UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE
BRASÍLIA
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Direito
A LEI MARIA DA PENHA E O BEM JURÍDICO TUTELADO
Aluna: Josemary Felix Monteiro
Orientadora: Profª. MSc Eneida Orbage de Brito Taquary
BRASÍLIA
2009
JOSEMARY FELIX MONTEIRO
A LEI MARIA DA PENHA E O BEM JURÍDICO TUTELADO
Trabalho apresentado ao curso de graduação
em Direito da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial para o Título
de Bacharel em Direito.
Orientadora: Profª. Msc. Eneida Orbage de
Britto Taguary
Brasília
2009
Trabalho de autoria de Josemary Felix Monteiro, intitulado “A LEI MARIA DA
PENHA E O BEM JURÍDICO TUTELADO”, requisito parcial para a obtenção do grau
de Bacharel em Direito, Defendida e aprovada em __________________________,
pela banca examinadora constituída por:
_________________________________________
Profª. Eneida Orbage de Britto Taguary
Orientadora
_________________________________________
Professor
Curso de Direito – UCB
_________________________________________
Professor
Curso de Direito – UCB
Brasília
2009
Dedico esta monografia aos meus filhos
Polyanna, Andressa e Guilherme, de quem
veio o estímulo e todo o apoio. Aos meus pais
pelo
amor
incondicional
em
todos
os
momentos da minha vida. A minha mãe, que
acreditou no meu sonho e me ajudou a tornálo realidade. Aos meus netos que trouxeram
muitas felicidades em minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, autor da
vida, que por meio de Seu Filho Jesus Cristo,
concedeu-me
força,
paciência
e
perseverança, ao exemplo de Santa Maria,
ante
muitas
dificuldades
ao
longo
da
graduação. A minha família, que sempre
esteve do meu lado nesta caminhada e aos
meus netos que estão chegando me dando
muita
alegria.
sinceramente,
aos
Também
meus
agradeço,
amigos
e
à
professora Eneida Orbage de Britto Taguary –
pela orientação e apoio.
MARIA MARIA
Maria, Maria e um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer no planeta
Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive apenas agüenta
Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo essa marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida
(Milton Nascimento e Fernando Brant)
RESUMO
MONTEIRO, Josemary Felix. A Lei Maria da Penha e o Bem Jurídico Tutelado.
Brasília. 2009. 70 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito)Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009.
A monografia que ora se apresenta versa sobre o tema a Lei Maria da Penha e o
Bem Jurídico Tutelado. O presente trabalho tem o intuito de analisar a proteção as
mulheres vítimas de violência doméstica, assim como, dar ênfase ao bem jurídico
tutelado pela Lei Maria da Penha, visando à integridade da mulher que passa por
diversos sofrimentos: físico, sexual, psicológico e dano patrimonial e moral, desde
que ocorram no âmbito da unidade doméstica, ou seja, âmbito familiar ou em
qualquer relação intima de afeto. A relevância do bem jurídico protegido legitima a
atuação estatal. Outro aspecto abordado é a violência de gênero que tem origem na
ideologia patriarcal culturalmente elaborada pelo masculino, a mulher não tem o
mesmo status que o homem. Historicamente, as relações entre mulheres e homens
são desiguais, pois marcados pela subordinação da população feminina aos ditames
masculinos que impõem norma de conduta às mulheres e as devidas correções ao
descumprimento dessas regra.Verifica-se também uma ofensa aos direitos humanos
inerentes à`mulher exigindo por parte do Estado uma ação afirmativa, para
neutralizar a violência de gênero. Ao final uma discussão acerca do tipo de ação
penal cabível aos casos de lesões corporais leves praticados com violência
doméstica e familiar contra a mulher. Para a confecção desse estudo foram
realizadas pesquisas na legislação, doutrina, jurisprudência e artigos científicos.
Palavras-chave: Bem Jurídico Tutelado. Lei Maria da Penha. Violência de gênero.
Ação penal.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9 CAPÍTULO 1 - CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA ... 12 1.1 ORIGEM DA “LEI MARIA DA PENHA” SUA DENOMINAÇÃO E SITUAÇÃO
ATUAL .......................................................................................................... 13 1.2 ANTECEDENTES LEGISLATIVOS .............................................................. 16 1.3 A LEI MARIA DA PENHA E O BEM JURÍDICO TUTELADO ....................... 17 CAPÍTULO 2 - VIOLÊNCIA DE GÊNERO ................................................................ 19 2.2 FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO ................... 25 2.2.1 Violência física ............................................................................................ 26 2.2.2 Violência psicológica ................................................................................. 27 2.2.3 Violência sexual .......................................................................................... 28 2.2.4 Violência patrimonial.................................................................................. 29 2.2.5 Violência moral ........................................................................................... 32 CAPÍTULO 3 - AÇÃO PENAL .................................................................................. 34 3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES ....................................................................... 34 3.2 AÇÃO PENAL PÚBLICA .............................................................................. 35 3.2.1 Ação penal pública incondicionada .......................................................... 36 3.2.2 Ação penal pública condicionada à representação................................. 38 3.2.3 Ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça 43 3.3 AÇÃO PENAL PRIVADA .............................................................................. 44 3.3.1 Ação penal privada exclusiva .................................................................... 45 3.3.2 Ação penal privada personalíssima .......................................................... 47 3.3.3 Ação penal privada subsidiária da pública .............................................. 47 3.3.4 Tipo de ação penal cabível aos crimes de lesão corporal leve na Lei
11.340/06 ...................................................................................................... 50 3.3.5 Conceito de violência doméstica .............................................................. 51 3.3.6 Sujeito ativo e sujeito passivo da violência doméstica e familiar contra
a mulher ....................................................................................................... 54 3.3.5 A representação nos crimes de lesão corporal leve do parágrafo 9º do
artigo 129 do Código Penal ....................................................................... 61 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 68 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 70 9
INTRODUÇÃO
A temática abordada na presente monografia é acerca da Lei nº 11.340/06,
de 07 de agosto de 2006, conhecida como “Lei Maria da Penha” em homenagem à
biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica. Ela
veio com a missão de proporcionar instrumentos adequados para enfrentar um
problema que aflige grande parte das mulheres no Brasil e no mundo, que é a
violência de gênero.
O Brasil atendeu à recomendação da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, da Organização dos Estados Americanos. A partir da Emenda
Constitucional nº 45, que acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição
Federal,
foi
conferido
“status”
constitucional
aos
tratados
e
convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem devidamente aprovados pelo
Congresso Nacional. Justifica-se assim a expressa referência, na ementa da Lei, à
Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher
e à Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher.
Sendo a lei inserida no ordenamento jurídico pátrio, sua análise é necessária
à luz dos princípios constitucionais, penais e processuais penais, busca se verificar
até que ponto o Estado tem legitimidade para intervir na liberdade dos cidadãos e se
o bem jurídico tutelado pela Lei nº 11.340/2006, já não possuía proteção legal ou se,
ainda assim, mereceria destaque especial com novos instrumentos em legislação
própria.
O
questionamento
acerca
de
sua
constitucionalidade
tem
dois
posicionamentos. Os que defendem a inconstitucionalidade asseveram, em apertada
síntese, que a lei fere o princípio da isonomia, estabelecendo discriminação entre
homens e mulheres somente em função do sexo, suprimindo um direito fundamental
assegurado pelo legislador constituinte originário.
Por outro lado, defensores da constitucionalidade da lei buscam fundamentála na necessidade do Estado agir positivamente através da adoção de ações
afirmativas, para garantir não só a igualdade formal entre homens e mulheres, mas
também a igualdade no plano material, por meio de implementação de políticas
10
públicas para a superação das desigualdades que existem factualmente entre
homens e mulheres.
Ao tutelar exclusivamente, com base no gênero, mulher, evidenciam-se
discussões não menos relevantes também quanto à efetividade da nova lei, como
instrumento hábil, ou não, a diminuir os índices de violência doméstica e familiar
contra a mulher, isso porque, por força do artigo 41, afastou-se os institutos
despenalizadores previstos na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos
Juizados Especiais Criminais).
Portanto, questiona-se a constitucionalidade desse dispositivo da Lei nº
11.340/06, uma vez que a Constituição Federal estabeleceu a criação dos Juizados
Especiais Criminais para o processo e julgamento dos crimes de menor potencial
ofensivo (artigo 98, inciso I, da Constituição Federal), definidos, dentre eles, delitos
cuja reprimenda penal máxima não ultrapasse 2 (dois) anos (artigo 61 da Lei
9.099/05 e artigo 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/01), possibilitando a aplicação
de diversos benefícios ao acusado.
Esta monografia foi escolhida em face das grandes discussões em torno de
seus dispositivos, que se limitam à proteção específica da mulher, levando-se em
consideração a igualdade entre homens e mulheres em direito e obrigações,
cogitando-se sobre a constitucionalidade dessa medida.
A
pouco tempo não se cogitava na necessidade de uma tutela legal
específica em torno de conflitos gerados no seio familiar, onde não havia a
intervenção estatal, sendo tratados como meros problemas intrafamiliares, mas que
aos poucos se revelaram como um problema social, uma vez que a família é a base
da sociedade, sendo assim reconhecida pelo próprio legislador constituinte, o qual
destacou no artigo 226, caput, da Constituição Federa, que “a família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado”.
É de grande importância este tema, pois uma vez sendo reconhecida a
necessidade do Estado intervir nas relações intrafamiliares com o objetivo de tutelar
a mulher contra a violência em seu ambiente doméstico, familiar ou de intimidade
(artigo 5º, da Lei nº 11.340/06), a lei traz avanços e também questionamentos
acerca da legalidade dessa medida. Contudo devem ser objeto de estudo e análise,
pois inserem novos conceitos e importantes instrumentos legais de repressão e
prevenção à violência doméstica e familiar.
11
Será analisado o instituto da discriminação positiva, tema relacionado
diretamente com o princípio da igualdade, que tem por objetivo combater a
discriminação e implementar medidas para erradicar a violência, não só de gênero,
superando a igualdade formal para estabelecer a igualdade material entre homens e
mulheres.
Para o desenvolvimento desta monografia, foi utilizado o método dedutivo de
abordagem, o qual parte do geral, com o emprego da técnica de pesquisa
bibliográfica, com consultas a livros jurídicos, artigos de revistas especializadas e
publicados na internet, pautando-se ainda pelo método teleológico ou interpretativo.
A pesquisa é composta de três capítulos, sendo o primeiro acerca das
considerações gerais da Lei nº 11340/2006; o segundo referente violência de
gênero; e o terceiro sobre ação penal e o tipo de ação penal cabível aos crimes de
lesão corporal leve na lei 11.340/06.
Com efeito, o primeiro capítulo preconiza o estudo da Lei nº 11.340/2006. O
capítulo discorre sobre a origem da Lei Maria da Penha sua denominação e situação
atual. Nesse contexto, também trata do bem jurídico tutelado.
O segundo capítulo trata da violência de gênero e das formas que esta pode
se manifestar, quais sejam, violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
O capítulo também dispõe a respeito das razões históricas da ascendência
masculina sobre a mulher e da violência de gênero como forma de violação dos
direitos humanos inerentes à mulher. Ainda no capítulo dois é feito o estudo do
espaço de ocorrência da violência doméstica, bem como os possíveis fatores que
podem causá-la.
O terceiro capítulo é de extrema importância, porquanto, versará sobre a ação
penal e tipo de ação penal cabível aos crimes de lesão corporal leve na Lei
11.340/06. Para tanto, mister fez-se necessário a análise da competência do sujeito
ativo; do sujeito passivo e a representação nos crimes de lesão corporal leve do
parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal.
12
CAPÍTULO 1 - CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA
Em vigor desde o dia 22 de setembro último, a Lei nº 11.340/2006, conhecida
como “Lei Maria da Penha” em homenagem a uma mulher vítima de violência
doméstica, responsável pela criação de mecanismos que visam coibir e prevenir a
violência doméstica e familiar contra a mulher veio com a missão de proporcionar
instrumentos adequados para enfrentar um problema em que aflige uma grande
parte das mulheres no Brasil e no mundo, que é a violência de gênero, revela-se no
presente trabalho, como a principal base de estudo 1 .
A República Federativa do Brasil assinou a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção
CEDAW), em 31 de março de 1981, sendo ratificada pelo Congresso
Nacional, em 1º de fevereiro de 1984, com reservas a alguns dispositivos,
porquanto, à época, a fim de compatibilizar suas normas com o
ordenamento jurídico pátrio, afastou a disposição concernente à igualdade
de direitos e obrigações entre homens e mulheres no âmbito da família, o
que o ordenamento jurídico pátrio, afastou a disposição concernente à
igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres no âmbito da
família, o que de fato não existia. 2
Todavia, em face do nascimento da nova ordem jurídica, como corolário da
Carta Política de 1988, responsável em determinar a igualdade entre
homens e mulheres, particularmente no que se refere à relação conjugal, o
governo brasileiro, em 1994, retirou as reservas ratificando integralmente a
Convenção. 3
Posteriormente, em 27 de novembro de 1995, o Brasil ratificou a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(Convenção de Belém do Pará) 4 , após ser adotada, em 06 de junho de 1994, pela
Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Após o comprometimento da República Federativa do Brasil, perante a
comunidade internacional, em combater a violência e a discriminação contra a
1
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Aspectos criminais da lei de Violência contra a Mulher. Jus
Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8916>. Acesso em: 18 abr. 2008.
22
Decreto Legislativo 26/94. BRASIL. Código penal. Coordenação de Antonio Luiz de Toledo Pinto,
Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
3
Decreto Presidencial 4.377/02. BRASIL. Código penal. Coordenação de Antonio Luiz de Toledo
Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
4
Decreto Legislativo 107.95. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006.
13
mulher, fazia-se necessário, no plano interno, a adoção de medidas que
consubstanciassem o convencionado. 5
1.1 ORIGEM DA “LEI MARIA DA PENHA” SUA DENOMINAÇÃO E SITUAÇÃO
ATUAL
A autora Leda Maria Hermann, ilustrou com brilhantismo a música de Milton
Nascimento para falar da origem da Lei em seu livro.
Ao longo da travessia, muitas foram as Marias que fizeram diferença. Não
importa se atendiam literalmente pelo nome. Foram e são, todas elas,
retratos – na maior parte das vezes anônimos – da Maria de Milton
Nascimento e Fernando Brant – Maria que é um dom, uma certa magia, uma
força que nos alerta. Essas tantas Marias levantaram bandeiras,
conquistaram espaços, saíram às praças e ruas, lutaram pelo voto e pelo
direito de greve, pela igualdade de oportunidades e salários, por respeito e
inclusão num mundo racional e masculino. Em alguns momentos da
trajetória declararam guerra aos homens; em outros, aderiram à
racionalidade competitiva do paradigma masculino, para conquistar seu
lugar no mercado de trabalho e nos espaço públicos. Ainda sofrem
discriminação nos salários; ainda são minoria nos lugares de Poder; ainda
precisam provar em dobro capacidade e competência para manterem suas
6
vitórias.
A origem da Lei 11.340/2006, além das recomendações feitas pela
Comissão interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos, está na ineficácia da Lei 9.099/1995, que regulava o tema e em
que incidia seus institutos despenalizadores, bem como nas legislações
especiais sobre a violência contra a mulher e nos modelos de medidas
cautelares civis e criminais então vigentes. 7
A denominação do caso Maria da Penha ocorreu em maio de 1983, em
Fortaleza, Ceará, envolvendo a biofarmacêutica Cearense Maria da Penha Maia
Fernandes que, na ocasião, sofreu tentativa de homicídio provocada pelo então
marido Marco Antônio Heredia Viveiros, professor na Faculdade de Economia. A
vítima recebera, na ocasião, um tiro nas costas que a tornou paraplégica. O caso se
5
Dec. Pres. 1973/96. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006.
6
HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher: considerações à Lei nº
11.340/2006: contra a violência doméstica e familiar, incluindo comentários artigo por artigo.
Campinas, SP: Servanda Editora, 2008. p. 15-16.
7
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei “Maria da Penha”
Alguns comentários. Jus Navigandi, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9006>. Acesso em: 18 abr. 2008.
14
tornou emblemático na medida em que o réu foi condenado em duas ocasiões (1991
e 1996), mas não chegou a ser preso, recorrendo sempre em liberdade.
8
Maria da Penha se mobilizou e procurou os organismos internacionais, a
saber, o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da
Mulher (Cladem), bem como o Centro para a Justiça e o Direito
Internacional (Cejil). Em 2001, a Organização dos Estados Americanos
(OEA) responsabilizou o Estado Brasileiro por negligência e omissão em
relação à violência doméstica e recomendou a tomada de medidas com
base no Caso Maria da Penha. Marco Antônio acabou sendo preso apenas
em 2003, ou seja, 20 anos depois do fato, acompanhado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. Tudo isso redundou na criação da Lei
9
11.340/2006.
A lei fundou-se em normas e diretrizes consagradas na Constituição Federal,
artigo 226, parágrafo 8º, na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre a
eliminação de todas as formas de violência contra a mulher e na Convenção
interamericana para Punir e Erradicar a Violência contra a mulher. Registre-se o
admirável fundamento político-jurídico da lei. Em cerimônia realizada no Palácio do
Planalto, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em 07 de agosto de
2006, com a presença de várias autoridades e de Maria da Penha Maia Fernandes,
promulgou a Lei 11.340/2006. Em justíssima homenagem à luta pela justiça de
Maria
da
Penha
Fernandes,
que
ficou
marcada
para
sempre
física
e
psicologicamente pela violência sofrida, mas teve força e coragem para lutar contra
a violência doméstica, a lei foi denominada “Maria da Penha”, e entrou em vigor em
22 de setembro de 2006. 10
Segundo dados obtidos em reportagem, publicada na internet, que trata do
progresso das mulheres no Brasil. Esta reportagem relata o caso “Maria da
Penha” expondo sobre a condenação de seu marido, Marcos Antônio
Heredias Viveiros, autor de homicídio contra Maria da Penha Maia
Fernandes. Dispõe sobre a condenação de Marco Antônio a pena de 10
anos, da qual não cumpriu 1/3 em regime fechado. Preso em setembro de
2002, foi posto em regime aberto, retornando para o Estado do Rio Grande
do Norte. 11
8
SOUZA, Luiz Antônio de; KÜMPEL, Vitor Frederico. Violência doméstica e familiar contra a
mulher: Lei 11.340/2006. São Paulo: Método, 2007. p. 15.
9
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica (Lei Maria da Penha):
Lei 11.340/2006. Comentada artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. P.11-12.
10
CUNHA; PINTO, 2007, p. 10
11
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 15-16.
