A TEORIA DA IMPREVISÃO NO DIREITO DO TRABALHO – cláusula ínsita rebus sic stantibus – Arnaldo Goldemberg[i] SUMÁRIO 1. Introdução 2. Princípios do direito contratual 3. Teoria da Imprevisão – cláusula ínsita rebus sic stantibus 4. Teoria da imprevisão no Direito do Trabalho 5. Caso fortuito e força maior 6. A responsabilidade do Estado legislador 7. Factum principis 8. Considerações finais 9. Referências bibliográficas 1. Introdução Este trabalho monográfico tem por objetivo principal demonstrar posições teóricas sobre a imprevisão, frente ao Direito do Trabalho, traçando o confronto entre sua aplicabilidade no Direito Civil, do Consumidor e no Direito do Trabalho, sendo abordado, neste último, a execução prática da teoria no contrato de trabalho, com os aspectos da responsabilidade do Estado legislador e do factum principis. O conceito da imprevisão está sempre fora das estruturas jurídico-formais da formação do negócio jurídico fundada na autonomia da vontade das partes contratantes. Importa num debate intenso, sem extensão definida, sem termo ou limite. O estudo analisará a teoria da imprevisão diante da qualificação de fato superveniente, imprevisibilidade, irresistibilidade e o desequilíbrio econômico- financeiro de um dos contratantes, abordando a inexistência de concurso direito ou indireto da parte contratante no acontecimento dito como imprevisto. 2. Princípios do direito contratual. Os princípios do direito contratual remontam aos tempos do liberalismo individualista do século XIX, tendo maior expressão no Código Civil francês de 1804, de inspiração napoleônica. Os princípios do direito contratual foram construídos com base em três pilares fundamentais. São eles: a) a autonomia da vontade; b) a supremacia da ordem pública; c) obrigatoriedade das convenções ou pacta sunt servanda. A evolução do direito aplicado ao regime contratual passou a receber influência fundamental do chamado dirigismo contratual, que limitou a autonomia da vontade dos contratantes por meio de normas legislativas que estabelecem condições contratuais mínimas. A liberdade contratual, não deixou de ser a viga-mestra do direito contratual. As regras de ordem pública e interesse social é que interferir na autonomia da vontade, dando assim, relevância ao interesse coletividade em contraponto ao interesse do particular. Tratando do tema ARNOLDO WALD assim expõe: Em tese, a liberdade contratual só sofre restrições em virtude da ordem pública, que representa a projeção do interesse social nas relações interindividuais. O ius cogens, o direito imperativo defende os bons costumes e a estrutura social, econômica e política da comunidade. Em determinada fase, a ingerência da ordem pública em relação aos contratos se fazia sentir pelo combate à usura, proibindo as leis medievais as diversas formas de agiotagem[ii]. Outros princípios, entretanto, agregaram-se ao direito contratual, por imposição dos tempos e conseqüente evolução das relações jurídicas. Assim é que, hoje, os princípios da relatividade dos efeitos do contrato e da boa-fé são tidos como de substancial importância no trato das relações contratuais. O princípio da autonomia da vontade significa a faculdade que as partes têm de livremente convencionar. Outorga às partes a liberdade na estipulação de cláusulas destinadas a regular os seus interesses. Tal liberdade contratual é, portanto, expressão nuclear do princípio da autonomia da vontade, verificada desde o individualismo originário do Código Napoleônico de 1804. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO explica o princípio da autonomia da vontade dos contratantes com “ampla liberdade para estipular o que lhes convenha, fazendo assim do contrato verdadeira norma jurídica, já que o mesmo faz lei entre as partes”[iii]. A liberdade de contratar distingue-se da liberdade contratual. A primeira é a faculdade de realizar ou não determinado contrato, enquanto a segunda é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. O conceito de força obrigatória dos contratos, adotado como princípio, decorre do pacta sunt servanda. Importa na obrigatoriedade do cumprimento do que as partes estipulam no contrato, de forma que o descumprimento submete o patrimônio do devedor a pronta execução. Acerca da autonomia da vontade e do princípio de força obrigatória dos contratos ALEXANDRE AGRA BELMONTE empresta a seguinte interpretação: Norteiam os contratos os seguintes princípios: a) o da autonomia da vontade, que significa a liberdade que têm as partes na estipulação de normas destinadas a regular os seus interesses; b) o da força obrigatória, posto que o contrato