EROS E PODER - RESILIÊNCIA E VIOLÊNCIA NÚCLEO ESPIRAL: UM TRABALHO DE PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES Neusa Maria Lopes Sauaia1 “A maioria de nós, em um momento ou outro, é impelida, mesmo que o impulso seja breve, a ajudar a resolver os problemas da sociedade, e a maioria de nós sabe, no fundo do coração, que é nossa responsabilidade deixar o mundo um pouco melhor do que o encontramos” Cyril Joad (1891-1953) Filósofo e Psicólogo Britânico Resumo Neste estudo discute-se Eros-Poder em sua interface sombria, geradora da violência e, em sua interface luminosa, promotora da resiliência. O Núcleo Espiral, entidade social que atua com Pesquisa, Assistência e Prevenção da Violência contra Crianças e Adolescentes em São Paulo, Brasil, tem como referencial teórico o paradigma da resiliência que focaliza os recursos em lugar do trauma, relacionando-se diretamente com a visão prospectiva da Psicologia Analítica. Seus quatro programas: RETOCARE que realiza atendimentos psicoterapêuticos breves com grupos de crianças e adolescentes institucionalizados; APOIAR que oferece capacitação para cuidadores em instituições; PROEV que promove um espaço de pesquisa na área de violência e temas afins e APROVE que pretende capacitar professores e oferecer suporte aos pais na discussão da problemática da violência nas escolas, buscam integrar Eros e Poder em um diálogo construtivo onde símbolos possam ser ativados em vivências transformadoras de fortalecimento, recuperando as esperanças no futuro e implementando habilidades da resiliência. Violência: A Interface Sombria de Eros e Poder A criança nem sempre foi considerada como um ser digno de respeito e cuidados especiais. DeMause (1976/1991/1998/2002) em seus estudos sobre os padrões históricos de cuidados das crianças mostra que desde a antiguidade até o século IV as crianças 1 Mestre em Psicologia Clínica, Diretora Presidente do Núcleo Espiral: Pesquisa, Assistência e Prevenção da Violência contra Crianças e Adolescentes, São Paulo, Brasil. Email: [email protected] 1 existiam para atender as necessidades dos adultos, neste período o estupro era freqüente e as crianças defeituosas eram eliminadas. Do século IV ao séc. XIII as crianças eram consideradas possuidoras do mal. Apanhavam e eram abandonadas ou vendidas como escravas, em monastérios e conventos. Do séc. XIV ao séc. XVII os pais deviam moldar as crianças, reprimindo e batendo com chicotes, açoites, varas de madeira e metal. No séc. XVIII as crianças eram menos malignas e, portanto, podiam ter um vínculo mais próximo com seus pais. Eram comuns as relações permeadas de ameaças, culpas e punições para educar. Do séc. XIX até a metade do séc. XX, os pais tentavam guiar, treinar e ensinar bons comportamentos, servindo de referência para as crianças, embora ainda continuassem as surras para educar. Desde a metade do séc. XX, os inúmeros estudos sobre desenvolvimento infantil apontaram para a importância do cuidar das crianças de forma a atender as suas necessidades e respeitar as fases de desenvolvimento para que elas se tornassem sadias. Propõe-se, então, uma relação na qual a punição não é mais enfatizada e o poder não se encontra mais polarizado nas mãos do adulto. Os tipos mais comuns de violência cometida contra crianças e adolescentes são: violência física, violência sexual, violência psicológica e negligência. Em todas elas encontramos: • Uma transgressão do poder disciplinador do adulto, convertendo a diferença de idade em uma desigualdade de poder. • Uma extinção da liberdade, sujeitando a criança à condição de objeto do adulto. • Uma vitimização da criança que deve se submeter aos desejos e interesses dos adultos mais poderosos (Guerra, 2001). A violência é entendida como uma relação assimétrica de poder com fim de dominação, exploração comercial e opressão. No entanto, a violência disciplinadora muitas vezes surge apoiada na justificativa amorosa de Eros, na qual educar é uma forma de amor. Assim sendo, se a criança fez algo de errado deve ser corrigida para que possa aprender. Ochotorena (1988) assinala que toda a violência física é uma ação, não acidental, por parte do adulto que provoca dano físico ou enfermidade na criança. A violência sexual é definida por Azevedo e Guerra (1995) como todo ato, jogo ou relação de natureza erótica, que pode ou não incluir contato físico, em uma relação homo ou heterossexual, com criança de até 12 anos, ou adolescentes de 12 a 18 anos com a finalidade exclusiva de prazer do adulto. Na violência psicológica o adulto deprecia a criança, humilhando-a ou ameaçando-a com o abandono, causando-lhe grande sofrimento e estresse mental. A negligência, por sua vez, representa uma omissão do cuidar tanto em termos das necessidades físicas quanto emocionais de uma criança ou adolescente. 