www.rhmjournal.org.uk A 2010 Reproductive Health Matters. Todos os direitos reservados. Reproductive Health Matters 2011; 19 (37): 4–9 0968-8080/11 $ – see front matter PII: 50968-8080 (10)37565-9 QUESTÕES DE ´ SAUDE reprodutiva A privatização da saúde nos países em desenvolvimento: o que cabe em um nome? Marge Berer* * Editora, Reproductive Health Matters, Londres, Inglaterra. E-mail: [email protected] A RHM britânica já publicou duas edições sobre a privatização dos sistemas de saúde. A primeira, em novembro de 2010, apresentou a questão: “Quem é a responsabilidade pela saúde nos sistemas privatizados?” Como passei pela primeira rodada de tentativas do governo inglês para privatizar o Sistema Nacional de Saúde na Inglaterra, contra a vontade da maioria da população do país, eu agora me considero pronta para responder a essa pergunta. E a resposta é que quando se retira a responsabilidade pela saúde das mãos dos governos nacionais, ninguém mais se encarrega da questão. Não há nenhuma outra instituição com a autoridade e os recursos necessários para assegurar o direito à saúde. E se um governo renega essa responsabilidade, por quaisquer razões que sejam, quem vai sofrer são as pessoas que não podem arcar com os custos da assistência à saúde. Uma das vantagens de ser uma revista internacional focada em temas específicos é que podemos revelar a profundidade e a amplitude dessas questões em diferentes países. Com um tema complexo e multifacetado como a privatização, mais do que valeu a pena dedicar duas edições da revista a isso. Mesmo assim, ainda estamos começando a captar o panorama geral, uma vez que a América Latina e o Caribe, o Oriente Médio e o Norte da África foram consideravelmente sub-representados em ambas as edições sobre este tópico. Entretanto, no que se refere à Ásia e a alguns países da África Subsaariana, algumas conclusões sólidas podem ser extraídas dos artigos publicados em RHM. Dado o rápido deslocamento em direção à privatização ocorrido em muitos países e a quantidade de dinheiro que está sendo canalizada por doadores para apoiar a privatização neste setor (com ou sem fins lucrativos), tem sido chocante descobrir que há tão poucas evidências sólidas sobre o tipo e a qualidade desses serviços de saúde, bem como sobre os padrões de assistência existentes no setor privado nos países dessas duas regiões. Pode-se mesmo dizer que o setor privado está escondido, já que há tão pouca informação sobre o mesmo, pelo menos no que diz respeito aos serviços de saúde reprodutiva e sexual. Ou melhor: o que é publicado sobre o assunto é escrito por pessoas que trabalham no setor e que proclamam o sucesso do processo, mas com um claro conflito de interesses. No mundo desenvolvido, o setor privado é completamente diferente do modo como se apresenta nos países de baixa-renda na Ásia e na África. Aí, na verdade, o setor privado parece consistir quase que inteiramente de pequenas clínicas e casas de repouso privadas, em geral de propriedade de uma única pessoa, alguma das quais vem sendo atraídas para o modelo de franquias sociais, mas que parecem operar isoladamente no nível local, sem qualquer tipo 143 M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151 de supervisão. Incluem ainda serviços religiosos e de marketing social dirigidos por ONGs, a respeito dos quais se acredita que realizam um bom trabalho, embora isso nem sempre se baseie em evidências sólidas. Em geral, todos esses serviços oferecem assistência à saúde sexual e reprodutiva ou, pelo menos, assistência pré-natal, planejamento familiar (ao menos alguns métodos), preservativos e abortos (seguros e inseguros). Se os artigos publicados por RHM dão alguma medida do que são esses serviços, então é preciso que algo seja feito urgentemente para qualificar as evidências sobre o setor privado nesses países. Parte importante dos artigos que chegam até a RHM são rejeitados por serem meras descrições das metas e intenções desses serviços e das chamadas parcerias público-privadas nas quais estão envolvidos. Por quê? Por que se trata de puro material promocional. Não apresentam qualquer evidência baseada nos valores da saúde pública, indicando a qualidade dos serviços ou a melhoria dos resultados na saúde, o que torna os artigos impublicáveis. A ausência destes artigos na revista é uma grande perda e eu espero que os autores possam fazer o que é necessário para torná-los publicáveis, de modo que eu possa recebê-los de volta. Entretanto, a questão sobre quão bem o setor privado serve a sua “clientela” permanece sem resposta e isto é um problema sério, que governos, doadores, pesquisadores