DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação - v.9 n.5 out08 ARTIGO 02 Memória do futuro no ciberespaço : entre lembrar e esquecer Future memory in cyberspace: between remembering and forgetting por Vera Dodebei e Inês Gouveia Resumo: Discute a memória nessa época de quebra de fronteiras espaciais, de crise de identidades e de ubiqüidade. Busca reunir argumentos que motivem os interessados nessas questões a enfrentar o desafio de selecionar memórias para o futuro. Apresenta alguns posicionamentos teóricos sobre a memória social ao longo do século 20, com ênfase em Henri Bérgson e Maurice Halbwachs, para extrair deles a discussão sobre o par lembrar-esquecer que configura um modo de compreender a memória. Conclui que essa discussão transposta para o ciberespaço é um exercício ainda em curso, que vem incentivando os pesquisadores a pensar a memória social como um composto em movimento, distanciando-a do sentido de acumulação característico das sociedades de escrita. Palavras-chaves: Memória social; Memória do futuro, Memória virtual; Patrimônio digital. Abstract: This paper discusses memory in times of spatial frontier ruptures, identity crises and ubiquity, and it brings together arguments which motivate interested scholars to face the challenge of selecting appropriate memories for the future. Some theoretical approaches to social memory throughout the twentieth century are presented, with emphasis on Henri Bérgson's and Maurice Halbwachs's proposals. In the light of their theoretical framework, the dichotomy between remembering and forgetting is discussed as a way of understanding memory. We conclude that this discussion, taken into cyberspace, is an ongoing exercise which has been motivating researchers to think about social memory as a construct in progress, moving away from the idea of memory in terms of storage, so typical of societies where writing is privileged. Keywords: Social memory; Future memory; Virtual memory; Digital heritage. “Ditosa idade e século ditoso aquele a cuja luz saírem as famosas façanhas minhas, dignas de gravar-se em bronzes, esculpir-se em mármores e pintar-se em tábuas, para a memória do futuro. Oh, princesa Dulcinéia, senhora deste cativo coração! Praza a vós, senhora minha, memorar este vosso sujeito coração, que tanto pelo vosso amor padece!” Dom Quixote 1 Memória social em pauta2 A preservação da memória social é o tema em destaque na passagem do século XX para o século XXI. Ao longo do século vinte e, principalmente, após a segunda guerra mundial, a preocupação com a criação de registros de memória, quer fossem na literatura, nos monumentos ou nas comemorações, levou a sociedade a produzir um campo de discussão sobre o perigo de esquecer fatos históricos marcantes. O Holocausto e as ditaduras militares na América Latina são exemplos da criação de inúmeras instituições voltadas para o objetivo de manter em pauta o tema da memória. Andréas Huyssen (2000) comenta que um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas das sociedades ocidentais. A volta ao passado caracteriza o que Huyssen chama de deslocamento do futuro presente para o passado presente. Inúmeros são os exemplos dessa configuração do pensamento ocidental sobre a necessidade de preservação da memória social e entre eles podemos citar a atribuição exagerada de valor patrimonial aos arquivos, às bibliotecas e, principalmente aos museus. “Não há dúvida de que o mundo está sendo musealizado e que todos nós representamos os nossos papéis nesse processo. É como se o objetivo fosse conseguir a recordação total. Trata-se então da fantasia de um arquivista maluco? Ou há, talvez, algo mais para ser discutido neste desejo de puxar todos esses vários passados para o presente?” (Huyssen , 2000, p. 15) Compartilhamos com a tese de Huyssen de que quanto mais forte é o apelo para a memória, mais temos a necessidade de esquecer. E que o medo do esquecimento é o que nos faz produzir, conforme Nora (1993), meios de memória. Esses meios de memória se apresentam como nossas memórias auxiliares, pois sabemos que biologicamente é necessário esquecer para armazenar novas lembranças. As memórias auxiliares funcionariam como compensação a essa dinâmica da memória individual que não pode abrir