faz lei entre as partes quanto ao que convencionaram: pacta sunt servanda, levando assim, como conseqüência, aos princípios da irretratabilidade (nenhuma das partes pode, arbitrariamente, desfazê-lo) e da intangibilidade (inalterabilidade, não admitindo, de ordinário, modificações sem o consentimento da parte contrária) [iv]. A liberdade contratual pode sofrer restrições do Estado, que intervem no domínio econômico, de modo a resguardar a supremacia do interesse público. Tal intervenção objetiva a preservação do equilíbrio social e econômico da coletividade. Trata-se de manifestação do dirigismo contratual. A supremacia do interesse público importa na vedação de ajustes contrários à moral, à ordem pública e aos bons costumes. A celebração do contrato deve respeitar os ditames da ordem pública, da segurança da coletividade, do equilíbrio patrimonial e do bem comum. O Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei nº. 8.078/90, traça nítida supremacia do interesse público e do dirigismo contratual, elencando inúmeras cláusulas contratuais consideradas abusivas, nos artigos 51, 52, e 53, cuja violação importa em nulidade pleno jure. Assim o Estado passa a desempenhar a função de coibir os exageros da liberdade contratual, mantendo a salvo os hipossuficientes de abusos de poder e buscando o equilíbrio social. A aplicação dos princípios não destrói a liberdade de contratar ou própria liberdade contratual. A autonomia volitiva dos contratantes continua sempre constituirá a base do direito contratual. Evidentemente não pode a liberdade contratual ser utilizada para locupletamento indevido. 3. Teoria da Imprevisão – cláusula ínsita rebus sic stantibus A força obrigatória dos contratos não pode ser entendida em termos absolutos. O caso fortuito ou força maior, verificados após a contratação, exigirá ajuste na avença. A teoria da imprevisão é a ínsita cláusula rebus sic stantibus que constitui a relativização do princípio pacta sunt servanda. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, assim retrata a teoria da imprevisão: Revisão dos contratos – Acentua-se, contudo, modernamente, um movimento de revisão do contrato pelo juiz; conforme as circunstâncias, pode este, fundando-se em superiores princípios de direito, boa-fé, comum intenção das partes, amparo do fraco contra o forte, interesse coletivo, afastar aquela regra, até agora tradicional e imperativa.[v] Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery prelecionam que qualquer avença pode ser definida como uma "operação jurídico-econômica que visa a garantir a ambas as partes o sucesso de suas lidimas pretensões. Não se identifica, em nenhuma hipótese, como mecanismo estratégico de que se poderia valer uma das partes para oprimir ou tirar proveito excessivo de outra."[vi] Portanto, não se pode tratar de forma absoluta o pacta sunt servanda pois não vigora em nosso ordenamento o princípio de intangibilidade ou imutabilidade dos contratos. Confronto com o pacta sunt servanda A aplicação da teoria da imprevisão depende da co-existência de (a) fato superveniente; (b) imprevisibilidade; (c) irresistibilidade; (d) inexistência de concurso direto ou indireto no acontecimento e (e) o desequilíbrio econômico-financeiro de um dos contratantes. O princípio pacta sunt servanda deve ser interpretado de acordo com a realidade sócio-econômica. A interpretação literal da lei cede espaço à realização do justo. O interprete do contrato deve ser o crítico da lei e do fato social. A alteração do estado de fato, torna inaplicável a vontade contratual manifestada, posto que emitida em atenção às circunstâncias existentes no momento da formação do contrato. Nas palavras de ORLANDO GOMES, se pudessem as partes "prever os acontecimentos que provocaram a alteração fundamental da circunstância, outra seria a declaração de vontade.”[vii]. MÁRCIO KLANG expressa: Assim, em contratos sinalagmáticos de execução diferida no tempo, ou seja, quando as partes celebram um acordo em dado momento, para que o comportamento acordado seja realizado em outra ocasião, a ocorrência de acontecimentos imprevisíveis e desvinculados da vontade das partes, que tornem muito difícil ou excessivamente onerosa a prestação, o comportamento de um dos contratantes facultará à parte prejudicada pretender a revisão judicial das cláusulas contratuais, com o fim de ajustá-la à nova realidade, e restabelecer o equilíbrio contratual. Tal revisão deverá ser sempre judicial, a não ser que as partes adotem-na espontaneamente. [viii] A teoria da imprevisão foi objeto de jurisprudência do Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, de 1967, que continua atual, não obstante contar quase três décadas: A adoção da cláusula rebus sic stantibus pressupõe a ocorrência de acontecimentos excepcionais e imprevistos de que resulte, para um dos contratantes, um ônus insuportável, considerada a condição especial do negócio a que está vinculado. Cada caso deverá pois, ser examinado em si mesmo, no tempo e no espaço, sob o critério da equidade.