Apresentação – História da Psicanálise no Brasil A doutrina de Freud já circulava no Brasil desde a década de 1910, graças ao interesse de grandes nomes da psiquiatria brasileira, principalmente do Rio de Janeiro e da Bahia. Na época em que as ideias psicanalíticas chegam ao país, a psiquiatria estava concentrada no higienismo. A missão era, conforme Oliveira (2005), “(...) o estabelecimento de medidas profiláticas para corrigir os ‘defeitos’, garantir uma ‘procriação sã’ e uma ‘boa geração’ de brasileiros capazes de ‘enobrecer’ o futuro da nação (...)” (p.57). Segundo Bruno (1994), a obra de Freud despertou mais interesse no meio literário, o que podemos ver com a Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922 e com a obra do poeta Mário de Andrade, Paulicéia Desvairada, que é considerada a obra fundadora do movimento modernista e foi o primeiro autor da literatura a falar sobre Freud. Atualmente, graças ao avanço das pesquisas historiográficas é possível precisar o início da prática psicanalítica em torno de 1914, como comprova a tese de medicina de Genserico Aragão Da Psicanálise: a sexualidade nas neuroses. Nela, são apresentados quatro casos de pacientes tratados na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, e uma paciente de Juliano Moreira. A Psicanálise Paulista Embora surgida no Rio de Janeiro, a partir dos anos 20 a psicanálise começa a ganhar força na sua divulgação em São Paulo. O primeiro divulgador foi o psiquiatra Francisco Franco da Rocha, fundador e diretor do Hospital do Juquery, que durante muito tempo, foi o único lugar de prática e estudo da psiquiatria em São Paulo (Oliveira, 2005). Através de sua pesquisa Durval Marcondes, estudante de medicina, se interessa pelo novo tema e escreve em 1926, seu primeiro trabalho psicanalítico O simbolismo estético na literatura: ensaio de uma orientação para a crítica literária baseada nos conhecimentos fornecidos pela psicanálise. Em 1927, Marcondes organiza a primeira sociedade psicanalítica do Brasil, a “Sociedade Brasileira de Psicanálise”, com o intuito de fazer a divulgação da doutrina no país através de cursos e palestras. Em 1928, é lançado o primeiro exemplar da Revista Brasileira de Psicanálise. Marcondes durante muito tempo se dedicou a seguir as normas de formação estabelecidas pela IPA. Para isso, era necessário que viesse ao Brasil um analista didata disposto a realizar novas formações. Em 1933, com a ascensão do nazismo, muitos psicanalistas se viram obrigados a sair da Europa, apesar disso, a proposta de ter um analista didata só foi concretizada em1936, com a chegada em São Paulo de Adelheid Koch. Koch dá início à formação do primeiro grupo de candidatos a psicanalistas de São Paulo, onde além de Marcondes, se encontravam Flávio Dias, Darcy Uchôa, Virgínia Bicudo, Nabantino Ramos e Frank Philips. De acordo com Oliveira (2005), a primeira geração foi formada em dois momentos: de 1938 até 1944 com a constituição do “study group”, e de 1945 até 1950 onde foi possível a obtenção do reconhecimento como sociedade. O Pansexualismo na doutrina de Freud – Francisco Franco da Rocha De acordo com Roudinesco e Plon (1998), o termo pansexualismo surgiu após a publicação em 1905 dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: (...) utilizado para designar pejorativamente a doutrina freudiana da sexualidade, concebida sob a categoria de uma causalidade única, tanto porque ela recusaria qualquer explicação do psiquismo fora da etiologia sexual quanto pelo fato de que se pretenderia universal, isto é, aplicável a todas as culturas e a todos os indivíduos. (p.567) O livro de Franco da Rocha teve sua primeira edição em 1920 e segundo Sagawa (1994), a segunda edição, de 1930, teve seu título alterado para A doutrina de Freud, omitindo o termo “pansexualismo” porque Franco da Rocha “tomara conhecimento de que Freud estava em desacordo com o significado e o uso deste termo” (p.15). Oliveira (2005) discorda dessa versão e sustenta que o pansexualismo não era um problema para Franco da Rocha, ao contrário, como ele diz: “Resta o pansexualismo como princípio original, interessante, verdadeiro núcleo da doutrina de Freud. É este o ponto mais atacado e, com aparência de mais fraco, é exatamente o mais forte” (Franco da Rocha, 1920, p.179). Compartilho da opinião de Oliveira, a omissão do termo se deu por conta do contexto sociocultural em que a psicanálise tentava se estabelecer no Brasil, onde imperava certo moralismo a respeito de sexualidade. O fato é que, como afirma Bicudo: O que houve de notável em Franco da Rocha foi seu espírito aberto à teoria, em um período no qual era tão apoucada, entre nós, a literatura sobre o assunto (Bicudo, 1948, apud Rocha, 1989, p.18). Sob essa perspectiva, ainda na apresentação, Franco da Rocha alerta os moralistas: “Prevenidos no prefacio, os que tiverem medo de ver sua bela moral estragada, fechem este livro, não o leiam” (p. VI). É interessante notar, que Franco da Rocha procura uma exatidão na psicanálise, parece estabelecer uma diferença com outras práticas médicas no que se refere ao tratamento. Para ele a psicanálise não é tão prática e rápida quanto à medicina, é um trabalho moroso para o paciente e para o analista. Franco da Rocha começa seu livro afirmando que seu único objetivo é abordar a teoria freudiana, pouco conhecida no Brasil: “A publicação deste livro só tem por