mão do esquecimento. De uma memória apenas individual, passamos a nos valer de uma memória coletiva enriquecida com pontos de vista diversos sobre um mesmo fato social. Mas, como assinala Huyssen (2000, p. 29), “a crença conservadora de que a musealização cultural pode proporcionar uma compensação pelas destruições da modernização do mundo ocidental é demasiada simples e ideológica.” Temos que considerar outras variáveis que vão interferir nessa dinâmica da lembrança/esquecimento e uma delas é o meio de produção ou de armazenamento das memórias. A digitalização de nossas memórias e a produção de novas informações já em meio digital aliadas à fragilidade e à complexidade de manutenção dos arquivos em ambiente virtual nos leva a criar um novo conceito ameaçador para o mundo contemporâneo, denominado de amnésia digital. Essa forma de amnésia ou febre mnemônica, metaforicamente no dizer de Huyssen, seria causada pelo cibervírus da amnésia que, de tempos em tempos, atacaria a memória. Duas questões iniciais se colocam neste campo. A primeira nos leva a acreditar que os arquivos digitais podem ser o elemento compensatório da perda de memória individual e social. A segunda questão nos coloca no dilema de investir na metarrepresentação constante das lembranças armazenadas no ciberespaço. Tentando escapar da dicotomia simples do lembrar/esquecer, vamos investir na análise do conceito de virtual, tendo sempre a memória como seu substantivo. Esse deslocamento temporário do foco da discussão tem como finalidade analisar a memória social sob o ângulo do processo de sua constituição. Consideramos que a virtualidade é uma condição inerente à memória, que a memória pode ser modelada pelas tecnologias digitais e por seus efeitos, mas ela não pode ser apenas redutível a eles. “Insistir numa separação radical entre memória “real” e virtual choca-me tanto quanto um quixotismo, quando menos porque qualquer coisa recordada - pela memória vivida ou imaginada – é virtual por sua própria natureza. A memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em suma é humana e social. Dado que a memória pública está sujeita a mudanças – políticas, geracionais e individuais – ela não pode ser armazenada para sempre, nem protegida por monumentos ; tampouco, neste particular, podemos nos fiar em sistemas de rastreamento digital para garantir coerência e continuidade.” (Huyssen, 2000, p. 37) Como se configuraria a memória nessa época de quebra de fronteiras espaciais, de crise de identidades e de ubiquidade? Como enfrentar o desafio de selecionar memórias? Apresentamos alguns posicionamentos teóricos sobre a memória social ao longo do século 20, com ênfase em Henri Bérgson e Maurice Halbwachs, para extrair deles a discussão sobre o par lembrar-esquecer que configura um modo de compreender a memória. Transportar essa discussão para o ciberespaço é um exercício ainda em curso, que vem nos incentivando a pensar a memória social como um composto em movimento, distanciando-a do sentido de acumulação, característico das sociedades de escrita. Um diálogo entre Bergson e Halbwachs3 O estudo sobre a memória nos dias atuais envolve uma perspectiva transdisciplinar, que permite que diferentes áreas do conhecimento dialoguem. Talvez isso seja um legado das primeiras investigações que se deram em torno da possibilidade de lembrar e de esquecer. Nos idos do século XIX, numa ótica cientificista que tinha como forte interlocutora a psicologia, a memória começava a ser sistematicamente estudada. Os aspectos visíveis da capacidade individual da recuperação de informação se misturavam aos estudos dos processos neurobiológicos que permitiam o processamento destas mesmas informações. As indagações, ou melhor dizendo, o ponto de partida, era semelhante ao que nos motiva na neste instante: que dispositivos nos fazem lembrar e esquecer? Jô Gondar (2000) em “Entre lembrar e esquecer: o desejo de memória” nos diz que a tensão existente entre essas duas operações do pensamento é fundamental para a constituição da memória. O desejo aparece como a escolha, ou a intenção de manter e compartilhar acontecimentos. Sabemos, no entanto, que os acontecimentos são da ordem da criação e que precisam de “espaço livre” para se manifestarem. Esse espaço