[ix] A cláusula rebus sic stantibus cumpre ser considerada para que a inesperada onerosidade excessiva não venha a causar prejuízo para um dos contratantes, desequilibrando o ajuste, nos moldes em que foi inicialmente acordado entre as partes. A onerosidade excessiva recebeu dispositivos expressos no novo Código Civil[x], conquanto já fosse prevista no Código de Defesa do Consumidor[xi]. A onerosidade deve ser excessiva. Não basta uma pequena redução da margem operacional. Deve afetar substancialmente o equilíbrio financeiro-econômico do contrato em desfavor de uma das partes contratantes. Não se trata de qualquer onerosidade excessiva. Deve ser a superveniente e decorrente de acontecimento extraordinário e imprevisível. O desequilíbrio contratual que acarrete onerosidade excessiva deve assim considerado em relação às condições do ajuste no momento da celebração do contrato. A prestação de uma das partes deve “se tornar” excessivamente onerosa. Se o contrato já nasceu nesta condição, a aplicação da teoria de imprevisão não terá lugar. Abordando o tema Maria Helena Diniz, discorre: A onerosidade excessiva, oriunda de acontecimento extraordinário e imprevisível, que dificulta o adimplemento da obrigação de uma das partes, é, agora, motivo legal de resolução contratual, por se considerar subtendida a cláusula rebus sic stantibus, que corresponde à fórmula de que, nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório ficará subordinado, a todo tempo, ao estado de fato vigente à época de sua estipulação. [xii] O requisito da imprevisibilidade foi mantido no Código Civil de 2002, que preferiu não adotar a teoria objetiva da onerosidade excessiva para solução dos conflitos relativos à revisão de cláusula contratual. Os críticos do requisito da imprevisibilidade sustentam que a mesma “não se coaduna com os tempos modernos, de contratação de massa, de celeridade dos acontecimentos, muitas das vezes inovadores e mesmo impensados.”[xiii] 4. Teoria da imprevisão no Direito do Trabalho. As disposições do Código Civil são aplicáveis aos contratos de trabalho pela via do parágrafo único do artigo 8º. da CLT: O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste. A aplicação da teoria da imprevisão no âmbito da relação de emprego deve observar as regras de toda e qualquer aplicação subsidiária do Direito Comum, ou seja, compatibilizando com os princípios gerais do Direito do Trabalho. Assim, a teoria da imprevisão não está para o Direito do Trabalho como está para o Direito Civil, na medida em que é ilegítima, em termos jurídicos, a transferência do risco da atividade econômica ao empregado, pois vigora na relação de emprego o princípio da alteridade. Como regra, torna-se descabida a invocação da tese de onerosidade excessiva na tentativa de justificar o não cumprimento tempestivo pelo empregador de suas obrigações trabalhistas. As hipóteses de aplicação da teoria da imprevisão, no Direito do Trabalho, devem ser tratadas como exceção e observando o princípio numerus clausus. Consoante os ensinamentos de JOSÉ CÉSAR OLIVEIRA, “para nossa legislação trabalhista, a força maior não é excludente de responsabilidade, podendo, apenas, atenua-la nas hipóteses previstas nos incisos II e III do art. 502 da CLT.”[xiv] A jurisprudência, aqui apresentada por meio de julgados de Minas Gerais, traduz a idéia de que a força maior não pode ser invocada pelo empregador, a quem cabe os efeitos decorrentes do risco do negócio. FORÇA MAIOR - DESCARACTERIZAÇÃO – Não constitui força empresariais em maior o encerramento decorrência da das atividades obrigatoriedade de desocupação de estabelecimento, aliada ao alto valor do aluguel que lhe era cobrado. A situação invocada liga-se ao risco a que todo empreendimento se expõe.[xv] RISCO DO NEGÓCIO - O risco do negócio, em face do artigo 2º da CLT, pertence tão-somente à empregadora, sendo vedada a pretensão de invertê-la para a reclamante. ÊXODO ESCOLAR - O êxodo escolar não consiste em força maior, porque está dentro da previsão da escola e que se repete anualmente. Assim, o êxodo escolar não enseja a redução da carga horária da professora, porquanto o risco da atividade corre por conta exclusiva da empregadora. [...].