UTAD / PPES II Mestrado em Promoção / Educação para a Saúde ALGUMAS CRENÇAS E PRÁTICAS MÉDICAS TRADICIONAIS DE UMA POPULAÇÃO RURAL TRANSMONTANA: ANÁLISE DAS SUAS IMPLICAÇÕES NA PROCURA E NA PRESTAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE Trabalho elaborado no âmbito do Módulo Saúde e Doença nas Populações O MESTRANDO OCTÁVIO VALDEMAR GONÇALVES VILA REAL 1998 ÍNDICE MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES ÍNDICE 1. INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO ................................................................. Pág. 1 2. DIFERENTES ABORDAGENS NO ESTUDO DA SAÚDE E DA DOENÇA ................................... “ 7 3. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS ............................................................................................... “ 13 4. CRENÇAS E PRÁTICAS MÉDICAS TRADICIONAIS DE UMA POPULAÇÃO RURAL TRANSMONTANA: 4.1 CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA ............................................................. “ 19 4.2 CRENÇAS MÉDICAS ............................................................................................ “ 23 4.3 RECURSOS E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS ............................................................. “ 29 4.5 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS ............................................................................. “ 34 5. ANÁLISE DAS IMPLICAÇÕES DAS CRENÇAS E DAS PRÁTICAS MÉDICAS TRADICIONAIS NA PROCURA E NA PRESTAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE .............................................. “ 37 6. CONCLUSÃO .................................................................................................................. “ 41 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................. “ 43 INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 1. INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO O presente trabalho pretende constituir-se como um esboço relativamente consistente de antropologia e de sociologia médicas, carreando alguns dos contributos mais decisivos das ciências sociais para a compreensão e a problematização das práticas clínicas inerentes aos sistemas de saúde ocidentais, bem como dos princípios e das concepções que lhes estão subjacentes e as enformam. Neste sentido, devemos sublinhar, desde já, a circunstância do nosso trabalho se ancorar preponderantemente na literatura inglesa e americana, a qual corporiza uma notável tradição de reflexão e debate sobre as temáticas que aqui nos ocupam. Destacaríamos, a este propósito, as obras de Eisenberg e Kleinman (1981), Fitzpatrick et al. (1984), Good (1996) e Morley e Wallis (1980). Em contrapartida, salientamos, com algum confrangimento, a inexistência de literatura em português e portuguesa, publicada, no domínio da antropologia e da sociologia médicas, de que os nossos périplos infrutíferos pelas livrarias e pelas bibliotecas da capital portuguesa constituem a expressão mais penosa. Pensamos que esta situação se ficará a dever, por um lado, a um certo subdesenvolvimento das ciências sociais em Portugal, quando comparado com a relevância que as mesmas assumem no panorama cultural e científico norte-americano, e, por outro lado, à confluência que resulta do poder da classe médica com a autoridade do paradigma biomédico, que torna as práticas médicas deles decorrentes domínios intocáveis e de abordagem quase interdita. 1 INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Procuramos, ao longo do trabalho, precaver-nos da tentação de enveredarmos por qualquer um dos três caminhos que nos parecem ser habitualmente repisados na abordagem do que consideramos ser a medicina tradicional, conceito que discutiremos mais adiante. Em primeiro lugar, é nossa intenção contrariar aquilo que autores como Colson e Selby, Landy e Lock (1984, 1986 e 1986, cit. in Nunes, 1997), constataram ser a pobreza teórica da antropologia médica, mais vocacionada para a recolha e a apresentação de dados empíricos e concomitantemente mais deficitária quer na reflexão sobre os seus pressupostos, processos e metodologias, quer no enquadramento teórico global desses mesmos dados. Em segundo lugar, a referência que faremos a algumas crenças e práticas médicas tradicionais não visa objectivos de divulgação e promoção das mesmas (a este respeito existe um acervo de publicações receituárias no âmbito das medicinas alternativas extraordinariamente prolixo), nem persegue meras finalidades de descoberta, preservação e exploração do exótico, tão do agrado de alguns antropólogos e da curiosidade do público em geral. Por último, evitaremos abordar a medicina tradicional a partir da pretensa racionalidade e objectividade do paradigma médico ocidental, o que redundaria, como refere Morley (1980), na consideração das suas crenças e das suas práticas como não científicas, pré-científicas e pré-lógicas, quando não mesmo arcaicas e destituídas de qualquer relevância para a medicina moderna e para a saúde das populações. Esta avaliação pode mesmo chegar ao ponto de as ver como ameaçadoras ou caricatas (Barnes, 1974, cit. in Morley, 1980). De igual modo, não partilhamos de uma visão da antropologia médica que, com base no designado ‘paradigma etnomédico’ (Nunes, 1997: p. 18) a restrinja ao estudo das medicinas ditas primitivas e tradicionais, sem levar em consideração os contextos médicos modernos e 2 INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES sem proceder à análise das implicações de todos eles para a prática clínica e para a procura e a prestação de cuidados de saúde. A estruturação do trabalho decorrerá das preocupações expressas, traduzindo-se num desenvolvimento tripartido, de molde a contemplar-se o espectro geral dos objectivos que o mesmo visa atingir. Assim sendo, a primeira parte é constituída pelos Pontos 2 e 3, nos quais se empreende uma revisão bibliográfica que nos permita caracterizar os diferentes modelos de abordagem da saúde e da doença (ponto 2), bem como proceder a um levantamento exaustivo da etiologia da doença e da enfermidade no contexto de distintos enfoques das mesmas (ponto 3). Pretende-se, por um lado, mostrar as limitações do modelo biomédico e da concepção de doença que lhe é inerente, enfatizando os contributos das novas abordagens para a reformulação da antropologia médica, da própria medicina e, consequentemente do entendimento da enfermidade, merecendo especial destaque neste empreendimento o modelo desenvolvido por Good (1996 e Good & Good, 1981). Por outro lado, é nosso objectivo mostrar que a etiologia das enfermidades é uma matéria complexa e diversificada que excede os limites estreitos da causalidade biomédica, o que nos permitirá, igualmente, enquadrar o material encontrado na nossa investigação neste domínio particular. A segunda parte do trabalho, que compreende o Ponto 4 nos seus diversos sub-pontos, é constituída pela apresentação dos dados por nós recolhidos no decurso da pesquisa empreendida. Finalmente, a terceira parte (Ponto 5) traduz o momento crucial de todo o trabalho, uma vez que aí se procederá, com base na articulação dos dados da investigação e das considerações da literatura, à análise das implicações que as crenças e as práticas culturais de 3 INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES natureza médica têm ao nível dos cuidados de saúde e da relação entre os profissionais de saúde e os pacientes. Uma vez que existem alguns termos e expressões que assumem uma indiscutível centralidade ao longo da nossa exposição, cuja utilização num ou noutro sentido já denota, por si só, todo um conjunto de concepções subjacentes, torna-se imperativo empreendermos, desde já, uma revisão dos mesmos, clarificando as nossas opções, sob pena de arquitectarmos um discurso cientificamente descontextualizado e, porventura, equívoco. Referimo-nos concretamente às noções de ‘medicina tradicional’ em articulação e diferenciação com outros sistemas médicos, bem como ao sentido a atribuir e à utilização a fazer dos termos ‘enfermidade’ (illness) e ‘doença’ (disease). Partimos do pressuposto defendido por Young (1976, cit. in Morley, 1980), segundo o qual a medicina, no seu sentido etnomédico, não se confina apenas ao paradigma médico ocidental. Neste sentido, Sournia (1995) faz eco da distinção entre a medicina ocidental, caracterizada pelo recurso às técnicas experimentais e por um estatuto de superioridade, e a medicina tradicional, a qual encerra, na visão do homem ocidental, os princípios terapêuticos próprios dos países em vias de desenvolvimento. No entanto, o próprio Sournia considera esta diferenciação algo artificial, atendendo a que toda a medicina se enraíza em tradições e, como tal, merece o epíteto de ‘tradicional’. Uma classificação mais elaborada e mais rigorosa é atribuída por Stoeckle e Barsky (1980) a autores como King (1962), Fabrega (1973) e Kleinman (1973), a qual se traduz em três sistemas gerais de crenças: o científico, que privilegia as causas naturais e a sua explicação por métodos científicos de observação, descrição e classificação; o primitivo, para quem a doença é magicamente causada por poderes individuais ou sobrenaturais mal 4 INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES intencionados; o tradicional, no qual as crenças etiológicas e terapêuticas se fundamentam em autorizados e respeitados membros do grupo social. Porém, no presente trabalho designaremos as crenças e as práticas médicas por nós investigadas de ‘tradicionais’, no sentido que Ross (1983, cit. in Nunes, 1997) atribui a ‘medicina popular’ e Nunes (1997) reformula em ‘medicina tradicional’, ou seja, um conjunto de crenças e de práticas médicas que se enraízam num saber local, constituído pela experiência acumulada e sujeito a contactos culturais com outros sistemas, ao contrário da ‘medicina primitiva’, claramente mais fechada nas suas crenças e práticas. No que concerne à elucidação dos termos enfermidade e doença, Eisenberg (1977, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) considera, a este respeito, que