15
É de se lembrar que à época em que foi perpetrado o crime, no ano de 1983,
ainda não entrara em vigor a Lei 8.930/94 (etiquetando o homicídio qualificado como
hediondo), o que permitiu a progressão de regime ao condenado. 12
Dentre as deliberações tomadas pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, encontra-se o pagamento de uma indenização de 20 mil dólares
em favor de Maria da Penha, a título de reparação pelo dano sofrido. Esse
pagamento, segundo a reportagem acima mencionada, é objeto de
discussão entre a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM) e
governo do Estado do Ceará. Contando 61 anos de idade, completados em
fevereiro de 2006, Maria da Penha se tornou uma das coordenadoras da
Associação dos Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (APAVV), na
cidade de Fortaleza. Conforme relatou Angela Santos, em reportagem
publicada na Internet, Maria da Penha afirmou: . 13
Por indicação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM),
Maria da Penha recebeu, em fevereiro de 2005, do Senado Federal, o prêmio
Mulher Cidadã Bertha Lutz, atribuído àquelas que se destacam na defesa dos
direitos das mulheres. 14
Para mim foi muitíssimo importante denunciar a agressão, porque ficou
registrado internacionalmente, através do meu caso, que eram inúmeras as
vítimas do machismo e da falta de compromisso do Estado para acabar
com a impunidade. Me senti recompensada por todos os momentos nos
quais, mesmo morrendo de vergonha, expunha minha indignação e pedia
justiça para meu caso não ser esquecido. 15
Atualmente, com sete anos de atraso, Maria da Penha Maia Fernandes, 63
anos, que deu o nome à lei que pune com mais rigidez os agressores de mulheres,
receberá uma indenização de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), do governo do
Ceará. Em 2001, a cearense conseguiu uma vitória na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que determinou
que o Estado do Ceará pagasse uma indenização de US$ 20 mil por não ter punido
judicialmente o homem que a agredia e que até tentou mata-la: seu ex marido. Após
12
CUNHA; PINTO, 2007, p. 15.
CUNHA; PINTO, 2007, p. 15-16.
14
CUNHA; PINTO, 2007, p. 15-16.
15
SANTOS, Angela. Violência doméstica: um caso exemplar. Disponível em:
<www.mulheresnobrasil.org.br>. Acesso em: 10 out. 2007.
13
16
postergar o pagamento, o Estado decidiu finalmente pagá-la, em valores
corrigidos. 16
1.2
ANTECEDENTES LEGISLATIVOS
Pode-se mencionar como antecedentes legislativo, no que se refere a
disposições normativas voltadas à proteção de vítimas de violência doméstica, a Lei
10.455/02, que acrescentou ao parágrafo único do art. 69, da Lei 9.099/95, a
possibilidade de o juiz determinar, como medida cautelar, o afastamento do autor do
fato do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. 17
Outro antecedente ocorreu em 2004, com a lei 10.886/04, de 17 de junho de
2004, que a violência doméstica passou a ser disciplinada especificamente como
crime, porquanto, ao promover alterações no art. 129 do Código Penal,
acrescentando os parágrafos 9º e 10, criou o tipo de lesão corporal leve, decorrente
de violência doméstica, aumentando a pena mínima de 3 (três) para 6 (seis)
meses. 18
Mesmo com as alterações propostas pelas Leis 10.445/02 e 10.886/04, a
violência doméstica continua acumulando altos índices, isso porque, segundo alguns
estudiosos, “a questão continua sob o crivo dos Juizados Especiais Criminais e sob
a incidência dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/1995”. 19
Segue a marcha legislativa, em busca de instrumentos jurídicos voltados a
prevenir e a coibir a violência doméstica, surgindo, em 08 de agosto de 2006, a Lei
11.340/06, após aprovação do Projeto de Lei nº 4559, de 2004, fruto do Grupo de
Trabalho Interministerial criado pelo Decreto nº 5.030, de 31 de março de 2004, à
qual passou a ser conhecida como Lei Maria da Penha. 20
16
Informação recebida por e-mail, no dia 13 de março de 2008.
BASTOS, Marcelo Lessa. A violência doméstica contra a mulher e a Lei nº 11.340/06. Revista da
EMERJ, v. 9, n. 37, p. 134-135, 2007.
18
“Art. 129...
19
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei “Maria da Penha”.
Alguns comentários. ADV Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas, n. 37, p. 1, dez. 2006.
20
BASTOS, n. 37, p. 1, dez 2006.
17
17
1.3
A LEI MARIA DA PENHA E O BEM JURÍDICO TUTELADO
A Lei “Maria da Penha” criou um binômio para a incidência do objeto tutelado,
composto de um elemento formal e de um elemento espacial. No que diz respeito à
forma, para que incida a norma jurídica, é imprescindível a ocorrência do efeito
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano patrimonial ou moral em
relação à mulher. Observe-se que o artigo 5º, caput, não se preocupa com a causa,
tanto que a lei é expressa ao dizer “qualquer ação ou omissão”. Basta o efeito acima
para que incida formalmente a Lei de Violência contra a Mulher para a defesa da
mulher. 21
O bem jurídico tutelado pela Lei Maria da Penha, como se vê, é a integridade
da mulher, física, moral e econômica, abarcando desde a tutela mais gravosa,
correspondente à morte, passando pela lesão corporal e culminando com qualquer
espécie de sofrimento. 22
Porém, somado ao primeiro elemento, é imprescindível o segundo, de
natureza espacial. A Lei de Violência contra a Mulher, no artigo 5º, caput, considera
violência doméstica e familiar contra a mulher, para os efeitos da legislação,
“qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, ocorrida:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou em vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas.
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa.
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais
independem de orientação sexual. 23
enunciadas
neste
artigo
O legislador fixou o referido âmbito espacial para a incidência da tutela acima
descrita e que compreende as relações de casamento, união estável, família
monoparental, família homoafetiva, família adotiva, vínculos de parentesco em
sentido amplo e ainda introduz a ideia de família de fato, compreendendo, esta
21
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 69.
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 69.
23
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 70.
22
18
última, pessoas que não tem vínculo jurídico familiar, mas que se consideram
aparentadas, como amigos muito próximos e até pessoas que se agregam para fins
outros como o caso de repúblicas, casas abrigo e albergues. 24
É bom deixar assentado que muito embora tenha sido enunciadas de maneira
bastante clara a enorme incidência de relações familiares e a nova noção de família
de fato, que liga pessoas que meramente se consideram próximas pelos mais
variados motivos (desde a finalidade econômica e assistencial, até a contratual), o
legislador fez incluir expressamente os homossexuais quando estabeleceu no
parágrafo único ser irrelevante a orientação sexual para fins de proteção legal. 25
Diante do amplo espectro da lei até relações protegidas pelo biodireito
passam a estar tuteladas, de maneira que, se o transexual fizer cirurgia modificativa
de sexo e passar a ser considerada mulher no registro civil, terá efetiva proteção. 26
Enunciando de maneira didática, concluíram que estão espacialmente
albergadas as seguintes categorias: os cônjuges, os companheiros, os concubinos,
os namorados, os amigos, a família mono parenteral, os parentes consanguíneos,
afins e legais, os que se consideram meramente aparentados, todos que tenham
qualquer espécie de relação pessoal ou familiar, os que já coabitaram e que não o
fizeram. O legislador preocupou-se, especialmente, com outras pessoas não
mencionadas acima e que tenham participado de alguma maneira do espaço físico
considerado unidade doméstica. Aqui estão incluídos todos os empregados
domésticos, porteiros, recepcionistas, motoristas e diaristas (as esporadicamente
agregadas, consoante o artigo 5º, inciso I). ou seja, qualquer pessoa que comungue,
ainda que por uma única vez, no cuidado de um idoso. Se ambas forem agredidas,
terão integral proteção da Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Corroborando esse entendimento, estabelece o item 16 da Exposição de motivos
que “As relações e o espaço intra familiares foram historicamente interpretados
como restritos e privados, proporcionando a complacência e a impunidade”. Aí está
o motivo da importância do critério espacial a demonstrar que a tutela da lei é ampla
e irrestrita e que, mesmo tendo índole privada, passa a ter natureza pública. 27
24
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 70.
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 70.
26
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 70-71.
27
SOUZA KÜMPEL, 2007, p. 71.
25
19
CAPÍTULO 2 - VIOLÊNCIA DE GÊNERO
A Lei nº 11340/2006 é voltada para a prevenção e repressão da chamada
“violência de gênero”, o gênero, no entanto, aborda diferenças sócio-culturais
existentes entre os sexos masculino e feminino, que se traduzem em desigualdades
econômicas e políticas, colocando as mulheres em posição inferior à dos homens,
nas diferentes áreas da vida humana.
O estudo das ciências humanas, com o uso da categoria gênero, não só tem
revelado a situação desigual entre mulheres e homens, bem como tem mostrado
que a desigualdade não é natural e pode, portanto, ser transformada em igualdade,
promovendo relações democráticas entre os sexos.
Segundo Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Corrêa,
Compreender a difícil tarefa pretendida pela Lei nº 11.340/06, denominada
Lei Maria da Penha, significa observar que o mundo manteve, secularmente,
a legitimidade da violência de gênero, tornando esta, portanto,
institucionalizada, como enfoques estigmatizados da cultura e da religião,
impondo à mulher, consequentemente, uma vida de subjugação. 28
Dando seguimento ao pensamento das Autoras sobre a violência Institucional
de gênero, elas citam que a trajetória da mulher, no mundo, não tem sido tarefa fácil.
Aliás, para alcance de alguns direitos, destacando-se o exercício da cidadania e a
potencialidade de participar dos caminhos governamentais, a mulher muito arrostou,
até conseguir estabelecer direito pelas mulheres, no mundo: Nova Zelândia – 1893;
Alemanha – 1918: Suécia- 1919; Estados Unidos – 1920; Brasil – 1934; Canadá –
1940; China – 1949; Índia – 1950; México – 1953; Suíça – 1971; Iraque – 1980;
África do Sul – 1994; (ainda hoje com restrições do apartheid); Kwait – as mulheres
ainda não tinham o direito de votar, na data da referida pesquisa. Inter-Parliamentary
Union (Fev. 13, 2004). 29
A história de subjugação da mulher teve seu início há aproximadamente 4.000
a.C, já que, na antiguidade, havia tribos lideradas por mulheres, sendo que na Gália,
antes da invasão pelos romanos, era cultuada a religião denominada druidismo, a
28
CAMPOS, Amini Haddad; CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos humanos das mulheres. [s.
l.]: Juruá Editora, 2007. p. 99.
29
CAMPOS; CORRÊA, 2007, p. 99.
20
mesma crença dos celtas da Bretanha, atualmente território da Irlanda e Escócia.
Para celtas e gauleses, a mulher era considerada a única fonte da vida. Deus era
feminino, uma que a mulher dava à luz. Era a sociedade matrifocal. Tal sociedade
teria existido na Europa e na Ásia, aproximadamente no ano 35.000 a. C., quando
invasores foram introduzindo a cultura da guerra e da sociedade patriarcal. A
ideologia da superioridade do homem e, consequente subordinação da mulher, tem
pelo menos 2.500 anos. 30
Alguns dados interessantes são necessários para o esclarecimento das
vivências sexistas na contemporaneidade. Na Alexandria, no século I d.C.
Filon, filósofo helenista, lançou raízes argumentativas e ideológicas para a
subordinação das mulheres no mundo ocidental. De igual forma, para
Platão, a mulher tinha alma inferior e pouca racionalidade, vertendo-lhe os
adjetivos de insensata, sensual e carnal, cheia de vaidade e cobiça,
“apesar de ter sido criada a partir do homem”. Para Aristóteles, a fêmea era
um macho mutilado. O conhecimento racional era a mais alta conquista
humana, e assim, os homens, seriam superiores e mais divinos que as
mulheres, descritas como monstros desviados do tipo genérico humano,
31
emocionais e subjetivas.
Leda Maria Hermann, cita que há aproximadamente vinte mil anos, quando
os homens descobriram sua função reprodutora, intensificou-se a afirmação do
patriarcado. A convergência do masculino e do feminino, que harmonizava as
relações de poder e a convivência social e comunitária nas sociedades matriarcais
transformou-se em cisão, separando homens e mulheres: a mulher passou a ocupar
o espaço recluso da casa; o homem assumiu o domínio público. O poder, antes
serviço à comunidade tornou-se predominante: o homem passou a dominar; a
mulher, a ser dominada. Estava plantada a semente da violência no seio das
relações de gênero. 32
Desde a Antiguidade e ao longe da Idade Média e da idade Moderna, filhas
mulheres eram indesejáveis, pois não serviam à perpetuação da linhagem paterna e
ao serviço pesado da lavoura e do pastoreio; só para os trabalhos domésticos,
pouco lucrativos e, portanto, inferiores. Os casamentos eram decididos pelo pai, que
tinha o dever de ofertar ao pretendente um dote, como compensação pelo encargo
de manter e sustentar, a partir dali, a mulher que tomava por esposa. Da
30
CAMPOS; CORRÊA, 2007, p. 99-100.
CAMPOS; CORRÊA, 2007, p. 99-100.
32
HERMANN, 2008, p. 51-52.
31
21
subserviência à figura paterna a mulher passava diretamente à submissão e
obediência ao marido. 33
Restava-lhe a tarefa de parir e criar filhos e de, na sombra, providenciar fiel e
diligentemente o bem estar do seu homem provedor. Essa dominação do mais forte
sobre o mais fraco, fundamento do patriarcado, não afetou apenas as relações
homem e mulher; influiu decisivamente para a edificação de uma estrutura política
hierarquizada, de discriminação com base no gênero, raça, etnia, classe, cor, crença
e outros preconceitos, mecanismos vivos e dinâmicos de exclusão e tirania, que
surtem efeitos desagregadores e vitimizadores até os dias de hoje, marginalizando
mulheres, negros, homossexuais e pobres. 34
Como se vê, o desequilíbrio das relações de poder pautado no gênero
atravessa todos os espaços estruturais onde essas relações acontecem. A
resistência declarada a esse quadro de dominação, representada pelos movimentos
feministas, diz que a Lei Maria da Penha é o protótipo dessa dicotomia e a
confirmação de que na contramão do momento histórico presente a sociedade, o
Estado e as próprias mulheres persistem na sobrevalorização da intervenção penal
como instância de enfrentamento da violência doméstica.
35
Vale ressaltar que já existe farta jurisprudência no sentido de reconhecer a
constitucionalidade da Lei Maria da penha, a exemplo do seguinte julgado.
CRIMINAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LESÕES CORPORAIS –
INCONSTITUCIONALIDE – INOCORRÊNCIA – PRINCÍPIO DA ISONOMIA
– PENA EXACERADA – REDUÇÃO –SUBSTITUIÇÃO OU SUSPENSÃO
DA PENA – IMPOSSIBILIDADE. 1) Ainda que a Lei 11.340/06 contenha
pontos polêmicos e questionáveis, não há que se falar em
inconstitucionalidade da chamada Lei Maria da penha, pois a interpretação
do princípio constitucional da igualdade ou da isonomia não pode limitar-se
à forma semântica do termo, valendo lembrar que, igualdade, desde
Aristóteles, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais, na medida em que se desigualam. 2) Tendo a pena aflitiva sido
fixada com certa exacerbação, impõe-se adequá-la em quantidade
necessária e suficiente para reprovação e prevenção do delito. 3) Sendo o
agente reincidente e tendo o delito sido praticado com violência contra
pessoa, incabível a substituição da pena privativa de liberdade por
restritivas de direitos (artigo 44), bem como a suspensão da execução da
pena (artigo 77), em face da ausência de requisitos subjetivos para a sua
36
concessão. 4) Preliminar rejeitada. Recurso parcialmente provido.
33
HERMANN, 2008, p. 54.
HERMANN, 2008, p. 54.
35
HERMANN, 2008, p. 68-77.
36
BRASIL. Lei nº 11.340/06, 07 de agosto de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago.
2006. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03_Ato2004-2006/Leo/L11340.htm>. Acesso
em: 20 out. 2008.
34
22
Como bem salientou o Tribunal de Justiça Mineiro, mesmo que haja alguns
pontos polêmicos e questionáveis na Lei Maria da Penha, devem ser estendidos
seus efeitos a todos os discriminados que buscarem o Poder Judiciário, não sendo
necessária a eliminação da norma no ordenamento jurídico. Seguindo esse
raciocínio:
LEI MARI DA PENHA (LEI 11.340/2006) – INCONSTITUCIONALIDADE
SUSCITADA PELO JUÍZO DE 1º GRAU COMO ÓBICE À ANÁLISE DE
MEDIDAS ASSECURATÓRIAS REQUERIDAS – DISCRIMINAÇÃO
INCONSTITUCIONAL QUE SE RESOLVE A FAVOR DA MANUTENÇÃO
DA NORMA AFASTANDO-SE A DISCRIMINAÇÃO – AFASTAMENTO DO
ÓBICE PARA A ANÁLISE DO PEDIDO. A inconstitucionalidade por
discriminação propiciada pela Lei Federal 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)
suscitada a outorga de benefício legítimo de medidas assecuratórias
apenas às mulheres em situação de violência doméstica, quando o art. 5º,
II, c/c art. 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, não possibilitaria
discriminação aos homens em igual situação, de modo a incidir em
inconstitucionalidade relativa, em face do princípio da isonomia. Tal
inconstitucionalidade, no entanto, não autoriza a conclusão de afastamento
a lei do ordenamento jurídico, mas tão somente a extensão dos seus efeitos
aos discriminados que a solicitarem perante o Poder Judiciário, caso por
caso, não sendo, portanto, possível a simples eliminação da norma
produzida como elemento para afastar a análise do pedido de quaisquer
das medidas nela prevista, porque o art. 5º, II, c/c art.21, I e art. 226,
parágrafo 8º, todos da Constituição Federal se compatibilizam, propiciando
a aplicação indistinta da lei em comento tanto para as mulheres como para
os homens em situação de risco ou de violência decorrentes da relação
familiar, inviável, por isto mesmo, a solução jurisdicional que afastou a
análise de pedido de imposição de medidas assecuratórias em face da só
inconstitucionalidade da legislação em comento, mormente porque o artigo
33 da referida norma de contenção, acomete a análise ao Juízo Criminal
com prioridade sendo-lhe lícito determinar as provas que entenderem
pertinentes e necessárias para a completa solução dos pedidos. Recurso
37
provid0 para afastar o óbice.
Observando essa orientação, em decisão inédita o juiz titular do Juizado
Especial criminal Unificado de Cuiabá, Mário Roberto Kono de Oliveira, determinou
por analogia a aplicação de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha
a um homem que vinha sofrendo constantes ameaças da ex-companheira, após o
fim do relacionamento, cuja decisão se segue:
Trata-se de pedido de medita protetiva de urgência formulada por CELSO
BORDEGATTO, contra MARCIA CRISTINA FERREIRA DIAS, em autos de crime de
ameaça, onde o requerente figura como vítima e a requerida como autora do fato.
O pedido tem por fundamento fático, as várias agressões físicas, psicológicas
e financeira perpetradas pela autora dos fatos e sofridas pela vítima e, para tanto
37
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Criminal nº 1.0236.07.013084-4/001. Relator: Dês.
Antônio Armando dos Anjos. Publicado em: 09 nov. 2008.
23
institui o pedido com vários documentos como: registro de ocorrência, pedido de
exame de corpo de delito, nota fiscal de conserto de veículo avariado pela vítima, e
inúmeros e-mails difamatórios e intimidatórios enviados pela autora dos fatos à
vítima. Por fundamento de direito requer a aplicação da Lei de nº 11.340/2006,
denominada “Lei Maria da Penha”, por analogia, já que inexiste lei similar a ser
aplicada quando o homem é vítima de violência doméstica. Resumidamente, é o
relatório.