2 Todas estas violências, resultantes de um poder que submete, domina ou oprime, podem gerar prejuízos no desenvolvimento infantil. O Poder expresso pelo domínio, controle, e repressão é relacionado principalmente ao arquétipo Patriarcal e sua expressão sombria pode resultar em atos violentos e destrutivos. Da mesma forma, a vivência sombria de Eros, presente particularmente no abuso sexual, pode comprometer o desenvolvimento dessas crianças. A maioria dos casos de abuso sexual não é acompanhada de violência ou agressividade. O mais comum é que o pedófilo utilize um longo tempo seduzindo a vítima, com grande uso de estratégias de conquista e formação de fortes vínculos afetivos. Frases comuns utilizadas pelos pedófilos envolvem afetos especiais, confiança, interesse e empatia particular com promessas de ajuda e apoio: “Seus pais não ligam para você. Eu sim me importo com você, mais ninguém”, “Seus pais não amam você tanto quanto eu”, “Os pais nunca querem que os filhos cresçam, eu quero que você cresça”, “As outras crianças gozam de você, eu sei o que é isso e quero ajudá-lo”, “Não conte a seus amigos sobre nós. Eles ficariam com ciúmes” (Sanderson,2005). Estamos, portanto, sob a égide do arquétipo matriarcal em sua atuação sombria, visando exclusivamente o prazer do adulto. O abusador agrega à polaridade sombria de Eros diferentes usos de Poder, promovendo chantagens, pactos e complôs do silêncio com sua vítima. A negligência ou abandono é um dos motivos mais comuns que resultam em medida de proteção à criança através do abrigamento em instituições é. O uso de drogas é um fator que predispõe ao abandono e descuido com o outro em função da prioridade do atendimento das necessidades do adulto adicto. Aqui a violência decorre da retirada do afeto, do cuidado e da proteção necessárias ao desenvolvimento da criança que fica exposta a situações de risco. Prevalece o desafeto e o desamor como experiência da ausência de Eros com conseqüências graves à criança. Tanto o Poder quanto Eros podem funcionar como forças promotoras da violência, principalmente porque, como coloca Byington (2006), a assimetria de Eros e Poder na relação adulto-criança facilita uma atuação da sombra do adulto sobre a criança. Vejamos agora a outra face destas mesmas forças na ativação da resiliência. Resiliência: A Interface Luminosa de Eros e Poder Resiliência é um termo que se origina das ciências exatas, particularmente da mecânica e da engenharia. Definida como: “Propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de uma deformação elástica“ (Ferreira,1986) tem aplicação recente nas ciências humanas desde final dos anos 80. Segundo Spacarelli e Kim (1995) resiliência é a capacidade de manter um 3 funcionamento adaptado apesar de situações adversas. Inicialmente acreditava-se que a resiliência seria um dom ou uma espécie de atributo especial. Atualmente é vista como um processo dinâmico, que envolve múltiplos fatores e que se define pela equação entre fatores de risco e fatores de proteção. Sabe-se hoje que a resiliência pode ser desenvolvida no decorrer das experiências de vida. O paradigma da resiliência focaliza diferentes recursos que podem incrementar essa força de enfrentamento. Para o desenvolvimento de uma criança é fundamental que se estabeleça uma relação de Eros com a figura do adulto. É nessa relação amorosa que são construídos os princípios de segurança, confiança, estabilidade e fortalecimento egóico. Se uma criança pode viver uma boa relação afetiva, terá um melhor prognóstico de desenvolvimento, pois poderá enxergar no adulto um porto seguro. É a função estruturante de Eros na relação eu-outro, particularmente na relação adulto-criança que serve como fator de recuperação e incremento da resiliência. O bebê nasce frágil e tem na mãe ou naquele adulto responsável pelos seus cuidados a representação do mundo. Esta