as enfermidades (‘illnesses’) traduzem as experiências sofredoras dos pacientes, em consequência de alterações ocorridas e percebidas no seu estado e na sua função social, enquanto a doença (‘disease’) é aquilo que o médico diagnostica e trata, ou seja, as anormalidades que afectam a estrutura e a função dos orgãos e dos sistemas do corpo. O problema que ressalta desta diferenciação é que nem sempre estas duas realidades são coincidentes ou se compatibilizam, o que acaba por ter inegáveis repercussões no processo e nos resultados inerentes ao encontro clínico entre médico e paciente, como veremos no decurso da nossa exposição. De acordo com Eisenberg (1977 e 1979, cit. in Good & Good, 1980), a maior falha da medicina contemporânea reside na circunstância de tratar a doença sem ter em conta a cura da enfermidade, ou seja, na redução do sentido que o paciente atribui à saúde e à doença a uma única realidade básica. Num sentido equivalente, Scambler e Scambler (in Fitzpatrick et al., 1984) consideram que ‘disease’ se liga à concepção médica de anormalidades patológicas diagnosticadas através de sinais e sintomas, enquanto ‘illness’ diz respeito à interpretação subjectiva que o paciente faz dos seus problemas. É nesta linha que Scambler e Scambler 5 INTRODUÇÃO: APRESENTAÇÃO DO ASSUNTO MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES citam a definição de enfermidade (‘illness’) segundo Kleinman, Eisenberg e Good (1978: p. 251) como a “experiência humana da doença”, do mesmo modo que Pfifferling (1981) faz alusão a Bryan (1979) e a Kleinman (1978), para quem o paciente experiencia a sua enfermidade, o seu desconforto e não propriamente termos médicos como doença. Particularmente esclarecedora parece-nos ser a distinção proposta por Twaddle (1981) quando considera que ‘disease’ exprime a dimensão biológica da não saúde, enquanto fenómeno objectivo que pode ser objecto de mensuração mediante observação directa, constatação de sinais ou testes laboratoriais, ao passo que ‘illness’ traduz uma dimensão mais subjectiva ou psicológica da não saúde, estando mais directamente relacionada com as preocupações e as sensações que os pacientes experienciam e que interferem no seu funcionamento social, além de lhe causarem óbvia incomodidade. Assim sendo, sempre que no nosso trabalho esteja em causa a experiência da doença vivida pelo paciente, designá-la-emos por enfermidade, mesmo reconhecendo que o termo não é, na tradição portuguesa, muito glosado. Quando estiver em causa a perspectiva do médico recorreremos ao termo doença. Relativamente às referências bibliográficas em que estejam implicados autores de língua inglesa, traduziremos ‘illness’ por enfermidade e ‘disease’ por doença. 6 DIFERENTES ABORDAGENS NO ESTUDO DA SAÚDE E DA DOENÇA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 2. DIFERENTES ABORDAGENS NO ESTUDO DA SAÚDE E DA DOENÇA A consideração dos diferentes modelos de abordagem da saúde e da doença não poderia deixar de se iniciar pelo modelo biomédico, uma vez que este foi, e em muitos contextos continua a sê-lo, o paradigma dominante, a partir do qual e contra o qual se desenvolveram os outros modelos que aqui referenciaremos. Adoptaremos a designação de modelo biomédico, tendo em conta o facto da medicina e da prática clínica estarem, nele, profundamente vinculadas e dependentes das ciências biológicas. Segundo alguns autores (Eisenberg, 1977; Engel, 1977, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) o modelo biomédico aborda a doença a partir da sua redução a princípios físicos e a partir da consideração do corpo e do espírito como domínios distintos e separados. Para Eisenberg e Kleinman (1981) a medicina ocidental moderna, a quem o modelo se aplica, assenta apenas nas ciências biológicas, pelo que os médicos se ocupam da doença em termos exclusivamente fácticos, interessando-se pelos agentes, mecanismos e terapêuticas da doença assim considerada. A vinculação exclusiva dos médicos às ciências biológicas é igualmente constatada por Petersdorf e Feinstein (1981) quando referem que a educação destes profissionais de saúde está concentrada somente na biologia molecular, na bioquímica e na fisiologia. Bergner e Gilson (1981) sustentam que o modelo biomédico se consubstancia na determinação de uma origem biológica para qualquer enfermidade, à qual corresponde consequentemente uma sintomatologia biológica ou física. Decorre daqui que os cuidados de saúde sejam direccionados apenas para realidades fisiológicas e bioquímicas. 7 DIFERENTES ABORDAGENS NO ESTUDO DA SAÚDE E DA DOENÇA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Por seu lado, Good designa esta abordagem como “modelo médico” (1996: 18) e considera que o mesmo entronca numa linguagem tecno-empírica altamente especializada e decorrente das ciências biológicas. Good socorre-se de Engel (1977) para caracterizar a forma como, no interior da prática clínica típica do modelo, são concebidas as doenças. Assim, as mesmas são vistas como entidades universais de natureza biológica ou psicofisiológica que se engendram a partir de lesões somáticas ou disfunções. Estes acontecimentos patológicos produzem ‘sinais’ ou anormalidades fisiológicas que podem ser determinadas através de procedimentos clínicos ou laboratoriais. Segundo Good, o conhecimento médico, neste paradigma, é visto como uma representação empírica e objectiva de realidades biológicas que são as doenças, as quais possuem uma natureza universal, muito para além e absolutamente independentes dos seus contextos culturais e sociais de ocorrência. Sournia (1995) fornece-nos na sua obra um extenso historial da medicina, de onde resulta claro que os fundamentos que sustentam esta abordagem biomédica se começam a delinear paulatinamente a partir do século XVII, com a afirmação do ideal de racionalidade e o concomitante recurso a processos de análise e de verificação nas ciências, e se desenvolve ao longo do século XVIII com base em três aspectos estruturantes: a redução do homem à condição de objecto; a consideração do funcionamento do corpo como dependente das leis da física e o aparecimento de ‘grandes médicos’ que começam a granjear o prestígio e o favor dos poderes políticos. Neste percurso, o século XIX corresponde ao momento da consolidação do paradigma biomédico, uma vez que a medicina adquire o estatuto de ciência, expresso em processos metodológicos experimentais e na redução da vida a uma actividade bioquímica mensurável, assumindo uma natureza ‘anátomo-clínica’ e oficializando-se. O século XX marca a dependência definitiva da medicina relativamente à bioquímica e aos processos científicos e tecnicizantes. 8 DIFERENTES ABORDAGENS NO ESTUDO DA SAÚDE E DA DOENÇA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES A propósito da concepção do corpo que é inerente a este modelo, Nunes (1997) sublinha o facto das suas raízes mergulharem no mecanicismo cartesiano. Também Good (1996), na sua tentativa de estabelecer alternativas à teoria empirista da linguagem médica, que abordaremos posteriormente, situa o essencial da fundação epistemológica do modelo biomédico na concepção da linguagem, como representação e designação objectivas da realidade natural, desenvolvida pela filosofia natural do século XVII, onde se destacam Hobbes, Locke e Francis Bacon. Embora as críticas ao modelo biomédico surjam naturalmente à medida que expusermos outros paradigmas, cujo delineamento por parte dos seus autores visou primordialmente colmatar e superar as limitações e as deficiências constatadas nessa abordagem dominante da saúde e da doença, não deixaremos, todavia, de referir dois tipos de críticas contundentes que surgem em autores de que não conhecemos modelos alternativos. Assim, Pfifferling (1981) considera-o reducionista e descontextualizado, sobretudo se comparado com a abordagem típica da antropologia, enquanto Weidman (1979, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) lhe atribui atitudes de intolerância e de desprezo relativamente ao sistema cognitivo dos pacientes. Se apenas fosse admitida a abordagem biomédica, típica da sociedade ocidental moderna e do seu pretenso imperialismo racionalista e positivista, o nosso próprio trabalho deixaria de fazer sentido, ou então confinar-se-ia a uma apresentação do arcaico, do exótico, do bizarro, do ilógico e do não científico, como já referenciamos na Introdução. Fitzpatrick et al. (1984) propõem uma abordagem centrada nos aspectos psicossociais da enfermidade e do tratamento que introduza mudanças nos cuidados de saúde oferecidos pelos profissionais de saúde, os quais têm privilegiado exclusivamente as dimensões tecnológica e biomédica dos mesmos. No seio desta perspectiva, consideram da maior 9 DIFERENTES ABORDAGENS NO ESTUDO DA SAÚDE E DA DOENÇA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES relevância o contributo das ciências do comportamento para a consecução das três tarefas que devem protagonizar a mudança na prática dos cuidados de saúde e que se traduzem na necessidade dos médicos identificarem e reconhecerem as preocupações e os problemas sentidos pelos pacientes, dos cuidados de saúde fornecerem tranquilidade e conforto àqueles que se sentem angustiados com a enfermidade e, finalmente, disponibilizarem explicações para a enfermidade, bem como instruções sobre como o paciente deve lidar com ela. Esta abordagem evidencia a influência dos factores culturais, sociais e económicos na experiência da enfermidade e na procura e na prestação dos cuidados de saúde, além de sublinhar a existência de relações íntimas entre os aspectos cognitivos e emocionais que marcam a experiência da enfermidade. Por seu turno, Engel (1977, cit. in Nunes, 1997 e Fitzpatrick et al., 1984) desenvolve um modelo biopsicossocial que permite complementar decisivamente o limitado modelo biomédico centrado na doença, integrando assim, além da componente biológica, as dimensões social, psicológica e comportamental da enfermidade. Para este autor, a medicina deve esforçar-se por reconhecer que a doença pode ser entendida a partir de vários níveis ou sub-sistemas organizados