livre é construído pela operação do esquecimento. Parece-nos então que o esquecimento é a operação necessária para a constituição das memórias. Será que o desejo de memória na inclui a operação esquecimento? Positivar o esquecimento é a operação necessária. Mas, vejamos como os estudos da memória social operam com estes dois conceitos: lembrar e esquecer. Se as questões que nos embalam ainda são de ordem semelhante à de outras épocas, permitimo-nos retomar Henri Bergson, filósofo do século XIX, que, segundo nossa análise, ainda é pouco estudado se pensarmos nos méritos de sua produção. Consideramos que um estudo aprofundado da memória deve contemplar a perspectiva bergsoniana – se nem tanto para revalidar suas conclusões teóricas, muito mais para situar as teorias que viriam a seguir com seus herdeiros, como é o caso de Maurice Halbwachs, Gilles Deleuze e Pierre Lévy, por exemplo. Henri-Louis Bergson nasceu em Paris no ano de 1859, teve uma vida acadêmica bastante produtiva, sobretudo no que se refere às suas publicações. Tamanha produção nos obriga a um recorte para esta análise, sendo assim, nossas considerações tem como pano de fundo a obra “Matéria e Memória”, que veio a público em 1896. O objetivo desse estudo é afirmar a realidade do espírito e da matéria e determinar a relação entre eles sobre um exemplo preciso, o da memória (Bergson, 1999, p.1). A matéria, neste caso, é entendida como o conjunto de imagens que compõe o mundo material que nos cerca. Para Bergson, o centro deste mundo das imagens é o próprio corpo individual, pois só através dele as outras imagens podem existir. Apesar de dar ênfase à perspectiva neurobiológica da capacidade de lembrar e esquecer, para o filósofo a memória não é uma propriedade do cérebro, pois este, pertencendo ao mundo da matéria, seria também uma imagem-centro que não pode ser responsável por abrigar todo o complexo infinito de outras imagens. Desta forma, a memória é entendida como uma propriedade do espírito4. A não limitação física deste receptáculo propicia que Bergson pense numa memória pura. É possível entrever isto em vários momentos de sua obra, sobretudo quando os focos da análise são as patologias, a exemplo da afasia, onde a memória se conserva, mas os mecanismos que fazem com que esta seja retomada, em favor do presente, são comprometidos. Mas o que seria exatamente a memória pura? Em “Matéria e Memória” se afirma que esta é o registro de todas, absolutamente todas as percepções que um indivíduo realiza. Entretanto, como esta memória deve ser atualizada – para virar então uma lembrança, de acordo com o presente – há imagens que nunca serão iluminadas, ou seja, permanecerão obscuras. Bergson argumenta que serão estas imagens que irão compor os sonhos, e sobre sua aparente falta de ordem, ele explica que ao serem retomadas espontaneamente e não como uma resposta consciente, elas irão figurar segundo a ordem que foram armazenadas. Nesse sentido, a memória pura se torna uma espécie de local de armazenamento total que fornecerá as imagens para que a memória hábito se atualize5. Observemos: Fonte: Bergson, 1999, p. 178 Nesta imagem a base AB corresponde à memória pura, o vértice S, que representa a imagem do corpo, avança sobre o plano P, que é a representação individual e atual do universo. A imagem S faz parte do plano P e está limitada a receber e a devolver as ações que as imagens do plano P emanam. Ou seja, este é o movimento da memória hábito, que tem como base, a verdadeira memória ou memória pura. Conforme deixamos transparecer, a questão que nos parece principal para este momento é a idéia da memória como um processo total. Indo por este percurso Bergson evitou, propositadamente ou não, a outra problemática que a memória abarca, o esquecimento. Tratado com pouco relevo em “Matéria e Memória”, foi uma das grandes questões que trouxe um afastamento teórico entre o filósofo e seus sucessores. Tomemos como contraponto a perspectiva de outro autor dedicado ao estudo da memória, Maurice Halbwachs. Halbwachs nasceu em 1877 na França. Não por acaso o tema central de seus estudos se refere à memória, isto porque ele foi aluno de filosofia de Bergson. Apesar dessa aproximação inicial, Halbwachs se afasta de seu mentor, abrindo espaço