independentes e ativistas da área da saúde precisam confrontar e solucionar. Não sou a única a defender essa visão. Em 2009, um artigo da Base de Dados de Revisões Sistemáticas Cochrane tomou como meta examinar evidências para identificar se nos países pobres e em desenvolvimento as franquias sociais se desenvolveram como uma forma de aprimorar a oferta de serviços de saúde por meio do envolvimento do setor não governamental. Após uma revisão minuciosa da literatura (que incluiu estudos aleatórios controlados, não 144 aleatórios controlados, controlados antes e depois de intervenções e séries históricas comparando modelos de franquias sociais com outros modelos de serviços de saúde, outros modelos de franquias sociais ou ausência de serviços de saúde), dois revisores independentes não encontraram estudos que fossem elegíveis para a inclusão em uma revisão. Eles indicaram: “...a necessidade de se desenvolver estudos rigorosos para avaliar os efeitos das franquias sociais sobre o acesso e a qualidade dos sistemas de saúde em países pobres e em desenvolvimento. Esses estudos deveriam ser informados pela literatura mais ampla, para construir uma base teórica sólida e realizar pesquisas empíricas voltadas para a identificação do alcance, aceitabilidade, viabilidade, sustentabilidade e mensurabilidade dos diferentes modelos de franquias sociais existentes”¹ Do mesmo modo, se a sustentabilidade de uma organização de marketing social depende da posição no mercado das suas próprias marcas de camisinha e de contraceptivos e do aumento da visibilidade e, consequentemente, das vendas de seus produtos (como Purdy reconhece em seu artigo4, no qual descreve o uso das redes sociais para a educação sobre preservativos pela internet), então qual é a diferença entre isso e uma companhia privada com fins lucrativos que faz o mesmo? Só os preços menores? Parece que, apesar de todos os dados sobre a quantidade de preservativos vendida por organizações de marketing social, sequer se sabe se isso aumenta as taxas de uso de preservativos, por que na maioria das vezes não se sabe quem compra o produto nem tampouco se os preservativos são usados constantemente, corretamente ou com que parceiros. Assim, comenta Knerr5 (2011) em sua análise sobre as organizações de marketing social: “evidências rigorosas e confiáveis do impacto sobre o uso do preservativo e a prevenção de M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151 doenças são limitadas, assim como as evidências do impacto sobre a igualdade no acesso a preservativos para a população pobre, mulheres e pessoas que vivem com HIV” 5 Há, no entanto, outra evidência de que a igualdade no acesso a preservativos é um sonho quando se trata dos pobres que vivem nos países mais pobres, incluindo aqueles em que a epidemia de HIV se apresenta de forma grave. No norte do Quênia, por exemplo, os homens residentes na área rural tem que lavar e reutilizar preservativos subsidiados por que eles são muito escassos e caros para serem jogados fora após o uso. Um relatório de março de 2011 informa: “Os canais de televisão local mostraram recentemente imagens de homens em Isiolo, área rural do norte do Quênia, lavando preservativos e pendurando-os para secar; os homens disseram que não podiam arcar com os custos dos preservativos e usá-los uma só vez. Outros homens do povoado disseram que quando não conseguiam os preservativos, usavam sacolas de polietileno e até pedaços de tecido durante as relações sexuais... Os preservativos são distribuídos gratuitamente nos centros públicos de saúde, mas na área rural do Quênia há poucas unidades de saúde, distantes umas das outros e seus suprimentos são pouco confiáveis. ‘Muitas das áreas rurais no país são inacessíveis devido à rede de estradas precárias, o que torna a distribuição de preservativos difícil e desafiadora,’ disse Peter Cherutich, chefe do programa nacional de prevenção da AIDS e de controle de infecções sexualmente transmissíveis, NASCOP. ‘Em sua maioria, os preservativos do governo estão disponíveis em unidades de saúde e não há muitas delas em áreas rurais, isso cria um outro desafio para a distribuição.’... ‘M. caminha 5km até o centro de saúde mais próximo para conseguir preservativos, mas às vezes os estoques estão esgotados.’”