hierarquicamente, tais como a pessoa, a família e a sociedade em que a pessoa está inserida. O novo tipo de abordagem proposto por Engel é complementado por Eisenberg e Kleinman (1981) que lhe acrescentam a dimensão cultural, sublinhando a influência que as variáveis e os determinantes psico-sócio-culturais exercem não somente sobre o significado pessoal e social da doença, mas também sobre o risco de ficar doente, o tipo de resposta à doença e os prognósticos relativamente à mesma, o que redunda numa extraordinária valorização das ciências sociais ao nível do seu contributo para uma melhor compreensão da doença e dos cuidados de saúde, perspectiva cuja exploração constitui o âmago e a finalidade 10 DIFERENTES ABORDAGENS NO ESTUDO DA SAÚDE E DA DOENÇA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES do nosso trabalho. Fica, assim, estabelecido, nesta perspectiva, que a doença e a enfermidade são, antes de tudo e fundamentalmente, realidades pessoais, sociais e culturais. Esta abordagem de Eisenberg e Kleinman, mais a visão da doença como uma estrutura significativa proposta por Engel (1977, cit. in Good & Good, 1980), parecem-nos precipitar o paradigma desenhado por Good e Good (1980) e magistralmente aprofundado por Good (1996). Este modelo é designado, nos dois escritos aqui considerados, quer como ‘modelo interpretativo’, quer como ‘modelo centrado no significado’, ou ainda, como ‘modelo cultural hermenêutico’, expressão que nos parece particularmente adequada à natureza da abordagem em apreço. De acordo com Good e Good (1980), tanto a antropologia médica como as próprias práticas clínicas devem incorporar na abordagem da saúde e da doença uma perspectiva interpretativa ou hermenêutica que se centre numa visão da doença como uma realidade dotada de um amplo significado humano e cultural e não como o resultado de meros processos somáticos. Neste sentido, o modelo cultural hermenêutico procura fundamentar os sintomas da doença e os comportamentos a ela associados em contextos de significação global e não apenas em referenciais empíricos e somáticos. Para a compreensão e a cura da doença torna-se imperativa a exploração dos significados pessoais, afectivos, familiares e culturais que lhe são atribuídos. A enfermidade resulta de uma construção que decorre da cultura médica popular, ou seja, das teorias, valores e entendimentos médicos dos pacientes e das suas famílias, constituindo-se como uma realidade fundamentalmente semântica que agrupa configurações de sentidos ou de experiências (Good, 1977, cit. in Good & Good, 1980), ou, como é referido numa obra posterior (Good, 1996), como “(...) a synthetic object par excellence.”, no sentido de uma síntese de redes semânticas (pessoais, sociais, políticas e médicas), o que torna a 11 DIFERENTES ABORDAGENS NO ESTUDO DA SAÚDE E DA DOENÇA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES relação clínica médico-doente uma actividade preponderantemente hermenêutica. A enfermidade é, então, no seu entender um jogo de palavras, sentimentos e experiências que um grupo social constrói conjuntamente. É neste sentido que o próprio Good (1996) considera a doença mais como um objecto estético do que propriamente biológico, o que significa afirmar que a doença, por analogia com a obra de arte, não é redutível a um padrão interpretativo único e basilar, como era apanágio do modelo biomédico. Não espanta, pois, que o modelo cultural hermenêutico represente um corte definitivo com a explicação causal da doença própria do modelo biomédico, procurando Good (1996) desmontar a falácia da pretensa racionalidade e objectividade exclusivas deste modelo, que contribui para a alienação crescente da medicina dos contextos sociais e para a sua falência ao nível da compreensão e da acção sobre as enfermidades dos pacientes, mostrando que a medicina e a sua linguagem não são a interpretação fiel e única do mundo empírico, mas apenas configurações culturais. Podemos concluir do que fica exposto que o modelo biomédico se centra na visão do médico e na sintomatologia da doença, ao passo que os outros modelos se preocupam com o paciente e com a experiência e o significado que assume para si a enfermidade, sempre cultural, social e individualmente contextualizável, não sendo, como tal, redutível a uma qualquer realidade básica e universal, antes carecendo da interpretação que só as teorias e os dados das ciências sociais poderão fundamentar devidamente. Pensamos que são a experiência e o significado que a enfermidade assume para cada indivíduo que devem orientar os processos e as práticas clínicas, com evidentes implicações na organização da prestação de cuidados de saúde, e não o contrário, como frequentemente ocorre, sob pena do sistema de saúde se revelar estreito e ineficiente, como debateremos no Ponto 5. 12 ETIOLOGIA DAS DOENÇAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 3. ETIOLOGIA DAS DOENÇAS A procura de uma explicação causal para as doenças é uma preocupação permanente de todas as pessoas, independentemente do modelo, sistema ou cultura em que as mesmas se situam. Todavia, como reconhece Fitzpatrick (in Fitzpatrick et al., 1984), nem sempre essas explicações são coincidentes e uniformes, mesmo entre os membros das sociedades ocidentais, variando em função da pertença a determinado grupo social. O que nos propomos, neste ponto do trabalho, é precisamente ilustrar a extraordinária diversidade e heterogeneidade de causas genéricas propostas para as doenças e as enfermidades, procurando vinculá-las, sempre que possível, à natureza dos contextos de onde as mesmas são originárias. O objectivo deste item será o estabelecimento de um quadro teórico exaustivo sobre a origem das enfermidades que vá além da mera causalidade médica convencional, de molde a podermos enquadrar o corpo causal encontrado na nossa investigação. De acordo com o tipo de abordagem expresso na conclusão do Ponto 2 do trabalho, o que é importante considerar não é apenas a perspectiva médica acerca da origem da doença, mas também o sentido causal que o paciente atribui à sua enfermidade, frequentemente mais afim ao ‘porquê’ do que ao ‘como’, tendo em conta que deste significado decorrerá muito do seu comportamento face à enfermidade. Pelo que ficou anteriormente exposto a propósito da natureza do modelo biomédico, facilmente se deduz que a ocorrência de doença se deve à presença no organismo e à exposição do mesmo ao contacto com agentes patogénicos de natureza biológica e física, a uma qualquer deterioração e disfuncionamento dos tecidos orgânicos, bem como a 13 ETIOLOGIA DAS DOENÇAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES comportamentos ou heranças genéticas que potenciem o risco de desencadear ou desenvolver fenómenos patológicos de natureza psicofisiológica, mas em qualquer dos casos redutíveis a processos e a mecanismos físicos e bioquímicos cientificamente diagnosticáveis. Sintomáticos do entendimento que a maioria das pessoas das modernas sociedades europeias têm acerca das causas da enfermidade, parecem-nos ser os resultados das pesquisas levadas a cabo por Blaxter (1983a, cit. in Fitzpatrick et al., 1984), junto de uma amostra de mulheres de meia idade da classe operária escocesa, e por Pill e Stott (1982, cit. in Fitzpatrick et al., 1984), com base em mulheres entre os 30 e os 35 anos de idade, trabalhadoras manuais qualificadas de uma região da Grã-Bretanha. De acordo com o primeiro estudo referenciado, as infecções foram as causas mais citadas pelas inquiridas, seguidas pela hereditariedade, tendo sido ainda indicados por ordem decrescente os perigos ambientais, os efeitos secundários de outras doenças, o stress, o parto e a menopausa, traumas e cirurgias. A indicação de causas decorrentes de desordens auto-infligidas por negligência e por opções comportamentais foi pouco significativa. Já o estudo de Pill e Stott evidenciou como causa prioritária da enfermidade as infecções ou germes, seguida, por ordem decrescente, do estilo de vida, hereditariedade e stress. Da análise que Fitzpatrick (1984) faz destes estudos, salienta o mesmo que no segundo há uma maior relevância concedida às opções comportamentais e à responsabilidade individual, a que não será estranho o facto de se tratar de mulheres de um nível social, educativo e económico mais elevado que o das primeiras. É o próprio Fitzpatrick a considerar que a estas causas devemos acrescentar conceitos como ‘preocupação’ e ‘tensão’. Por seu lado, Herzlich (1973, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) inquiriu indivíduos franceses, profissionais da classe média, acerca das suas ideias sobre saúde e doença, os quais situaram preponderantemente a causa das doenças nas características não naturais e não saudáveis do estilo de vida urbano próprio das sociedades tecnológicas modernas. 