[xvi] No âmbito da legislação trabalhista, entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente (art. 501, caput, CLT). Art. 501 - Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente. § 1º - A imprevidência do empregador exclui a razão de força maior. § 2º - À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo. Art. 502 - Ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma seguinte: I - sendo estável, nos termos dos arts. 477 e 478; II - não tendo direito à estabilidade, metade da que seria devida em caso de rescisão sem justa causa; III - havendo contrato por prazo determinado, aquela a que se refere o art. 479 desta Lei, reduzida igualmente à metade. Art. 503 - É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região. Parágrafo único - Cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido o restabelecimento dos salários reduzidos. Art. 504 - Comprovada a falsa alegação do motivo de força maior, é garantida a reintegração aos empregados estáveis, e aos não-estáveis o complemento da indenização já percebida, assegurado a ambos o pagamento da remuneração atrasada. A configuração da "força maior" trabalhista, adotou a teoria subjetivista do Direito Civil, ou seja, exige os seguintes requisitos: CLT, 501 caput: Irresistibilidade Imprevisibilidade inexistência de concurso direto ou indireto do empregador CLT, 501 § 2°: a afetação do equilíbrio econômico financeiro do empregador A aplicação direta, pelo empregador do art. 503 da CLT não mais é admitida em face da garantia de intangibilidade dos salários prevista no art. 7° inciso VI da Constituição Federal. A redução salarial, pela via da negociação coletiva, terá como objeto da negociação as modificações das condições econômico-financeiras das empresas que constituem a categoria econômica em vista da manutenção de empregos. Certamente o fundamento será o rebus sic stantibus, pelo ajuste coletivo, sem entretanto a possibilidade desta revisão contratual ser obtida na seara judicial: CF. art. 7° VI – Irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo Com efeito, ainda que presentes os elementos caracterizadores da força maior de que tratam os arts. 501 a 503 da CLT, não terá o empregador meios de sustentar o a aplicação da teoria da imprevisão, senão na esfera da negociação coletiva extrajudicial. JOSÉ CÉSAR OLIVEIRA explana que “no atual ordenamento jurídico do País, só é possível a redução de salários se expressamente autorizada em acordo ou convenção coletiva de trabalho, não mais havendo que se falar em força maior.”[xvii] A categoria que se julgar impedida do cumprimento da norma coletiva deve valer-se da possibilidade da ação revisional, tendo em vista a teoria da imprevisão adotada pela legislação trabalhista, autorizada pelos arts. 615, c/c os artigos 873 a 875, da CLT. Se faz necessário ressalvar, entretanto, que se o dissídio coletivo revisional, fundado na teoria da imprevisão, tiver por objeto a redução salarial, encontrará óbice no teor do art. 7° inciso VI da CF, que remete a possibilidade de redução salarial apenas para a esfera dos ajustes coletivos extrajudiciais. A teoria da imprevisão não pode ser deduzida em defesa da ação de cumprimento. A este respeito, transcreve-se o entendimento jurisprudencial: SENTENÇA NORMATIVA - NOVA POLÍTICA SALARIAL - REVISÃO EM SEDE DE AÇÃO DE CUMPRIMENTO - INADMISSIBILIDADE. A Teoria da Imprevisão ou a cláusula rebus sic stantibus, pode mitigar o princípio pacta sunt sevanda, como fundamento para alterar a intangibilidade dos ajustes. No entanto, no Direito Coletivo do Trabalho, é necessário para isso pronunciamento judicial, em sede de dissídio coletivo revisional, na ausência de acordo entre as partes (artigos 615 e 873, consolidados). Se as condições estabelecidas na norma coletiva se tornaram injustas ou não, a questão não pode ser apreciada pelo juízo de 1º. grau, em sede de ação de cumprimento, face, ademais, a vedação expressa contida no parágrafo único do artigo 872 da CLT.