² Então quem está comprando os preservativos do marketing social? As mesmas pessoas que teriam comprado em uma farmácia por um preço mais alto, por que em ambos os casos podem pagar por eles? O efeito do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio 5 sobre a atenção à saúde reprodutiva e sexual A contagem regressiva até 2015 para se alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) já começou2 e os países estão se esforçando para compensar as falhas de décadas nas tentativas de redução da mortalidade materna. Por conta disso, RHM tem recebido um número crescente de artigos sobre saúde materna (e infantil), serviços de gineco-obstetrícia e morbimortalidade materna. Isto é, obviamente, uma coisa boa por que essa questão esteve ausente das análises por um bom tempo e as altas taxas de mortalidade materna são uma mancha na reputação de um número muito grande de países. No entanto, ao mesmo tempo em que os países tentam cumprir o seu papel quanto aos aspectos materno e infantil do ODM5, limitam seus esforços e não lidam com todos os parâmetros da saúde sexual e reprodutiva das mulheres (esqueçam os homens, eles estão inteiramente fora desse radar, exceto pelo HIV, circuncisão masculina e preservativos do marketing social). Três artigos publicados em RHM6,7 e um livro do Dr. Rani Bang, são um lembrete poderoso Ironicamente, o Programa de Ação mais abrangente da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) de 1994 também foi projetado para se tornar realidade em 2015, o que, certamente, não acontecerá, embora não haja praticamente nenhuma pressão quanto a isso. O indicador que trata do “acesso universal à saúde reprodutiva” do ODM5 é divulgado no programa da CIPD, mas raramente é lembrado como a fonte do que supostamente deveria ser alcançado. 2 145 M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151 do fato de que uma ampla gama da morbidade ginecológica - prolapso, fístula, doenças sexualmente transmissíveis e outras infecções reprodutivas, infecções urinárias, incontinência urinária, uma longa lista de problemas menstruais, dores na parte inferior do abdômen, desejo sexual reduzido, desconforto e dor durante a relação sexual, aborto provocado e espontâneo e complicações por abortos inseguros - não tem sido tratada adequadamente ou, nem sequer é tratada nos países pobres, ou isso é feito apenas pelo assim chamado setor informal e pelas farmácias e vendedores de medicamentos de todos os tipos, não necessariamente eficazes. Utilizando dados quantitativos para avaliar o acesso, a equidade e a utilização de serviços de saúde Quatro artigos realmente importantes levaram a RHM para um novo território. O artigo de Carla AbouZahr8 (2011) é sobre como interpretar duas novas estimativas globais de mortalidade materna para 2008, que foram publicadas em 2010, com uma diferença de seis meses entre uma e outra, e que, desde então, vêm causando controvérsias. Tradicionalmente, a Organização Mundial de Saúde é responsável por estas estimativas, que são publicadas a cada três anos desde 1990. Em 2010, o Instituto de Estatísticas e Avaliação em Saúde, em Seattle, nos EUA, decidiu que o setor privado deveria ter vez e, de forma muito apressada, divulgou suas próprias estimativas para 2008, sem se comunicar com a OMS, o que foi interpretado por muitos como uma tentativa de chamar a atenção para si mesmo em uma reunião eminente do G8, em que a ODM5 era um dos assuntos prioritários da agenda. O artigo de AbouZahr8 examina a diferença entre os dois conjuntos de estimativas e discute o valor e as limitações inerentes aos exercícios de modelagem necessários para se chegar a elas, questionando a relevância da modelagem para as necessidades dos 146 processo de tomada de decisão no nível nacional. As taxas de mortalidade materna existentes são amplamente baseadas nas estimativas e na modelagem estatística por causa da ausência de dados de registro civil sobre mortes e causas de morte na maior parte dos países pobres. Contudo, como a autora observa: Em geral, o registro de óbitos entre as mulheres em idade reprodutiva derivado do registro civil é a primeira etapa para a condução das investigações confidenciais e para a prevenção de óbitos maternos. Ela faz um chamado a todos os países para que comecem a coletar dados para a melhoria desses resultados. Outros três artigos quantitativos examinam dados de inquéritos domiciliares nacionais sobre a assistência à saúde reprodutiva e sexual como um meio de medir à equidade no acesso, utilização e financiamento dos serviços. Vinte e cinco países são cobertos pelo artigo de Limwattananon et al9, baseado nos duas Pesquisas de Demografia e Saúde (DHS) mais recentes para cada um desses países, e Nguyen et al10 trata de seis países, também se baseando nos dados da DHS e nos Relatórios Nacionais de Saúde e de Saúde Reprodutiva destes países. O artigo de Kongsri et al11, também de base quantitativa, examina em profundidade a situação da Tailândia, a