DECIDO:A inovadora Lei 11.340 veio por uma necessidade premente e
incontestável que consiste em trazer uma segurança à mulher vítima de
violência doméstica e familiar, já que por séculos era subjugada pelo
homem que, devido a sua maior compleição física e cultura machista,
compelia a “fêmea” e seus caprichos, à sua vilania e tirania. Houve por bem
a lei, atendendo a súplica mundial, consignados em tratados internacionais
e firmados pelo Brasil, trazer um pouco de igualdade e proteção à mulher,
sob o manto da justiça. Esta lei que já mostrou o seu valor e sua eficácia
trouxe inovações que visam assegurar a proteção da mulher, criando
normas impeditivas aos agressores de manterem a vítima sob seu julgo
enquanto a morosa justiça não prolatasse a decisão final, confirmada pelo
seu trânsito em julgado. Entre elas a proteção à vida, a incolumidade física,
ao patrimônio, etc. embora em número consideravelmente menor, existem
casos em que o homem é quem vem a ser vítima da mulher tomada por
sentimentos de pose e de fúria que levam a todos os tipos de violência,
diga-se: física, psicológica, moral e financeira. No entanto, como bem
destacado pelo douto causídico, para estes casos não existe previsão legal
de prevenção à violência, pelo que requer a aplicação da lei em comento
por analogia. Tal aplicação é possível? A resposta me parece positiva.
Vejamos: é certo que não podemos aplicar a lei penal por analogia quando
se trata de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal,
firmemente encabeçando os artigos de nosso Código Penal: art. 1º. Não há
crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação
legal. Se não podemos aplicar a analogia in malan pertem, não quer dizer
que não podemos aplica-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu
quando não se tratar de norma incriminadora, como prega a boa doutrina.
“Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam parem: José
Frederico Marque, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia,
Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiroz” (DAMÁSIO DE
JESUS – Direito Penal – parte Geral – 10 ed. P. 48). Ora, se podemos
aplicar a analogia para favorecer o réu, é óbvio que tal aplicação é
perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítma de um crime.
Por algumas vezes me deparei com casos em que o homem era vítima do
descontrole emocional de uma mulher que não media esforços em praticar
todo o tipo de agressão possível contr o homem. Já fui obrigado a decretar
a custódia preventiva de mulheres “à beira de um ataque de nervos”, que
chegaram a tentar contra a vida de seus ex-consorte, por pura e
simplesmente não concordar com o fim de um relacionamento amoroso.
Não é vergonha nenhuma o home se socorrer ao Poder Judiciário para
fazer cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de
covardia. É sim, ato de sensatez, já que não procura homem/vítima se
utilizar de atos também violentos como demonstração de força ou de
vingança. E compete à justiça fazer o seu papel de envidar todos os
esforços em buscar de uma solução de conflitos, em busca de uma paz
social. No presente caso, há elementos probantes mais do que suficientes
para demonstrar a necessidade de se deferir a medidas protetivas de
24
urgência requerida, pelo que defiro o pedido e determino à autora do fato o
seguinte: 1) que se abstenha de se aproximar da vítima, a uma distância
inferior a 500 metros, incluindo sua moradia e local de trabalho; 2) que se
abstenha de manter qualquer contato com a vítima, seja por telefone, email, ou qualquer outro meio direto ou indireto. Expeça-se o competente
mandado e consigne-se no mesmo a advertência de que o descumprimento
desta decisão poderá importar em crime de desobediência e até em
prisão. 38
Não há que se falar em afastamento da lei do ordenamento jurídico sob
ofensa à isonomia, mas aplica-la por analogia àqueles que buscarem o Poder
Judiciário.
2.1
Definição de violência de gênero
O conceito de violência de gênero deve ser entendido como uma relação de
poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Ele demonstra que os
papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e
reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os
sexos e indica que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim
do processo de socialização das pessoas. 39
Assim não é a natureza a responsável pelos padrões e limites sociais que
determinam comportamentos agressivos aos homens e dóceis e submissos das
mulheres. Os costumes, a educação e os meios de comunicação tratam de criar e
preservar estereótipos que reforçam a ideia de que o sexo masculino tem o poder de
controlar os desejos, as opiniões e a liberdade de ir e vir das mulheres.
40
Em pesquisa realizada pelo Conselho Nacional dos Direitos humanos da
Mulher, a violência de gênero é concebida como resultado “das motivações que
hegemonicamente levam sujeitos a interagirem em contexto marcados por e pela
violência”. O trabalho ressalta que “a prática da violência doméstica e sexual emerge
38
ALMEIDA, Patrícia Donati de. Justiça de Cuiabá aplica medidas protetivas da Lei Maria da
Penha a homem vítima de ameaça. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/noticias/156687/justica-de-cuiaba-aplica-medidas-protetivas-da-lei-mariada-penha-a-homem-vitima-de-ameaca>. Acesso em: 7 maio 2009.
39
CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. A violência doméstica como violação dos direitos
humanos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 901, 21 dez. 2005. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp? id=7753> .Acesso em: 4 mar. 2009.
40
CAVALCANTI, 2005.
25
nas situações em que uma ou ambas as partes envolvidas em um relacionamento
não cumprem os papéis e funções de gênero imaginadas como naturais pelo
parceiro. Não se comportam, portanto, de acordo com as expectativas e
investimentos do parceiro, ou qualquer outro ator envolvido na relação”.
41
A própria expressão violência contra a mulher foi assim concebida por ser
praticada contra pessoa do sexo feminino, apenas e simplesmente pela sua
condição de mulher. Essa expressão significa a intimidação da mulher pelo homem,
que desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e seu disciplinador.
42
Nesse contexto, violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta que
cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no
âmbito público como no privado, motivada apenas pela sua condição de mulher. 43
2.2
FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO
A Lei Maria da penha estabeleceu cinco formas de violência que são:
violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patriarcal e violência
moral.
Há um lugar, entretanto, em que Marias e Marias debatem-se entre amor e
ódio, entre a carícia e o bofetão, entre a doçura da intimidade e o gravame
da ofensa: dentro de casa. Este é, sem dúvida, o lugar físico e simbólico
onde a angústia de centenas de Marias é retrato da mais insana das dores:
a dor do amor que vira ódio para depois tornar a ser amor; a dor da
confiança que se transforma em decepção e em seguida cede espaço à
esperança. 44
A legislação em questão, no artigo 7º, enumera as formas de manifestação de
violência de forma genérica, levando o operador a interpretá-lo de maneira aberta,
enunciativa, isso porque estão apontadas em numerus apertus, em razão da
expressão “entre outras” no dispositivo, sempre presumindo em favor da mulher,
41
CAVALCANTI, 2005.
CAVALCANTI, 2005.
43
CAVALCANTI, 2005.
44
HERMANN, 2008, p. 16.
42
26
criando, pois, regra enunciativa e orientadora das principais condutas, que são as
seguintes: 45
2.2.1 Violência física
A preocupação básica do dispositivo é deixar estabelecida a espécie de
violência que, uma vez referendada na norma penal, terá imediata aplicação. Podese vislumbrar essa espécie de violência na contravenção de vis de fato, nos crimes
de lesão corporal e contra a vida (homicídio, aborto, induzimento, instigação ou
auxílio ao suicídio), inclusive na forma tentada e em qualquer conduta que ofenda a
integridade anatômica e fisiológica da mulher, ou a sua saúde mental (como, por
exemplo, os crimes contra a liberdade sexual mediante violência física, tais como os
relacionados nos artigos. 213 e 214 do CP), estando abarcados os crimes especiais
do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990). 46
inciso I - violência física - é entendida como qualquer conduta que ofenda a
integridade ou saúde corporal.
Quanto à integridade física, o conceito transcrito no Inciso I do dispositivo é
expresso em considerar violentas condutas que ofendam, também, a saúde corporal
da mulher, incluindo, por consequência, ações ou omissões que resultem em
prejuízo à condição saudável do corpo. Conduta omissiva possível é a negligência,
no sentido de privação de alimentos, cuidados indispensáveis e tratamento
médico/medicamentoso a mulher doente ou de qualquer forma fragilizada em sua
saúde, por parte de marido, companheiro, filho, familiares e afins. 47
É a mais comum e conhecida da população em geral, para muitos
desconhecedores do alcance da lei, à única tutelada. É a facada, a surra, o pontapé, a queimadura, o beliscão, o chute, etc.
Já a ofensa à integridade corpórea da mulher é aquela relacionada à saúde, à
condição saudável da mulher. Não é uma agressão propriamente dita. Assim como a
45
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 71-72.
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 71-72.
47
HERMANN, 2008, p. 108.
46
27
ofensa à integridade física, se dá por ações e omissões, contudo, difere desta
porque atinge a saúde da mulher como um todo, deixando-a suscetível a doenças.
Alguns autores que é uma inovação da lei, podendo-se citar como exemplo
desse tipo de violência a inanição proporcionada pelo marido à esposa, é aquela
mulher que está doente e o marido não a leva ao médico, agravando seu estado de
saúde, muitas vezes xingando-a, ofendendo-a.
2.2.2 Violência psicológica
Trata-se de previsão que não estava contida na legislação pátria, mas a
violência psicológica foi incorporada ao conceito de violência contra a mulher na
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica,
conhecida momo Convenção de Belém do Pará. É a proteção da auto-estima e da
saúde psicológica. Consiste na agressão emocional (tão ou mais grave que a física).
O comportamento típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou
discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir amedrontado,
inferiorizado e diminuído, configurando a vis compulsiva. 48
O inciso II – violência psicológica – entendida como qualquer conduta que
lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe
prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou, ainda, que vise
degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
O alcance dessa forma de manifestação da violência é amplo, tanto que o seu
exercício pode configurar vários crimes, como, por exemplo: constrangimento ilegal
(CP, artigo 146); ameaça (CP, artigo 147); sequestro e cárcere privado (CP, artigo
148); redução à condição análoga à de escravo (CP, artigo 149; violação de
domicílio (CP, artigo 150); violação de correspondência (CP, artigo 151); roubo (CP
artigo 157); extorsão (CP, artigo 158); extorsão mediante sequestro (CP, artigo 159);
48
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.
47.
28
crimes contra a liberdade sexual mediante violência moral (CP, artigo. 213; CP,
artigo. 214); e por força de constrangimento (CP, artigo 216-A). 49
É aquela que lhe imobiliza, que lhe retira a identidade bem como a
capacidade de reação e autodeterminação, de pensar por si próprio, de traçar e
concretizar planos de vida .
É uma patologia que causa danos emocionais gravíssimos na mulher
vitimada, deixando-a completamente sem forças de lutar contra a violência
psicológica empregada por seu agressor.
Assim, ocorre com a diminuição contínua ou aniquilação das qualidades da
mulher, por exemplo quando se diz que determinada mulher não presta para nada,
que é um estorvo que ninguém quer, ocorrendo também em casos de vigilância
constante, limitando o direito de ir e vir da mulher, privação do convívio com
familiares e outras pessoas, a isolando dentro dos limites delineados pelo agressor.
2.2.3 Violência sexual
Segundo Maria Berenice Dias, houve uma certa resistência da doutrina e da
jurisprudência em admitir a possibilidade da ocorrência de violência sexual nos
vínculos familiares. A tendência sempre foi identificar o exercício da sexualidade
como um dos deveres do casamento, a legitimar a insistência do homem, como se
estivesse ele a exercer um direito. 50
O inciso III – violência sexual – entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não
desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a
induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade,
que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de
seus direitos sexuais ou reprodutivos.
49
50
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 72.
DIAS, 2007, p. 47.
29
Essa forma de manifestação de violência normalmente ocorre nos delitos
sexuais (que envolvem constrangimento), tráfico de mulheres e exploração sexual
de crianças e adolescentes.
51
Pela lei, assegura-se o direito da mulher, dentro do matrimônio, de dizer sim
ou não a qualquer relação sexual, afastando, por completo, o antiquado e nefasto
declarado “direito do homem” a consumar o ato sexual quando bem entendesse,
sem que estivesse praticando violência contra a mulher.
2.2.4 Violência patrimonial
A Lei Maria da Penha reconhece como violência patrimonial o ato de “subtrair”
objetos da mulher, o que nada mais é do que furtar. Assim, se subtrair para si coisa
alheia móvel configura o delito de furto, quando a vítima é mulher com quem o
agente mantém relação de ordem afetiva, não se pode mais reconhecer a
possibilidade de isenção da pena. O mesmo se diga com relação à apropriação
indébita e ao delito de dano. É violência patrimonial “apropriar” e “destruir”, os
mesmos verbos utilizados pela lei penal para configurar tais crimes. Perpetrados
contra a mulher, dentro de um contexto de ordem familiar, o crime não desaparece e
nem fica sujeito à representação. 52
O Inciso IV – violência patrimonial – entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades.
O Autor cita que neste inciso IV estão os crimes contra o patrimônio de
maneira geral e contra a assistência familiar. 53
Interessa também avaliar o impacto da Lei 11.340/2006 sobre os crimes
contra o patrimônio, uma vez que o artigo 7º da mencionada Lei, no seu inciso IV,
inclui a “violência patrimonial” dentre as categorias de violência contra a mulher,
conceituando-a como qualquer conduta que configure retenção, subtração,
51
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p.72.
DIAS, 2007, p. 52.
53
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 71.
52
30
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades. 54
De qualquer modo a leitura do inciso IV insere, entre os crimes praticados
com violência doméstica ou familiar contra a mulher, todos os tipos penais
contra o patrimônio que signifiquem retenção, subtração, destruição de
bens, documentos, valores e direitos, incluindo os destinados a sanção de
bens, documentos, valores e direitos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades, mesmo que não praticados com violência real. Ao que
parece, o legislador quis utilizar-se, de forma pouco aprimorada, do recurso
hermenêutico da interpretação analógica, descrevendo uma enumeração
casuística e finalizando com uma fórmula geral, mas, nesse caso, ao final
do texto, em vez do “incluindo...” melhor seria haver dito “bem como todos
aqueles destinados a satisfazer suas necessidades”. Ademais, convém
interpretar a parte final do inciso como incluindo aqueles bens destinados a
satisfazer suas necessidades “pessoais”, ou seja, as necessidades próprias
da condição feminina que, portanto, em muitos casos, poderiam parecer
55
desnecessários para um homem.
Sendo, pois, propósito da lei alcançar, sob o conceito da violência doméstica,
os crime patrimoniais não-violentos como o furto, especialmente o furto de coisas
comum, a usurpação, o dano, apropriação indébita e o estelionato calha questionar
se a Lei 11.340/2006 revogou as causas de imunidade penal previstas nos incisos I
e II do artigo 181 do Código Penal, das quais deriva isenção de pena ao agente que
comete qualquer delito patrimonial, sem violência real ou grave ameaça, contra o
cônjuge na vigência da sociedade conjugal, ascendente ou descendente, seja o
parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural em hipóteses subsumíeis nos
artigos 5º e 7º, IV, da Lei 11.340/2006.
Ab initio, em análise puramente literal da nova lei, parece fora de dúvida
que a resposta afirmativa se impõe, e as imunidades ou impunibilidades
absoluta do artigo 181, I e II do Código Penal estão revogadas parcial e
tacitamente pela Lei 11.340/2006, que alenta a punição penal dos crimes
praticados em situação de violência patrimonial contra o cônjuge mulher.
Frise-se que se trata mesmo de derrogação, ou seja, revogação parcial,
porque se o delito for praticado pela mulher contra o homem persiste a
escusa absolutória em questão.
Porém, o tratamento desigual dado pela lei aos dois gêneros, ao menos
nesse ponto, arranha o princípio constitucional da igualdade, especialmente, porque
se afigura destituído de razões lógicas ou racionais. Se, com efeito, no tangente à
54
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei
11.340/2006: Análise crítica e sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 60.
55
PORTO, 2007, p. 60.
31
violência real, a compleição física do homem, normalmente mais avantajada, bem
como suas características hormonais o capacitam mais ao uso da força bruta, no
que toca à possível prática de delitos patrimoniais contra o consorte condomínio,
não se vislumbra, com clareza, quais as vantagens que concorrem em favor do
cônjuge-varão que justifiquem tratamento tão desigual. 56
Assim, é que não causa surpresa se, no futuro, for reconhecida a
inconstitucionalidade parcial do dispositivo em questão por afronta ao
princípio da igualdade, pois embora, efetivamente, a proteção da igualdade
não significa necessariamente a equalização linear e absoluta dos
interesses e das prerrogativas legais, uma vez que, ao contrário, na
persecução de uma maior igualdade material, admitem-se tratamentos
legais diferenciados, é imprescindível que esta diferenciação formal legal
tenha supedâneo em motivação racional.
Destarte, se é verdadeiro que, em boa parte dos casos, em razão apenas
de uma tradição cultural que já começa a minguar, o homem é negociante
mais astuto e mantém o domínio dos bens e investimentos do casal, sendolhe mais fácil desviar patrimônio e valores em seu proveito, a verdade é que
nada na natureza física, intelectual ou emocional da mulher, impede-a de
alcançar e desenvolver esta mesma astúcia, o que, aliás, já vem ocorrendo
na medida em que a mulher ganhar crescentemente espaços no mercado
de trabalho e no mundo cultural.
Portanto, ou se exclui integralmente as causas de imunidade do artigo 181, I
e II do Código Penal, tanto em prejuízo do homem como da mulher, o que
somente pode ser feito pela via legal, ou elas devem permanecer íntegras e
até aplicáveis analogicamente aos conviventes em união estável, sob pena
de ofensa ao princípio constitucional da igualdade.
Poder-se-ia redargüir a tais considerações, argumentado que, sendo o
homem normalmente de porte físico mais avantajado e mais intimidativo por
natureza que a mulher, sempre lhe será mais possível a prática de crimes
patrimoniais qualificados pela violência ou grave ameaça, como dano
qualificado (artigo 163, parágrafo único, I, do Código Penal), roubo e
extorsão, por exemplo. Entretanto, é certo que, quando o delito patrimonial
for cometido com uso de violência real ou grave ameaça já não se poderá,
de qualquer modo, invocar a imunidade penal do artigo 181, I do Código
Penal, porque vedada no artigo 183, I, da mesma lei. Outrossim, quando os
delitos patrimoniais em questão, mesmo não praticados com violência real
ou grave ameaça, o forem em prejuízo de pessoas com idade igual ou
superior a 60 (sessenta) anos, não persiste a escusa absolutória, por força
da exceção expressa no inciso III do artigo 183 do Código Penal,
57
acrescentada pela Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
Assim, que as causas de impunibilidade do artigo 181, I e II, do Código Penal
persistem aplicáveis em crimes praticados com violência doméstica contra a mulher,
pois só cabíveis em delitos patrimoniais clandestinos ou fraudulentos, praticados
com recurso de astúcia, para cuja prática, nenhuma qualidade específica do homem,
melhor o habilita às referidas práticas criminosas, em significativo prejuízo da
mulher.
56
57
PORTO, 2007, p. 61.
PORTO, 2007, p. 62.