para outras influências e, nesse sentido, podemos mencionar o nome de Leibniz, Simiand e Émile Durkheim. Entretanto, seu posicionamento teórico foi marcado, para além das afiliações, justamente pelas contraposições, não só a Bergson, mas também a Karl Marx e a Max Weber. Duas obras são basilares para a compreensão de sua perspectiva sobre a memória, “Os quadros sociais da memória”, datada de 1925 (Halbwachs, 1994) e “A memória coletiva” (Halbwachs, 2004), publicada após sua morte. A dimensão da memória pensada por Halbwachs talvez se diferencie de forma mais contundente daquela pensada por Bergson, segundo dois aspectos: o aspecto social da construção da memória, e a própria idéia de construção, a qual abarca necessariamente o esquecimento. Para Halbwachs, lembrar não é um processo natural, mas sim uma construção social. Isso explica a transformação das lembranças que ocorrem devido aos quadros sociais, o que segundo o autor significa a visão de mundo dos grupos sociais. O entendimento diferenciado sobre a memória pode ser exemplificado em relação aos primeiros anos de vida de um indivíduo. Para Bergson, quanto menor a capacidade de reflexão, maior a possibilidade de absorção da memória, nesse sentido, ele afirma que as crianças têm mais memória espontânea. Contrapondo-se a isto, Halbwachs observa que as crianças constroem suas lembranças somente a partir da experiência com o grupo social que as cerca, no caso a família. Antes desse contato, potencializado pela fala, a construção da memória é praticamente nula, o que justificaria a pouca possibilidade de um indivíduo lembrar momentos vividos no seu primeiro ano de idade. Halbwachs não nega a existência de uma memória particular, individual por assim dizer, mas o centro formador desta, ainda seria a memória do grupo. Nesse sentido, podemos ter uma experiência que nos pareça única, de uma viagem, uma leitura, ou qualquer outra circunstância onde nos colocamos isolados do restante dos indivíduos. Ao lembrarmos desse momento em questão, acionaremos códigos que são sociais, códigos culturais que regem nossa racionalidade, nossa inteligência. Além disso, as motivações para que essa lembrança se faça presente serão provenientes da reflexão que formos capazes de produzir a partir dela, as percebendo de acordo com os quadros sociais. As contribuições de Maurice Halbwachs vão além do diálogo com Henri Bergson. Sua perspectiva sociológica de análise, bastante diferente da ótica cientificista de Bergson, foi afirmada pelos principais autores que depois dele, fizeram da memória uma fonte de análise e inquietação constante. O esquecimento que não ganhou um espaço de importância na produção de Bergson fez dele um quase refém. Bastante menos retomado, o filósofo carece, sem dúvida, de novas leituras que dêem conta da sua ‘simples complexidade’ de pensamento. Situando-o no seu tempo e, por conseguinte nas influências que tanto marcam sua busca pela verdade-ciência, entendemos que sua teoria, ainda hoje, é passível de importantes reflexões sobre o processo de construção da memória. Em especial, sobre o conceito de memória pura, ou memória virtual, da qual nos valemos, juntamente com o conceito de coletivo em Halbwachs, para compreender, por exemplo, a constituição do valor patrimonial atribuído aos objetos e ações culturais. A construção da memória está sempre atrelada ao seu contexto histórico. A preservação dos vestígios, que comumente se validaria pela vontade de lembrar, acolhe agora um dilema ambíguo: como preservar vestígios de tantos tempos e espaços sobrepostos e, ao mesmo tempo, como diferenciar o acúmulo involuntário das práticas de preservação efetivas? Uma primeira vontade de memória deve subsistir à possibilidade de perdurar, de se preservar. Isto quer dizer que a vontade de memória deve se renovar todo dia, caso contrário, ela se torna alvo do esquecimento. Em outras palavras, cercamo-nos de tantos recursos de memória que hoje nos perguntamos como fazer para mantê-los, em sentido virtual, pronto para o uso, e não apenas conservá-los em sítios arqueológicos a espera de interpretação de seus restos ou ruínas? Como lhes atribuir um valor de permanência (patrimonial) que justifique o esforço de fazê-los acompanhar as mudanças contemporâneas