XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 27 RELAÇÕES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS COM A EDUCAÇÃO FORMAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL: DIALOGANDO COM MILITANTES Daniela Frida Drelich Valentim – PUC-Rio Vera Maria Ferrão Candau – PUC-Rio O texto é fruto da pesquisa “Interculturalidade e Educação na América Latina e no Brasil: saberes, atores e buscas”, realizada pelo Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura/s na PUC- Rio. A pesquisa teve por objetivo principal analisar o processo de construção da educação intercultural na América Latina e, particularmente, no Brasil, identificando seus atores mais significativos, nos movimentos sociais, na academia e no poder público, as concepções e tensões presentes neste campo, assim como as principais incidências nas políticas educativas. Gerou três eixos temáticos inter-relacionados: “Educação Intercultural: Contribuições de alguns Grupos de Trabalho da Anped”, “Movimentos Sociais, Educação e Perspectiva Intercultural: dialogando com Militantes” e “Direitos Humanos, América Latina e Interculturalidade: desafios para as práticas educativas” todos atravessados pela educação intercultural (Candau, 2009 e 2006). Esse trabalho é recorte do que foi produzido no segundo eixo. Tem por objetivo apresentar e analisar a representação dos militantes dos movimentos de mulheres, LGBT e negro sobre a relação entre seus movimentos e a educação formal numa perspectiva intercultural. Operamos com o conceito de representação de Hall (1997). Realizamos dezoito entrevistas semiestruturadas. A educação formal e as escolas têm grande importância na representação dos entrevistados quando têm em mente e constroem uma sociedade mais plural. Todavia atestam a pouca inserção que têm seus movimentos e demandas na educação formal, nas práticas e currículos escolares e nos cursos de formação de professores. Quanto à educação intercultural os depoimentos demonstraram estranhamento, evidenciando a pouca reflexão dos entrevistados e seus movimentos quanto à temática. A educação intercultural não está marcadamente presente nas agendas desses movimentos. Palavras-chave: Movimentos Sociais; Educação Formal; Interculturalidade. Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004440 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 28 Introdução O presente texto se situa no contexto dos trabalhos de pesquisa que, desde 1996, o GECEC (Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura/s) sob a coordenação da professora Vera Maria Ferrão Candau, do Departamento de Educação da PUC-Rio vem realizando. Este grupo, do qual faço parte, tem como finalidade principal o desenvolvimento de estudos e pesquisas de caráter interdisciplinar, privilegiando como temática central as relações entre educação e cultura(s) em diferentes âmbitos educativos, tanto da educação formal como não formal. Em março de 2009, o GECEC iniciou seu sexto projeto, “Interculturalidade e Educação na América Latina e no Brasil: saberes, atores e buscas”, que findou em fevereiro de 2012 e que teve por objetivo principal: Analisar o processo de construção da educação intercultural na América Latina e, particularmente, no Brasil, identificando seus atores mais significativos – nos movimentos sociais, na academia e no poder público - as concepções e tensões presentes neste campo, assim como as principais incidências nas políticas educativas. O desenvolvimento dessa pesquisa gerou três eixos temáticos interrelacionados: “Educação Intercultural: Contribuições de alguns Grupos de Trabalho da Anped (2003-2008)”, “Movimentos Sociais, Educação e Perspectiva Intercultural: dialogando com Militantes” e “Direitos Humanos, América Latina e Interculturalidade: desafios para as práticas educativas” atravessando todos eles, a educação intercultural. Esse trabalho é um pequeno recorte do que foi produzido no âmbito do segundo eixo, “Movimentos Sociais, Educação e Perspectiva Intercultural: dialogando com Militantes”, que aprofundou a reflexão acerca das experiências de alguns movimentos sociais por considerá-los atores fundamentais no desenvolvimento da perspectiva intercultural em educação, privilegiando o olhar de seus militantes mais historicamente engajados e discutindo também, alguns desafios que a temática da educação Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004441 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 29 intercultural apresenta para os movimentos sociais, tendo presente o fortalecimento de políticas de ação afirmativa. Antes de prosseguirmos é importante revelar que para o GECEC, a interculturalidade é situada no campo do multiculturalismo que pode assumir as seguintes perspectivas: assimilacionista, diferencialista e interativa ou intercultural (Candau, 2009). Nesse sentido, Candau (2006) concebe a educação intercultural como: Um enfoque que afeta a educação em todas as suas dimensões, promovendo a interação e comunicação recíprocas, entre os diferentes sujeitos e grupos culturais. Orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social. Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a essa realidade. Não ignora as relações de poder presentes nas relações sociais e interpessoais. Reconhece e assume os conflitos, procurando as estratégias mais adequadas para enfrentá-los. Situa-se em confronto com todas as visões diferencialistas que favorecem processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas. Rompe com uma visão essencialista das culturas e das identidades culturais. Parte da afirmação de que, nas sociedades em que vivemos, os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de identidades abertas, em construção permanente. É consciente dos mecanismos de poder que permeiam as relações culturais (p. 31 e 32). Este texto tem por objetivo apresentar e analisar a representação dos militantes dos movimentos sociais sobre a relação entre seus movimentos e a educação formal numa perspectiva intercultural, um dos itens trabalhados no eixo “Movimentos Sociais, Educação e Perspectiva Intercultural: dialogando com Militantes” da referida pesquisa. No presente trabalho, operamos com o conceito de representação de Hall (1997), que afirma: Representação é o processo pelo qual membros de uma cultura usam a língua (amplamente definida como qualquer sistema que empregue signos, qualquer sistema significante) para produzirem significados. Esta definição já carrega a importante premissa de que as coisas – objetos, pessoas, eventos do mundo - não têm em si qualquer significado estabelecido, final ou verdadeiro. Somos nós - na sociedade, nas culturas humanas - que fazemos as coisas verdadeiras. Somos nós - na sociedade, nas culturas humanas - que fazemos as coisas significarem, que significamos (p.61). O texto está estruturado em quatro partes, a partir dessa Introdução. Na primeira, tratamos dos movimentos sociais e, dentre eles, dos que elegemos conhecer mais detidamente através das entrevistas realizadas com seus militantes, na segunda, apresentamos a identificação desses sujeitos entrevistados, na terceira apresentamos e Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004442 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 30 analisamos as representações desses sujeitos acerca da educação escolar e na quarta, apresentamos nossas considerações finais seguidas das referências bibliográficas. Movimentos Sociais Movimentos sociais se constituem em fenômenos históricos de caráter coletivo que expressam lutas sociais em contextos sociopolíticos determinados. São heterogêneos e estão marcados pela complexidade. No âmbito das ciências sociais têm sido objeto de diferentes teorias interpretativas. Entre nós, destacamos a obra da professora Maria Glória Gohn. Entre outras publicações, no seu livro “Teorias dos Movimentos Sociais”, editado originalmente em 1997 e tendo sua última edição em 2010, vem realizando atualizações periódicas das teorias desenvolvidas em diferentes contextos, introduzindo novas perspectivas na medida em que a realidade destes movimentos vai adquirindo novas configurações. A distinção entre os chamados “velhos” e “novos” movimentos é amplamente assumida pela literatura especializada. Podemos afirmar que a principal característica dos primeiros é ter a classe social como eixo fundamental. Quanto aos segundos, estão centrados em determinados sujeitos socioculturais, questões identitárias (étnico-raciais, de gênero, orientação sexual, de caráter religioso, etc.) e/ou temas específicos, como, por exemplo, a questão ambiental. Estes diferentes movimentos possuem também formas diferenciadas de atuação e organização. Na pesquisa que realizamos nos centramos nos chamados “novos” movimentos, especialmente nos de caráter identitário. Nossa preocupação se centrou em analisar se e como os movimentos de caráter identitário incorporaram/incorporam a perspectiva da educação intercultural em suas agendas de trabalho. Neste