável do avanço
tecnológico. É o ponto máximo da tecnologia.
Creio que a simbologia desse personagem pode nos ajudar a compreender a nós
mesmos e nossa relação com a tecnologia. Voltamos aqui ao tema da busca, falando
agora de nosso mundo cotidiano: a tecnologia é idealizada muitas vezes em nossa
cultura como a provedora da solução externa de todos os nossos problemas. Através
dos celulares e tablets (via internet, redes sociais e assim por diante) temos a ilusão de
que resolveremos nossas questões de comunicação. De que através de um Google
saciaremos nossa fome por informação. Recentemente tem-se dito que as redes sociais
mudaram a forma como protestamos. Mas quem muda não é a tecnologia, somos nós –
seres humanos – que mudamos e nos expressamos através da tecnologia. O papel que a
tecnologia exerce em nossas vidas expressa aquilo que somos. O ser humano não usa a
tecnologia, o ser humano é tecnologia, e a tecnologia somos nós, presentificados e
materializados num objeto. Assim como o objeto tecnológico é resultado de uma
experiência humana, essa própria experiência humana se expressa via objeto
tecnológico em suas nuances humanas e as características individuais com que cada um
de nós a utiliza.
A tecnologia (como produto do ser humano) tem o dom também de deslumbrar. O
deslumbramento é uma das atitudes humanas que se presentifica diante da tecnologia.
E uma vez que há o deslumbramento, ocorre também uma espécie de descolamento, e
a tecnologia então nos remete a outra esfera, agora imaginária, como se ela se tornasse
um ser vivo à parte. Com isso, ela se torna o foco de grandes ataques ou grandes
reverências, servindo como grande depositário das projeções humanas. Boa parte do
que é próprio do ser humano é, de forma não esclarecida, transportado para aquele
grande mal ou grande bem que constitui a tecnologia.
Galactus, mesmo tendo alcançado tamanho feito tecnológico, ainda assim enfrenta a
condição existencial da sua própria fome, saciada parcialmente apenas através da busca
por planetas. Assim como a tecnologia não libertou de Galactus de sua fome insaciável,
da mesma forma ela não nos libertará de nossa busca por sentido.
Sermos seres tecnológicos é, essencialmente, sabermos que de fato estamos vivos.
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Galactus: um mito tecnológico moderno Gabriel Goes - PUC-SP