tão aceleradas que transformam valores, vestígios e suportes? Ciberespaço e virtualidade Dentre as várias dimensões que o pensamento humano constrói para entender a vida e a sociedade, o ciberespaço é, sem dúvida, a dimensão contemporânea. De natureza comunicacional, o ciberespaço é um constructo da mente humana que articula diversos vetores como informação, tecnologia e memória. Interessa-nos compreender menos a sua história6 , mas, sobretudo, sua condição de articular meios de memória social. Ao lado das dimensões de tempo e espaço, estudadas pela física e pela geografia, o ciberespaço é concebido como a união desses dois conceitos, agora denominados por espaço-tempo. Esse espaço-tempo, supostamente (a)espacial e (a)temporal é construído em ambiente virtual. Etimologicamente, o conceito /virtual/ do grego virtuale, pode ser igualado ao conceito de potência. Aristóteles deu ao termo a significação de princípio, ou a possibilidade de uma mudança qualquer. Desse significado geral, distinguiu outros, a saber: a potência ativa, ou a capacidade de realizar mudanças em outra coisa ou em si mesmo; a potência passiva, ou a capacidade de sofrer mudança; e, a capacidade de resistir a qualquer mudança. Dois sentidos podem então ser depreendidos do termo potência no âmbito da filosofia: possibilidade e predeterminação do atual. Bergson (1950), na obra “Le possible et le réel”7 afirma que o possível não é menos que o real, o possível é uma miragem do presente no passado. Nesse sentido, ele iguala possível à potência. Deleuze, seu principal comentador, expõe a idéia de que o virtual é uma parte do real, como se todo objeto tivesse duas partes coexistentes, embora não tenha seus espaços plenamente definidos e determinados. Uma das partes é o virtual e a outra é a parte possível. Desta forma, podemos entender que o real está para o possível assim como o virtual está para o atual. Utilizando a dialética bergsoniana dos mistos ou complexidades, tentaremos estabelecer como foco de nossa observação o misto representado pela idéia de /material–virtual/, tendo como cenário a sociedade do conhecimento8 da qual somos, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Por analogia ao misto “matéria– memória” em Bergson, e considerando que a noção de memória em Bergson se funda na teoria da duração cujo princípio é o método da intuição9 , podemos nos aventurar a discutir o conceito de virtualidade da memória eletrônica constituída de matéria digital. O par conceitual, neste caso, é memória virtual-matéria digital. A sua constituição pode ser compreendida como as duas faces de um mesmo objeto, que são percebidas quando o movimento da troca de lados de cada uma das faces é lento, tal como o girar de uma moeda e, por outro lado, é imperceptível quando o movimento é acelerado. Estes estados das duas faces que, aparentemente, opõem memória/matéria–virtual /digital são fundidos pelo ato criador do movimento. Nesse sentido, é complicado afirmar que o espaço virtual não é material; ou, que o espaço virtual é apenas representação ou simulação do espaço físicomaterial. A primeira grande dificuldade surge então com a separação entre matéria e virtualidade como opostos inférteis, ou com a matéria e a virtualidade pensadas como coisa e representação, ou antecedente e conseqüente. Mesmo que pensássemos o inverso, quer dizer, a matéria como representação do virtual, ainda assim o conceito de representar, tornar presente, não se adequaria à idéia do virtual que, como na metáfora da moeda, não se deixa representar, uma vez que, sem movimento, não há possibilidade de tensão entre uma e outra face. E, sem tensão, sem movimento, não há possibilidade de criação. Mais vale então, por enquanto, pensar as seguintes possibilidades: a) a existência do material; b) a existência do virtual; c) a possibilidade de trocas entre os dois estados. A virtualidade do ciberespaço é sua condição de permanência. Se pudéssemos unir os conceitos de memória virtual em Bérgson e memória coletiva em Halbwachs, diríamos que a memória social no ciberespaço é apresentada como uma massa processual atual, em permanente construção. A ela são inseridos e descartados (lembranças e esquecimentos) objetos digitais, representados já como unidades de