sentido, optamos por privilegiar o diálogo com o movimento de mulheres, o movimento negro e o movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis). Os movimentos sociais tem impulsionado a constituição de ações afirmativas que focalizam diferentes dimensões: política, social, cultural e educativa. Privilegiam sujeitos sociais subalternizados, discriminados, invisibilizados e/ou inferiorizados. Assumem diversas modalidades e, em geral, apresentam caráter temporário. Outro aspecto que consideramos importante assinalar é seu potencial para articular direitos da igualdade e direitos da diferença, redistribuição e reconhecimento. Para Fraser (2007), Os aspectos emancipatórios das duas problemáticas precisam ser integrados em um modelo abrangente e singular. A tarefa, em parte, é elaborar um conceito amplo de Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004443 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 31 justiça que consiga acomodar tanto as reivindicações defensáveis de igualdade social quanto as reivindicações defensáveis de reconhecimento da diferença (p.3). Muitas têm sido as aproximações e definições de ações afirmativas. Algumas bem restritas e outras mais amplas. Assumimos a conceituação proposta por Menezes (2001) que as considera Um conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competir em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas, sejam elas presentes ou passadas. Colocando-se de outra forma, pode-se asseverar que são medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encontram em posições desvantajosas (p.27). Nesta abordagem fica claro o compromisso das ações afirmativas com a construção da justiça, entendida como articulação entre a justiça socioeconômica e a cultural. Breve identificação dos entrevistados Utilizar entrevistas como estratégia de investigação, supõe trabalhar com representações. Somos conscientes da complexidade do conceito de representação e das diferentes aproximações ao mesmo. Entendemos que toda representação é socialmente construída e que os referentes culturais constituem um componente central, uma âncora básica, de sua configuração. Realizamos ao todo dezoito entrevistas semiestruturadas com integrantes dos movimentos que exerciam ou tinham exercido alguma função de coordenação e/ou liderança, no âmbito local, regional, ou nacional. Foram seis entrevistas com militantes dos três movimentos escolhidos: movimento de mulheres, o movimento negro e o movimento LGBT. Todos os entrevistados pertenciam a organizações não governamentais e/ou programas de ação com sede no Estado do Rio de Janeiro. Quanto às entrevistadas do movimento de mulheres, cinco se situam na faixa etária dos cinquenta e uma na dos sessenta anos. Todas possuem formação universitária no nível de graduação - história, serviço social, medicina, sociologia e pedagogia -, uma especialização em políticas públicas, outra é doutora em sociologia e uma terceira está cursando o doutorado em saúde publica. Todas exercem funções de coordenação em suas instituições e nelas desenvolvem seu trabalho profissional, com vínculo empregatício ou como voluntárias. Uma única entrevistada mencionou exercer medicina Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004444 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 32 e, ao mesmo tempo, dedicar-se à organização como voluntária. Em geral, através de suas organizações participam de diferentes movimentos: movimento de mulheres, movimento de mulheres negras, laboratório de cidadania, movimento feminista, marcha das mulheres, entre outros, assim como de articulações de caráter nacional e latinoamericano. Quanto ao movimento LGBT, dois entrevistados se identificaram como gays, três como lésbicas e uma como travesti. Uma das militantes, considerada “histórica” pelos entrevistados, está na faixa etária dos cinquenta sendo vinculada ao movimento desde seu início. Os demais entrevistados se situam na faixa dos trinta anos, com uma única exceção que se situa nos vinte. Quanto à formação escolar, três possuem curso superior concluído – jornalismo, serviço social e produção cultural-, dois estão realizando o ensino superior - em produção cultural e gestão em petróleo e gás – e um terminou o ensino médio. Todos têm ampla dedicação ao movimento, como profissionais ou voluntários exercendo diferentes funções como de coordenação de projetos específicos, agente multiplicador e/ou gestor da organização a que pertencem. Quanto aos entrevistados do