relação é a fonte de prazer e desprazer cuja vivência encontra-se calcada nas sensações corporais. O desprazer (fome, frio ou dor) é percebido como contrações musculares enquanto o prazer (ser alimentado, aquecido) é vivenciado como descontração e relaxamento. A polaridade positiva do arquétipo matriarcal que se expressa no diálogo tônico com a mãe via Eros registra na memória corporal, desde muito cedo, um intercâmbio afetivo de caráter construtivo na trajetória de desenvolvimento da personalidade da criança. A existência dialética do arquétipo Matriarcal e Patriarcal apontada por Byington (2008) nos remete à outra função estruturante necessária ao desenvolvimento: o Poder. Este, atuando de forma construtiva, estabelece a hierarquia, a ordem, a tarefa e a obediência. Estabelece limites que definem o espaço pessoal, trazendo um senso de segurança no mundo. Quando limites são estabelecidos com respeito, eles ajudam a conter as experiências internas e proteger da invasão de estímulos externos, criando uma “pele” protetora que acompanha a criança e o futuro adulto em todo seu processo de individuação. A jornada do herói ancora-se nesta dinâmica de força e enfrentamento ao ativar a coragem, a força empreendedora e, consequentemente, a resiliência. É freqüente que experiências traumáticas rompam limites e causem sintomas como: hipersensibilidade a som, luz ou toque; sensação de estar sem pele; falta de habilidade para filtrar estímulos; descrições de estar “vazando” ou “sendo invadida”; tendência a ser vítima novamente e vulnerabilidade a mais traumas. A criança necessita que o adulto sirva como um parâmetro organizador de sua experiência com o mundo através do estabelecimento de limites claros e coerentes. Exercita, assim, a aprendizagem da espera e a capacidade 4 de suportar frustrações, construindo sua socialização e organizando seu mundo intrapsíquico. Violência e Resiliência tornam-se, assim, duas faces de uma mesma moeda que dependem da ativação negativa-sombria ou positiva-luminosa de Eros e Poder, embasadas pelos arquétipos Matriarcal e Patriarcal que podem expressar tanto um funcionamento quanto outro. Neste diálogo dinâmico o Poder, em sua função organizadora, também contempla um Eros continente e amoroso que orienta e ensina enquanto que Eros aparece pleno de um Poder que alimenta e acolhe. Núcleo Espiral – Integrando Eros e Poder na Prevenção da Violência contra Crianças e Adolescentes Byington (2006, p.70) afirma que “Eros e Poder precisam ser integrados durante o processo existencial denominado por Jung de processo de individuação”. O desenvolvimento requer a presença destes dois princípios, pois a criança precisa de um adulto amoroso que reconheça e valide suas necessidades e que cuide e ofereça o suporte necessário dado por limites e regras claras. A proposta de trabalho do Núcleo Espiral focaliza a promoção de um diálogo construtivo entre Eros e Poder onde símbolos possam ser ativados em vivências transformadoras de fortalecimento, recuperando as esperanças no futuro e implementando habilidades da resiliência. Os cinco pilares conceituais adotados nos programas do Núcleo são: 1- Teoria junguiana, na qual o símbolo é o elemento que ajuda a promover o desenvolvimento do ego e sua diferenciação, redirecionando a energia psíquica. 2- Abordagem corporal que mescla diferentes técnicas com o intuito de desenvolver vivências positivas e validar a existência do aqui-agora. 3- Lúdico e vivencial favorecem a elaboração simbólica onde a dimensão verbal não alcança. 4- Paradigma da Resiliência direciona o foco da atenção para os recursos, implementando fatores de proteção e fortalecendo a auto-estima e a confiança das crianças e de seus cuidadores. 