14 ETIOLOGIA DAS DOENÇAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Além das explicações típicas e afins do modelo biomédico, encontram-se muitas outras que divergem radicalmente das interpretações da doença que a ciência médica e as modernas comunidades ocidentais nos proporcionam. Neste domínio, Snow (1974, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) deu-nos a conhecer as explicações acerca das enfermidades partilhadas por uma classe operária negra de uma zona rural do sul dos Estados Unidos, as quais se confinavam a três categorias gerais: riscos naturais e ambientais, punições de Deus e espíritos e bruxaria. Recorde-se que a bruxaria como origem de enfermidades, foi um assunto classicamente exposto por Evans-Pritchard em 1937 (cit. in Fitzpatrick et al., 1984), em consequência do estudo, por si empreendido, entre os Azande do Sudão. Neste âmbito, também Fabrega (1974, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) refere o hábito, em comunidades camponesas da América Latina, de explicar a ocorrência de enfermidades como resultado do ‘mau olhado’ de um inimigo. De igual modo, Kearney (1980), no seu artigo sobre curas espiritualistas no México, deu-nos a conhecer o entendimento local relativamente às causas das doenças, as quais se confinavam fundamentalmente a intrusões de espíritos e de forças sobrenaturais, a bruxaria e a forças malignas afectas a ‘ares’ e a ‘maus olhados’. No mesmo sentido apontam as referências de Hart (1980) a propósito do modelo etiológico da comunidade Lalawigan das Filipinas, o qual aponta para uma causalidade sobrenatural, onde se destacam os espíritos do ambiente (terra e mar), a feitiçaria e as enfurecidas almas ancestrais que causam a enfermidade como medida punitiva por eventuais ofensas sofridas. Embora Nunes (1997) apresente causas desta índole, em consequência de uma investigação por si empreendida numa comunidade transmontana, no entanto as mesmas serão 15 ETIOLOGIA DAS DOENÇAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES objecto de referenciação num dos pontos subsequentes do trabalho, mercê da proximidade geográfica e cultural que existe entre as fontes da sua investigação e da nossa. Num reconhecido esforço de sistematização, Chrisman (1977, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) coligiu, a partir de uma análise de diferentes culturas, quatro diferentes modos ou tipos de pensar a causa das enfermidades, cujo peso relativo varia em função das culturas que se considerem. Temos, assim, quatro tipos de lógicas explicativas que, de uma forma geral, se encontram impregnadas das diferentes crenças acerca das enfermidades: 1) A lógica da degeneração, segundo a qual a enfermidade ocorre em resultado da progressiva deterioração do corpo; 2) A lógica mecânica, na qual a enfermidade é o resultado de bloqueios ou de danos na estrutura do corpo; 3) A lógica do equilíbrio que considera que a enfermidade decorre da quebra da harmonia entre as partes ou entre o indivíduo e o ambiente; 4) A lógica da invasão que faz depender as enfermidades dos germes ou de outros materiais intrusivos. Um outro modelo classificatório que nos é apresentado por Morley (1980) baseia-se na proposta de Seijas (1973, cit. in Morley, 1980), segundo a qual existem quatro grandes tipos de causas: 1) As causas sobrenaturais que integram forças supra-sensíveis, agentes maléficos e actos não observáveis empiricamente. Fenómenos como a bruxaria, a feitiçaria, a intrusão de espíritos ou entidades demoníacas, ‘sustos’ e ‘maus olhados’ enquadram-se neste tipo de causalidade; 2) As causas não sobrenaturais que traduzem uma etiologia das doenças baseada em relações observáveis, mesmo que pouco precisas, de causa-e-efeito; 3) As causas imediatas, afectas ao tipo de explicações não sobrenaturais e que consideram a doença e o mal-estar como resultado de agentes patogénicos percebidos; 4) Finalmente, as causas últimas que procuram tornar inteligíveis os fundamentos que determinam a ocorrência da doença. Estas distinguem-se das anteriores pelo facto daquelas explicitarem o ‘como’ ocorre a doença, enquanto estas procuram o ‘porque’ ocorre a doença. 16 ETIOLOGIA DAS DOENÇAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES O quadro etiológico geral proposto por Nunes (1987) traduz uma síntese da variedade de causas que, na medicina tradicional, podem ser encontradas para explicar a ocorrência de doença, repisando muitas das origens já referidas ao longo do trabalho. Assim, o mesmo identifica também quatro tipos de causas: 1) As causas naturais, onde se inserem aspectos do clima, alimentação, higiene e trabalho excessivo; 2) As causas psicológicas, que integram as emoções fortes; 3) As causas sociais, nas quais cabem os conflitos entre as pessoas, de que podem resultar maus olhados, pragas, mal de inveja e feitiçaria, ou então violação de tabus; 4) Por fim, as causas espirituais ou sobrenaturais que dizem respeito às almas dos mortos, ares e doenças infligidas por Deus. A distinção proposta por Foster (1976, cit. in Nunes, 1997 e Hart, 1980) entre dois sistemas etiológicos, aplicáveis às medicinas tradicionais, parece-nos estar sintonizada com a proposta de Nunes. Assim, temos os sistemas médicos personalísticos, nos quais a ocorrência de enfermidade se deve à intervenção activa e propositada de um agente que pode ser humano (bruxa ou feiticeira), não humano (fantasma, antepassado, espírito mau) e sobrenatural (uma divindade ou outro qualquer ser muito poderoso). Nestes sistemas, a origem da enfermidade é mais complexa e menos controlável pelo indivíduo do que no segundo tipo de sistemas, devendo-se a doença à quebra das relações harmoniosas com o sobrenatural ou com familiares e vizinhos. Os segundos sistemas são designados de naturalísticos e nestes a enfermidade é atribuída à acção de factores naturais (climáticos) que geram desequilíbrio no organismo, dependendo a saúde dos indivíduos da sua capacidade para evitarem situações e comportamentos geradores da enfermidade. Sublinhe-se que, de acordo com Foster, estes dois sistemas coexistem e complementam-se entre si. Por último, gostaria de sublinhar a originalidade da abordagem de Ackerknecht (1971, cit. in Hart, 1980) para quem as causas das doenças não são nem naturais nem sobrenaturais, 17 ETIOLOGIA DAS DOENÇAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES mas antes habituais. No entanto, esta designação não fez história no domínio da antropologia médica, como constata Hart (1980). Quando se discutem as causas da enfermidade, parece-nos da maior relevância o princípio que transparece do trabalho de Linn, Linn e Stein (1982, cit. in Fitzpatrick et al., 1984), segundo o qual as crenças sobre as causas da enfermidade dependem das experiências de saúde e enfermidade que afectam cada indivíduo, uma vez que para aqueles que nesse trabalho eram referidos como sofrendo de cancro as explicações ancoradas em factores ambientais, ao contrário do que ocorria com os que não sofriam, tinham um sentido muito parcial, necessitando de remeter a causa para factores transcendentais como ‘a vontade de Deus’ ou para a procura de um sentido mais profundo para o seu infortúnio. Além disto, convém salientar a circunstância de coexistirem na mesma doença diferentes níveis causais (o mecanismo, o agente e a origem) e não apenas uma causalidade única e linear (Sindzingre & Zemplèni, 1981, cit. in Nunes, 1997). 18 CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 4. CRENÇAS E PRÁTICAS MÉDICAS TRADICIONAIS DE UMA POPULAÇÃO RURAL TRANSMONTANA: 4.1 CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA A aldeia que constitui o objecto do nosso estudo (Paradela, com cerca de 100 habitantes, situada a uma dezena de quilómetros da sede de concelho, Carrazeda de Ansiães, no distrito de Bragança) para efeito de recolha de crenças e de práticas médicas tradicionais não é muito diferente, na sua dinâmica de vida e nos seus problemas, da quase generalidade dos pequenos povoados transmontanos. A aldeia insere-se, por conseguinte, numa zona rural, isto é, numa zona diferente e afastada dos centros urbanos (Mendras, 1967, cit. in Nunes, 1997), relativamente autónoma (Redfield, 1956 e Thorner, 1964, cit. in Nunes, 1997) e cuja vida das pessoas se encontra intimamente ligada ao trabalho nos campos. Fenómenos como a crescente desertificação populacional, o envelhecimento da população residente, a existência de mentes profundamente religiosas, ainda que nem sempre em sintonia com a ortodoxia da Igreja, ou a prática de uma agricultura de subsistência, constituem os seus traços mais marcantes. No entanto, ao contrário do que é comum, não foi uma aldeia muito tocada pela emigração, talvez pela circunstância da maioria das famílias terem vivido de uma forma ‘remediada’, padrão de vida garantido pela posse de terras que produzem ‘um pouco de tudo’. Ao ténue fenómeno da emigração tem-se sobreposto, mais recentemente, a deslocação dos mais novos e dos mais habilitados para as cidades do litoral. 19 CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES No que respeita a equipamentos e serviços de saúde disponíveis, os mesmos situam-se na sede de concelho e são constituídos por um Centro de Saúde, deficitário em médicos e em pessoal de enfermagem, uma clínica privada e uma rede restrita de consultórios particulares a funcionarem na própria residência dos médicos. Só em casos emergentes é que as pessoas recorrem às consultas privadas ou, fenómeno ainda mais raro, à consulta domiciliária, cujos honorários são, para a generalidade das pessoas, incomportáveis. Constatamos, assim, que a vinda do ‘doutor’ a casa das pessoas, um hábito tão recorrente no período da nossa meninice, está em desuso, também porque como algumas pessoas da aldeia afirmam “eles [os médicos] não gostam nada de ser chamados”, o que, do nosso ponto de vista, reflecte uma certa desumanização das práticas médicas e uma falha na compreensão do contexto e das condições de vida dos pacientes. Sempre que se torna necessário proceder-se à realização de análises ou de exames médicos especializados, as pessoas são remetidas para Mirandela, a cerca de 50 quilómetros de distância. A dificuldade de transportes leva algumas pessoas a protelar a efectivação de alguns exames, particularmente aqueles de natureza preventiva que não decorrem da presença de sintomas de desconforto imediato ou iminente. Este panorama não significa, porém, que as pessoas não se preocupem com a sua saúde. Na senda de Nunes (1997), sempre constatamos que a saúde e a obtenção da cura por todos os meios são uma preocupação permanente destas gentes. No entanto, também é verdade que a visão da saúde e da doença do povo não é rigorosamente coincidente com a da medicina convencional. Para as pessoas da aldeia a saúde é vista em termos da eficiência do corpo para o trabalho, concepção amplamente documentada em outras latitudes (Blaxter & Peterson, 1982, cit. in Fitzpatrick et al., 1984; Apple, 1960, cit. in McKinlay, 1981 e Nunes, 1997), pelo que a enfermidade se traduz sempre numa qualquer disrupção social e laboral do 20 CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES indivíduo. Aliás, o corpo constitui o suporte exclusivo da saúde e da doença, não sendo visto como uma realidade cindida entre matéria e espírito, mas como uma realidade integrada que se encontra sujeito a múltiplas influências cósmicas e