partir dos dois inquéritos mais recentes sobre saúde reprodutiva. Por ser uma pessoa adepta dos métodos qualitativos, minha primeira reação às análises dos dados de inquéritos dessa natureza foi questionar o quanto esses dados quantitativos sozinhos conseguem falar sobre esses países. Mas todos os autores escreveram seus artigos com a intenção de que pessoas estatisticamente analfabetas como eu pudessem entendê-los e, agora que estão prontos, posso dizer sem hesitação que todos são explosivos. Nguyen et al10, por exemplo, demonstram que nos seis países estudados, os níveis de M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151 utilização dos serviços de saúde reprodutiva são tão inadequados que o crescente papel desempenhado pelo setor informal levanta questões sobre a segurança, eficácia e qualidade da assistência, havendo um claro vínculo entre gastos e utilização de serviços. Por exemplo, um gasto nacional mais elevado em saúde reprodutiva é associado a uma melhor taxa de utilização e, contrariamente, o subfinanciamento é um limite para se alcançar o acesso universal à saúde reprodutiva. O artigo também levanta questões sobre a dimensão do financiamento dos doadores externos na ausência de investimentos domésticos correspondentes, o que afeta a sustentabilidade do sistema. Isto não diminui o valor do trabalho qualitativo como um meio de aprofundar e confirmar os achados quantitativos. Como Collumbien et al12 relatam em seus artigos sobre os serviços acolhedores para jovens em dois distritos rurais na Índia, nem sempre os estudos levantam as questões corretas: “As normas sociais influenciam o desenho da pesquisa e o modo como os resultados são interpretados e informam os projetos de intervenções. Em nosso estudo, por exemplo, questões sobre a procura por serviços de aborto foram deixadas de fora do questionário para jovens solteiras para não se ofender as comunidades onde as intervenções são planejadas. Embora seja amplamente reconhecido que os inquéritos de base comunitária não produzem estimativas confiáveis sobre o aborto, o fato de não se perguntar sobre o tema de uma maneira aberta e livre de juízos de valor leva a própria pesquisa a reforçar essas normas. Portanto, nós nos tornamos cúmplices na perpetuação da negação da realidade por não produzir evidências. As intervenções apropriadas não são identificadas e quem sofre com isso são as jovens.” Uma avaliação estratégica do aborto inseguro em Malawi13 demonstra muito bem como dados qualitativos - como, por exemplo, entrevistas, observação de serviços, mensuração da qualidade da assistência, dos custos e do financiamento, tendências das taxas de utilização, assim como dados epidemiológicos e sobre a situação de saúde - revelam a extensão da equidade no acesso para todos aqueles que necessitam de assistência. Artigos como os de Rashid et al7, Honda et al14, Chelstowska15, Jonkers et al16, Rispel et al17 e Ngo & Hill18 acrescentam bastante aos dados de inquéritos, por que trazem à tona a experiência de usuários e profissionais de saúde e mostram as consequências das falhas do sistema de saúde para o paciente individual, que é a razão de ser dos serviços públicos de saúde. Uma das questões linguísticas mais interessante nesses artigos, no que se refere aos inquéritos, é a descrição dos quintis superiores e inferiores da população no artigo de Limwattananon et al9. Embora tratem, no artigo, da disparidade entre ricos e pobres, eles também descrevem esses dois quintis como “os mais pobres” e “os menos pobres” (e não os mais ricos) no país. Não esqueçamos que, para a maior parte das pessoas, ser rico em países pobres ainda significa ser pobre, mas não tão pobre como os menos favorecidos. Uma abordagem sobre os sistemas de saúde para a assistência em saúde sexual e reprodutiva A RHM também publicou artigos que tratam da realidade de um único país: Bangladesh7, Índia6, 19, Madagascar14, Tailândia11 e Vietnam18. Há artigos que tratam da privatização do aborto na Polônia, em um processo onde o pecado transforma-se em ouro15, das desvantagens enfrentadas por uma minoria étnica de mulheres com complicações na gestação e no parto na Holanda16 e das mulheres de países desenvolvidos que cruzam suas fronteiras em busca de serviços de reprodução assistida na Ásia, analisando as consequências para os sistemas de 147 M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151 saúde ao atender pacientes ricos de países estrangeiros20. Mesmo quando estes artigos não tratam diretamente da privatização - como o de Desai et al6, que é sobre o aumento da prevalência de histerectomia em jovens mulheres