32
Frise-se que, no tangente àqueles delitos patrimoniais cujos autores não se
beneficiem das causas de imunidade previstas no artigo 181 do Código
Penal, mas, subsidiariamente, cujas ações penais forem condicionadas à
representação (artigo 182 do Código Penal) ou privadas (artigo 161,
parágrafo 3º e artigo 167 do Código Penal), persiste exigível, sem sombra
de dúvidas, a condição de procedibilidade da representação, bem como o
caráter privado da ação penal, porque estabelecidos no âmbito do Código
Penal, não se podendo, modo algum, invocar o artigo 41 da Lei
11.340/2006, para afastar a condição de procedibilidade da representação
ou a exigência de ação penal privada, visto que aquele dispositivo colima
apenas afastar a aplicação d Lei 9.099/1995 dos casos de violência
58
doméstica.
Observe-se o seguinte exemplo: se a mulher já separada apropriar-se
indevidamente de um bem do ex marido, sendo ela processada pelo crime do artigo
168, caput, do Código Penal, assiste-lhe direito à suspensão condicional do
processo, desde que presentes os demais requisitos do artigo 89 da Lei 9.099/1995.
em contrapartida, invertendo-se os pólos ativos e passivos desta demanda, o sursis
processual seria vedado pelo artigo 41 da Lei 11.340/2006. porém, conforme aludido
alhures, este tratamento diferenciado não tem supedâneo racional, estando em
desacordo com o princípio constitucional da igualdade e com o princípio supra
constitucional da razoabilidade que deve informar todo o ordenamento jurídico.
Assim, justifica-se em tais casos deferir também ao homem a suspensão condicional
do processo, pois o tratamento diferenciado em crimes patrimoniais não tem razão
lógica sequer em diferenças culturais entre o homem e a mulher. Aliás, a Lei Maria
da Penha foi aprovada sob a bandeira da violência física contra a mulher,
demonstrada por levantamentos e estatísticas, mas trouxe de carona outras formas
próprias e impróprias de violência patrimonial, moral, sexual, psicológica, algumas
delas que a experiência nem revelou assim tão freqüente ou tão exclusiva do
homem contra a mulher. 59
2.2.5 Violência moral
A violência moral, encontra proteção penal nos delitos contra a honra: calúnia,
difamação e injúria. São denominados delitos que protegem a honra mas, cometido
em decorrência de vínculo de natureza familiar ou afetiva, configuram violência
moral. Na calúnia, o fato atribuído pelo ofensor à vítima é definido como crime; na
58
59
PORTO, 2007, p. 63.
PORTO, 2007, p. 63.
33
injúria não há atribuição de fato determinado. A calúnia e a difamação atingem a
honra objetiva; a injúria atinge a honra subjetiva. A calúnia e a difamação
consumam-se quando terceiros tomam conhecimento da imputação; a injúria
consuma-se quando o próprio ofendido toma conhecimento da imputação. 60
O Inciso V – violência moral – entendida como qualquer conduta que
configure calúnia, difamação ou injúria (crimes contra a honra previstos na
legislação comum e especial), inclusive denunciação caluniosa (CP, art.
339).
A legislação, de maneira sábia, criou o princípio da proteção integral, pelo
qual a mulher está plenamente protegida sob a ótica patrimonial ou em relação aos
seus direitos da personalidade (à integridade física, moral, espiritual e intelectual).
Deve-se deixar registrado, todavia, que se a tutela for a nível penal é imprescindível
que a forma de violência esteja expressamente tipificada, ou pelo Código Penal ou
por lei especial, sob pena de não aplicação. Mas se o operador não conseguir
tipificar a conduta sob a ótica penal, ainda assim poderá se valer da tutela civil,
sendo-lhe nomeado defensor que proporá, no mesmo Juizado Especial, ação de
natureza civil indenizatória ou de obrigação de fazer ou não fazer par efetivar o
princípio em tela. Para tanto, basta que a conduta do agressor esteja configurada
nos artigos 186 e 187 do Código Civil ou no artigo 461 do Código de Processo
Civil. 61
60
61
DIAS, 2007, p. 54.
SOUZA; KÜMPEL, 2007, p. 73.
34
CAPÍTULO 3 - AÇÃO PENAL
Sendo o crime um fato que ofende o direito do indivíduo e da sociedade, cabe
ao Estado reprimi-lo com o exercício do jus puniendi. O direito subjetivo de punir,
que é mais o dever de punir, não é ilimitado, vinculando-se o Estado ao direito
objetivo, tanto na imputação, circunscrita aos fatos típicos, como nas penas a serem
aplicadas. Além disso, par exercitar o direito de punir é necessário que haja
processo e julgamento, já que não pode o Estado impor, arbitrariamente, a sanção. 62
O enunciado dos autores Guilherme de Souza Nucci e Naila Cristina Ferreira
Nucci, diz que é o direito do Estado acusação (Ministério Público) o do ofendido de
ingressar em Juízo, solicitando a prestação jurisdicional, representada pela
aplicação da lei penal ao caso concreto. 63
Dá-se o início da ação penal com o oferecimento da denúncia ou queixa.
Quando o juiz recebe a peça acusatória, ocorre o ajuizamento da ação penal, isto é,
consolida-se a relação processual, devendo haver o chamamento do réu a juízo,
através da citação, para defender-se, pois há justa causa para o processo criminal
desenvolver-se. Finaliza-se o processo de conhecimento com a prolação da
sentença. Se for condenatória, espera-se o trânsito em julgado para dar início ao
processo de execução, normalmente em Vara especializada (Vara da Execução
Criminal). 64
3.1
BREVES CONSIDERAÇÕES
É correto afirmar que o direito de punir (jus puniendi) pertence ao Estado,
como uma das principais características de sua soberania. É dizer: quando alguém
comete crime, cabe ao Estado, com o fim de resguardar os interesses sociais e
62
MIRABETE, Julio Fabbrini. Ação penal: pública incondicionada, pública condicionada e privada.
Disponível em: <http://www.leonildocorrea.adv.br/curso/mira10.htm>. Acesso em: 13 abr. 2009.
63
NUCCI, Guilherme de Souza; NUCCI, Náila Cristina Ferreira. Prática forense penal. 3. ed. rev.
atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 55.
64
NUCCI, 2008, p. 57
35
manter a ordem jurídica, processar e julgar o infrator, aplicando o Direito Penal
objetivo. 65
Tourinho Filho define ação penal como “o direito de pedir ao Estado
(representado pelos seus Juízes) a aplicação do Direito Penal objetivo. Ou o direito
de pedir ao Estado-Juiz uma decisão sobre um fato penalmente relevante”. 66
Dada a relevância do tema, cumprir-se-ia explanar sobre institutos como
teorias da ação, teorias do processo, condições da ação, etc. Contudo, devido ao
caráter sucinto desse estudo,
discorri apenas acerca da classificação da ação
penal, quanto à titularidade do direito de exercê-la. 67
Assim, a doutrina majoritária divide a ação penal em pública e privada. A
primeira subdivide-se em incondicionada e condicionada. Já a segunda subdivide-se
em exclusiva, personalíssima e subsidiária.
É forçoso asseverar que se deve compreender como “ação penal de iniciativa
pública” e “ação penal de iniciativa privada”, porquanto, consoante visto acima, toda
ação penal é sempre um direito público. O que varia é tão somente o sujeito
legitimado para a propositura da ação. Veremos a seguir especificadamente cada
tipo de ação penal. 68
3.2
AÇÃO PENAL PÚBLICA
Ação penal pública é a ação penal exercida pelo Estado, por intermédio do
Ministério Público, privativamente, representado o próprio interesse social, nos
termos do artigo 129, inciso I, da Constituição Federal 69 . O Ministério Público deve,
além de oferecer denúncia, manifestar-se, como parte, durante todo o curso da
instrução até decisão final, fiscalizando o procedimento e interpondo os recursos
adequados.
65
MIRABETE, 2009.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2006. p.
114.
67
TOURINHO FILHO, 2006, p. 114.
68
TOURINHO FILHO, 2006, p. 114.
69
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br;ccivil_03/Constituiçao/constituiçao.htm>. Acesso em: 5 nov. 2008.
66
36
A ação pública é a regra no direito processual penal. Dessa feita, sempre que
a lei penal, ao tipificar uma infração, não determinar a iniciativa do ofendido, a ação
penal será de iniciativa pública, segundo reza o artigo 100, do Código Penal 70 .
A ação penal pública é regida pelos seguintes princípios: a) oficialidade:
somente um órgão do Estado, o Ministério Público, pode promover ação penal
pública: b) obrigatoriedade: o Órgão Ministerial, caso obtenha prova da
materialidade e indícios suficientes de autoria de infração penal, é obrigado a
oferecer denúncia 71 ; c) indisponibilidade: não pode o Ministério Público desistir a
ação penal, uma vez que não age em nome próprio, mas sim em nome do Estado;
d) intranscendência: apenas contra quem se atribui a prática de infração penal a
ação penal será promovida; e) divisibilidade: em havendo vários investigados, o
Ministério Público poderá denunciar somente a quem se imputar indícios bastantes
de autoria, podendo, posteriormente, com a continuidade das investigações, aditar a
denúncia par possível inclusão de co-réu (s).
3.2.1 Ação penal pública incondicionada
É aquela promovida pelo parquet sem necessidade de manifestação de
vontade de terceira pessoa para sua propositura. É a regra geral, sempre quando a
lei nada dispor a respeito da legitimidade ativa para a ação penal.
no silêncio da lei, a ação penal pública será incondicionada. Vale dizer, a
regra em nosso direito é que ação penal pública não dependa da
manifestação de terceiros. A exigência de prévia manifestação, portanto,
somente existirá se for expressamente prevista em lei, por meio de
expressões como “somente se procede mediante representação”, ou
“somente se procede mediante requisição do Ministro da Justiça”.
Se a lei nada prevê, o Ministério Público, convencendo-se da prática de
crime, ajuizará ex officio, oferecendo a denúncia. 72
Na incondicionada, o órgão do Ministério Público a propõe sem que haja
manifestação de vontade de quem quer que seja. Desde que provado o crime, quer
a parte objecti, quer a parte subjecti,o órgão do Ministério Público deve promover a
70
BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DecretoLei/Del2848.htm>. Acesso em: 5 nov. 2008.
71
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p.
106.
72
BOMFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 168.
37
ação penal, sendo até irrelevante contrária manifestação de vontade do ofendido ou
de quem quer que seja. O autor fala que: em provado o crime a parte subjecti,
evidentemente não aludimos àquelas provas capazes de gerar um juízo de certeza
da veracidade da imputação, mas, tão somente, àquelas que tornem verossímil a
acusação. 73
A ação penal pública incondicionada é a regra no direito penal brasileiro, visto
estar baseada nos mesmos quatro princípios informadores que são: Oficialidade;
Indisponibilidade; Obrigatoriedade; Indivisibilidade; entretanto a diferença salutar é
que esta não necessita autorização pra ser perpetrada nos portões da justiça.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N° 1.0024.07.493023-1/001 COMARCA DE BELO HORIZONTE - RECORRENTE(S): MINISTÉRIO
PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RECORRIDO(A)(S): RICARDO
LANES ALVES FERREIRA - RELATOR: EXMO. SR. DES. PAULO CÉZAR
DIAS
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 3ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na
conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à
unanimidade de votos, EM REJEITAR PRELIMINARES E NEGAR
PROVIMENTO. O Ministério Público ofereceu denúncia contra RICARDO
LANES ALVES FERREIRA, dando-o como incurso nas sanções dos arts.
129, §9º, 147 e 163, na forma do art. 69, todos do Código Penal. Narra a
denúncia que no dia 05 de abril de 2007, na rua Selênio, nº 210, apt. 02,
bairro Barroca, da cidade e comarca de Belo Horizonte, o denunciado
ofendeu a integridade física da vítima Elza Ângela Alves Ferreira, e
ameaçou-a gravemente. O MM. Juiz da 1ª Vara Criminal da Comarca de
Belo Horizonte rejeitou a denúncia, sob o fundamento de que houve
retratação da vítima sobre a vontade de representar contra o recorrido (fls.
102/104). Irresignado, o ilustre representante do Ministério Público interpôs
o presente Recurso em Sentido Estrito pugnando pelo recebimento da
denúncia (fls. 107/114). Contra-arrazoado o recurso (fls. 122/123), subiram
os autos e, nesta instância, manifestou-se a douta Procuradoria de Justiça
pelo seu provimento (fls.128/130). É o sucinto relatório. Conheço do
recurso, eis que presentes os requisitos de admissibilidade. Alega o
Ministério Público que há uma nulidade quanto à audiência de termo lavrado
à fl. 101, a qual possibilitou a retratação da vítima, ao argumento de que o
delito de lesão corporal seria de ação penal pública e incondicionada a
representação, incabível a renúncia. O artigo 88 da lei 9.099/95 prevê que
as ações penais referentes às lesões corporais leves e culposas dependem
de representação, inovação que não foi repassada para o Código Penal.
Todavia, reza a lei 11.340/06 em seu artigo 41 que, "aos crimes praticados
com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da
pena prevista, não se aplica a lei 9.099/95". Essa situação tem gerado
inúmeros debates ainda controversos, pois, trata-se de uma lei
relativamente recente. No entanto, é sabido que, a lei deve ser interpretada.
A exegese visa a apuração da mens legis, tendo em vista o contexto
histórico e exercendo raciocínios teleológicos e axiomáticos, com o fim de
nortear o objetivo para o qual a norma foi criada, a ratio legis. Assim,
aplicando-a com fulcro nos princípios constitucionais, os quais norteiam o
73
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2004. v. 1, p. 321.
38
ordenamento jurídico, atingirá o texto legal o seu maior objetivo, harmonizar
a sociedade vivente neste Estado Democrático de Direito. Sendo assim, é
preciso buscar o objetivo da norma para que o Direito opere de forma
coesa, consagrando a liberdade, a isonomia e os demais princípios que
regem as normas jurídicas. Não foi intenção do legislador impedir a vítima
de retratar-se quanto aos crimes de lesão corporal leve e culposa, ao redigir
o artigo 41 da Lei 11.340/06. Fazendo o uso da importante fonte
interpretativa doutrinária, passo à análise do tema auxiliado por textos
produzidos a partir de estudos de diversos renomados juristas que
compartilham de minha posição. Damásio Evangelista de Jesus: A Lei n.
11.340/2006, no que se refere à ofensa à incolumidade física e à saúde da
mulher quando provocada no ambiente doméstico ou familiar, a qual
configura um tipo qualificado (§ 9.º do art. 129), não teve a intenção de
alterar o princípio do art. 88 da Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais
Criminais), de que a ação penal por crime de lesão corporal leve é pública
condicionada à representação. (Da exigência de representação da ação
penal pública por crime de lesão corporal resultante de violência doméstica
e familiar contra mulher - Revista Magister de Direito Penal e Processual
Penal nº 13 - Ano 03 - Pág. 87/89 - Porto Alegre). ....Vê-se que a retratação
ocorreu antes do recebimento da denúncia na presença do Ministério
Público, oportunidade na qual não se manifestou, conforme o termo
74
presente à fl. 101. Tudo ocorreu, portanto, dentro dos trâmites legais.
O princípio da legalidade ou obrigatoriedade é o que mais atende aos
interesses do Estado. Dispondo o Ministério Público dos elementos mínimos para a
propositura da ação penal, deve promovê-la (sem inspirar-se em critérios políticos
ou de utilidade social). O contrário implicaria atribuir-lhe um desconchavado poder
de indulto. Por isso, , embora inexata a afirmativa de que do crime surge a ação
penal, deve esta ser aceita, no sentido de que do delito surge, necessariamente,
para os órgãos da persecução, o dever de atuar em procura da repressão. Cabendo
ao Ministério Público o exercício da ação penal pública (princípio da oficialidade), o
princípio da legalidade impõe-lhe outro dever, qual o de promover a ação penal sem
inspirar-se em motivos políticos ou de utilidade social. 75
3.2.2 Ação penal pública condicionada à representação
O artigo 16 é expresso: a renúncia somente pode ocorrer nos crime de ação
penal pública condicionada à representação. Estes são facilmente identificáveis na
legislação penal, mediante a expressão: “(...) somente se procede mediante
74
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Recurso em Sentido Estrito nº 1.0024.07.493023-1/001.
Relator: Paulo Cézar Dias. Data do Julgamento: 29/01/2008.
75
TOURINHO FILHO, 2004, v. 1, p. 324-325.
39
representação” (artigo 100, § 1º, do Código penal). Os demais são de ação penal
pública incondicionada (ressalvando-se os casos de ação penal privada). 76
""RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - AMEAÇA CONTRA A MULHER LEI 11.340/06 - AUDIÊNCIA DE RATIFICAÇÃO - RETRATAÇÃO
ESPONTÂNEA ANTES DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA - REJEIÇÃO
DAEXORDIAL.
1. Se a retratação da mulher, vítima de crime perpetrado pelo marido, é
espontânea, mesmo após o oferecimento da denúncia, não há porque
prosseguir a ação penal com o recebimento. Interpretação dada à Lei Maria
da Penha conforme o caso concreto.2. O Magistrado poderá designar
audiência, ocasião em que é facultada a manifestação da vítima. A
solenidade é exigência da novel Lei, quando estarão presentes o Juiz e o
Ministério Público para perceber e coibir eventual coação de vontade.3. O
artigo 16 da Lei 11.340/2006 estabeleceu um novo momento para que a
vítima apresente a retratação, a despeito do que consta do diploma
processual. Princípio da especialidade 4. Recurso improvido." (RSE
20070910037344, Primeira Turma Criminal, Rela. Desa. Sandra de Santis,
DJ 03-03-2008, pág. 108) No último caso, a eminente Relatora, em seu
voto, destacou:"Data vênia do entendimento do Ministério Público, a
retratação da vítima, na hipótese, é válida. É certo que não restou
consignado, na ata da audiência, acerca da situação familiar atual,
envolvendo as partes. De qualquer sorte, a vítima foi ouvida informalmente
após a abertura dos trabalhos e nada demonstra ter sido coagida a emitir o
desinteresse no prosseguimento do feito. Do contrário, o Ministério Público,
em pedido de recebimento da denúncia, teria feito constar um possível
temor pela presença do autor do fato ou instabilidade emocional da vítima
ao retratar-se. Ao que parece, trata-se mais de uma defesa de tese, o que
é respeitável. Mas o réu sequer foi ouvido na fase policial. No inquérito só
consta a versão da vítima e logo houve o oferecimento da denúncia.
Parece no mínimo temerário dar início à ação penal sem ao menos ouvir a
versão da parte contrária Nesta 1ª Turma Criminal, já tive oportunidade de
acompanhar o voto do Exmo. Des. Mario Machado, no sentido de que "há
de se recusar a pretendida retratação, possível em tese, mas seguramente
não espontânea no caso concreto e não servindo ao restabelecimento de
uma saudável convivência familiar." (RSE 2006.09.1.017253-6; Rel. Des.
Mário Machado; DJ 1/8/2007) - grifo nosso. Mas não é regra o não
acolhimento da retratação. Em cada caso concreto, deverá ser avaliada a
situação e dada a interpretação mais razoável segundo a novel Lei Maria
da Penha. Se a retratação foi espontânea, mesmo após a oferta da
denúncia, mas antes do recebimento, não há porque prosseguir-se com a
ação penal. Afigura-me, em princípio, inovadora e não prevista em lei a
designação de "audiência de ratificação" para a oitiva da vítima, em que
poderá retratar-se. A análise literal do artigo 16 da Lei 11.340/06 leva a crer
que a audiência somente será designada caso a vítima manifeste,
voluntariamente, a intenção de retratação, procedimento que
obrigatoriamente será fiscalizado pelo Ministério Público e ratificado pelo
Juiz. Confira-se a redação; Art. 16. Nas ações penais públicas
condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será
admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência
especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da
denúncia e ouvido o Ministério Público.Mas é certo que a vítima não tem
uma bola de cristal e nem conhecimento das firulas jurídicas e das lides
76
LIMA, Fausto Rodrigues de. A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica: da
construção à aplicação do Art. 16 da Lei Maria da Penha. In: LIMA, Fausto Rodrigues de; SANTOS,
Claudiene (Coord.). Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e
multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 82.