sobrenaturais (Nunes, 1997), ou, para utilizar a terminologia de Le Breton (1990, cit. in Nunes, 1997) submetido a energias visíveis e invisíveis. De um ponto de vista cultural, o meio em causa é estruturalmente idêntico ao estudado por Nunes (1997), caracterizando-se por uma assinalável heterogeneidade que decorre, no essencial, da abertura a outras realidades e a outras mundividências, cujos contactos ocorrem preferencialmente através da televisão que, com excepção de dois lares, todos possuem. Esta mescla do tradicional com a novidade, do passado com o progresso, não significa perda de identidade cultural, sobretudo ao nível dos mais velhos que ainda persistem na conservação e na actualização das tradições, das crenças e dos rituais mais antigos. Particularmente no domínio da saúde, assistimos a uma utilização conjunta das terapêuticas médicas e das terapêuticas tradicionais, como Nunes (1997) também já havia constatado. Por fim, a escolha da população desta aldeia para efeito da nossa investigação ficou a dever-se a duas ordens de razões: em primeiro lugar, razões de ordem afectiva e funcional, uma vez que se trata da nossa terra natal, onde vivemos a nossa infância e alguma parte da nossa adolescência e juventude, o que, como tal, nos facilita o relacionamento com as pessoas que detêm algum saber no domínio que nos ocupa e nos favorece a compreensão do sentido das crenças e das práticas em causa, dado que algumas delas, em alguns momentos da nossa vida, nos disseram respeito; em segundo lugar, razões de ordem etnográfica, pois trata-se de uma aldeia rica em crenças e em práticas médicas tradicionais, até pela existência de uma população idosa e de uma pessoa que conhece profundamente e aplica algumas dessas práticas. 21 CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES A metodologia que adoptamos na nossa investigação é obviamente de natureza qualitativa, atendendo a que a mesma se adequa e cumpre os requisitos de uma abordagem qualitativa, tal como vêm expressos em Lüdke e André (1986) e em Costa (in Silva & Pinto, 1987, cit. in Nunes, 1997), ou seja, a presença prolongada do investigador nos contextos em estudo e o consequente contacto directo com as pessoas e as situações, a referenciação dos dados e dos seus significados ao contexto de aparecimento e o facto dos dados colhidos serem predominantemente descritivos. Neste sentido, estamos perante um estudo etnográfico, pois visa-se descrever um sistema de significados culturais de um dado grupo (Spradley, 1979, cit. in Lüdke & André, 1986). Para o efeito, privilegiou-se o processo de observação participante no sentido que Iturra lhe confere, ou seja, “o envolvimento directo do investigador com o grupo social que estuda dentro dos parâmetros das próprias normas do grupo.” (1986, cit. in Nunes, 1997: p. 19). O método de colheita de dados a que recorremos foi a entrevista não totalmente estruturada, apenas orientada por tópicos, tendo-se optado pelo registo feito através de notas. Apesar do diálogo mantido com diferentes pessoas idosas da aldeia, focalizou-se o mesmo mais no Sr. Altino Gonçalves, de 65 anos de idade e na Sra. Maria Cruz, de 82 anos de idade e sabedora de muitas rezas e ‘mézinhas’ com virtualidades terapêuticas. Os objectivos da nossa investigação, alguma limitação temporal e o cansaço já evidenciado pela Sra. Maria Cruz tornam a nossa recolha pouco exaustiva, pois temos a convicção que a mesma se poderia aprofundar e enriquecer incomparavelmente mais. 22 CRENÇAS MÉDICAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 4.2 CRENÇAS MÉDICAS O levantamento das crenças médicas tradicionais ocorreu no pressuposto de que as mesmas constituem relevantes visões culturais do mundo (Good, 1996), da vida, do homem e das suas relações com as forças que o rodeiam. Não partilhamos do preconceito típico do paradigma biomédico ocidental que considera as crenças populares como erróneas e falsas, bem como despreza quase sistematicamente, segundo a opinião de Good e Good (1980), a relevância que a informação cultural ou ‘etnomédica’ pode representar para a medicina. A fundamentação deste nosso não alinhamento decorre, em primeiro lugar, de uma razão pragmática, uma vez que as crenças médicas tradicionais e as sub-culturas médicas em que se integram determinam as formas concretas de acção e de reacção das pessoas perante as situações de enfermidade (Zborowski, 1952; Zola, 1966; Mechanic, 1972; Lin et al., 1978, cit. in Good & Good, 1980; Eisenberg & Kleinman, 1981) e também porque, como refere Morley (1980), permitem-nos compreender o tipo de expectativas que as pessoas têm relativamente ao seu sistema médico, a maneira como elas consideram o que é etiologicamente relevante e o que é terapeuticamente eficaz. Em segundo lugar, pelo facto de vários autores terem demonstrado a sua coerência interna (Evans-Pritchard, 1937, cit. in Morley, 1980; Atkinson, 1980), a sua racionalidade e a sua validade absoluta no contexto cultural a que pertencem, além das mesmas pressuporem, em muitos casos, observações empíricas e uma compreensão de tipo científico (Morley, 1980). A tudo isto acresce a circunstância da medicina ocidental, ela própria, se traduzir também num sistema de crenças, umas racionais e outras irracionais, constituindo-se ao lado 23 CRENÇAS MÉDICAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES das crenças tradicionais como configurações culturais que apenas se diferenciam nos significados que conferem à saúde e à doença (Good, 1996). Neste contexto particular, entendemos por crenças médicas tradicionais aquelas concepções orais que atravessaram gerações e que se relacionam com a saúde e o bem-estar do corpo e do espírito, com a origem e a natureza das enfermidades e com as formas de superar essas adversidades, possibilitando às pessoas que as aceitam explicações plausíveis para o que acontece. De entre o conjunto de crenças apreendidas na investigação, vamos apenas destacar aquelas que nos parecem mais relevantes do ponto de vista médico. Assim, vamos classificálas de acordo com as duas categorias seguintes: 1) Crenças relativas à origem das doenças; 2) Crenças a propósito da prevenção e cura das doenças. 1) Crenças relativas à origem das doenças Profundamente arreigada na mentalidade das pessoas mais velhas da aldeia está a crença de que o homem está sujeito a acções punitivas por parte de Deus ou dos Santos, sempre que viola os seus preceitos ou os ofende com gestos ou palavras. Um dos aspectos mais curiosos que ressaltaram da nossa investigação diz respeito à circunstância da generalidade das crenças se encontrarem fundamentadas em exemplos concretos ocorridos no quotidiano da aldeia. Assim, a crença de que alguns infortúnios pessoais se devem a castigos divinos encontra-se reforçada pelas histórias dos Srs. Marcolino e Manuel B. que partiram as pernas quando lavravam as terras no dia de S. João, dia santo na aldeia. Mais dramática foi a história do Sr. João Jerónimo, que sob o efeito do álcool e de alguma fúria natural passou uma noite de S. João a dirigir injúrias ao Santo e a tentar destruir a cascata em que este se encontrava no largo da aldeia. De madrugada recolheu a casa, tendo começado a queixar-se de dores, assim passando dois anos “em alto grito” (Sr. Altino). Sem que os médicos lhe 24 CRENÇAS MÉDICAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES diagnosticassem qualquer problema físico, a família recorreu à “sábia” (“não queria que a tratassem por bruxa, mas via e sabia tudo o que acontecia, mesmo que a pessoa doente não estivesse lá presente” – Sr. Altino) de Trevões que lhes disse que o mal de que ele padecia não tinha cura. A crença na punição divina não constitui aqui nenhuma originalidade, uma vez que a concepção de doença-punição remonta, de acordo com Sournia (1995) à medicina assíriobabilónica, encontrando-se amplamente documentada na Bíblia. Outra crença curiosa por nós detectada prende-se com o entendimento do fenómeno da menstruação (“incómodo” – Sr. Altino), isto é, com os problemas de saúde que podem advir do facto do sangue “subir à cabeça das mulheres” (Sr. Altino). A este propósito a história que o Sr. Altino nos narrou, considerada inquestionavelmente verdadeira, pois ele próprio era vizinho das pessoas envolvidas, é absolutamente impressiva. A Sra. Etelvina, após o parto, ficou paralisada das pernas, ficando acamada vários meses e dando sinais de um definhamento progressivo, sem que os médicos conseguissem diagnosticar a origem da enfermidade ou obter a sua cura, pelo que se encontrava “desenganada” dos médicos. O Sr. Tibério, pai da dita mulher, preocupado com a situação da filha decidiu recorrer à “sábia” de Trevões, cuja competência médica era, para as gentes da aldeia, indiscutível (“ela estremecia, caía para trás e depois a voz era de um médico defunto que se meteu nela e que até receitava remédios da farmácia”), a qual estabeleceu um diagnóstico e uma terapêutica imediatas, não sem antes “troçar” da ignorância dos médicos. O problema residia no facto de nunca mais lhe ter vindo o “incómodo”, pelo que o pai foi aconselhado a ir apanhar umas “bichas” (um tipo de minhoca preta da água) ao ribeiro da aldeia e a colocá-las atrás das orelhas da filha, de molde a que elas lhe “chupassem o sangue da cabeça”. Assim aconteceu e passados poucos dias a dita senhora “já trabalhava normalmente”, vivendo ainda hoje em Lisboa de perfeita 25 CRENÇAS MÉDICAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES saúde. É curioso salientar que esta relação entre a subida da menstruação à cabeça e a sua manifestação sintomática sob a forma de paralisia dos membros inferiores aparece igualmente em Nunes (1997). Finalmente, faremos alusão à crença na possibilidade de comunicação entre este mundo e o “outro mundo” (Sra. Maria Cruz) e ao modo como isso pode originar doença, o que ilustra bem a concepção tradicional do corpo como estando em contacto com outras forças do mundo de natureza sobrenatural, o que foi igualmente sublinhado por Nunes (1997), a propósito da mentalidade das pessoas por si inquiridas. A crença neste domínio estende-se às