conhecimento, conforme as elaborações e re-elaborações produzidas no seu centro de cálculo, como nos relata Bruno Latour (2000), em seu texto “Redes que a razão desconhece”. O centro de cálculo é uma construção mental que considera o trânsito da informação vista como veículo entre centro e periferia, caracterizando o movimento que produz a condição do conhecimento e, portanto, de memória. Mas, para que efetivamente possamos pensar o ciberespaço como movimento criador é preciso levar em conta o par lembrar-esquecer. Se o esquecimento não foi objeto das reflexões de Bérgson, do modo como o valorizamos na atualidade, e para Halbwachs esquecer é uma operação interna à lembrança, para Nietzsche o esquecimento é positivado e se contrapõe ao desejo de memória, no sentido de acúmulo de lembranças, quando ele vai considerar que os indivíduos que têm a capacidade de esquecer são fortes e saudáveis, alegres, criadores. Já os que estão sempre lembrando adoecem, enfraquecem. A memória para Nietzsche nasce da violência, do sangue, pela sua própria necessidade de prever, baseada no que já passou, e coloca-nos atentos ao passado. “Um modelo desses indivíduos fortes e salutares era Mirabeau, que não precisava perdoar as ofensas que lhe foram cometidas, já que simplesmente as esquecia. O esquecimento permite eliminar cargas, superar entulhos do passado, outorga a alegria de se defrontar com o novo, com a criação” (Barrenechea, 2006, p. 40). Nietzsche, no século XIX, no alvorecer da reprodutibilidade técnica com a fotografia e o cinema, já discutia a necessidade de esquecer para tornar possível a criação e, com certeza, o estudo de seus textos deverá ser leitura indispensável10 . Como duas faces de um mesmo acontecimento, podemos sempre escolher entre lembrar e esquecer e, em certas circunstâncias o esquecimento é o que vai permitir olhar em frente. Essa tensão, lembrar e esquecer, que configura os estudos sobre a memória social, principalmente no século XX, é o campo que nos ajuda a pensar a construção das memórias no ciberespaço. Dos estudos da memória individual em Bérgson, que nos trouxe o conceito de memória virtual, retomado por Pierre Lévy nas configurações desta no ciberespaço, à memória coletiva em Halbwachs que constrói o compartilhamento de memórias tão atual, também no ambiente comunicacional virtual, podemos considerar a possibilidade de memória no ciberespaço e como ela se configura entre as operações de lembrar e esquecer. Ciberespaço: memória ou amnésia? Nossos pressupostos para a organização do conhecimento no ciberespaço consideram a imagem de que a memória é formada pela tensão existente entre lembrança e esquecimento. Portanto, selecionar (esquecer) é uma ação determinante no processo de construção da memória, seja ela individual, coletiva, documentária concreta ou virtual. Não temos assistido ultimamente discursos acerca do conceito de seleção e, conforme discute Viktor Mayer-Schönberger (2007) no preprint do repositório da Harvard University sobre a arte de esquecer na era da computação ubíqua: “As humans we have the capacity to remember – and to forget. For millennia remembering was hard, and forgetting easy. By default, we would forget. Digital technology has inverted this. Today, with affordable storage, effortless retrieval and global access remembering has become the default, for us individually and for society as a whole. We store our digital photos irrespective of whether they are good or not - because even choosing which to throw away is too time-consuming, and keep different versions of the documents we work on, just in case we ever need to go back to an earlier one. Google saves every search query, and millions of video surveillance cameras retain our movements.” 