40
forenses para que antecipe a renúncia, que deveria chegar ao
conhecimento do Juízo, antes de oferecida a denúncia. A meu sentir, o
rigor exigido fere o que dispõe o artigo 226 da Constituição Federal, porque
oportuniza a desagregação familiar. Também, vai de encontro aos
princípios da economia e celeridade processuais, já que a representação
feita no calor da discussão pode, pouco tempo depois, ser dissipada pela
reconciliação das partes. Como já salientou o Exmo. Des. Mário Machado:
"Desconhecer a face boa da retratação, impedindo-a, a pretexto de
proteger a mulher, pode implicar violência ainda maior contra ela, que é
negar-lhe um meio de restaurar a paz no lar e restabelecer a união comum"
(Artigo: Violência doméstica: a face boa da retratação. 77
O crime dependente de representação mais comumente denunciado é o de
ameaça (artigo 147). no entanto, poderão ocorrer alguns outros mais raros (menos
registrados), como perigo de contrário venéreo (artigo 130, CP), violação da
correspondência (artigo 151, CP, divulgação de segredo (artigo 153), CP), furto de
coisa comum (artigo 156, CP) ou qualquer crime contra o patrimônio previsto no
Título II do Código Penal, cometido sem violência ou grave ameaça (artigo 182,
incisos I, II e III, c/c artigo 183, inciso I CP) e, ainda, contra os costumes se praticado
contra vítima pobre (artigo 225, § 2º, CP). 78
a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, dispõe que a renúncia ao direito de
representação no caso de ação penal pública condicionada, pois, quando se tratar
dos crimes mencionados na citada legislação, que cuida da proteção da mulher
contra a Violência Doméstica e Familiar, haverá de ser feita perante o juiz, em
audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da
denúncia e ouvido o Ministério Público (artigo 16). a curiosidade é que o CPP não
cuida, ao menos expressamente, da renúncia da representação, só o fazendo o
artigo 74 da Lei nº 9.099/1995, no âmbito dos Juizados Especiais.
79
Há Casos, também em que, presente ainda a preocupação com a divulgação
do fato, isto é, tutelando-se o interesse da vítima da ofensa, surge outro interesse a
ser preservado, sobretudo diante da qualificação do ofendido. É o que ocorre por
77
Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n. 96.992-DF (2007/0301158-9).
Impetrante: José Alfredo Gaze de França. Impetrado: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios. Relatora: Ministra Jane Silva (desembargadora convocada do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais). Brasília, DF, 12 de agosto de 2008. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200703011589&PV=
010000000000&tp=51>. Acesso em: 11 set. 2008.
78
LIMA, 2009, p. 82-83.
79
OLIVIERA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. rev., atual. e ampl. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007. p. 112.
41
exemplo, com os crimes contra a honra do Presidente da República e de Chefe de
Governo estrangeiro.
80
Nessas situações, o juízo de oportunidade e conveniência da instauração da
ação penal, diante das repercussões políticas que podem ocorrer a partir da
divulgação do fato, fica à discricionariedade do ministro da Justiça, consoante o
disposto no artigo 145, parágrafo único, do CP. Fala-se, então, em requisição, e não
mais em representação. 81
Em alguns casos, a lei expressamente condicionará o ajuizamento da ação
penal pelo Ministério à representação do ofendido (ou de quem o represente).
Entenda-se representação como mero consentimento. É o caso, por exemplo, do
artigo 88 da Lei nº 9.099/1995, o qual exige representação da vítima para as ações
relativas aos crimes de lesões corporais leves e/ou culposas 82 .
O prazo para a representação é, em regra, de 06 (seis) meses, contados do
dia em que vier a se conhecer a autoria do fato. A representação pode ser feita pelo
ofendido, se for capaz, ou por quem tiver qualidade para representá-lo. No caso de
menor de 18 (dezoito) anos, a titularidade da representação será de seu
representante legal. Caso o ofendido seja falecido, ou declarado ausente, o direito
de representação passará, na ordem, ao cônjuge, ascendente, descendente ou
irmão. Por fim, havendo conflito de interesses entre o menor e seu representante
legal, ou na ausência deste ou de qualquer das pessoas mencionadas, o magistrado
designará curador especial ao ofendido. 83
O Código de Processo Penal prevê, ainda, a possibilidade de retratação do
ofendido (ou de seu representante legal) até o oferecimento da denúncia. Isso
porque “a partir daí, com a formação da opinio delicti do órgão do Ministério Público
e a apresentação da peça acusatória em juízo, o fato delituoso, ao menos em tese,
já teria sido dado a conhecimento” 84 . A doutrina admite, ainda, a revogação da
retratação (ou retratação da retratação). Nesse caso, é suficiente o ofendido fazer
nova representação, desde que não expirado o prazo de seis meses.
80
OLIVIERA, 2007, p. 112-113.
OLIVIERA, 2007, p. 112-113.
82
Ressalte-se que esse dispositivo a partir de 27/04/09, se aplica aos casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher, consoante se demonstrará mais adiante.
83
TOURINHO FILHO, 2004, v. 1, p. 357.
84
OLIVIERA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p.
112.
81
42
Artigo publicado no site de MPDFT no dia 27 de abril de 2009. A Câmara
criminal do TJDFT concede recurso a réu acusado de agredir a esposa. Entendam o
caso:
Em 2 de novembro de 2006, J.A.O.S empurrou e golpeou violentamente a
mulher J.V.C., grávida de seis meses, com um relógio de parede. Em
seguida, a vítima pegou o telefone para chamar a polícia. Para impedi-la,
J.A.O.S. a ameaçou com uma faca, dizendo que iria mata-la. Em seguida,
o agressor despejou uma garrafa de álcool na vítima e disse que iria lhe
colocar fogo, caso não devolvesse sua carteira, J.V.C. tinha escondido a
carteira para que o marido não saísse. O acusado voltou à cozinha, pegou
um fósforo e ateou fogo na mulher. Ardendo em chamas, a vítima entrou
correndo no banheiro e conseguiu apagar o fogo no chuveiro. Teve
queimaduras de 1º e 2º graus. Depois da agressão, ela fugiu para outro
estado. A promotoria de justiça requereu a prisão preventiva do acusado e
o início do processo. O primeiro Juizado Especial de Samambaia, porém,
determinou que a vítima tinha que autorizar o processo. A cunhada da
vítima a expulsou de casa e o acusado determinou que ela retornasse para
o lar e “retirasse a queixa”. Três semanas após a violência, a vítima
compareceu ao Juizado e pediu o encerramento do processo. Ela alegou
que a prisão do réu traria prejuízos financeiros à família, porque ela não
teria como sustentar os dois filhos do casal.O Ministério Público Intervém
no caso, com o argumento de que se tratava de ação civil pública
incondicionada, ou seja, que o prosseguimento do processo não
dependeria da vontade da vítima. O argumento do MP era que, na maioria
dos casos, as vítimas são pressionadas e cedem aos apelos do agressor
85
para retirar a queixa. Os promotores se baseiam na Lei Maria da Penha.
Em 31 de maio de 2007, essa decisão foi anulada por acórdão da 1ª Turma
Criminal do TJDFT. O acórdão ratificou o que determina a Lei Maria da Penha (lei
11.340/2006): nos casos de violência doméstica, a ação penal não depende da
vontade da vítima e que o processo deveria continuar.
Como a decisão não foi unânime, foi preciso realizar um novo julgamento. A
análise do caso começou no último dia 30 de março na Câmara Criminal, com a
presença da biofarmacêutica Maria da Penha, símbolo da legislação sancionada
pelo governo federal em 2006, na platéia. Mas o julgamento foi interrompido com
pedido de vista do Desembargador Roberval Belinati.
A Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Distrito Federal e Territórios
(TJDFT) julga na próxima segunda-feira, 30 de março, o réu J.A.O.S que
ateou fogo na mulher, grávida de seis meses (processo nº
2006.0910173057). A vítima teve queimaduras de 1º e 2º graus e foi
obrigada a fugir para outro estado O caso foi julgado pela 1ª Turma Criminal
do TJDFT, no dia 31 de maio de 2007. O julgamento foi considerado
histórico porque reconheceu por maioria (dois votos a um) que a
instauração de processos nos casos de lesão corporal qualificada pela
violência doméstica e familiar contra a mulher, mesmo tratando-se de
lesão leve, não depende de autorização da vítima. O entendimento do
85
Câmara Criminal do TJDFT Concede recurso a réu acusado de agredir a esposa. Disponivel em:
<Www.Mpdft.Gov.Br/Joomla/Index2.Php?Option=Com_Content&Task=View&Id=1443&Itemid=1>.
Acesso em: 28 abr. 2009.
43
TJDFT ratificou o que determina a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06). A
Defesa conseguiu um novo julgamento porque o réu teve um voto favorável.
O Promotor de Justiça da 2ª Promotoria Especial Criminal de Samambaia,
Fausto Rodrigues, recorreu da sentença de 1º Grau, que extinguiu o
processo por falta de interesse da vítima. Ele também requereu a
manutenção do pedido de prisão preventiva contra o acusado. No
julgamento de 2007, a 1ª Turma Criminal do TJDFT cassou a sentença do
Juizado Especial, mas indeferiu o recurso em que o Ministério Público
solicitava a manutenção do pedido de prisão do acusado. Na ocasião, a
Promotoria destacou, em seu recurso, que os crimes de lesão contra
qualquer animal têm sido punidos obrigatoriamente pela Justiça, ao
contrário dos espancamentos de seres humanos nos lares, contradição
insustentável num país democrático que determina a igualdade absoluta
86
entre homens e mulheres.
Na tarde do dia 27 de abril de 2009, a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) decidiu favoravelmente ao recurso de
um réu acusado de agredir e atear fogo na esposa grávida. Decidiu pelo
arquivamento definitivo do caso, acatando a vontade da vítima de finalizar a ação.. 87
3.2.3 Ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça
Ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça
igualmente constitui exceção, pois como vimos, a regra é que seja incondicionada.
Ou seja, nesse caso, é imperioso que o Ministro da Justiça autorize o Ministério
Público a denunciar o ofensor.
Essa condição imposta ao Ministério Público justifica-se pelo cunho
eminentemente político dos crimes os quais a lei exige a citada requisição. Frise-se
que, conquanto o termo “requisição” signifique “ordem”, trata-se de mera
autorização. Nesse diapasão, “a requisição nada mais é senão mera autorização
para proceder, permissão para ser instaurado o processo, manifestação de vontade
que tende a provocar a atividade processual. Ela é por assim dizer, a representação
política”. 88
86
Câmara Criminal do TJDFT Concede recurso a réu acusado de agredir a esposa. Disponivel em:
<Www.Mpdft.Gov.Br/Joomla/Index2.Php?Option=Com_Content&Task=View&Id=1443&Itemid=1>.
Acesso em: 28 abr. 2009.
87
Câmara Criminal do TJDFT Concede recurso a réu acusado de agredir a esposa. Disponivel em:
<Www.Mpdft.Gov.Br/Joomla/Index2.Php?Option=Com_Content&Task=View&Id=1443&Itemid=1>.
Acesso em: 28 abr. 2009.
88
TOURINHO FILHO, 2006, p. 149.
44
A requisição do Ministro da Justiça não está sujeita a prazo decadencial.
Diferentemente do que ocorre com a representação pode ser efetuada a qualquer
momento, enquanto não emergir causa extintiva de punibilidade.
A doutrina é divergente quanto à possibilidade de haver retratação da
requisição. Há quem entenda que, por analogia, aplicam-se os mesmos dispositivos
atinentes à retratação da representação. Contrariamente, há quem perfilhe pela
impossibilidade de valer-se da analogia, porquanto a lei não dispôs expressamente,
bem como incide o caráter político do ato do Ministro da Justiça.
3.3
AÇÃO PENAL PRIVADA
Preliminarmente, vale relembrar que se convencionou chamar “ação Penal
privada”, pois, conforme já dito, o direito de punir (jus puniendi) sempre é do Poder
Público. O caráter privado aqui analisado reserva-se somente ao sujeito que detém
a titularidade da ação.
Em certas ocasiões, a lei explicitamente reserva para o particular o exercício
da ação penal (jus accusationis). São os casos em que a ação penal será de
iniciativa privada (ou, abreviadamente, de ação penal privada), que também é
exceção no nosso ordenamento jurídico. Nesta, o Ministério Publico não atua como
parte, mas sim como fiscal da lei (custos legis), sempre a velar pela legalidade do
processo.
Note-se que a ação penal privada possui relevantes distinções da ação penal
pública, sendo regida pelos seguintes princípios: a) Oportunidade (ou conveniência):
contrapondo-se ao princípio da obrigatoriedade, a vítima ou seu representante legal
tem a faculdade de promover a ação penal, ou seja, somente iniciará o processo se
achar conveniente; b) Disponibilidade: igualmente indo de encontro ao princípio da
obrigatoriedade, aqui o querelante dispõe de diversos meios (como renúncia 89 ,
perdão do ofendido 90 , perempção 91 , etc.) para deixar de exercer a titularidade da
89
Entende-se renúncia como manifestação de vontade do ofendido por meio da qual ele desiste de
exercer seu direito de ação. Pode ser expressa ou tácita. É ato unilateral.
90
Perdão do ofendido consiste na desistência da ação, após a propositura da demanda e antes do
trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Necessária a aceitação do querelado. Cabível
somente nas hipóteses de ação penal privada exclusiva.
45
ação penal privada; c) Intranscendência: a ação penal privada não pode atingir
pessoas estranhas à autoria do fato; d) Indivisibilidade: caso o ofendido decida
principiar ação penal privada, deve incluir todos os autores do evento delituoso no
pólo passivo do feito. Em decorrência desse principio, a renuncia ao direito de
queixa pelo querelante aproveita aos demais agentes.
Impede destacar que os princípios informadores da ação penal privada,
presumivelmente, divergem dos demais tipos de ação penal, pois tem, em seu bojo,
a exclusividade da vontade subjetiva da vítima, claramente demonstrado no princípio
da oportunidade.
Entretanto, é salutar trazer à baila o comentário de Maria Berenice Dias:
A violência moral encontra proteção penal nos delitos contra a honra:
calúnia[...], difamação[...] e injúria[...]. São denominados delitos que
protegem a honra mas, cometidos em decorrência de vínculo de natureza
familiar ou afetiva, configuram violência moral. Na calúnia, o fato atribuído
pelo ofensor à vítima é definido como crime; na injúria, não há atribuição de
fato determinado. A calúnia e a difamação atingem a honra objetiva; a
injúria atinge a honra subjetiva. A calúnia e a difamação consumam-se
quando terceiros toma conhecimento da imputação; a injúria consuma-se
quando o próprio ofendido toma conhecimento da imputação. (CP, artigo 61,
92
II, f).
Conclui a autora que “estes delitos, quando são perpetrados contra a mulher
no âmbito da relação familiar ou afetiva, devem ser reconhecidos como violência
doméstica, impondo-se o agravamento da pena”.
93
Destarte, não é difícil perceber que, em determinadas situações relativas à
aplicação da lei aqui tratada, alguns crimes de cunho privado, que necessitariam de
apresentação de queixa, justamente à autoridade competente, para conseqüente
instauração de ação penal privada, podem vir a enquadrar-se como crime de
violência doméstica, eminentemente pública, através de simples representação que,
diga-se, não é realizada necessariamente diante de um delegado ou escrivão
policial, mas também perante o promotor de justiça ou o próprio juiz competente.
3.3.1 Ação penal privada exclusiva
91
BRASIL. Código penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/artigo236.htm>.
Acesso em: 5 nov. 2008.
92
DIAS, 2007, p. 54.
93
DIAS, 2007, p. 54.
46
Também denominada ação privada propriamente dita ou ação privada
principal.
HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A
MULHER. CONTEÚDO POLÍTICO E SOCIAL DA LEI 11.340/2006.
DELITOS DE LESÕES CORPORAIS LEVES E LESÕES CULPOSAS.
NATUREZA DA AÇÃO PENAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA E PROTEÇÃO À FAMILIA. EFETIVADADE DA LEI. ORDEM
DENEGADA. 1.O artigo 1º da lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria
da Penha enuncia o conteúdo político social da recém norma editada, em
atenção aos reclamos de ontem da sociedade brasileira ante o elevado
índice de casos de violência contra a mulher no seio familiar e doméstico,
exigindo uma resposta penal eficaz do Estado. 2. A sociedade há muito
tempo sente-se incomodada com as práticas violentas no seio familiar
contra a mulher, cujas medidas despenalizadoras previstas na lei 9.099/95
não foram suficientes para coibir e prevenir a violência contra a mulher. 3. A
exegese que confere efetividade à repressão aos crimes de violência
doméstica contra a mulher nos casos de lesões corporais leves e lesões
culposas é o da não vinculação da atuação do Ministério Público ao
interesse exclusivo da ofendida tal como previsto no art. 88 da Lei 9.099/95.
4. Na busca da concretização dos fins propostos pela lei 11.340/2006
prevalece o interesse público traduzido na coibição de violência doméstica,
lastreada na garantia constitucional de ampla proteção à família e no
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
5. Essa
orientação permite a compreensão do alcance, sentido e significado dos
artigos 16 e 41 da lei nº 11.340/2006 para reconhecer que os delitos de
lesão corporal simples e lesão culposa cometidos no âmbito doméstico e
familiar contra a mulher são de ação pública incondicionada, reservando-se
à aplicação do art. 16 àqueles crimes em que a atuação do Ministério
Público fica vinculada ao interesse privado da vítima em punir o seu
ofensor. 6. Ordem denegada.(20070020040022HBC, Relator NILSONI DE
FREITAS, 2ª Turma Criminal, julgado em 28/06/2007, DJ 26/09/2007 p.
94
122).
É aquela que a lei expressamente impõe a necessidade de requerimento do
ofendido ou de seu representante legal para conhecimento e julgamento da
demanda; estipula que a ação deva ser ajuizada por meio de queixa, ficando silente
quanto ao seu caráter personalíssimo, tampouco condicionando sua propositura à
inércia do parquet em propor ação penal pública.
94
SILVA, Augusto Reis Bittencourt. Lei Maria da Penha: repúdio às práticas restaurativas . Jus
Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1562, 11 out. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10534>. Acesso em: 10 maio 2009.
47
3.3.2 Ação penal privada personalíssima
Nesses casos, ação penal privada apenas poderá ser ajuizada pelo próprio
ofendido. Caso ocorra sua morte ou seja decretada sua ausência, o direito de
representar não se transmite a seus sucessores. Atualmente, o ordenamento
jurídico-penal pátrio somente prevê esse tipo de ação penal para o crime de
induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (artigo 236, CP) 95 .