almas penadas dos defuntos, aos ares, às encruzilhadas e aos corpos abertos. Refira-se que estes conceitos são tematizados do mesmo modo, salvo um ou outro pormenor terminológico ou uma ou outra diferenciação, por Nunes (1997), além de que conceitos como ares e almas de defuntos aparecem na etiologia da doença em outras tradições culturais longínquas, como ficou documentado no Ponto 3 do trabalho. De uma forma geral, acredita-se que as almas dos defuntos que deixaram promessas por cumprir ou que levaram uma vida de pecado podem voltar à terra para atormentar os vivos, podendo “tolhê-los” (“deixam de comer e começam a definhar” – Sra. Maria Cruz). Daqui que existam um conjunto de rituais que se cumprem no dia imediato ao do funeral e que se traduzem em dar pão e azeite aos mais pobres da aldeia e vestir-se alguém nesse dia com as roupas do morto, não podendo ser um elemento da família. As almas entram nas pessoas sob a forma de ares (de sombras, de ventos e de encruzilhadas) em determinadas situações propícias, como sejam aquelas em que os corpos se encontram abertos, nos funerais e nas encruzilhadas. Os corpos encontram-se abertos durante a gravidez, 1 mês após o parto (“enquanto não passava o sangradouro” – Sr. Altino), durante 26 CRENÇAS MÉDICAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES os períodos de menstruação e em criancinhas não baptizadas. Daqui que as mulheres grávidas e menstruadas não assistem a funerais nem se deslocam ao cemitério, do mesmo modo que as crianças que estão deitadas no berço aquando da passagem de algum funeral devem ser levantadas. Isto explica que os bebés enquanto não são baptizados não devem sair de casa e se o fizerem devem proteger-se com rezas. As encruzilhadas (“Deus nos livre delas, trazem coisas ruins com elas” – Sra. Maria Cruz) constituem outro local extraordinariamente significativo, pois além de serem local de encontro das feiticeiras (mulheres maléficas que através de palavras e gestos podem induzir males e doenças nas pessoas, ao contrário das bruxas que aqui são consideradas mulheres que adivinham e são capazes de curar os males), constituem locais de confluência dos diferentes ares, daqui que quando alguma pessoa apanhava um ar, a Sra. Maria Cruz fazia-lhe umas rezas e colocava numa telha pão da mesa, sal, mostarda, nabinha e ramos de oliveira bentos para fazer fumos sobre a pessoa afectada, sendo as cinzas deitadas depois ao correr da água numa encruzilhada. 2) Crenças a propósito da prevenção e cura das doenças Neste âmbito, convém começar por realçar a crença nas virtualidades do vinho enquanto imunizador do ‘mal da gota’ (talvez com base na analogia verbal), pelo que aos bebés, logo após o nascimento, era-lhes administrada uma colher de chá de vinho tinto. Uma crença de contornos profundamente mágico-religiosos prende-se com o recurso a ‘rezas’ para obter a cura de determinados sintomas de doenças que afectam o corpo ou espírito das pessoas, o que pressupõe acreditar no poder terapêutico das palavras, ao mesmo tempo que se acredita também no poder maléfico que elas podem assumir, particularmente no contexto das pragas. O aspecto comum ao conjunto das rezas que recolhemos traduz-se no facto das suas virtualidades curativas dependerem da invocação do poder de Deus ou dos Santos, como ilustraremos no ponto seguinte do trabalho. 27 CRENÇAS MÉDICAS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Refira-se, neste contexto, que mercê de relações de boa vizinhança que hoje existem entre as pessoas, a atribuição de nexos de causalidade entre a ocorrência de determinadas enfermidades ou infortúnios raramente passa pela consideração de pragas ou outros actos (gestos e maus olhados) das feiticeiras, sendo muito mais actuante a explicação através dos castigos divinos e das almas do outro mundo. Quando se pergunta se ainda existe alguma mulher na aldeia que tenha estas prerrogativas, as respostas são unânimes, sendo nomeadas algumas mulheres da aldeia que já faleceram. Recorde-se que esta mesma evolução é também registada por Nunes (1997). Além da crença nas propriedades terapêuticas de determinadas plantas ou poções que, genericamente, se encontra em quase todos os povos do mundo, mas a que faremos referências precisas no ponto seguinte do trabalho, merece igualmente algum destaque, pelas consequências em termos de procura de cuidados de saúde, a crença inquebrantável das pessoas mais idosas nos poderes terapêuticos de ‘benzedeiras’ (registamos o facto da Sra. Maria Cruz não gostar de ser apelidada por este nome, dado um certo carácter depreciativo e insultuoso que o termo adquiriu para as gerações mais novas), ‘endireitas’ e de ‘bruxas’ ou ‘sábias’, com especial relevância para estas últimas, pois além de identificarem o mal e o curarem, fornecem explicações plausíveis ao porquê último do seu surgimento, o que constitui uma vantagem relativamente à medicina convencional. 28 RECURSOS E PRÁTICAS TERAPÊUTICOS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 4.3 RECURSOS E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS Num plano terapêutico, as pessoas têm à sua disposição e recorrem com frequência a uma vasta e complexa rede de recursos tradicionais, onde se integram, em termos de farmacopeia, uma vastíssima gama de plantas medicinais e de poções, e, em termos humanos, o próprio indivíduo, a família, os vizinhos, ‘as mulheres e os homens que sabem’ (normalmente especializados na cura ou no prognóstico relativamente a uma única doença), as ‘benzedeiras’, os ‘endireitas’ e as ‘bruxas’ ou ‘sábias’ (registe-se o facto de não ser usual a utilização do termo ‘curandeiro’). Evidentemente, que os recursos mais habituais são as plantas e as poções, bem como a assistência da família e dos vizinhos, com alguma relevância para a procura das mulheres da aldeia que sabem as ‘rezas’. A propósito das plantas medicinais, é Sournia (1995) quem afirma que a sua utilização como recursos terapêuticos constitui uma tradição imemorial. Em relação às práticas a que as pessoas recorrem, na tentativa de obterem remédio e cura para os seus males ou para se certificarem da gravidade de determinada sintomatologia, as mesmas serão divididas em práticas assentes na utilização de palavras e em práticas mais do domínio da farmacopeia tradicional. Como refere Morley (1980), é importante levar em linha de conta que a medicina tradicional não se funda apenas em crenças e rituais mágico-religiosos, mas é igualmente dotada de profundos conhecimentos empíricos e mesmo técnicos. Pense-se, por exemplo, nos conhecimentos de anatomia e nas habilidades técnicas próprias dos ‘endireitas’. Neste sentido, as práticas da medicina tradicional são encaradas por Morley como uma matéria médica 29 RECURSOS E PRÁTICAS TERAPÊUTICOS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES extraordinariamente complexa. Convém sublinhar este ponto de vista, uma vez é que frequente conceberem-se estas práticas como actos simples e pueris. Particularmente no âmbito da farmacopeia é evidente o carácter de experimentação empírica que lhe está subjacente, pois a sua consolidação e permanência deve-se às experiências que se vão acumulando relativamente ao seu grau de eficácia. A descrição das principais práticas por nós recolhidas far-se-á de seguida, de uma forma assaz sucinta: 1) Práticas assentes na utilização de palavras: destacam-se, neste particular, todo um conjunto de ‘rezas’ que visam debelar determinadas enfermidades e que, no essencial, são do domínio exclusivo da Sra. Maria Cruz, que no-las segredou. Temos assim, uma ‘reza’ que tem como finalidade curar o ‘coxo’ (herpes labial na terminologia científica, que as pessoas acreditam dever-se o seu aparecimento à passagem durante a noite de uma aranha pelos lábios, o que denota uma vez mais a força do raciocínio analógico, dado que as vesículas do herpes conservam alguma semelhança com o corpo central de algumas aranhas) e que se expressa do seguinte modo: “Coxo certo de aranha e de aranhão Todo o coxo eu cortarei Eu ponho a minha mão Deita-lhe a Vossa divina Benção.” (Sra. Maria Cruz) De seguida apresentaremos uma oração, com a qual se curavam os males dos olhos: “Sta. Iria, Sta. Maria Três novelinhos de oiro traziam Um com que ‘cordiam’ [rogavam a Deus] 30 RECURSOS E PRÁTICAS TERAPÊUTICOS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Outro com que teciam Outro com que névoas, unheiros, cataratas e inflamações P’ra trás desfazeriam.” (Sra. Maria Cruz) Finalmente uma ‘reza’ para cortar os ares, a qual deveria ser acompanhada dos fumos a que já nos referimos no ponto anterior: “Fui a tua casa Os ossos te rilharei A carne te hei-de comer Eu te desconjuro que lá não hás-de ir Nem a carne hás-de comer Nem os ossos lhe hás-de rilhar São três pessoas da Santíssima Trindade Têm todo o poder e podem De onde este mal veio Para lá torne. Ares de sombras, ares de ventos, ares de encruzilhadas Todos os ares eu cortarei Senhor lhe ponho a minha mão Senhor deita-lhe a Vossa divina Benção Se os tens na cabeça cura-tos Santa Teresa Se os tens no coração cura-tos S. João Se os tens no corpo todo cura-tos o Senhor com o seu poder todo Três pessoas más te deram 31 RECURSOS E PRÁTICAS TERAPÊUTICOS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Três pessoas boas hão-de tirá-lo Com todo o poder e podem.“ (Sra. Maria Cruz) 1) Práticas do domínio da farmacopeia tradicional: optaremos por uma apresentação esquemática de algumas das muitas práticas por nós recolhidas. Produtos/Técnicas Sintomas/Enfermidades Chá de limonete Dores intestinais Chá de carqueja Dores do fígado Chá de barbas de milho e de pés de cereja Dores na bexiga (para quem não consegue urinar) Chá de marcela Descer a febre Casca de limão na testa “Chupa” a febre Golpear e colocar carne ‘gorda’ de porco Mordida de víbora Canja de galinha preta “riça” Hemorragias pós-parto Chá de casca de amêndoa e de figos secos Constipação Aplicação de uma papa de farelos e vinagre bem quente, Inchaços dos membros seguida de uma lavagem com água fervida de alecrim e de folhas de nogueira ‘Trocho’ de couve untado com azeite bem quente Prisão de ventre nas crianças metido no ânus da criança e uma couve bem aquecida, também untada com azeite, em cima da barriga da criança Favo de cera, mais um litro de azeite, a que se juntavam Gangrena raízes de lírio branco. Tudo numa frigideira a refogar, deixando arrefecer até constituir uma pasta Licor feito a partir de vinho branco, musgos de fontes antigas e ervas ‘peganhosas’, deixando-se tudo a ‘serenar’ durante três noites no cimo de um telhado. 