objectivo transmitir uma noção exacta da doutrina de Freud, que é muito falada e bem pouco conhecida.” (p.III). Trata-se de um resumo da obra freudiana, onde os assuntos centrais são: o inconsciente, a sexualidade infantil, os sonhos, as “neuroses e psiconevroses” e a “psicopatologia da vida diária”. Para o autor o que mais atrapalhava o estudo da doutrina freudiana era seu idioma original, o alemão, que não era muito conhecido no Brasil. Também aponta como grande dificuldade, a falta de estudos e observação psicológica em “nevro e psicopatas” (p.IV). Embora já experimentasse a técnica psicanalítica nos pacientes do Juquery, percebemos que o interesse na psicanálise é puramente teórico, além de tratar-se de um assunto de prestígio, abordado por grandes mentes. Apesar de dizer que grandes mentes se envolveram com a psicanálise, ele declara que ela também atrai muitos charlatões: Pudera! Não se faz mister, para isso, estudar anatomia, histologia, fisiologia, patologia geral, etc., coisas difíceis e amolantes; basta suporse possuidor de conhecimentos de psicologia e está tudo feito (p. V). Por não se tratar de uma ciência mensurável como a medicina, a psicanálise foi muito atacada pelos mais céticos, mais ainda depois do envolvimento de não médicos e da defesa de Freud a isso em A questão da análise leiga (1926). Apesar de se “libertar” da medicina, ela se tornou passível dos que se aproveitavam da não necessidade de formação para deturpá-la. Apesar de não fazer uma divisão clara em capítulos, Franco da Rocha analisa em seu livro a constituição do aparelho psíquico, a sexualidade infantil e o estudo dos sonhos, baseando-se claramente na primeira tópica freudiana. Com relação ao aparelho psíquico, ele se interroga sobre o trabalho do psicanalista, sustentando que: “O médico deve penetrar, por dedução dos efeitos conscientes, até chegar aos processos psíquicos inconscientes” (p.06). Para falar sobre a sexualidade infantil, ele utiliza Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), e o texto Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909) para elucidar as teorias freudianas. Franco da Rocha nos apresenta em detalhes os três ensaios freudianos sobre a sexualidade e percebemos uma crítica sua à sociedade que não aceita uma sexualidade infantil e prende-se a questões hereditárias e biológicas, excluindo a vida psíquica da criança. Apresentando um resumo do primeiro capítulo de A interpretação dos sonhos (1900), diz que desde cedo, filósofos e médicos já se ocupavam disso. Nessa perspectiva, para ele a importância de Freud está em ter sido o único a falar da possibilidade do homem compreender-se através do sonho. Franco da Rocha então, numa forma de provar a veracidade das teorias freudianas do sonho, analisa um sonho seu e, em tom defensor da separação entre normal e patológico, finaliza dizendo: “Não ha aqui elemento sexual, porque não se trata de sonho de nevropáta; mas ha satisfação de um desejo, ou melhor – descarga de emoção que se não poude realizar na vigilia” (p.104). Ou seja, ao mesmo tempo em que se mostra aberto às teorias da sexualidade e defende um pansexualismo não como crítica negativa, se mostra como todos os críticos, ao recusar uma noção de desejo sexual. Sabemos que Freud foi inúmeras vezes chamado por seus opositores de “pansexualista”, mas ao ler o livro de Franco da Rocha, vemos que para ele o pansexualismo é a essência da psicanálise, uma disciplina da sexualidade que desvenda os mistérios e as implicações dela na vida mental do indivíduo. Pesquisa Histórica em Psicanálise A história da psicanálise no Brasil ainda tem que ser explorada, textos históricos importantes para serem revistos e pesquisas a serem realizadas. Como diz Oliveira (2002): Inúmeras fontes precisam ser localizadas e confrontadas a depoimentos e textos que se encontram dispersos em diferentes publicações e arquivos privados e institucionais. (...) Ademais, são raras as instituições psicanalíticas que abrem seus arquivos à consulta. Na realidade, não existe da parte delas uma política de arquivos, o que faz com que uma grande parte do material produzido e conservado pelos fundadores desse movimento acabe dispersado, ou então destruído, pelos herdeiros, quando não pela própria instituição. (pg.150) Com essa pesquisa, creio que deixamos algumas diretrizes para a melhoria e avanço desta área. Propomos então, que essa história seja cultivada e nunca esquecida. Referências Bibliográficas: BRUNO, Cássia Aparecida Nuevo Barreto. Psicanálise e movimento estético. In: NOSEK, Leopold (Org.). Álbum de família: imagens, fontes e idéias da psicanálise em São Paulo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994. FRANCO DA ROCHA, Francisco. O pansexualismo na doutrina de Freud. São Paulo: Typographia Brasil de Rothschild & Cia, 1920. OLIVEIRA, Carmen Lucia Montechi Valladares de. História da Psicanálise: São Paulo (1920-1969). São Paulo: Escuta, 2005. ROCHA, Gilberto. Introdução ao nascimento da psicanálise no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. SAGAWA, Roberto Yutaka. Redescobrir as Psicanálises. São Paulo: Editora Lemos, 1992. SAGAWA, Roberto Yutaka. A história da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. In: NOSEK, Leopold et alii. Álbum de família: Imagens, fontes e idéias da psicanálise em São Paulo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994, p. 15-28.