11 No referido artigo, Mayer-Schönberger considera que a causa dessa inversão se dá em função de aspectos econômicos da informação e da inovação tecnológica. O autor sugere como solução, em síntese, algo próximo ao que as tabelas de temporalidade representam na gestão de documentos em sua passagem da idade corrente para a idade permanente. Outro princípio praticado também no âmbito da Arquivologia e que poderíamos considerar nesta discussão é o do respect des fonds ou principe de provenance no sentido de evitar, a partir da qualificação de suas fontes produtoras, a repetição de informações lançadas na internet. A seleção, ou esquecimento consentido, é tarefa árdua, como sabemos, pois implica em arbitrar para o futuro. Se temos a ilusão de que é fácil guardar tudo, além de tecnologicamente possível, não há esforço para seleção. Mas é justamente a questão do futuro que passa a nos interessar quando o default do momento é apenas o passado. O deslocamento da relação passado-presente para a relação passado-presente-futuro deve ser considerado como mais interessante para a preservação do conhecimento. No ciberespaço a acumulação do conhecimento se dá no domínio coletivo no qual a informação é permanentemente construída e reconstruída. Mas, se o processamento contínuo de novas informações gera uma economia de espaço de armazenamento, ele causa em reverso, a sua reformatação. Essa reformatação, representada pela fusão, complementação e descarte de informações da memória que as está processando impede a recuperação dos formatos originais de ingresso. Daí dizer-se que as memórias informacionais geridas e gerenciadas em ambiente virtual não são mais bancos de dados, nem bases de dados mas, centros de conhecimento. Do mesmo modo, dizemos que só a informação é passível de ser transferida, pois o conhecimento é processado no interior desses centros, cujo modelo é, sem dúvida, o da memória quer seja ela individual ou coletiva. A idéia de centro (caótico porque em permanente processo) ao invés de banco (ordenado pela idéia de acumulação) permite representar essa possibilidade de processar inscrições que, por estarem sempre em movimento, impedem a formação de depósitos arqueológicos de informações. Nesse centro de cálculo, conforme Latour (2000) não há lugar para a soma; apenas para o produto da interseção. O ciberespaço, como espaço mítico da memória social (Dodebei, 2000), cria um fértil terreno de pesquisas sobre o comportamento e as propriedades dos meios de produção do conhecimento, sejam eles de natureza histórica, artística ou técnica. Alguns estudos que temos acompanhado de perto no Programa de Pós-Graduação em Memória Social têm sido conduzidos pelo interesse de recortar os meios de produção de subjetividades na web sob os enfoques da história e da memória. Blogs e portais de depoimentos como o Museu da Pessoa oferecem essa oportunidade de registrar as memórias individuais, de transformar o privado em público, de autorizar a reformatação das memórias, e acima de tudo, de dividir a autoria. O coletivo parece ser o atributo principal que faz do ciberespaço um grande centro virtual da memória do mundo. E o que seria a amnésia digital propalada nos discursos da virtualidade? Amnésia é a ausência de lembranças, ou a incapacidade de lembrar. A fragilidade dos suportes da informação, a dinâmica de atualização dos sítios na internet são indicadores de que há um forte movimento no sentido do esquecimento. Mas, em contrapartida, se considerarmos que o excesso de lembranças compromete a criação, então a idéia de amnésia não é um conceito adequado e deve, no entanto, ser revisto a partir da compreensão e das possibilidades de memória. A dinâmica dos arquivos (correntes, permanentes), a dinâmica dos museus (objetos expostos, reserva técnica) e a dinâmica da cooperação nas redes constituídas por bases de conhecimento científico (bibliotecas digitais) são exemplos de que a seletividade faz parte do processo criativo. O esquecimento é tão importante quanto a lembrança. Como abrir espaço para novas memórias? A acumulação desenfreada e absoluta é impossível. Borges (2000), no conto Funes, o memorioso, nos indica que lembrar todos os segundos de uma existência é impedir a própria condição de existir, como observado por Irineu Funes, “... o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido... minha memória, senhor, é como o despejadouro de lixos.” O grande desafio na era virtual é realmente encontrar o equilíbrio nessa dinâmica de trocas entre os dois espaços , o material e o virtual, além de refletir sobre a impossibilidade de preservar o material dissociado do imaterial, e de decidir sobre a parte da produção de bens que deve ser objeto de proteção.12 Disseminar a informação é também uma forma de proteção, dentro da