trabalhadoras em Gujerat, na Índia, graças à cobertura parcial oferecida pelos seguros de saúde para a internação - eles se referem, reconhecem e consideram o problema. Do ponto de vista da RHM este é um importante passo adiante, por que a privatização há muito tempo ameaça os sistemas de saúde, frequentemente escondida, e a maioria de nós, da área de saúde reprodutiva e sexual, falhou em considerar devidamente o problema, se é que alguma vez o fizemos. Estes artigos tratam da comercialização dos serviços, da grave dificuldade de acesso aos serviços em função da cobrança de taxas (não só para a classe mais pobre, mas também para a classe média baixa dos países pobres), do déficit de equidade de acordo com a classe socioeconômica, do baixo padrão de assistência nos pequenos hospitais privados e, acima de tudo, do status e da acessibilidade aos serviços de saúde (pública, privada, informal) e dos subgrupos (quase sempre mulheres) que utilizam cada um deles (segundo classe socioeconômica, localização geográfica, idade, educação e estado civil). Aqui está um pouco do que aprendi com estes artigos: • Os países não têm investido o suficiente em serviços públicos de saúde ou na educação e treinamento das novas gerações de profissionais de saúde3. • As pessoas que tem uma melhor situação econômica e maior escolaridade, que são casadas e vivem em áreas urbanas têm 3 Por exemplo, passados 10 anos desde que os chefes de estado dos países da União Africana se encontraram em Abuja na Nigéria e se comprometeram a alocar “pelo menos 15%” dos seus orçamentos anuais para melhorar o setor de saúde, apenas Ruanda e África do Sul alcançaram esse objetivo, de acordo com a OMS.³ 148 • • • • • um acesso muito maior aos serviços formais de saúde reprodutiva e sexual, no setor público e privado, do que aquelas que são mais pobres, menos escolarizadas, solteiras e que vivem em áreas rurais - a não ser que haja acesso universal à assistência à saúde, uma pretensão que muito poucos países são capazes de tornar realidade. Aparentemente, o setor privado não compensa o que o setor público não consegue prover e arcar. Isso por que, antes de mais nada, ninguém se encarrega da supervisão deste setor. No setor privado, os serviços são mais caros, o que limita o acesso aos mesmos. Entretanto, os pobres utilizam esses serviços de forma cada vez mais freqüente por que se sabe ou se acredita que o setor público oferece menos assistência e de menor qualidade, com menos medicamentos, tratamentos e menor oferta de tecnologia moderna. Embora o setor privado custe mais do que o setor público, o setor público também se tornou muito caro para a população, especialmente quando a assistência depende do pagamento de taxas extras, de “presentes” para os profissionais ou de percorrer longas distâncias até chegar aos serviços. Os problemas de saúde são a principal causa de endividamento entres os pobres. O setor privado não alivia este problema já bem conhecido, mas, pelo contrário, é provável que esteja contribuindo para o seu agravamento. Não há nenhuma regulamentação ou monitoramento efetivo por parte dos governos sobre os serviços privados de saúde. A função de administrar, proposta pelos neoliberais, não está funcionando, pelos mesmos motivos pelos quais M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151 o setor público de saúde também não funciona - falta de capacidade e conhecimento sobre gestão, ausência de regulamentação e de poder para reforçá-las e insuficiência de recursos. • Nos lugares onde os serviços são escassos, taxas mais elevadas podem ser cobradas, admite-se a propina e a corrupção pode se tornar uma base para o acesso à assistência e ao tratamento. • Pessoas de países desenvolvidos viajam cada vez mais para países em desenvolvimento em busca de certos serviços, especialmente tratamentos de infertilidade, por causa do seu alto custo no setor privado e das restrições legais em seus países de origem. • Mais importante, o setor informal nos países em desenvolvimento está oferecendo o maior volume de “assistência à saúde” para os pobres, para aqueles que vivem em áreas rurais e para jovens solteiros, grupos que tem sido negligenciados tanto pelo setor público quanto pelo privado. Quem é o setor privado nos países pobres e em desenvolvimento? De acordo com os artigos da RHM, nesses países o setor privado, em sua maior parte, não consiste de novas e grandes áreas corporativas, compostas por profissionais altamente capacitados. Na maioria dos casos, trata-se de pequenos hospitais e casas de repouso, com um único proprietário, em geral com menos de 30 leitos e com instalações