movimento negros, são três homens e três mulheres, três situados na faixa etária de trinta a quarenta anos, dois na dos cinquenta e um com setenta e um anos. Convém salientar que um dos nossos entrevistados participa do movimento quilombola e que somos conscientes das relações tensas e ambivalentes entre o movimento negro e o movimento quilombola, ora de confluência, ora de demarcação de especificidades, que marcam a necessidade de garantir a autonomia de cada um deles. Quanto à formação dos entrevistados, dois possuem nível superior concluído – Pedagogia, sendo uma com Pós Graduação Lato Sensu em “Educação e Inclusão”-, dois estão cursando o nível superior – Pedagogia e Gestão Pública- e dois possuem Ensino Médio completo. Movimentos sociais e educação formal A análise dos depoimentos das entrevistadas do movimento de mulheres permite afirmar que este não tem sido um foco privilegiado pelas organizações a que pertencem, apesar de reconhecerem sua importância. No entanto, alguns aspectos podem ser destacados. Quatro das entrevistadas trataram da educação escolar como tema significativo, mas pouco trabalhado. Uma delas afirma que a mulher tem um índice de finalização escolar maior que o homem e a educação escolar é a área na qual há maior equidade de Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004445 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 33 gênero. Reconhece também que houve um avanço significativo nos livros didáticos, “um olhar mais vigilante” (Irene), mas isso não quer dizer que os estereótipos tenham desaparecido deles. Para ela, inclusive as barreiras culturais de escolha profissional vem se dissolvendo, entretanto, ainda existe uma discriminação muito grande no mercado de trabalho, pois a mulher ganha menos que o homem para funções iguais e nível de formação também equivalente. Outra entrevistada afirma que a educação inclusiva, não sexista, é um tema em pauta no movimento e que vem conseguindo avanços. Um terceiro depoimento explicita que um dos problemas que o movimento encontra em relação à educação escolar é o fato de existirem professores e professoras que consideram naturais as desigualdades e discriminações que ocorrem na escola. Para ela, as representações sociais custam a ser desconstruídas e acabam por sustentar o processo discriminatório. Desconstruir estas representações parece constituir o principal desafio: Há muitas mulheres reproduzindo o pensamento machista, isso é coisa de menino e isso não é coisa de menina. A educação inclusiva, não sexista dá uma discussão e tanto. E enquanto movimento a gente levou uma pauta para as orientadoras educacionais estarem discutindo educação de meninas e meninos, estarem revendo que papel é da mulher na sociedade. O que a sociedade pede da mulher hoje não é mais o que se pedia um tempo atrás. Isso também dá muita conversa (Helena). No entanto, outro dos depoimentos afirma que os professores não devem ser vistos como os principais responsáveis por trabalhar as questões postas pelo movimento na escola, já que esta é uma responsabilidade de toda a sociedade. Quanto às atividades que realizam as organizações as quais as entrevistadas estão vinculadas foram citadas principalmente: a elaboração de materiais didáticos e de jogos, inclusive para a internet; uma cartilha sobre educação não sexista – “nós entendemos que o machismo é reforçado na sala de aula e se ele está lá, temos de entrar também” (Joana) e atividades de formação junto às secretarias municipais de educação que levam propostas de introdução de questões de gênero no currículo escolar, como por exemplo, a história de lutas das mulheres e apoios às comunidades escolares quando solicitadas. Um aspecto que consideramos importante ressaltar diz respeito à metodologia de trabalho com os professores quando são desenvolvidas capacitações por uma das organizações: Para os professores a gente parte da questão seguinte: tem que primeiro mexer com eles. Porque só mexendo com cada um deles é que vai poder um dia transformar uma vírgula Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004446 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 34 da realidade da sala de aula. Então não adianta ser melhor se isso não disser nada para ele ou para ela, não vai acontecer nenhuma mudança. O trabalho da metodologia fica muito focado... E a gente também entrega a quem participa dessa capacitação o material que foi produzido e aí tem vídeo, no passado era fita cassete que não se usa mais