3.3.3 Ação penal privada subsidiária da pública
Com previsão constitucional (artigo 5º, LIX) 96 , a ação penal privada
subsidiária da pública pode ser intentada pelo ofendido ou seu representante legal
quando, em casos de ação penal de iniciativa pública, o Ministério Público não
propor ação penal dentro do prazo determinado em lei.
O artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, assegura que: "a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Assim, todo cidadão brasileiro tem o direito de obter uma manifestação
conclusiva da justiça quando se sentir lesado ou ameaçado em seus
direitos. Aplica-se a mesma regra no âmbito do direito criminal, muito
embora na maioria das vezes os cidadãos sejam representados pelo
Ministério Público, titular da ação penal pública incondicionada ou
condicionada à representação.Esta representação ministerial se condiciona
a uma série de princípios processuais, notadamente o da obrigatoriedade e
o da indisponibilidade da ação. Na verdade, o Ministério Público recebe
delegação do Estado para agir em nome do cidadão que não possui
capacidade postulatória perante o judiciário. No entanto, isso não significa
que o ofendido transfere ao membro do parquet a prerrogativa
constitucional de reclamar a apreciação judicial sobre a ofensa de seu
direito. Logo, tratando-se de fato a merecer análise judicial, o Ministério
Público estará obrigado a representar o lesado.Apesar disso, em manifesto
descompasso com a nova ordem constitucional vigente desde de 1.988, a
parte final do art. 28 do Código de Processo Penal, que trata das hipóteses
de indeferimento do pedido de arquivamento de inquérito policial formulado
por promotor de justiça, submete o Poder Judiciário a simples decisão
administrativa do Procurador Geral de Justiça quando ratifica a pretensão
ministerial inicial, impedindo que a lesão ou a ameaça de direito do cidadão
possa ser submetida ao crivo judicial, constituindo flagrante
inconstitucionalidade.Para melhor compreensão, transcrevemos o
enunciado do referido dispositivo processual: "Se o órgão do Ministério
95
BRASIL. Código penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/artigo236.htm>.
Acesso em: 5 nov. 2008.
96
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_3/Constituiçao/Constituição.htm>. Acesso em: 5 nov. 2008.
48
Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do
inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de
considerar improcedente as razões invocadas, fará remessa ao procuradorgeral, e este oferecerá denúncia, designará outro órgão do Ministério
Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual
então estará o juiz obrigado a atender", grifamos de propósito. 97
Trata-se de garantia constitucional do ofendido contra eventual indolência do
Poder Público, traduzindo-se em importante instrumento de combate à impunidade
dos possíveis infratores da norma penal.
A prevalecer o citado comando normativo processual, mesmo que o
magistrado considerar improcedentes as razões invocadas pelo promotor
de justiça, deixando entrever que ao menos em tese haveria lesão ou
ameaça de direito a ser apreciada pelo judiciário, fica obrigado a quedar-se
inerte diante da medida ratificadora do Procurador Geral de Justiça. E o que
é pior, deve-lhe total subordinação, uma vez que não lhe resta outra
alternativa senão arquivar o inquérito policial, invertendo-se os papéis
institucionais. Em outras palavras, atribui-se jurisdição a um órgão que não
possui atribuição judicante, o que não se coaduna com o espírito
constitucional da repartição dos poderes.Por outro lado, não se pode
professar que devido o fato ocorrer no âmbito administrativo não se deve
falar em jurisdição. Ao contrário, sendo o Poder Judiciário o guardião da
Constituição, cabe a ele apreciar todo ato lesivo de direito quando for
formalmente provocado, como é o caso de inquérito. Afinal de contas, se o
inquérito policial, acompanhando a denúncia ou o pedido de arquivamento,
é sempre dirigido a um juiz de direito, é de mediana compreensão que deva
caber a um magistrado a decisão sobre a rejeição da peça acusatória ou da
que requerer o seu arquivamento.É bem verdade que o Ministério Público é
o titular da ação penal, no entanto, não tem a disponibilidade do direito
lesado do ofendido. É o seu representante por excelência. Logo, deve
defendê-lo intransigentemente. Se não o faz, a Lei Maior (art. 5º, LIX) prevê
a ação penal privada subsidiária da pública, não ficando o ofendido à mercê
do desinteresse ministerial.Neste panorama poderia afirmar existir similitude
entre a inércia ministerial e o arquivamento compulsório do inquérito
determinado pelo Procurador Geral de Justiça a recomendar em ambos os
casos a prerrogativa do ofendido promover a ação penal privada subsidiária
da pública? A nosso pensar sim. Tanto numa como na outra situação a
conseqüência para a vítima é a mesma, ou seja, a lesão ou ameaça de seu
direito deixa de ser apreciada pelo Poder Judiciário como manda a norma
constitucional.Nesse sentido traz-se à colação a abalizada lição do mestre
Hélio Tornaghi, citado por Tourinho Filho, Processo Penal, vol. 1, Saraiva,
ed. 1999, p. 456: "...o art. 29, permitindo a ação privada subsidiária da
pública, não distinguiu a relapsia do pedido de arquivamento. Deixar de
oferecer a denúncia no prazo legal ou pedir o arquivamento, durante o
prazo ou depois dele, são situações semelhantes para o art. 29". É evidente
que para o titular do direito lesado são coisas idênticas
O ofendido ou seu representante legal possui o prazo decadencial de 6 (seis)
meses para ajuizar queixa-crime, a contar do dia em que tiver esgotado o prazo
legal para o exercício da ação penal pública.
97
CORTIZO SOBRINHO, Raymundo. Cabimento da ação penal privada subsidiária da pública no
arquivamento de inquérito policial . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 527, 16 dez. 2004. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6051>. Acesso em: 10 maio 2009.
49
.A tese defensável é a de que somente nos casos de indeferimento do juiz
obstado pela manifestação contrária do Procurador Geral de Justiça é que
daria ensejo à propositura da ação penal privada substitutiva da pública,
uma vez que em havendo deferimento voluntário do magistrado, em última
análise o Poder Judiciário teria apreciado a suposta lesão ou ameaça de
direito da vítima, desde que essa medida se faça de forma fundamentada
(art. 93, IX da CF), o que infelizmente não ocorre nos dias atuais,
solucionando a questão logo no seu nascedouro, em que pese a
inviabilidade recursal dessa decisão. A mesma incoerência se registra no
caso da ementatio libelliprevista no parágrafo único do art. 384 do Código
de Processo Penal, quando diante da recusa do promotor de justiça em
emendar a peça acusatória o juiz remete os autos à apreciação do
Procurador Geral de Justiça. Se o chefe do Ministério Público não
determinar a retificação da denúncia, impor-se-á ao magistrado absolver o
acusado, uma vez que não poderá condená-lo por crime não cometido, não
violentando a sua consciência jurídica e nem praticando injustiça, restando
impune o réu relativamente ao ilícito perpetrado.Embora se saiba que
eventual dano causado pelo delito possa ser reparado no âmbito do direito
privado através de ação indenizatória, é sabido que na esfera penal os
elementos probatórios são bem mais abrangentes, excluindo-se apenas as
provas obtidas por meios ilícitos. Tanto é verdade que o parágrafo único do
art. 64 do CPP, sugere ao juiz do cível a suspensão do feito até o
julgamento final do processo-crime, o que tem sido uma constante na
prática forense. Esta é outra forte razão para que toda ofensa de natureza
penal seja dirimida no juízo criminal, visto que um dos principais efeitos da
98
sentença penal condenatória é o dever de indenizar a vítima.
Portanto, se o promotor de justiça requerer o arquivamento do inquérito
policial e o juiz discordando do pedido remeter o feito ao Procurador Geral de
Justiça, que acatando a tese ministerial impõe ao magistrado inconformado o
arquivamento do inquérito, nada impede diante do desinteresse da acusação pública
que o ofendido possa promover por conta e risco a ação penal privada subsidiária da
pública, uma vez que a lesão de seu direito não foi analisada pelo órgão
constitucionalmente competente, o Poder Judiciário.
98
CORTIZO SOBRINHO, Raymundo. Cabimento da ação penal privada subsidiária da pública no
arquivamento de inquérito policial . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 527, 16 dez. 2004. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6051>. Acesso em: 10 maio 2009.
50
3.3.4 Tipo de ação penal cabível aos crimes de lesão corporal leve na Lei
11.340/06
O artigo sobre a Lei Maria da Penha versa que a natureza jurídica da ação
penal pública incondicionada e a da ação penal pública condicionada são iguais, isto
é, trata-se de um direito. Nesse contexto, observamos que as diversas espécies de
infrações penais são apuradas judicialmente mediante o manejo da ação penal. A
norma esculpida no art. 100 do Código Penal diz que, em regra, o julgamento dos
crime é feito no bojo da ação penal pública incondicionada e apenas,
excepcionalmente, numa ação penal pública condicionada ou ação penal pública de
iniciativa privada. Ao observar o histórico do delito de lesão corporal leve,
verificamos que antes da edição da Lei nº 9.099/1995 mencionada infração penal
era processada mediante a utilização da ação penal pública incondicionada. 99
Entretanto, por questões de política criminal, com o advento da Lei nº
9.099/1995, o Ministério Público passou a propor a ação penal pública condicionada
à representação para apurar o crime de lesão corporal leve, com base no artigo 88
da aludida norma.
Ocorre que recentemente mais uma norma surgiu para o arcabouço
normativo pátrio, no caso, a Lei nº 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha.
O artigo 16, da citada norma diz que nas ações penais públicas condicionadas à
representação da ofendida, haverá uma audiência prévia ao recebimento da
denúncia pra que o ofendido possa exercer o seu direito de renunciar à
representação feita à autoridade policial ou ao Ministério Público. Isto
porque
o
legislador considerou que, nos delitos em que ocorrer violência doméstica e familiar,
a renúncia à representação só surtirá efeito se realizada perante a autoridade
judiciária. 100
Assim sendo, utilizando-se citado método interpretativo, conclui-se que o
artigo 41 da Lei nº 11340/2006 deve ser interpretado restritivamente, porque o que o
legislador realmente quis dizer quando criou o aludido dispositivo legal é que aos
99
CARVALHO, João Paulo Oliveira Dias de. Lei Maria da Penha: harmonização entre os arts. 16 e 41
em relação ao crime de lesão corporal. Consulex, 23 maio 2008. Disponível em:
<http://www.defensoria.pa.gov.br/index.php?q+node/123>. Acesso em: 17 abr. 2009.
100
CARVALHO, 2008.
51
crimes praticados com violência doméstica e familiar não são aplicados os
benefícios que a Lei nº 9.099/1995 poderia conceder ao agressor, com a
composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do
processo. 101
Dessa feita, o crime de lesão corporal leve cometido com violência doméstica
e familiar contra a mulher deve continuar sendo apurado mediante ação penal
pública condicionada, porque a ação condicionada não é um benefício ao réu. Ao
agir desse modo, ajuízo revisor estará proporcionando a harmonização entre os arts.
16 e 41 da Lei Maria da Penha e divulgando o verdadeiro alcance da norma contida
no art. 41 da Lei 11.340/06. 102
3.3.5 Conceito de violência doméstica
A violência doméstica ou intrafamiliar é aquela praticada no lar ou na unidade
doméstica, geralmente por um membro da família que viva com a vítima, podendo
ser esta homem ou mulher, criança, adolescente ou adulto.
103
A violência doméstica pode ser praticada contra o gênero feminino e
masculino. É um tipo de violência que ocorre dentro de casa, nas relações entre as
pessoas da família, entre os homens e mulheres, pais, mães e filhos, entre jovens e
idosos. Pode se afirmar que, independentemente da faixa etária das pessoas que
sofrem espancamentos, humilhações e ofensas nas relações descritas, as mulheres,
crianças e adultas são os principais alvos.
104
Há os que preferem denomina-la violência intrafamiliar e, neste caso, pode
ocorrer fora do espaço doméstico, como resultado de relações violentas entre
membros da própria família. Existe uma crítica com relação a essa terminologia
porque, mais uma vez se estaria escondendo a violência praticada contra a
mulher. 105
101
CARVALHO, 2008.
CARVALHO, 2008.
103
CAVALCANTI, 2005.
104
CAVALCANTI, 2005.
105
CAVALCANTI, 2005.
102
52
A violência doméstica é um problema que acomete ambos os sexos e não
costuma obedecer nenhum nível social, econômico, religioso ou cultural específico,
como poderiam pensar alguns.
Segundo o ministério da Saúde, as agressões constituem a principal causa de
morte de jovens entre 5 e 19 anos. A maior parte dessas agressões provém do
ambiente doméstico. A Unicef estima que, diariamente, 18 mil crianças e
adolescentes sejam espancados no Brasil. Os acidentes e as violências domésticas
provocam 64,4% das mortes de crianças e adolescentes no País.
106
A vítima de violência doméstica, geralmente, tem pouca auto estima e se
encontra atada na relação com quem agride, seja por dependência emocional ou
material. O agressor geralmente acusa a vítima de ser responsável pela agressão, a
qual acaba sofrendo os efeitos da discriminação, culpa e vergonha. A vítima também
se sente violada e traída, já que o agressor promete que nunca mais vai repetir este
tipo de comportamento e termina não cumprindo a promessa. 107
A autora diz que estudos da socióloga Heleieth Saffiori concluíram que
quando as mulheres se atrevem a prestar queixa às autoridades já estão sofrendo
em silêncio há pelo menos dez anos. 108
Conquanto a lei não seja a maneira mais adequada para se fazer definições,
o legislador conceituou com minudência a violência doméstica (artigo 5º),
explanando, inclusive, o que se entende por violência física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral contra a mulher (artigo 7º). Necessário, portanto, que se
conjuguem os artigos 5º e 7º da Lei nº 11.340/2006 conjuntamente, com o fito de
extrair o melhor conceito.
Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no genro que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial:
I – no âmbito da unidade domestica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem
109
de orientação sexual.
106
CAVALCANTI, 2005.
CAVALCANTI, 2005.
108
CAVALCANTI, 2005.
107
53
Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da auto estima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja
a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a
impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de
seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos
ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
110
calúnia, difamação ou injúria.
Por oportuno, a ilustre doutrinadora Maria Berenice Dias leciona:
Primeiro a Lei define o que seja violência doméstica (art. 5º): “qualquer
ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Depois estabelece seu campo de abrangência. A violência passa a ser
doméstica quando praticada: a) no âmbito da unidade doméstica; b) no
âmbito da família; c) em qualquer relação íntima de afeto, independente da
orientação sexual. 111
A par disso, conclui-se que não é preciso o ofensor e a vítima conviverem
debaixo do mesmo teto para se caracterizar a violência como sendo doméstica; o
que se exige é o vínculo de afeto que permitiu as agressões, sendo possível
abranger também as pessoas esporadicamente agregadas. Podem ser não apenas
cônjuge ou companheiro, como também avós, pais, tios, irmãos, sobrinhos,
enteados, padrastos, namorados, etc.
109
BRASIL. Lei nº 11.340/06, 07 de agosto de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago.
2006. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03_Ato2004-2006/Leo/L11340.htm>. Acesso
em: 20 out. 2008.
110
BRASIL. Lei nº 11.340/06, 07 de agosto de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago.
2006. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03_Ato2004-2006/Leo/L11340.htm>. Acesso
em: 20 out. 2008.
111
DIAS, 2007.
54
3.3.6 Sujeito ativo e sujeito passivo da violência doméstica e familiar contra a
mulher
A Lei 11.340/2006 refere-se exclusivamente à violência contra a mulher,
estabelecendo um sujeito passivo próprio dessas formas de violências específica,
mas não predetermina nenhum sujeito ativo próprio, de modo que, aparentemente,
não apenas o homem, mas também outra mulher poderia ser sujeito ativo de
violência doméstica ou familiar contra a mulher. 112
Entretanto, esta última conclusão, referente ao sujeito ativo do delito, não se
afigura pacífica e demanda uma maior reflexão. Com efeito inicialmente, em análise
preliminar, afirmou-se que, tanto o homem quanto a mulher poderiam ser sujeito
ativo de delitos caracterizados por violência doméstica e familiar contra a mulher e
assim se concluiu a partir de análise literal da lei que, embora frise apenas a mulher
como sujeito passivo da violência doméstica e familiar, nada refere quanto ao
gênero sujeito ativo. Destarte, se a lei não faz distinção não acabe ao intérprete
distinguir o sexo do sujeito ativo destes crimes. 113
No entanto, é preciso interpretar a lei sempre levando em conta princípios
como o da razoabilidade e proporcionalidade, não descurando que a Lei
Maria da Penha trata desigualmente o homem e a mulher, incrementando a
severidade penal sempre que uma mulher for vítima de violência doméstica
ou familiar. Ao relativizar um valor constitucional tão caro como o da
igualdade, a Lei 11.340/2006 demanda uma interpretação restritiva,
colimando não generalizar o que é excepcional. Esta “desigualdade” de
tratamento seria inconstitucional não estivesse justificada racionalmente
em uma diferença entre os gêneros masculino e feminino, verificável
empiricamente. Deste modo, a razão que informa a Lei 11.340/2006 situase em uma nefanda realidade, construída cultural e historicamente, em que
o homem hierarquizou relações, auto colocando-se nos lugares
predominantes da estrutura social, com o que se determinaram a
submissão e a discriminação contra a mulher, como já se salientou, esta
superioridade geral masculina é muito clara quando se trata da força física,
do potencial de intimidação e da superioridade hierárquica, no seio familiar
e social, que o homem, como regra, possui sobre a mulher, eis a razão que
inspira, em sua totalidade, a Lei 11.340/2006. onde inexiste esta razão,
114
também inexiste fundamento para aplicação desta norma excepcional.
É robusta à violência ocorrida contra a mulher no seio da sociedade onde há
séculos o homem tem pensamentos e atitudes machistas geralmente sendo
112
PORTO, 2007, p. 31.
PORTO, 2007, p. 31.
114
PORTO, 2007, p. 31-32.
113
55
refletidas em agressões físicas e psicológicas contra o sexo feminino, sendo frágil e
ao mesmo tempo tão desprotegidas por tamanha violência. A violência contra a
mulher vinha sendo desencadeada de forma banalizada como um caos de ação
penal privada personalíssima que desrespeita somente a vítima, onde o Estado, que
obtém o poder da máquina estatal ficava inerte. Levando as opiniões como um mero
caso particular sem adentrar no mérito de tamanha fragilidade do sexo feminino. Na
luz da melhor justiça o legislador quis resguardar o princípio da igualdade, tratando
os iguais de maneira igual, e os desiguais de forma díspar, na medida de suas
desigualdades buscando um equilíbrio jurídico. A Lei 11.340/2006, traz a igualdade
material de ambos os sexos, não sendo feita para beneficiar o sexo feminino. 115
A lei em seu artigo 5º, caput, diz que embora levando em consideração a não
restrição do homem como sujeito ativo dos crimes de violência doméstica e familiar
contra a mulher, considera que:
Artigo 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial: 116
Assim, conclui-se que a violência de que trata a Lei Maria da Penha é aquela
baseada no gênero na fragilidade do sexo feminino, dentro de relações de
intimidade, seja na unidade doméstica, no âmbito da família, ou em qualquer relação
íntima de afeto, independentemente da orientação sexual ou da coabitação. A idéia
de gênero é muito cara ao movimento feminista; trata-se efetivamente de um
conceito que revela a relação de discriminação e violência praticada pelo homem
contra a mulher, por isso que a violência praticada entre mulheres não é baseada no
gênero
e não caracterizada a violência doméstica e familiar de que trata a Lei
11.340/2006. com efeito, uma mulher não pode discriminar a outra por pertencer ao
gênero feminino, já que ambas pertencem ao mesmo gênero. 117
Com efeito, quando, no ambiente doméstico, afetivo ou familiar, uma mulher
agride, ameaça, ofende ou lesa patrimonialmente outra mulher, o sucedido
criminoso opera-se entre partes supostamente iguais, duas mulheres, e não justifica
115
PORTO, 2007, p. 32.