[xviii] 5. Caso fortuito e força maior. Ordinariamente distingue-se a "força maior" do "caso fortuito" como sendo o primeiro, decorrente de atos humanos e o segundo, proveniente de fenômenos naturais. No Direito Civil o legislador equiparou os institutos "força maior" e "caso fortuito" quanto a seus efeitos, tornando de somenos importância a distinção doutrinária. No âmbito do Direito do Trabalho o instituto da "força maior" é definido pelo art. 501, da Consolidação das Leis Trabalhistas, como todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente. Cunha Gonçalves, Valentin Carrion e Mozart Victor Russomano, abordam a conceituação trabalhista do "caso fortuito" com a "força maior", de forma que tanto podem se originar de fenômenos naturais como de atos humanos, privados ou não. No caso fortuito e na força maior há sempre um acidente que produz prejuízo. Na força maior conhece-se a causa que dá origem ao evento, pois se trata de um fato da natureza, como, p. ex., raio que provoca incêndio; inundação que danifica produtos; geada que estraga a lavoura, implicando uma idéia de relatividade, já que a força do acontecimento é maior do que a suposta, devendo-se fazer uma consideração prévia do estado do sujeito e das circunstância espaço-temporais, para que se caracterize como eficácia liberatória de responsabilidade civil. Segundo Maria Helena Diniz: No caso fortuito (RT, 431:74, 346:336, 356:522, 399:370, 453:92) o acidente que gera o dano advém de: (1) causa desconhecida, como o cabo elétrico aéreo que se rompe e cai sobre fios telefônicos, causando incêndio, a explosão de caldeira de usina, ou a quebra de peça de máquina em funcionamento provocando morte; ou (2) fato de terceiro como greve, motim, mudança de governo, colocação do bem fora do comércio, que cause graves acidentes ou danos devido à impossibilidade do cumprimento de certas obrigações. Sendo absoluto, por ser totalmente imprevisível ou irreconhecível com alguma diligência, de modo que não se poderia cogitar da responsabilidade do sujeito, acarreta das obrigações, salvo se se convencionou pagá-los ou se a lei lhe impõe esse dever, como nos casos de responsabilidade objetiva.[xix] Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante[xx], ensinam que "em ambos os casos, existe um "acontecimento conhecido". Na força maior, atribui-se tal acontecimento a um fenômeno da natureza. Enquanto, no caso fortuito, a um fato ou ato alheio a vontade das partes. Alguns criticam a distinção feita entre caso fortuito e força maior, pois entendem que inexistem motivos a justificar uma nomenclatura diferenciada. Outros, por sua vez, entendem que todos esses acontecimentos são casos fortuitos, e distinguem fortuito interno (ligado aos atos humanos) e fortuito externo (força maior, Act of God)". 6. A responsabilidade do Estado legislador. A responsabilidade trabalhista pode ser analisada pela ótica da responsabilidade do Estado legislador. Acerca da função de legislação, ausculte-se a lição de José dos Santos Carvalho Filho: A função de legislar constitui uma das atividades estruturais do Estado moderno, senão a mais relevante, tendo em conta que consubstancia a própria criação do direito (ius novum). Além do mais, a função legislativa transcende à mera materialização das leis para alcançar o status que espelha da soberania estatal, vale dizer, da autodeterminação dos Estados com vistas à instituição das normas que eles próprios entendem necessárias à disciplina social. [xxi] Apesar de algumas críticas e teses opostas, muitos têm defendido a responsabilidade do Estado pelo exercício da atividade legislativa. A análise deve levar em conta três situações distintas: danos decorrentes de lei nula, inconstitucional ou invalida ato regulamentar danoso ato legislativo A declaração de inconstitucionalidade ou a não validade da lei é requisito essencial da responsabilidade do Estado nesses casos. A este respeito aponta Amaro Cavalcanti: Uma vez apurado que, de execução de uma lei nula, inconstitucional ou inválida, resultou lesão ao direito individual, já não seria lícito afirmar, ao menos de modo absoluto, que o Estado não deve indenização alguma pelo mal resultante de semelhante ato. Decerto, declarada uma lei inválida ou inconstitucional por decisão judiciária, uma dos efeitos da decisão deve ser logicamente o de obrigar a União, Estado ou Município a reparar o dano causado ao indivíduo, cujo direito fora lesado, quer restituindo-se-lhe aquilo que indevidamente foi exigido, quer satisfazendo-se os prejuízos provadamente sofridos pelo indivíduo com a execução da lei suposta.[xxii] Em relação ao ato regulamentar CRETELLA JÚNIOR ensina: Havendo, no regulamento, alteração ou extinção de direitos, não há regulamento, há abuso do poder regulamentar, invasão de competência do Poder Legislativo, porque o regulamento exorbitou, ultrapassando o terreno em que deveria movimentar-se. Se o regulamento é ilegal ou inconstitucional, se o processo de edição do regulamento se desvia das normas traçadas para seu nascimento válido, ou se contém disposições conflitantes com o texto legal-matriz, o regulamento é passível de revisão judicial, para que seus efeitos danosos não afetem o patrimônio dos administrados. Regulamento defeituoso, na forma ou no conteúdo, pode causar danos e, neste caso, responde o Estado pelos prejuízos advindos; regulamento imune de vícios, mas despido de caráter de generalidade, acabando por atingir uma só pessoa, física ou jurídica, também possibilita a responsabilidade da Administração, obrigada a ressarcir os danos ocasionados.