TRICOLOGIA APLICADA AO ESTUDO
DA DIETA DE CARNÍVOROS
Juliana Quadros - UTP
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O estudo da dieta de mamíferos, pós-ingestão, pode ser realizado com base na análise de
conteúdos gastrintestinais e na análise de amostras fecais. A primeira apresenta a
vantagem de ser individual, ou seja, permite o conhecimento da dieta de cada indivíduo
e a comparação da dieta entre classes etárias e sexos diferentes. Além disso, usualmente
os itens alimentares apresentam-se menos digeridos, facilitando a sua identificação e a
estimativa de massa ingerida. Por outro lado, as suas desvantagens referem-se
principalmente ao fato de ser um método, que no caso dos mamíferos, requer a retirada
de indivíduos da população estudada e é limitado a um número menor de unidades
analisadas. Já, o estudo da dieta ou ecologia alimentar com base em amostras fecais traz
as vantagens de não requerer a retirada de indivíduos da população, fornecer um número
maior de unidades para a análise e ser o método com a melhor relação custo-benefício,
considerando os custos de um projeto. Entretanto, nas amostras fecais os itens
alimentares já sofreram todo o processo digestivo e geralmente restam apenas as partes
não digeríveis ou menos digeríveis, tornando a identificação dos itens mais difícil ou até
mesmo impossível, como no caso dos animais de corpo mole (p. ex., anelídeos,
moluscos) ou sem anexos epidérmicos queratinizados (anfíbios). Considerando o
método de análise de amostras fecais para determinação da dieta de carnívoros, duas
questões vêm à tona: a necessidade de identificação da autoria das fezes em nível
específico, ou seja, conhecer quem são os carnívoros que defecaram e a necessidade de
identificação de itens alimentares, usualmente bem digeridos e fragmentados. Na
tentativa de responder à primeira questão, vários métodos de campo e laboratório têm
sido empregados de maneira complementar ou isoladamente. Em campo, a detecção do
odor e local de deposição das fezes, assim como de rastros associados às amostras, pode
guiar o pesquisador na identificação das espécies que defecaram, embora haja certo grau
de subjetividade na caracterização do odor, sobreposições de locais de defecação e
sobreposições de tamanho e forma das pegadas entre as espécies. Nesse útlimo caso, os
pequenos felinos neotropicais simpátricos e sintópicos em áreas de Floresta Atlântica
como Leopardus wiedii, Leopardus tigrinus e Puma yagouaroundi são um bom
exemplo. Em laboratório, a morfologia das fezes, o volume fecal, o maior e o menor
diâmetro e o comprimento das amostras, além da observação de seu conteúdo (itens
alimentares), também podem fornecer pistas sobre a espécie que defecou. Métodos mais
sofisticados de análise laboratorial como a extração, identificação e quantificação de
ácidos biliares e extração e identificação de DNA das células da mucosa intestinal
presentes no muco que reveste as fezes, têm sido aplicados a um número restrito de
espécies e áreas, ou por terem problemas metodológicos não resolvidos, ou por serem
economicamente inviáveis. Contudo, a identificação das espécies que defecaram
também pode ser realizada através da identificação dos pêlos dos próprios carnívoros
presentes em suas fezes. Estes mamíferos arrancam seus pêlos com a língua ou com os
dentes incisivos e acabam ingerindo-os devido ao comportamento de autolimpeza e
manutenção da pelagem, os quais podem ser eliminados nas próprias fezes deixando
uma assinatura da espécie que defecou. Na identificação dos itens alimentares
consumidos é usual a comparação dos fragmentos não digeridos com coleções de
referência e auxílio de especialistas. No caso dos vertebrados, restam nas fezes as
escamas, dentes, ossos e otólitos dos peixes; as escamas, ossos e dentes dos répteis; as
penas, ossos, unhas e bicos das aves; e os pêlos, ossos, unhas, cascos e dentes dos
mamíferos. No caso de invertebrados terrestres, restam fragmentos do exoesqueleto
quitinoso e nos aquáticos, fragmentos do exoesqueleto calcário. Dos frutos, usualmente
restam partes mais lignificadas, como sementes, fibras e cascas. Considerando os
mamíferos consumidos por carnívoros, sua identificação é feita tradicionalmente através
dos dentes encontrados nas amostras e mais recentemente o método de identificação de
pêlos-guarda tem se mostrado uma ferramenta complementar bastante útil. O presente
estudo dedica-se a aplicar o método de determinação dos predadores e presas, através da
identificação de seus pêlos-guarda presentes nas amostras fecais. Para tal, amostras de
fezes de carnívoros terrestres foram coletadas nas trilhas e estradas da Reserva Volta
Velha, Município de Itapoá, Santa Catarina, em 70 expedições mensais entre 1995 e
2001, com duração de dois a quatro dias e totalizando cerca de 15 km percorridos a pé
em cada expedição. Todas as amostras coletadas tiveram o volume total aferido através
do deslocamento do equivalente em água em uma proveta graduada contendo um
volume de água conhecido. Em seguida, as amostras foram secas e triadas, separando os
fragmentos de itens alimentares em grandes grupos. Para os mamíferos consumidos,
foram separados os fragmentos de ossos, dentes, pêlos e eventualmente unhas e cascos.