Tal dispositivo repete quase integralmente o art. 1º da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, que foi um dos
instrumentos de Direito Internacional Público que inspiraram a lei 11.340/2006.
117
PORTO, 2007, p. 33.
116
56
um tratamento mais severo à mulher que agride outra mulher do que àquela que
lesiona, ofende ou ameaça um homem. A lei 11.340/2006 não finaliza dar uma
proteção indiscriminada à mulher, mas sim proteger a mulher em face do homem,
supostamente mais forte, ameaçador e dominante no quadro cultural, daí por que
não se aplica a referida legislação quando sujeito ativo for do gênero feminino,
podendo-se, destarte, afirmar que o sujeito ativo de crimes praticados em situação
de violência doméstica ou familiar contra a mulher, para os efeitos da Lei
11.340/2006, é apenas o homem. 118
Além disso, é importante considerar que a ação ou omissão que
existencializar as diversas formas de violência doméstica e familiar,
segundo o caput do art. 5º da Lei 11.340/2006, devem ser baseadas no
gênero, ou seja, fundadas na relação de discriminação contra a mulher.
Objetivamente, parece que toda violência do homem contra a mulher é
baseada no gênero, mas ela inaugura apenas um presunção júris tantum,
visto ser possível que, em alguns casos, o agressor logre provar que sua
ação não esteve subjetivamente inspirada em qualquer discriminação
contra a mulher. É que a configuração do crime não prescinde da
verificação do elemento subjetivo da conduta. Nos casos dos crimes
informados pela violência de gênero de que trata a Lei Maria da Penha, o
elemento subjetivo genérico é a prática das diversas formas de violência
enunciadas no artigo 7º da referida lei, especificamente, porém esta
finalidade delitiva deve estar informada por um preconceito discriminatório
contra a mulher. Ocorre que esta discriminação, por ser fato notório no
meio social, é presumida sempre que ocorrerem as hipóteses objetivas dos
artigos 5º e 7º da Lei Maria da Penha, sendo, entretanto, possível apenas
ao agressor apresentar prova em contrário, com o que seriam afastadas a
restrições impostas pela Lei da Violência Doméstica, especialmente,
119
àquelas contrárias aos benefícios da Lei 9.099/1995.
O artigo 129 parágrafo 9º, do Código Penal, trata da questão da co-autoria e
da comunicabilidade das circunstâncias relativas às vinculações de parentesco
(ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiros) ou das relações
domésticas, de coabitação, hospitalidade ou convivência. A solução do problema
reside na regra do artigo 30 do Código Penal, onde consta que não se comunicam
as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do
crime. A regra é, pois, a da incomunicabilidade das circunstâncias e condições de
caráter pessoal, salvo em duas hipóteses cumulativas: a) que estas condições ou
circunstâncias sejam elementares do crime; b) que elas sejam de conhecimento do
co-autor ou partícipe.
118
119
PORTO, 2007, p. 33.
PORTO, 2007, p. 34.
57
No tocante ao artigo 129 parágrafo 9º do Código Penal, as relações de
parentesco, convivência, coabitação, doméstica e de hospitalidade, mencionadas
expressamente no texto incriminador, constituem elementares do tipo penal e,
portanto, sendo de conhecimento do co-autor ou partícipe a ele se comunicam.
Assim, no caso da mulher que ajuda homem a agredir sua companheira,
esposa ou namorada, obrando em situação de violência doméstica, e tendo
conhecimento das relações domésticas, familiares ou de convivência entre
estes, também ela responde pelo delito do artigo 129 parágrafo 9º, do
Código Penal com as restrições do artigo 41 da Lei 11.340/2006 que proíbe
os benefícios da Lei 9.099/1995 em situações de violência doméstica
contra a mulher. Caso contrário, se, por exemplo ignorasse as relações
específicas entre eles, responderia apenas pelo delito do artigo 129, caput,
do Código Penal e ainda poderia beneficiar-se da Lei 9.099/1995 em sua
plenitude. O mesmo não ocorrerá, entretanto, em relação a outros delitos
enquadráveis como de menor potencial ofensivo, como a ameaça,
constrangimento ilegal, invasão de domicílio, crimes contra a honra. Tais
delitos não têm as relações domésticas ou familiares do artigo 5º da Lei
11.340/2006 como elementares, mas apenas como complementos
especializantes, situados na Lei Maria da Penha e, portanto, estas
circunstâncias não se comunicam aos co-autores e partícipes, de modo
120
que estes poderão beneficiar-se da Lei 9.099/1995.
Para Maria Berenice Dias, quem sofre violência doméstica e familiar é sempre
a mulher, assim entendidas todas as pessoas que tenham identidade com o sexo
feminino, ou seja, lésbicas, travestis, transgêneros, transexuais. Tamanha
abrangência se dá porque as estruturas familiares não são formadas somente pelo
casamento, mas também pela união estável, pela união homoafetiva. 121
Por outro lado, comete violência doméstica e familiar:
Qualquer ascendente; descendente; irmão ou irmã; padrasto ou madrasta;
cônjuge; enteado; ou enteada; companheiro ou companheira; convivente;
independe de ainda se perdurar o laço de afinidade, ou seja, o casamento,
a união estável ou o namoro, podendo por exemplo, o ex – companheiro ser
autor do crime assim como uma ex-madrasta. 122
Ao estudarem os ditames da Lei Maria da Penha, alguns doutrinadores
defendem que determinadas empregadas domésticas podem ser vítimas de
violência doméstica e familiar, valendo-se do artigo 5º, inciso I, da referida lei, que
120
PORTO, 2007, p. 34.
DIAS, 2007, p. 41.
122
CAMPOS; CORRÊA, 2007. p. 225.
121
58
reza “[...] convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas”. 123
Nesse diapasão, Damásio de Jesus e Hermelino Santos classificam em
categorias as empregadas domésticas de acordo com o seu grau de inserção na
unidade familiar, como sendo de primeira categoria as diaristas; de segunda
categoria as que laboram durante a semana sem morar no emprego; e, por
derradeiro, as de terceira categoria aquela que trabalham durante a semana e
moram no emprego. 124
O que é determinante para a incidência dessa lei é se a trabalhadora goza
de confiança e intimidade no convívio doméstico. Assim, as empregadas de primeira
categoria (diaristas) não estão abrangidas pela Lei Maria da Penha, eis que se
restringem ao cumprimento de suas atividades funcionais específicas. No que atine
às demais categorias, basta verificar se as empregadas cumprem atividades
próprias de membros da família para se aplicar a Lei nº 11.340/2006.
Quanto àquela que trabalha diariamente, mas não dorme no emprego
(segunda categoria), vemos um nível de inserção nas questões familiares
efetivamente mais relevante, justamente pelo maior tempo que permanece
na casa. Nesse caso, a aplicação da lei nova está condicionada à presença
de determinadas circunstâncias. Se a sua participação no ambiente familiar
no qual trabalha não é tão ampla na medida em que, ao fim do dia, retira-se
e não presencia a vida familiar mais intensa, o que ocorre geralmente à
noite, quando todos se reúnem após as atividades diárias de cada um, nem
dela toma conhecimento, não incide a lei nova. Se, entretanto, não obstante
dormir for da residência, sua participação nos fatos diários é intensa,
chegando a ser considerada por todos e por ela própria membro da família,
tem a proteção da Lei nº 11.340/2006.
Na terceira categoria, estamos falando daquelas hipóteses em que a
mulher, trabalhando durante anos a fio na residência da patroa, cria os
filhos desta e também os netos. Casos especiais, nos quais a empregada
doméstica dorme na residência, residindo no imóvel da família. Ela se torna
mais suscetível de violência de membros empregadores, naturalmente
pelas informações que detém e pelo grau de intimidade que desfruta, não
dispondo de uma “fuga” eficaz e imediata do ambiente e do local de
125
trabalho no momento da ocorrência.
123
BRASIL. Lei nº 11.340/06, 07 de agosto de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago.
2006. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03_Ato2004-2006/Leo/L11340.htm>. Acesso
em: 20 out. 2008.
124
JESUS, Damásio Evangelista de; SANTOS, Hermelino de Oliveira. A empregada doméstica e a
Lei “Maria da Penha”. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, nov. 2006. Disponível em:
<http://www.damasio.com.br>. Acesso em: 21 out. 2008.
125
JESUS; SANTOS, 2006.
59
O artigo 41 da Lei nº 11340/2006 reza: “Os crimes praticados com violência
doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se
aplica a Lei nº 9.099 , de 26 de setembro de 1995” 126 .
A Lei dos Juizados Especiais, Lei nº 9.099/1995, foi elaborada com o fim de
decrescer a excessiva quantidade de processos que abarrotavam as varas comuns
criminais e cíveis de todo o país, dando maior celeridade à instrução processual em
casos de delitos de menor potencial ofensivo 127 , no âmbito penal, e no cível, em
causas de menor monta.
Na seara criminal, a Lei nº 9.099/1995 criou instrumentos para possibilitar a
realização de processos de despenalização, a privilegiar o consenso na solução das
controvérsias, trazendo os seguintes institutos: a) da composição civil (artigo 74,
parágrafo único); b) da transação penal (artigo 76); c) da representação nos delitos
de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (artigo 88 e 91) e, finalmente, d) da
suspensão condicional do processo (artigo. 89).
No entanto, a mencionada lei sempre foi alvo de muitas insatisfações em
relação à efetividade dessas punições, que na maioria das vezes limitavam-se ao
pagamento de cestas básicas ou à prestação de serviços à comunidade e, por isso.
Acabavam por não favorecer o interesse das vítimas.
Vislumbra-se que a Lei nº 9.099/95 foi criada para decidir conflitos de
natureza casual, mas com pouca repercussão, devido à baixa
complexidade dos delitos. Constata-se, assim, que os juizados especiais
não são o meio mais apropriado para resolver crimes de gênero, é dizer,
“são aqueles tipificados no art. 5º e incisos da Lei nº 11.340/06 praticados
por homem contra mulher que revele uma manifestação do patriarcado, ou
seja, qualquer ação ou omissão “baseada no gênero” que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial,
no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima
de afeto”. 128
Nesse caminho, em se tratando de violência doméstica, há habitualidade e
constância nas agressões perpetradas pelo agressor. A violência manifesta-se
reiteradamente. Normalmente, as ofensas apenas são conhecidas depois de
126
BRASIL. Lei nº 11.340/06, 07 de agosto de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago.
2006. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03_Ato2004-2006/Leo/L11340.htm>. Acesso
em: 20 out. 2008.
127
De acordo com o artigo 61 da Lei nº 9.099/95, considera-se de menor potencial ofensivo as
contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos,
cumulada ou não com multa.
128
SILVA JÙNIOR, Edson Miguel da. Direito penal de gênero. Lei nº 11.340/06: violência doméstica e
familiar contra a mulher. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1231, Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9144>. Acesso em: 22 out. 2008.
60
decorrido um longo período de tempo, com as vítimas a sobrevier temendo por suas
integridades físicas e até por suas vidas.
O fato é que o sistema estabelecido pela Lei dos Juizados preocupa-se,
mormente, em acelerar os processos de menor gravidade, com o fito de desafogar o
Judiciário de feitos intermináveis. No entanto, não é esse o intuito precípuo quando
se trata de violência doméstica e familiar contra a mulher. Aplicar a Lei nº 9.099/95 à
violência doméstica seria banaliza-la, seria descumprir a participação da vítima no
processo e dos seus direitos. O autor dos fatos apenas cumpriria medidas
alternativas, o que seria positivo pra ele, mas não na perspectiva da vítima. As
mulheres agredidas aceitariam os acordos por medo, e cresceria entre os homens a
certeza da impunidade.
Nessa Linha, o autor Lênio Luiz Streck critica:
Com o Juizado Especial Criminal, o Estado sai cada vez mais das relações
sociais. No fundo, institucionalizou a surra doméstica com a transformação
do delito de lesões corporais de ação pública incondicionada para ação
pública condicionada. Além disso, uma “surra doméstica” é considerada
crime de menor potencial ofensivo (soft crime), cuja pena é o pagamento de
uma cesta básica [...]
O Estado assiste de camarote e diz: batam-se que eu não tenho nada com
isto! É o neoliberalismo no direito, agravando a própria crise da denominada
“teoria do bem jurídico”, própria do modelo liberal individualista de Direito. 129
Na mesma esteira, ainda, confira-se o artigo publicado por Luis Flávio Gomes
e Alice Bianchini:
O dia-a-dia do funcionamento dos juizados nunca agradou alguns setores
da sociedade. Algumas associações de mulheres, especialmente, sempre
protestaram contra a forma de solução dos conflitos “domésticos” (ou seja:
da violência doméstica) pelos juizados. Em casos de ação penal pública, a
mulher (ou outra vítima qualquer) nem sequer participa da transação penal
(o Estado “roubou-lhe o conflito”, como diz Louk Hulsman). O profundo malestar que causou o modelo praticado de Justiça consensuada a esses
segmentos constitui o fundamento mais evidente do surgimento do novo
diploma legal, que está refutando de modo peremptório qualquer incidência
da Lei 9.099/1995 (art. 41). 130
As mulheres agredidas, fragilizadas em razão da violência e dependentes,
econômica e emocionalmente, dos agressores, não saíam satisfeitas com o deslinde
da causa, não encontrando o apoio que foi buscado na Justiça.
129
STRECK, Lênio. Os crimes sexuais e o papel da mulher no contexto da crise do Direito: uma
abordagem hermenêutica. Cadernos Themis Gênero e Direito, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 135-164,
2002.
130
GOMES, Luis Flávio; BIANCHINI, Alice. Aspectos criminais da lei de violência contra a
mulher. Disponível em : <http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20060828150003538>.
Acesso em: 5 mar. 2009.
61
Resta patente, portanto, que a Lei dos Juizados não é satisfatória para ser
aplicada aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher.
3.3.5 A representação nos crimes de lesão corporal leve do parágrafo 9º do
artigo 129 do Código Penal
Com o advento da Lei Maria da Penha, surgiu relevante celeuma a respeito
de qual a ação penal cabível aos casos de lesão corporal de natureza leve
perpetrada com violência doméstica e familiar contra mulher, se pública
incondicionada, ou se pública condicionada à representação da vítima. Existem
respeitáveis posicionamento em ambos os sentidos.
Com o advento da Lei nº. 9.099/1995, em seu artigo 88, passou-se a exigir a
representação da vítima nos casos de lesão corporal leve, a saber: “Além das
hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a
ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”. 131
Posteriormente, no ano de 2006, surgiu a Lei nº 11.340/2006, a qual, em seu
artigo 41, arredou expressamente a aplicabilidade da Lei nº 9.099/1995 aos casos
de violência doméstica e familiar contra a mulher, em todos os seus termos. Assim,
ao menos nessas situações (da Lei nº 11.340/2006), houve no Código Penal,
regressando a desnecessidade de a vítima representar contra seu agressor, sendo,
portanto, ação penal pública incondicionada.
Como consequência lógica de tal dispositivo, deixa de existir a exigência de
representação dos casos lesões corporais leves, porventura praticadas com
violência doméstica e familiar contra a mulher, uma vez que a exigência da
representação para tais crimes se encontra no art. 88 da Lei 9.099/95 e o
art. 41 veda a aplicação de toda a Lei 9.099/95 para o caso de crimes, sem
estatuir qualquer exceção para tal exigência voltada tal ação a ser pública
incondicionada, nos termos do art. 100 do Código Penal, que determina a
regra geral à ação penal ser de natureza pública incondicionada, salvo
quando a lei expressamente a declarar condicionada à representação do
ofendido (§ 1º). 132
Com efeito, o artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, ao vedar a aplicação da Lei nº
9.099/1995, não apenas objetivou suprimir a possibilidade de aplicação das medidas
131
BRASIL. [Leis etc.]. Vade mecum acadêmico de direito. Organização Anne Joyce Angher. 2. ed.
São Paulo: Rideel, 2005. p.1041.
132
CAMPOS; CORRÊA, 2007, p. 510.
62
despenalizadoras, mas também, e principalmente, buscou não condicionar a lesão
leve à representação da vítima, prevista no artigo 88 da Lei 9.099/1995.
O art. 41 da Lei n.º 11.340/2006, ao excluir a aplicação da Lei n.º
9.099/1995, pretendeu somente vedar a aplicação dos institutos
despenalizadores nela previstos, tais como a composição civil, a transação
penal, que são instrumentos impeditivos da persecução criminal contra o
agressor. Não foi intenção do legislador afastar a aplicação do art. 88 da
Lei n.º 9.099/95, que condiciona a ação penal concernente à lesão corporal
leve à representação da vítima, tanto que esta mesma representação é
prevista no art. 12, inciso I, da Lei n.º 11.340/2006, que é a da violência
doméstica. Exigência diversa vai conduzir a um absurdo dentro do sistema,
o que não se pode admitir. Há outros crimes muito mais graves, para os
quais, não a Lei n.º 9.099/1995, mas o próprio Código Penal exige
representação da vítima. Exemplo: crimes contra a liberdade sexual,
estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude,
atentado ao pudor mediante fraude, corrupção de menores. Em todos
esses crimes, desde que ofendida a mulher em situação de pobreza e em
contexto de violência doméstica, haverá necessidade da sua
representação, não com base na Lei n.º 9.099, mas exigida expressamente
pela letra do Código Penal, no art. 225, § 1.º, inciso I, e § 2.º. Ora, então,
num crime mais grave, atentando contra a liberdade sexual da mulher, vaise admitir a retratação da representação e, num crime infinitamente mais
leve, como o de lesão corporal leve, não se vai admitir? Isso é um absurdo,
133
dentro do sistema, que não se pode admitir.
Entretanto, alguns autores, diga-se, a minoria, entendem que a ação penal
continua dependendo de representação da vítima, aduzindo que esta deve agir em
interesse próprio e que a inexigência de representação poderia vir a arruinar a
família, em razão de a conciliação civil mostrar-se como a melhor forma para
solucionar problemas vivenciados ao ambiente doméstico e familiar.
Transcreve-se trecho de artigo atinente ao tema de autoria do consagrado
doutrinador Damásio de Jesus:
Segundo entendemos, a Lei nº 11.340/2006 não pretendeu transformar em
pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido
contra mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contraria tendência
brasileira da admissão de um Direito Penal de intervenção Mínima e dela
retiraria
meios de restaurar a paz no lar. Público e incondicionado o
procedimento policial e o processo criminal, seu prosseguimento, no caso
de a ofendida desejar extinguir os males de certas situações familiares, só
viria piorar o ambiente doméstico, impedindo reconciliações. 134
133
Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n. 96.992-DF (2007/0301158-9).