[xxiii] Quanto ao ato legislativo, tem-se que, em certas situações, a lei pode causar dano injusto ao administrado. Contudo, na esteira de CAHALI, "no plano do Direito comparado, as condições de existência de uma responsabilidade pelo fato da lei estão longe de uma fixação definitiva. No Direito brasileiro, colocando in genere o problema da responsabilidade do Estado pelo dano decorrente do ato legislativo, posições discrepantes grassam na doutrina".[xxiv] Apesar dos defensores da tese de irresponsabilidade do Estado no caso de ato legislativo, CRETELLA JÚNIOR, entre outros, entende que "responde o Estado sempre por atos danosos, causados que por lei inconstitucional, quer por lei constitucional".[xxv] 7. Factum principis. Maria Helena Diniz sintetiza o significado da expressão (fato do príncipe): 1. Direito administrativo. a) Qualquer medida ou ato da Administração Pública que repercuta no contrato administrativo, tornando mais onerosa a situação daquele que contratou com o Estado. Tal fato rompe o equilíbrio econômico-contratual, podendo gerar para o Poder Público o dever de indenizar; b) norma geral emanada de autoridade pública que incide no âmbito jurídico do co-contratante, causando-lhe dano integralmente ressarcível pelo Estado (Marienhoff); c) caso fortuito decorrente de ordem governamental (Othon Sidou). 2. Direito do trabalho. Ato governamental federal, estadual ou municipal que, imprevisivelmente, paralisa temporária ou definitivamente o trabalho, causando danos ao empregador, que, então, pode pleitear indenização do governo.[xxvi] O legislador trabalhista prevê a responsabilidade pelo pagamento de indenização pelo governo responsável, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade (art. 486, caput, CLT). Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. (Redação dada pela Lei nº 1.530, de 26.12.1951) § 1º - Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria. (Parágrafo incluído pelo Decreto-lei nº 6.110, de 16.12.1943) § 2º - Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação. (Parágrafo incluído pela Lei nº 1.530, de 26.12.1951) § 3º - Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum. (Parágrafo incluído pela Lei nº 1.530, de 26.12.1951) Segundo JOSÉ CÉSAR DE OLIVEIRA, “para se caracterizar o factum principis, no plano trabalhista, é necessário: 1) imprevisibilidade do evento; 2) sua irresistibilidade; 3) inexistência de concurso direto ou indireto do empregador no acontecimento; 4) necessidade de que o evento afete ou seja suscetível de afetar substancialmente a situação econômica-financeira da empresa (CLT, art. 501 e parágrafos)"[xxvii]. Todavia, VALENTIN CARRION afasta o factum principis sustentando que "a prática revela dois aspectos: se o ato da autoridade é motivado por comportamento ilícito ou irregular da empresa, a culpa e as sanções lhe são atribuídas por inteiro; se seu proceder foi regular, a jurisprudência entende que a cessão da atividade faz parte do risco empresarial e também isenta o poder público do encargo; o temor de longa duração dos processos judiciais contra a Fazenda Pública também responde por essa tendência dos julgados"[xxviii]. 8. Considerações finais. Em verdade, os princípios da autonomia da vontade, da supremacia do interesse público e da força obrigatória dos contratos, entrelaçam-se sempre no intuito de buscar o contrato justo, assegurando equilíbrio às partes. Com estes princípios convive a teoria da imprevisão, que invoca polêmicas, discussões filosóficas e, sobretudo, um posicionamento acerca da manutenção da garantia do atendimento do contrato à efetiva pretensão das partes contratantes, no momento de sua celebração, evitando que fatos posteriores importem em sobrecarregar uma das partes em favor do proveito excessivo da outra. Afinal, a aplicação da teoria da imprevisão, não objetiva outra coisa, senão a busca da igualdade entre as partes contratantes, o que desde os primórdios ensinamentos de ARISTÓTELES, constitui princípio fundamental de todas as relações jurídicas, pressupondo dar a cada um aquilo que faz jus. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARROS, Alice Monteiro de (Coord.). Curso de Direito do Trabalho. Estudos em Memória de Célio Goyata. São Paulo: LTr., 1997. BELMONTE, Alexandre Agra. Instituições Civis No Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 1996. CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 30ª edição, 2005. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 6ª edição, 2000. CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a Obrigação de Indenizar. São Paulo: Saraiva, 1980 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. –––––––––––––. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2003. –––––––––––––. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2001. GOMES, Orlando e GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1995. GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1986. JORGE NETO, Francisco Ferreira e CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Manual de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003. JORGE NETO, Francisco Ferreira. CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Responsabilidade e as Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 1998. KLANG, Márcio. A Teoria da Imprevisão e a Revisão dos Contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. MARANHÃO, Délio e CARVALHO, Luiz Inácio B. Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: FGV, 1992. MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2001. MELLO, Cleyson de Moraes e FRAGA, Thelma Araújo Esteves (org.). O Novo Código Civil Comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade: Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. OLIVEIRA, Carlos Santos de. O Novo Código Civil Comentado. Organizadores MELLO, Cleyson de Moraes, FRAGA Thelma Araújo Esteves. Ana Lúcia Porto de Barros et al. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003.. WALD, Arnoldo. Obrigações e Contratos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. [i] Professor da UVA, Coordenador-Geral de Prática Jurídica da UVA, Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. [ii] WALD, Arnoldo. Obrigações e Contratos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. [iii] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. [iv] BELMONTE, Alexandre Agra. Instituições Civis No Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. [v] MONTEIRO, Washington de Barros. loc. cit. [vi] NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade: Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 358 [vii] GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 42 [viii] KLANG, Márcio. A Teoria da Imprevisão e a Revisão dos Contratos. São Paulo: RT, 1983, pág. 17 [ix] Ac. da 5ª Câmara Cível do TACSP, de 10/03/1967 in RT 387/177[ix] [x] Código Civil: Da Resolução por Onerosidade Excessiva: Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. [xi] Código de Defesa do Consumidor: CDC 6°, V - A modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. [xii] DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 336 [xiii] OLIVEIRA, Carlos Santos de. O Novo Código Civil Comentado. Organizadores MELLO, Cleyson de Moraes, FRAGA Thelma Araújo Esteves. Ana Lúcia Porto de Barros et al. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003. vol. 1. pág. 366. [xiv] OLIVEIRA, José César. In BARROS, Alice Monteiro de - Coordenadora. Curso de Direito do Trabalho Estudos em Memória de Célio Goyata. São Paulo: LTr., 1997. São Paulo: LTr, 1997, p. 476. [xv] Acórdão TRT 3ª Reg. – 2ª Turma RO 1539/92 Rel. Juíza Alice Monteiro de Barros pub. DJMG 30.7.1993 [xvi] Acórdão TRT 3ª Reg. 4ª Turma RO 6244/90 Rel. Juiz Dárcio Guimarães de Andrade pub. DJMG 07.6.1991 [xvii] OLIVEIRA, José César. Op. cit. Pág. 477. [xviii] Acórdão nº. 2.219/92 TRT 15ª. Região - 2ª. Turma - RO nº. 2.932/91 - Rel.: Juiz Antônio Bosco da Fonseca [xix] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 10ª edição, 1996, p. 80. [xx] JORGE NETO, Francisco Ferreira. CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Responsabilidade e as Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 1998, p. 180. [xxi] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 6ª edição, 2000, p. 410. [xxii] CAVALCANTI, Amaro apud Yussef Said Cahali. Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2ª edição, 1996, p. 654. [xxiii] CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a Obrigação de Indenizar. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 293 [xxiv] CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2ª edição, 1996, p. 664. [xxv] CRETELLA JÚNIOR, José. loc. cit., p. 286 [xxvi] DINIZ, Maria Helena, Dicionário Jurídico, São Paulo, Saraiva, p. 520. [xxvii] OLIVEIRA, José César. In BARROS, Alice Monteiro de - Coordenadora. loc. cit. p. 485. [xxviii] CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 30ª edição, 2005, p. 387.