5- Trabalho em grupo permite a elaboração da relação com o Outro, o exercício de limites, regras, respeito, empatia e liderança, que exercitam a socialização. Compartilham-se no grupo os conflitos e tensões, resignificando os afetos. É na prática de cada programa que todos estes princípios se tornam vivos e são coloridos pelas tonalidades de Eros e Poder. O Núcleo Espiral é uma associação sem fins lucrativos que tem como missão estimular a prática dos Direitos Humanos através de 5 intervenções que ajudem a prevenir a violência contra crianças e adolescentes. Atua desde 2002 na cidade de São Paulo, Brasil e possui quatro programas: 1- RETOCARE (2002-2009): Realizam-se atendimentos psicoterapêuticos breves em grupo com abordagem corporal-simbólica. O público atendido abrange crianças e adolescentes de 6 a 16 anos institucionalizados em abrigos, creches, lares ou núcleos sócio-educativos. A seleção dos participantes é feita por faixa etária. O atendimento psicológico breve é desenvolvido em três fases: • Sensibilização dos educadores e esclarecimento da proposta de trabalho. Seleção dos participantes e pesquisa do histórico de cada participante. Sessão individual para avaliação da condição inicial da dinâmica psíquica de cada participante. • 20 sessões grupais semanais de uma hora de duração. • Sessão individual para reavaliação após a intervenção grupal. Devolutiva à instituição e reunião com educadores da instituição para o fechamento do trabalho. Todas as sessões, tanto individuais quanto grupais, são acompanhadas por dois terapeutas e registradas em folha padrão após cada sessão. As habilidades avaliadas neste trabalho foram definidas por Hunter (1998) em seu estudo com população de abrigos e agrupadas em percepção de si (autonomia, percepção corporal, habilidade cognitiva e senso de objetivo e futuro) e percepção do outro (competência social e habilidade para resolver problemas) (Sauaia,2003). Os índices de melhora não são exclusivos e sim inclusivos; sendo assim, cada criança/adolescente pode apresentar melhora em mais do que uma habilidade. Foram atendidas 397 crianças e adolescentes entre os anos de 2002 e 2008. Destas, foram avaliadas 291 com os seguintes resultados: 22% apresentaram melhora em Competência Social; 21% na habilidade Autonomia; 18% em Senso de Objetivo e Futuro; 17% em Percepção Corporal; 13% em Habilidade para Resolver Problemas; 9% em Habilidade Cognitiva. 2- APOIAR (2006–2009): Este programa realiza a capacitação de cuidadores para melhor compreensão da realidade característica desta população, promovendo recursos para o enfrentamento da violência e a promoção da resiliência. Os cursos têm como objetivo possibilitar que estes cuidadores adquiram conhecimentos e informações sobre temas tais como: desenvolvimento infantil e suas peculiaridades, violência, resiliência, agressividade, limites, disciplina, trauma, estresse pós-traumático, recursos, entre outros. A linguagem vivencial utilizada nos encontros permite também que sejam auxiliados no manejo das ansiedades e tensões geradas por este trabalho. Foram capacitados 1000 profissionais que preencheram um questionário aberto onde deram sua opinião sobre o curso: 50% dos participantes considerou o curso ótimo; 42% bom; 6% regular; 1% insuficiente; e 1% não 6 responderam. Os trabalhos realizados por estes dois programas atingiram, direta ou indiretamente, um total aproximado de 4000 crianças e adolescentes beneficiados. 3- PROEV (2008-2009): O programa de estudos da violência funciona como um espaço de pesquisa na área de violência contra crianças e adolescentes, promovendo assim, troca e disseminação de conhecimento científico que visem ações de assistência e prevenção. 4- APROVE (implantação em 2009): Este programa pretende capacitar professores e oferecer suporte aos pais, tornando-os agentes transformadores da realidade escolar e da comunidade onde vivem, promovendo a resiliência e minimizando a perpetuação da violência. É importante também discutir e propiciar vivências às próprias crianças e adolescentes para ajudá-las em seu autoconhecimento, no incremento da resiliência e na construção de sua personalidade. Cuidar exige Eros, cuidar exige um olhar acolhedor que se proponha a semear confiança e respeito. Cuidar exige Poder, cuidar exige limites claros, coerência e firmeza que alimentem essa mesma confiança e respeito. Portanto, a equipe de psicólogas que trabalham nestes programas busca, tanto no cuidado com essas crianças como no cuidado com o cuidador, criar um terreno seguro para o desenvolvimento da resiliência onde a vivência positiva de Eros e Poder possam fertilizar cada indivíduo em seu processo de desenvolvimento. Palavras-chave: Psicologia Junguiana, Abordagem Corporal, Crianças, Violência, Resiliência. Referências Bibliográficas Azevedo, M.A. e Guerra, V. A. (1995) A Violência Doméstica na Infância e na Adolescência, São Paulo, Robe Byington, C. 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