Para a identificação da espécie de carnívoro que defecou foram utilizados os rastros
associados às amostras no campo, aliados ao volume da amostra e à presença de pêlos
da própria espécie, como detalhado a seguir. Durante o processo de triagem, especial
atenção foi dada à procura macroscópica por pêlos dos predadores. São pêlos evidentes
nas amostras e que se destacam dos demais por serem escassos e diferentes do maior
volume de pêlos das presas. Todos os pêlos dos carnívoros e uma sub amostra de até 20
pêlos-guarda das presas foram preparados conforme o protocolo de preparação de
lâminas para identificação em microscopia óptica: lâminas para a visualização da
medula dos pêlos foram preparadas através da diafanização dos mesmos em água
oxigenada comercial 30 volumes por 80 minutos e lâminas para visualização da cutícula
dos pêlos, confeccionadas imprimindo a superfície dos pêlos sobre uma fina camada de
esmalte para unhas incolor previamente seca por 15 a 20 minutos. Para a garantia na
identificação dos pêlos das presas, o protocolo foi repetido três vezes para cada amostra.
A identificação de amostras fecais dos carnívoros de pequeno e médio porte através de
pegadas associadas mostrou-se inviável no presente estudo porque nenhuma das fezes
coletadas foi observada em campo com pegadas associadas. Esse fato está
possivelmente relacionado ao substrato de deposição das fezes que muitas vezes não é
favorável ao registro das pegadas devido à presença da serapilheira, às chuvas
freqüentes na região de estudo e à periodicidade e duração das visitas a campo que
dificultou a coleta de amostras recentes (apenas 9,6%). Vinte e um por cento das
amostras de fezes de carnívoros coletadas apresentaram pêlos de predadores. As
espécies de carnívoros identificadas foram a irara (Eira barbara), o furão (Galictis
cuja), o gato mourisco (Puma yagouaroundi), o gato-do-mato- pequeno (Leopardus
tigrinus), o gato maracajá (Leopardus wiedii), o quati (Nasua nasua), e o mão pelada
(Procyon cancrivorus). A mensuração dos volumes fecais médios (vm) não foi útil às
identificações pois mostrou semelhanças interespecíficas: Eira barbara (n=1), v = 9 ml;
Galictis cuja (n=7), vm = 8,6 ml; Puma yagouaroundi (n=12), vm = 12,5 ml; Leopardus
tigrinus (n=20), vm = 12,9 ml; L. wiedii (n=1), v = 22 ml; Nasua nasua (n=1), v = 6 ml
e Procyon cancrivorus (n=1), v = 9 ml. Ainda nesse sentido, Puma yagouaroundi e L.
tigrinus mostraram grande amplitude de volume fecal, 3 ml a 37 ml e 5 ml a 23 ml,
respectivamente. Foram constatadas 12 espécies de mamíferos consumidas, listadas a
seguir: os roedores Akodon cursor, Necromys lasiurus, Delomys dorsalis, Holochilus
brasiliensis, Nectomys squamipes, Oecomys trinitatis, Oligoryzomys nigripes, Oryzomys
sp. e Juliomys pictipes; e os marsupiais Lutreolina crassicaudata, Monodelphis iheringi
e Philander frenatus. A identificação do mamífero consumido não foi possível em 25
amostras devido à escassez de pêlos-guarda ou porque a microestrutura da medula
estava danificada a ponto de impedir a caracterização do padrão medular. É importante
ressaltar que com a triplicata do protocolo de preparação e análise de lâminas com pêlos
de presas para cada amostra, os resultados foram freqüentemente diferentes e
complementares entre as réplicas, mostrando a importância das mesmas na melhora
qualitativa e quantitativa das identificações. No presente estudo, a identificação
microscópica dos pêlos dos carnívoros forneceu um diagnóstico seguro das espécies que
defecaram, o qual só poderia ser obtido de outra forma com técnicas com mais alto
custo; também permitiu a separação de espécies distintas de mamíferos consumidos,
embora seus pêlos fossem macroscopicamente semelhantes, evidenciando a importância
da análise microscópica.
Palavras-chave: dieta de carnívoros; escatologia; identificação de pêlos; tricologia.
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