32 Icterícia RECURSOS E PRÁTICAS TERAPÊUTICOS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Por último, foi-nos referido que era habitual levar as crianças que tinham o ‘baço caído’ a uma ‘mulher que sabia’, de uma aldeia vizinha, para que ela determinasse se a criança sobreviveria ou morreria. Para obter a resposta a ‘mulher’ deitava a criança num ‘terrão’ de um lameiro, cortando-o de acordo com o perfil do indivíduo. Se a erva do ‘terrão’ permanecesse verde a criança sobreviveria, se secasse a criança estaria condenada a morrer. 33 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 4.4 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS O ponto anterior do trabalho parece-nos ter sido suficientemente esclarecedor relativamente à diversidade de recursos terapêuticos que as pessoas têm à sua disposição, sempre que no seu meio coexistem o sistema médico de saúde e o sistema tradicional. As questões que aqui se colocam dizem respeito ao tipo de priorização que as pessoas estabelecem em termos de procura de cuidados de saúde e às trajectórias que seguem quando se acham enfermas, ou seja, a que tipo de pessoas e de serviços recorrem e em que ordem o fazem. Não restam dúvidas, pelos recursos disponíveis e pelas práticas que utilizam, que as pessoas que habitam neste meio rural se encontram inseridas não só no sistema médico de saúde, mas também naquilo a que a Freidson (1970, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) chamou o ‘sistema leigo de referência’, constituído pela cultura em que as pessoas se inserem e que as leva a prestarem cuidados de saúde ao nível de diagnósticos e de prescrições (o próprio indivíduo enfermo eventualmente aqui incluído), mas que não são, nem as pessoas nem a sua compreensão cultural, oficialmente reconhecidos. Ao ´sistema leigo de referência’ corresponde uma ‘estrutura leiga de referência’, ou seja, uma rede de influências pessoais a que o indivíduo enfermo está sujeito. Assim sendo, não admira que Eisenberg e Kleinman (1981) tenham constatado que aquilo que os médicos observam nos consultórios e nos hospitais é uma amostra muito pouco representativa das enfermidades e das doenças que ocorrem nas comunidades. Esta constatação é comprovada por alguns autores (Hulka et al., 1972, Zola, 1972, cit. in Eisenberg & Kleinman, 1981) que apontam para percentagens na ordem dos 75 a 90% de episódios 34 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES identificados pelos próprios indivíduos como enfermidades que foram objecto de tratamentos fora da rede médica oficial. Nestes itinerários terapêuticos estão envolvidos os auto-cuidados, os familiares, os vizinhos, os profissionais de saúde, a prática de cedência de medicamentos a partir do que se consideram serem sintomas similares, as ‘benzedeiras’, os endireitas, as bruxas ou ´sábias’, entre outros. À semelhança do que Nunes (1997) concluiu, também nós consideramos, a partir do que inquirimos junto das pessoas e do que nos foi dado observar ao longo de vários anos, que não se pode estabelecer um modelo único de organização dos itinerários terapêuticos, podendo o indivíduo recorrer simultaneamente a diferentes pessoas ou serviços, ou então fazê-lo sequencialmente, sem que a ordem seja sempre rigorosamente a mesma. O que é mais raro é a pessoa ater-se apenas à consulta médica e à prescrição médica, procurando, de forma pragmática, complementar a opinião e o receituário médico com outras alternativas, como por exemplo a opinião de familiares e vizinhos e a farmacopeia tradicional (a conselho de outros ou por auto-iniciativa), ainda que tudo isto dependa também do tipo de enfermidade. A diversidade de pontos de partida na procura de soluções para os problemas de saúde é particularmente ilustrada por Nunes (1997), que considera, no contexto por si estudado, ser o recurso ao médico um dos primeiros passos, e por alguns autores (Freidson, 1960, Mechanic, 1969 e Coe, 1970, cit. in Mckinlay, 1981) que tendo em conta contextos mais gerais, parecem atribuir a primazia à auto-medicação. Podemos considerar que a priorização e a organização dos itinerários terapêuticos varia em função de um conjunto de factores, de que destacaríamos os seguintes: 1) O tipo de enfermidade e a maior ou menor severidade ou exuberância com que os sintomas se manifestam. Neste contexto, verificamos que perante uma doença grave e 35 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES persistente o indivíduo começará por recorrer à medicina convencional para acabar nas mãos de uma bruxa ou ‘sábia’, enquanto que, por exemplo, face a entorses, fracturas ou “espinhela caída”, a pessoa acorrerá inicialmente ao ‘endireita’ e só se o processo de cura se complicar a que procurará os serviços hospitalares; 2) O maior ou menor grau de influência das ideias biomédicas sobre a pessoa ou a maior ou menor falta de confiança nos médicos; 3) Experiências anteriores bem ou mal sucedidas. Por exemplo, se o comprimido que a vizinha emprestou resultou em alívio das dores de cabeça, então é necessário adquiri-los, por sua iniciativa e sem comparticipação, de molde a estar prevenida para uma próxima manifestação do sintoma; 4) Visão distorcida de determinados ramos da medicina, pois perante um quadro neurológico o indivíduo recorre mais depressa à bruxa do que ao psiquiatra, dado que a consulta psiquiátrica redundaria num anátema social para o indivíduo e na sua consequente descredibilização perante os outros. 5) O sexo dos pacientes, uma vez que a mulher recorre mais depressa e com mais frequência ao médico do que o homem, o qual protela até à última a sua deslocação ao médico, aguentando-se mais com os cuidados que a mulher, por norma, lhe preta em casa. Embora os factores que concorrem para a definição dos itinerários terapêuticos sejam diversificados e inter-actuantes, no entanto, permitem-nos, desde já, alguma fundamentação sobre o objecto do próximo ponto do trabalho e devem constituir para os profissionais de saúde algumas pistas de reflexão sobre o tipo de procura de cuidados de saúde e os aspectos que podem favorecer ou dificultar a prestação dos mesmos. 36 ANÁLISE DAS IMPLICAÇÕES DAS CRENÇAS E DAS PRÁTICAS MÉDICAS ... MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 5. ANÁLISE DAS IMPLICAÇÕES DAS CRENÇAS E DAS PRÁTICAS MÉDICAS TRADICIONAIS NA PROCURA E NA PRESTAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE Partindo do pressuposto, amplamente defendido pelos antropólogos, de que as crenças culturais exercem uma marcada influência sobre a experiência e o comportamento, Fitzpatrick (in Fitzpatrick et al., 1984) considera que as crenças relativas às enfermidades determinam a forma como os pacientes agem face aos sintomas, do mesmo modo que sustenta que os conceitos leigos sobre as enfermidades têm implicações no domínio da prestação de cuidados de saúde. De igual modo, tem sido sublinhada a importância que as variáveis psicossociais (Eisenberg & Kleinman, 1981) e culturais (Lewis, 1981), de que as crenças e as práticas quotidianas são uma componente, têm sobre o modo como as pessoas respondem às doenças e como traçam os seus próprios prognósticos, além de influenciarem o risco do indivíduo se vir a tornar doente. A decisão dos indivíduos em procurarem cuidados de saúde encontra-se, deste modo, social e culturalmente mediada. Como salienta Twaddle (1981), os sintomas são sempre objecto de negociação com outros, isto é, com os membros da família, amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Suchman (1964, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) sustenta que ¾ dos sintomas comunicados ao médico foram discutidos antecipadamente com uma pessoa leiga, a qual os terá considerado relevantes ou não, interferindo na decisão de procurar os cuidados de saúde. É neste sentido que Freidson (1960, cit. in McKinlay, 1981) se refere ao papel que as redes sociais desempenham no domínio do estabelecimento leigo da enfermidade, do 37 ANÁLISE DAS IMPLICAÇÕES DAS CRENÇAS E DAS PRÁTICAS MÉDICAS ... MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES reconhecimento dos sintomas e ao nível da decisão pela auto-medicação. É ainda Freidson (1970, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) que afirma que a procura de cuidados é organizada através do ‘sistema leigo de referência’, podendo este inibir o recurso aos serviços de saúde, abrindo assim caminho à exploração de outras formas alternativas de cuidados ou de autocuidados. Ora, como sustentam Good e Good (1981), o reconhecimento das diferenças culturais por parte da prática clínica tem sido muito pouco empreendido, sobretudo na compreensão das diferentes formas como os pacientes exprimem os seus sintomas. Daqui que os autores insistam na necessidade das ciências sociais, particularmente a antropologia médica, disponibilizarem aos médicos ‘códigos culturais’ que lhes permitam contextualizar os sintomas dos seus pacientes nas suas realidades sociais e culturais. Como temos vindo a referir, os padrões de sintomas e a procura de cuidados de saúde variam em função de cada sub-cultura médica, o que compromete a eficácia das consultas médicas em termos das respostas terapêuticas mais adequadas, mercê do seu carácter limitado, padronizado e exclusivamente centrado na doença. É neste preciso contexto que Good e Good (1981) consideram caber ao médico de família empreender a tradução entre as sub-culturas médicas populares e a profissional. Autores como Freidson e Harwood (1974; 1971, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) têm sublinhado os problemas de comunicação e a distância que existe entre o modo como os leigos concebem a doença, com base nas suas