perspectiva da memória em movimento. Pensamos que o sentido de acumulação deva ser revisto. A cultura do acúmulo parece estar em jogo, um jogo que oscila entre lembrar e esquecer . Notas: [1] - Galhardo, 2005, p. 7 [2] Este artigo é fruto de muitas discussões coletivas e a estrutura aqui apresentada é uma construção feita a partir de trabalhos nossos apresentados em encontros científicos, bem como parte de trabalhos de pesquisa acadêmica. [3] Discussão apresentada no VIII Enancib, Marília, SP, 2006. Ver Dodebei, V., Gouveia, I., 2006. [4] Com essa curiosa saída teórica, Bergson encontra certo respaldo para sua teoria. No campo da validação científica, o espírito como abrigo da memória parece-nos bastante conveniente para que suas proposições escapem de algumas encruzilhadas. [5] Não devemos transferir nossa perspectiva a Bergson, seria uma imposição nada coerente, mas não podemos deixar de assinalar que a idéia de memória pura nos parece bastante interessante e potencial se pensarmos nos bancos de dados de que dispomos atualmente, onde a informação está dada, devidamente armazenada, esperando uma atualização que promova sua recuperação. [6] Ver Castells, M. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. [7] Vale ressaltar, a título de informação, que este texto de Bergson é um artigo que representa o desenvolvimento de algumas idéias que foram apresentadas na abertura da "reunião filosófica" de Oxford, em 24 de setembro de 1920. Ao escrever o artigo para a revista sueca Nordisk Tidskrift, que foi publicado em novembro de 1930, Bergson queria revelar o pesar que sentiu por não poder ter feito a conferência em Estocolmo (de acordo com o que era usual) por ocasião do recebimento do prêmio Nobel de Literatura em 1928 com a obra L' évolucion créatrice. [8] A sociedade do conhecimento (século XXI) é a síntese conceitual da sociedade contemporânea em que as trocas de subjetividades se dão nas dimensões da velocidade, da virtualidade e da criação. A produção de conhecimento não é apenas mediada pela tecnologia como acontecia na sociedade da informação, mas integrada pela sua dimensão tecnológica. [9] A intuição é o método do bergsonismo; ele tem suas regras estritas, que constituem o que Bergson chama de “precisão” em filosofia. A intuição já supõe a duração. Cf. Deleuze, 1999. [10] A intuição se define por um conhecimento imediato da coisa, em oposição ao conhecimento analítico, isto é, mediado por símbolos, Cf. FUCHS, F.T, 1996. [11] O par lembrar - esquecer pode ser visto em Nietzsche, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003. [12] Como seres humanos, temos a capacidade de lembrar e de esquecer. Por milênios, esquecer era fácil e lembrar era difícil. Por nossa programação interna deveríamos esquecer. A tecnologia digital inverteu essa condição. Hoje, com a garantia de espaço de armazenamento, rapidez na recuperação da informação e acesso global, o ato de lembrar passa a ser a operação dominante quer seja para o indivíduo, quer seja para a sociedade. Nós costumamos armazenar nossas fotografias digitais sejam elas boas ou ruins – porque mesmo sabendo quais deveríamos selecionar, o custo de manter todas as versões na memória da máquina, para o caso de queremos acessá-las em momento futuro, é bem menor do que o que seria dedicado ao descarte. A Google salva cada busca realizada e milhares de câmeras de vigilância registram nossos movimentos. (tradução livre das autoras) 12 Parte II – Entre disseminar e proteger; Parte III – A musealização do mundo. (a publicar). Bibliografia BARRENECHEA, Miguel Angel. Nietzsche: a memória, o esquecimento e a alegria da superfície. In: FEITOSA, Charles; BARRENECEA, Miguel Angel; PINHEIRO, Paulo. Nietzsche e os gregos: arte, memória e educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. BERGSON, Henri. 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Sobre os autores / About the Authors: Vera Dodebei [email protected] Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ); Professora Associada na UNIRIO, líder do Grupo de Pesquisa “Memória Social, Tecnologia e Informação”. Inês Gouveia [email protected] Mestre em Memória Social (UNIRIO), Pesquisadora do Museu da Pessoa e do Grupo de Pesquisa “Memória Social, Tecnologia e Informação”.