e equipes de qualidade extremamente variável, o que acaba por produzir resultados de saúde bastante duvidosos. Se o que foi descrito por Bhate-Deosthali et al (RC) para Maharashtra pode ser tomado como típico, pode-se dizer que este setor se constitui de unidades de saúde limitadas, com poucos profissionais qualificados, baixos padrões de assistência e um sistema de registro ainda pior. Dos 261 pequenos hospitais que as autoras estudaram em Maharashtra, 146 ofereciam “serviços de maternidade” e muitos dos donos eram gineco-obstetras, mas ainda assim 137 deles não tinham sequer uma parteira qualificada e embora muitos afirmassem que ofereciam assistência emergencial, incluindo cesarianas, apenas três tinham banco de sangue e oito tinham ambulância. E estes são os tipos de unidade que brevemente serão implantadas no modelo de parceria público-privada. O governo vai realmente conseguir reduzir a mortalidade materna sem investir na melhoria e na profissionalização adequada das equipes, do mesmo modo que fariam as unidades do setor público? Entretanto, para mim, a descoberta mais importante que emergiu destes artigos é o fato de que aquilo que é denominado de setor privado pelos acadêmicos e pesquisadores de ONGs inclui o que é eufemisticamente rotulado como “setor privado informal”, ou seja, aquele que reúne as auxiliares de trabalhos de parto que, sozinhas, não são capazes de reduzir a mortalidade materna, os vários tipos de curandeiros, vendedores de medicamentos que não receberam treinamento farmacêuticos e médicos das aldeias, que também não receberam treinamento médico. Se os dados sobre este setor desqualificado, e muitas vezes não escolarizado, forem subsumidos naqueles sobre o setor privado, esta será a forma mais sofisticada de se esconder tudo de todos. Por exemplo, mulheres que fizeram parto domiciliar foram muitas vezes contabilizadas como se tivessem parido em uma unidade do setor privado informal. Se isso é interpretado como uma afirmação de que o setor privado nos países pobres e em desenvolvimento é viável e funciona, mesmo nas áreas rurais e para as populações mais pobres, então há algo de muito errado aqui. Quando os dados são desagregados, é evidente que não há algo como “setor privado” fora das áreas 149 M Berer / Questões de saúde reprodutiva 2011;5;1;143-151 urbanas nesses países, mas, sim, que, entre as mulheres pobres residentes em áreas rurais, a maioria dos partos e vários outros procedimentos de assistência à saúde reprodutiva e sexual - incluindo métodos contraceptivos para jovens solteiros, medicamentos e outros tratamentos para doenças sexualmente transmissíveis e outras infecções do sistema reprodutivo, assim como aborto inseguro e tratamento para todo um conjunto de enfermidades ginecológicas crônicas - ainda vêm sendo realizados por provedores inexperientes e não qualificados. Como Limwattananon et al9 concluem em seu artigo sobre as desigualdades relativas ao local do parto em 25 países de baixa renda entre 1996 e 2006: “Um sistema frágil de saúde que resulta do investimento público desigual em sua infraestrutura nas áreas rurais e a falta de profissionais bem qualificados e treinados, está entre os fatores impeditivos mais importantes para que se reduza a mortalidade materna. Honrar os compromissos firmados pelos governos e seus parceiros internacionais é uma importante porta de entrada para o fortalecimento dos sistemas de saúde. Fortalecer o setor privado lucrativo não representa uma escolha política pelas comunidades pobres rurais.” 9 Eu fui criticada por colocar o meu viés antiprivatizante nos dois artigos em que apresentai este tema na RHM britânica. Mas eu não encontrei nada nos artigos aceitos para publicação, nem naqueles que não foram aceitos ou nos que foram resumidos para outras sessões da revista que me fizesse mudar de opinião sobre este assunto. Além disso, como Kongsri e outros11 mostram para a Tailândia, onde o acesso universal é uma política nacional antes mesmo dos ODMs serem pensadas: “...Uma alta cobertura e baixa desigualdade no acesso a serviços são o resultado de amplos investimentos no sistema de saúde por governos sucessivos, particularmente na assistência básica nos níveis municipais e distritais.” Concluo, então, que só o acesso universal a serviços de saúde de qualidade e a atenção aos determinantes sociais da saúde irá possibilitar a saúde para todos em todos os seus aspectos e que os governos politicamente comprometidos são os únicos que tem a capacidade de fazer isto. Referências 1. Koehlmoos TP, Gazi R, Hossain SS, et al. 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