crenças e nas suas próprias conceptualizações, e a forma como o fazem os médicos e os restantes profissionais de saúde. No entanto, também há quem considere esta pretensa conflitualidade demasiado empolada e enganosa, uma vez que uma coisa pode ser a medicina formal, tal como o modelo biomédico a exprime, e outra coisa distinta será a prática clínica dos médicos, mais próxima e 38 ANÁLISE DAS IMPLICAÇÕES DAS CRENÇAS E DAS PRÁTICAS MÉDICAS ... MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES mais permeável aos conceitos leigos dos pacientes (Lock, 1982 e Gaines, 1979, cit. in Fitzpatrick et al., 1984). Parece-nos, todavia, que persiste a tendência para os profissionais de saúde subestimarem os seus pacientes, considerando-os inaptos para compreenderem a sua linguagem e o seu saber, do mesmo modo que raramente valorizam e integram no processo de diagnóstico e no processo terapêutico as suas concepções leigas, com evidentes prejuízos no desenvolvimento do processo clínico. A circunstância das pessoas recorrerem preponderantemente aos auto-cuidados, com base na farmacopeia tradicional ou na cedência de medicamentos, pode acarretar consequências ao nível do diagnóstico das doenças e ao nível do tratamento das enfermidades (Eisenberg & Kleinman, 1981), sem que tal signifique negar as virtualidades terapêuticas a esses recursos, apenas mostrando a necessidade dos mesmos serem integrados num sistema amplo e coerente de cuidados de saúde. Como Crandall e Duncan (1981, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) constataram, num estudo levado a cabo junto de famílias de Chicago, as visitas ao médico estavam associadas à crença na eficácia da medicina, associação que parece ser igualmente válida no uso de serviços preventivos (Dutton, 1978, cit. in Fitzpatrick et al., 1984). Isto permite-nos considerar que as afirmações muito comuns na aldeia, por nós investigada, de que face a determinados sintomas “os médicos disso não percebem nada”, possa estar associada à não procura de cuidados médicos ou à procura de cuidados alternativos. Também a aceitação de determinados níveis de sintomas (Blaxter & Paterson, 1982, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) a existência de expectativas baixas de saúde ou de crenças fatalistas (Scrambler & Scrambler, cit. in Fitzpatrick et al., 1984), ou ainda ideias segundo as quais a masculinidade do homem o leva a protelar o recurso aos serviços de saúde, como nós 39 ANÁLISE DAS IMPLICAÇÕES DAS CRENÇAS E DAS PRÁTICAS MÉDICAS ... MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES encontramos, podem ter como consequência aquilo que Last (1963, cit. in Fitzpatrick et al., 1984) designou de “illness iceberg” e que traduz o facto da maioria dos sintomas de enfermidade serem ignorados ou receberem uma atenção não médica, o que pode acarretar a existência de muitas enfermidades encobertas (Epsom, 1969, cit. in Fitzpatrick et al., 1984). A integração, sem preconceitos e sem desvalorização das práticas médicas ancestrais, dos diferentes sub-sistemas leigos de saúde num sistema único e coerente, articulado com o sistema de saúde moderno, reunindo velhos e novos saberes num projecto participativo de saúde pluricultural, que permitisse retirar da clandestinidade uma parte considerável da procura e da prestação de cuidados de saúde, decerto contribuiria para a melhoria quer dos serviços de saúde tradicionais, quer dos serviços modernos, com inegáveis repercussões na qualidade de vida das pessoas. Facilmente se conclui do que fica exposto que um sistema de saúde, para poder implementar cuidados de saúde progressivamente mais eficazes junto da população que serve, tem uma necessidade imperiosa em conhecer as crenças das pessoas relativas à saúde e à doença, bem como as práticas a que elas recorrem quando se trata de obter a cura para as suas enfermidades. 40 CONCLUSÃO MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES 6. CONCLUSÃO Embora possamos não ter correspondido às expectativas que o tema do trabalho eventualmente possa ter gerado, todavia, para nós tratou-se de um projecto extraordinariamente enriquecedor, que, por um lado, nos permitiu tomar contacto com teorias e com perspectivas fundamentais que nos estimularam reflexões sobre a necessidade de reconceptualização da medicina e das suas práticas e, por outro, nos permitiu mergulhar de forma mais atenta em algumas das nossas raízes culturais. O que nos parece ser, no presente trabalho, mais gerador do nosso entusiasmo é precisamente a percepção de que o mesmo é um projecto inacabado que nos abre caminho a posteriores aprofundamentos e desenvolvimentos. Neste sentido, estamos convictos que seria relevante proceder-se à realização de estudos de natureza quantitativa e qualitativa que permitissem determinar com base em dados mensuráveis as implicações que as crenças e as práticas médicas tradicionais têm sobre a procura de cuidados de saúde e a oferta dos mesmos, estudando-se também em pormenor a o tipo e a qualidade da relação que se estabelece entre o médico e o doente. Seria igualmente interessante investigar como, no dia a dia das pessoas, se articulam e se compatibilizam as concepções médicas que possuem com as suas crenças e práticas tradicionais, isto é, que conflitos se geram?, que predomínios ocorrem?, em que situações?, etc. Num outro plano, pensamos que era fundamental que os médicos e os profissionais de saúde em geral se predispusessem a reflectir sobre as problemáticas que grosseiramente aqui foram abordadas e, sobretudo, que reformulassem as suas próprias concepções e os seus 41 CONCLUSÃO MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES procedimentos clínicos em função dos contributos que as ciências sociais lhes podem proporcionar, de modo a tornar a medicina mais eficaz. Quão importante seria levar as autoridades sanitárias e os profissionais de saúde a reconhecerem que a medicina é algo mais que os paradigmas que aprenderam nas faculdades e que mais que um conjunto de saberes e de técnicas de algum esoterismo científico, ela é fundamentalmente um fenómeno sociocultural carregado de diferentes significados. 42 BILIBOGRAFIA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Atkinson, P. (1980). From Horney to Vinegar: Lévi-Strauss in Vermont. In P. Morley & R. Wallis (Ed.). Culture and Curing. Anthropological Perspectives on Traditional Medical Beliefs and Practices (2ª ed., pp. 168-188). Pittsburgh: University of Pittsburgh Press. Bergner, M. & Gilson, B. S. (1981). The Sickness Impact Profile: The Relevance of Social Science to Medicine. In L. Eisenberg & A. Kleinman (Ed.), The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I, pp. 135-150). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Eisenberg, L. & Kleinman, A. (Eds.). (1981). The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Fitzpatrick, R. et al. (1984). The Experience of Illness. New York: Tavistck Publications. Good, B. J. & Good, M.-J. D. (1981). The Meaning of Symptons: A Cultural Hermeneutic Model for Clinical Practice. In L. Eisenberg & A. Kleinman (Ed.), The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I, pp. 165-196). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Good, B. J. (1996). Medicine, rationality, and experience: An anthropological perspective (3ª ed.). Cambridge: Cambridge University Press. Hart, D. V. (1980). Disease Etiologies of Samaran Filipino Peasants. In P. Morley & R. Wallis (Ed.). Culture and Curing. Anthropological Perspectives on Traditional Medical Beliefs and Practices (2ª ed., pp. 57-98). Pittsburgh: University of Pittsburgh Press. 43 BIBLIOGRAFIA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Kearney, M. (1980). Spiritualist Healing in Mexico. In P. Morley & R. Wallis (Ed.). Culture and Curing. Anthropological Perspectives on Traditional Medical Beliefs and Practices (2ª ed., pp. 19-39). Pittsburgh: University of Pittsburgh Press. Lewis, G. (1981). Cultural Influences on Illness Behavior: A Medical Anthropological Approach. In L. Eisenberg & A. Kleinman (Ed.), The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I, pp. 151-162). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Lüdke, M. & André, M. E. (1986). Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. S. Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda. McKinlay, J. B. (1981). Social Network Influences on Morbid Episodes and the Career of Help Seeking. In L. Eisenberg & A. Kleinman (Ed.), The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I, pp. 77-107). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Morley, P. (1980). Culture and the Cognitive World of Traditional Medical Beliefs: Some Preliminary Considerations. In P. Morley & R. Wallis (Ed.). Culture and Curing. Anthropological Perspectives on Traditional Medical Beliefs and Practices (2ª ed., pp. 1-18). Pittsburgh: University of Pittsburgh Press. Nunes, B. (1997). O Saber Médico do Povo. Lisboa: Fim de Século Edições. Petersdorf, R. G. & Feinstein, A. R. (1981). An Informal Appraisal of the Current Status of ‘Medical Sociology’. In L. Eisenberg & A. Kleinman (Ed.), The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I, pp. 27-48). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Pfifferling, J.-H. (1981). A Cultural Prescription for Mediocentrism. In L. Eisenberg & A. Kleinman (Ed.), The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I, pp. 197222). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. 44 BIBLIOGRAFIA MÓDULO: SAÚDE E DOENÇA NAS POPULAÇÕES Sournia, J.-C. (1995). História da Medicina. Lisboa: Instituto Piaget. Stoeckle, J. D. & Barsky, A. (1981). Attributions: Uses of Social Science Knowledge in the ‘Doctoring’ of Primary Care. In L. Eisenberg & A. Kleinman (Ed.), The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I, pp. 223-240). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Twaddle, A. C. (1981). Sickness and the Sickness Career: Some Implications. In L. Eisenberg & A. Kleinman (Ed.), The Relevance of Social Science for Medicine (Vol. I, pp. 111-133). Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. 45