Impetrante: José Alfredo Gaze de França. Impetrado: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios. Relatora: Ministra Jane Silva (desembargadora convocada do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais). Brasília, DF, 12 de agosto de 2008.Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200703011589&PV=
010000000000&tp=51>. Acesso em: 11 set. 2008.
134
JESUS, Damásio Evangelista de. Da exigência de representação da ação penal pública por
crime de lesão corporal resultante de violência doméstica e familiar contra mulher (Lei n.
11.340, de 7 de agosto de 2006). São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, nov. 2006.
Disponível em: <http://www.damásio.com.br>. Acesso em: 20 nov. 2008.
63
“PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA. LEI 11.343/06 (MARIA DA PENHA). LESÕES CORPORAIS
LEVES. RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO. POSSIBILIDADE.
ENTIDADE FAMILIAR. CÉLULA MATER DA SOCIEDADE. ESPECIAL
PROTEÇÃO DO ESTADO.
1 Ao editar a Lei nº 11.343/06, o legislador pretendeu afastar os institutos
despenalizadores das normas dos juizados especiais, vedando a
composição civil extintiva da ação penal, a transação penal e a aplicação de
medidas alternativas à pena de prisão. Não pretendeu, contudo, excluir a
aplicação integral da Lei nº 9.099/95, em especial da condição de
procedibilidade da ação penal nos crimes de lesões corporais leves e
culposos, subordinados à representação da vítima. 2 O artigo 16 da Lei
Maria da Penha possibilita a "renúncia à representação" perante o Juiz, que
nada mais é que a retratação da representação em audiência
especialmente designada para este fim. Se as partes entendem possível a
continuidade da família, não é razoável que o Estado intervenha em
prejuízo da manutenção da paz familiar. A realização da citada audiência
objetiva fornecer ao Juiz os elementos necessários para aferir eventual
estado de coação vítima, devendo ser acatada ou rejeitada a vontade
manifestada se presentes razões plausíveis para presumir vícios na sua
expressão. Na aplicação da lei o Juiz atenderá os fins sociais a que ela se
dirige e às exigências do bem comum. Neste caso, deve primar pela
continuação da família, célula mater da sociedade, conferindo-lhe especial
proteção, nos termos do artigo 226 da Constituição Federal.3- Recurso
135
conhecido e desprovido.
Diversamente, a doutrina majoritária entende que a ação penal relativa aos
crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher tornou a ser
pública incondicionada, pelo próprio caráter protetivo da Lei Maria da Penha,
prevalecendo o interesse público sobre o privado na repressão à violência
doméstica, com o intuito de dar maior efetividade à garantia constitucional de ampla
proteção à família e ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Segundo Maria Berenice Dias:
A Lei Maria da Penha repudiou os Juizados Especiais Criminais para
apreciarem a violência doméstica, tanto que criou os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher – JVDFMs, deslocou a competência
para as Varas Criminais, enquanto não estruturados os JVDFMs (artigo 33).
Mas foi além, vedou a aplicação de penas restritivas de direitos de conteúdo
econômico, como a entrega de cestas básicas e o pagamento de multa
(artigo 17).A intenção de livrar o delito de lesões corporais qualificado pela
violência doméstica da égide da Lei dos Juizados Especiais também
decorre do fato de ter havido a majoração da pena máxima, que passou de
um para três anos. Com esse argumento da pena de menor potencial
ofensivo, pois assim são considerados os crimes cuja pena máxima não é
superior a dois anos (Lei nº 9.099/1995, artigo 6º).Outro fundamento que
justificaria a inexigibilidade da representação é o fato de a Lei nº 9.099;1995
não ter dado nova redação ao Código Penal. Seu texto permaneceu
135
DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. 20060910166249RSE.
1ª Turma Criminal. Relator: George Lopes Leite. Julgado em 29/11/2007. DJ, 13 fev. 2008. p. 2399.
disponível em: <http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?DOCNUM=1&PGATU1&1=20&ID=61293,42911,7580&MGWLPN=SERVIDOR1&NXTPGM=jrhtm03&OPT=&ORIGEM=INT
ER>. Acesso em: 23 out. 2008.
64
inalterado. Ou seja, a exigência de representação não foi incorporada à
legislação codificada. Houve simples previsão, no bojo da Lei dos Juizados
Especiais, condicionando à representação as lesões corporais leves e
lesões culposas.Como a Lei que procedeu a esta alteração teve sua
incidência afastada por lei posterior, em sede de violência doméstica,
voltaria a vigorar o Código Penal.Esta é a linha de raciocínio de quem
sustenta que o delito de lesão corporal leve, qualificado por ter sido
praticado no âmbito das relações familiares,é crime de ação penal pública
incondicionada. 136
Nesse sentido, impede colacionar ementa de Apelação Criminal, julgada pela
1ª Turma Criminal, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
PENAL E PROCESSUAL PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI MARIA
DA PENHA – APELAÇÃO, RECURSO EM SENTIDO ESTRITO E MANDADO
DE SEGURANÇA – INTERESSE RECURSAL – LESÕES CORPORAIS
LEVES – REPRESENTAÇÃO – DESNECESSIDADE – AÇÃO PENAL
PÚBLICA INCONDICIONADA. 1- A via adequada para manifestar o
inconformismo contra decisão que deixa de receber a denúncia ou a queixa é
o Recurso em Sentido Estrito (Art. 581, inciso I, do Código de Processo
Penal). Não se conhece, portanto, de Apelação interposta com essa
finalidade, ainda mais se a questão sequer restou decidida em primeiro grau
de jurisdição. 2- A Lei Maria da Penha, assim conhecida em homenagem a
uma das muitas vítimas de violência doméstica, teve como objetivo maior
estimular os formadores de opinião pública e os operadores do direito a
refletirem mais detidamente sobre o problema e a assumirem, corajosamente,
uma nova postura frente a atitudes covardes de homens que resolvem
abandonar o seu papel natural de guardiões do lar para se transformarem
em algozes e carrascos cruéis de sua própria companheira. 3- Assim, o recuo
da mulher, que em um primeiro momento decidira dar um basta em seu
sofrimento, não é suficiente para justificar o arquivamento dos autos. Essa
situação, aliás, é muito comum, pois a dependência econômica e emocional
da mulher, na maioria dos casos, acaba por arrefecer-lhe o desejo e retirarlhe a vontade de prosseguir na luta. 4- Nos termos da legislação em
destaque (artigo 41), aos crimes praticados com violência doméstica e
familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se
aplica a Lei 9,099, de 26 de setembro de 1995. Sendo assim, a ação
penal reativa aos crimes de lesões corporais leves praticados no
ambiente doméstico e familiar contra a mulher são de ação pública
incondicionada, posto que patente o interesse geral da sociedade, não
só pelos objetivos da lei em questão, como pelo que preconiza o seu
artigo 6º, considerando a violência doméstica e familiar contra a mulher
uma das formas de violação dos direitos humanos. 5- Mantém-se a
revogação da prisão cautelar do ofensor se o fato ocorreu há mais de seis
meses e, até hoje, não se tem notícias de novo desentendimento capaz de
137
justificar a prisão pelo mesmo motivo – garantia da ordem pública.. [sem
destaques no original].
Recentemente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, por
maioria, acerca da matéria, no sentido de que a ação penal nos crimes de lesão
136
DIAS, 2007, p. 119.
DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. 20060910173057APR.
1ª Turma Criminal.Relator: Sérgio Bittencourt. Julgado em: 31/05/2007. DJ, 25 jul. 2007. p. 126.
Disponível em: <http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgibin/tjcgi1?DOCNUM=1&PGATU=1&1=20&ID=612293,42812,5095&MGWLPN=SERVIDOR1&NXTPG
M=jrhtm03&OPT=&ORIGEM=INTER>. Acesso em: 24 out. 2008.
137
65
corporal qualificada pela violência doméstica é pública incondicionada, ou seja, não
depende de autorização da vítima. 138
LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AÇÃO PENAL
PÚBLICA INCONDICIONADA.
Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão que deu
provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo MP, determinando
que a denúncia, anteriormente rejeitada pelo juiz de 1º grau, fosse recebida
contra o paciente pela conduta de lesões corporais leves contra sua
companheira, mesmo tendo ela se negado a representá-lo em audiência
especialmente designada para tal finalidade, na presença do juiz, do
representante do Parquet e de seu advogado. Com isso, a discussão foi
no sentido de definir qual é a espécie de ação penal (pública incondicionada
ou pública condicionada à representação) deverá ser manejada no caso de
crime de lesão corporal leve qualificada, relacionada à violência doméstica,
após o advento da Lei n. 11.340/2006. A Turma, ao prosseguir o
julgamento, por maioria, denegou a ordem, por entender que se trata de
ação penal pública incondicionada, com apoio nos seguintes argumentos,
dentre outros: 1) o art. 88 da Lei n. 9.099/1995 foi derrogado em relação à
Lei Maria da Penha, em razão de o art. 41 deste diploma legal ter
expressamente afastado a aplicação, por inteiro, daquela lei ao tipo descrito
no art. 129, § 9º, CP; 2) isso se deve ao fato de que as referidas leis
possuem escopos diametralmente opostos. Enquanto a Lei dos Juizados
Especiais busca evitar o início do processo penal, que poderá culminar em
imposição de sanção ao agente, a Lei Maria da Penha procura punir com
maior rigor o agressor que age às escondidas nos lares, pondo em risco a
saúde de sua família; 3) a Lei n. 11.340/2006 procurou criar mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres nos termos
do § 8º do art. 226 e art. 227, ambos da CF/1988, daí não se poder falar em
representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atingir a
mulher, em casos de violência doméstica, familiar ou íntima; 4) ademais,
até a nova redação do § 9º do art. 129 do CP, dada pelo art. 44 da Lei n.
11.340/2006, impondo pena máxima de três anos à lesão corporal leve
qualificada praticada no âmbito familiar, corrobora a proibição da utilização
do procedimento dos Juizados Especiais, afastando assim a exigência de
representação da vítima. Ressalte-se que a divergência entendeu que a
mesma Lei n. 11.340/2006, nos termos do art. 16, admite representação,
bem como sua renúncia perante o juiz, em audiência especialmente
designada para esse fim, antes do recebimento da denúncia, ouvido o
Ministério Público. HC 96.992-DF. (Rel. Min. Jane Silva Desembargadora convocada do TJ-MG-, julgado em 12/8/2008 –
SEXTA TURMA).
Outrossim, segundo nosso ordenamento jurídico, os delitos praticados com
violência física ou grave ameaça, à exceção do crime de ameaça na modalidade
simples, são puníveis independentemente de representação da vítima, caso não
haja previsão expressa em sentido contrário; e a lesão corporal de natureza leve não
é diferente, porquanto, com a não aplicação da Lei nº 9.099/1995 por expressa
138
O Informativo Online é uma publicação da ESMP - ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DE SERGIPE. Praça Fausto Cardoso, 327-3º andar-Centro Tel:79- 216-2400-FAX:792117476 - www.esmp.mp.se.gov.br/Folhetim/Edicao07.html - 34k Acesso em 23 de março 2009.
66
imposição do artigo 41 da Lei Maria da Penha, nenhum dispositivo na legislação
pátria estabelece que a ação penal do crime de lesão corporal leve qualificado pela
violência doméstica seja precedida de representação da ofendida.
Assim ensina Fausto Rodrigues de Lima:
“[...] Se não houver qualquer menção legal determinando o contrário, o
crime será de ação penal pública incondicionada, e não depende de
representação.O crime depende de representação mais comumente
denunciado é o de ameaça (artigo 147). No entanto, poderão ocorrer alguns
outros mais raros (menos registrados), como perigo de contágio venéreo
(artigo 130, CP), violação da correspondência (artigo 151, CP), divulgação
de segredo (artigo 153, CP), furto de coisa comum (artigo 156, CP), ou
qualquer crime contra o patrimônio previsto no Titulo II do Código Penal,
cometido sem violência ou grave ameaça (artigo 182, incisos I, II e III, c/c
art. 183, inciso I, CP), e, ainda, contra os costumes se praticado contra
vítima pobre (artigo 225, parágrafo 2º, CP). Os crimes de ação penal
privada podem perfeitamente justificar a audiência do artigo 16, já que seu
processamento depende também da vontade das vítimas. Entram nesta
categoria os crimes contra a honra (artigos 138, 139 e 140, CP), contra os
costumes (artigos 213,214, 215, 216, 216A e 218, com exceção daqueles
cometidos com abuso do pátrio poder ou pelo padrastro, arftigo 225
parágrafo 1º inciso II, CP) de dano simples (artigo 163, caput CP), de fraude
à execução (artigo 179, CP), de induzimento a erro essencial e ocultação de
impedimento (artigo 236, CP) e de exercício arbitrário das próprias razões,
se cometido sem violência (artigo 345 parágrafo único, CP).Verifica-se,
assim, que os crimes passíveis de renúncia mais comuns são
caracterizados pela violência psicológica, representada, por exemplo,
pelo crime de ameaça, de injúria (humilhações e desqualificações, por
exemplo), ou pela contravenção penal de perturbação da tranquilidade
(perseguição, ciúmes ou controle excessivo). [...] Chama a atenção, por fim,
o fato de que nenhum crime praticado com violência física ou grave
ameaça, com exceção da ameaça em sua forma simples (artigo 147, CP),
depende de representação Assim, são de ação penal incondicionada os
crimes de lesão qualificados pela violência doméstica (artigo 129 parágrafo
9º, CP), de dano qualificado pela violência, grave ameaça ou com
emprego de substância inflamável ou explosiva (artigo 163, parágrafo
único, inciso I e II, CP), contra o patrimônio, praticado com violência ou
grave ameaça (artigo 183 inciso I, CP) ou, ainda, de exercício arbitrário
das próprias razões, com emprego de violência (artigo 345, parágrafo
único, CP).Em nenhum destes casos as vítimas podem renunciar ao
processo. Essa coerência legislativa e jurídica é mais um argumento que
suplanta os que ainda insistem em exigir representação das mulheres
vítimas de espancamentos. Por isso, o artigo 16 jamais pode ser
interpretado como se tivesse mantido a representação para a lesão
139
corporal”. [sem destaques no original]
Diante dos argumentos acima aduzidos, divisa-se que o tipo de ação penal
cabível ao crime de lesão corporal leve praticado com violência doméstica e familiar
contra
139
a mulher é a pública incondicionada, eis que nesses casos o interesse
LIMA, Fausto Rodrigues de. A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica. Da
construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1615,
3 dez. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10718>. Acesso em: 28 out.
2008.
67
público deve prevalecer, como forma de proteção à família e à dignidade da pessoa
humana, mas também não há previsão expressa em nosso ordenamento jurídico
acerca da necessidade de representação da vítima.
68
CONCLUSÃO
O objetivo desta monografia consistiu na análise da proteção da integridade
da mulher, física, moral e econômica, abarcando deste a tutela mais gravosa,
correspondente à morte, passando pela lesão corporal e culminando com qualquer
espécie de sofrimento. Analisando em primeira mão o tema da origem da Lei nº
11.340/2006, sua denominação e situação atual, antecedentes legislativos e o bem
jurídico tutelado.
A violência de gênero como conceito sociológico, é utilizada como uma
categoria analítica reconhece que as diferenças entre homens e mulheres são
construídas socialmente e se fundam em relações de poder, ligando ao contexto
histórico e cultural da humanidade. Tendo também influencia na sociedade patriarcal
e na discriminação história contra as mulheres, submetendo as mulheres a uma
condição de submissão, fato que perdurou por todo o desenvolvimento da sociedade
humana.
As mais diversas formas de violência em que a mulher foi historicamente,
perseguida, maltratada e humilhada, e as condutas masculinas aviltaram sua
dignidade e os valores protegidos pelos direitos humanos. Os direitos humanos
inerentes à mulher foram violados ao longo do tempo, por essa chamada violência
de gênero, em que a mulher, é submetida a diversas formas de violência.
Um aspecto importante que foi abordado nesta monografia, é o bem jurídico
vida e integridade física, psíquica, moral e econômica, da mulher, pois o bem, no
seu sentido amplo, é tudo o que tem valor para o ser humano. Neste aspecto deve
ser protegido.
Anteriormente à Lei Maria da Penha, a violência doméstica e familiar contra a
mulher era regulada pela Lei dos Juizados Especiais, a Lei nº 9.099/1995. contudo,
em razão do tratamento de criem de menor potencial ofensivo, o Judiciário, valendose dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/1995, quase sempre realizava
acordos com o ofensor, agindo assim, não coibia a violência doméstica perpetrada
contra a mulher no interior dos lares. Pelo contrário, o fato de o Estado não assumir
uma postura mais austera acerca dos problemas domésticos indicava que a mulher
69
tinha que apanhar em silêncio, em conseqüência da impunidade dos seus
agressores e da continuidade das ofensas.
A não aplicação da Lei dos Juizados Especiais e um importante salto no
entendimento de que é desnecessária a representação da ofendida nos casos de
lesões corporais. Nestes casos, a Lei Maria a Penha tirou a árdua tarefa de a vítima
ter que representar contra seu ofensor para que seja ajuizada a ação penal. Com a
inovação da Lei nº 11.340/2006, o ordenamento jurídico pátrio, porque reprime a
violência contra a mulher, explanando com minudência todas as formas de
agressões a que a vítima esta sujeita.]
Nesse meio tempo, a Lei nº 11.340/2006, ao opor-se à exigência de
representação, tornou-se mais eficaz no combate à violência doméstica e familiar
contra a mulher, pois esta, na maioria das vezes, depende econômica e
emocionalmente de seu algoz e, com isso, tende a ser pressionada a não
representar, ou a retratar-se da representação, pela instauração de ação penal.
Assim, condicionar o início da instrução criminal à representação da vítima não
coibiria a violência, mas sim tornaria a ocorrer as mesmas situações ocasionadas
pela lei nº 9099;1995. some-se a isso o fato de não mais haver previsão expressa a
respeito da necessidade de representação, porquanto a Lei Maria da Penha, em seu
artigo 41, afastou qualquer aplicação da Lei nº 9.099/1995 aos casos de incidência
daquela.
Ante ao exposto, o presente trabalho foi elaborado com o intuito de ajudar no
entendimento da Lei Maria da Penha, especificamente ao bem jurídico tutelado a
vida e a integridade física, moral e econômica, sua representação nos casos de
lesões corporais leves praticadas contra a mulher no ambiente familiar, que, foi
fortemente demonstrado, aponta no sentido do qual a posição mais correta é a da
prescindibilidade de representação da vítima, sendo, pois, ação penal pública
incondicionada, porquanto o interesse público deve prevalecer, como forma de
proteção à família e à dignidade da pessoa humana, além de que não há previsão
expressa no ordenamento jurídico penal pátrio acerca da necessidade de
representação da vítima.
70
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Patrícia Donati de. Justiça de Cuiabá aplica medidas protetivas da Lei
Maria da Penha a homem vítima de ameaça. Disponível
em:http://www.jusbrasil.com.br/noticias/156687/justica-de-cuiaba-aplica-medidasprotetivas-da-lei-maria-da-penha-a-homem-vitima-de-ameaca. Acesso em: 7 maio
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Josemary Felix Monteiro - Universidade Católica de Brasília