para se ouvir no carro, mas obviamente aí tem os manuais de como trabalhar matemática na sala de aula numa perspectiva de gênero, por exemplo, onde você pode trabalhar ciências sociais na perspectiva de gênero, português na perspectiva de gênero, então a gente produz esse tipo de material (Maria). Quando foram solicitados a expressar o que entendiam por educação intercultural, a expressão provocou estranhamento e ficou evidente que não pertencia ao universo semântico das entrevistadas. Em geral, tentaram responder procurando aproximações a partir das suas próprias experiências de vida. É uma palavra que serve para tudo, desafiadora. Porque a gente parte da nossa cultura para trabalhar com outra cultura que também tem outros valores que considera o certo. Então aí a gente tenta buscar trabalhar com elementos universais: respeito, direito, dignidade, solidariedade e com uma coisa muito importante: a escuta. Escutar a outra, escutar o outro sem estar se colocando é super desafiante. Sem estar colocando o elemento do eu que aí senão nem é possível. E você vai a alguns lugares, você chega e você vê até a maneira de comer às vezes nos choca não é? (Joana). Se educação eu trocar por escolarização de grupos diferentes que para mim essa que é a questão, se é essa a questão de grupos diferentes brancos e pretos, deficientes ou não deficientes... Lidar com a diversidade, lidar com a diferença (Madalena). Os depoimentos dos entrevistados do movimento LGBT visibilizam um grande interesse pela educação formal, onde são desenvolvidos projetos majoritariamente em articulação com os diferentes níveis de governo (municipal, estadual e federal). Tal articulação é fundamental e vista, pelos entrevistados, como muito positiva. O movimento intervém na educação formal através da produção e/ou reformulação de materiais didáticos, cursos de atualização de professores e/ou diretores do ensino básico e ações de colaboração no desenvolvimento de pesquisas. As ações geralmente estão voltadas aos professores, embora haja algumas desenvolvidas para os alunos. Cabe salientar que estes projetos e ações visam sensibilizar esses sujeitos para as questões referentes à identidade homossexual. É dentro da escola que acontecem os projetos. Onde somos chamados, onde somos convidados ou então a gente mesmo procura algumas escolas onde a gente sabe que tem casos de homofobia mais explícitos e a gente vai até as escolas conversar com os estudantes e aí por serem jovens falando com jovens fazemos uma educação entre pares, falando na mesma linguagem, usando a mesma posição, digamos assim, não está sendo alguém mais velho, alguma imposição, conversamos com esses jovens justamente sobre essas coisas: sobre ser homossexual, sobre aceitar a homossexualidade, sobre o preconceito, sobre a vivência homossexual dentro dessas escolas (Leonardo). Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004447 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 35 Algumas vezes é através de situações de homofobia ocorridas dentro do ambiente escolar que o movimento chega à escola, mas pode ocorrer das escolas promoveram eventos pontuais que tenham como tema a diversidade sexual. Os entrevistados à exceção de um, defendem a importância da inserção da temática da diversidade sexual de forma sistemática, não eventual, nas escolas. Palavras como respeito, reconhecimento, igualdade, diferença e diversidade são recorrentemente utilizadas por nossos entrevistados como princípios e/ou ideais fundamentais às relações entre pessoas e grupos. Esses termos citados nas entrevistas convergem para a ideia de que o respeito às diferenças insere-se na busca pela igualdade de direitos. Propostas de inserção no currículo escolar do tema diversidade sexual e história do movimento LGBT são citadas pelos entrevistados como iniciativas do movimento. Sobre a produção de material didático foi destacado o kit “Escola sem Homofobia”, produzido pelo Ministério de Educação através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), em parceria com o Movimento LGBT. No contexto deste projeto foi elaborado um Kit didático com o objetivo de combater a homofobia e promover o respeito à diversidade sexual para ser distribuído às escolas de ensino médio do país. O kit é composto de um caderno, uma série de seis boletins (Boleshs), três audiovisuais com seus respectivos guias, um cartaz e cartas de apresentação para o gestor e para o educador. Aborda temas como homossexualidade, transexualidade e bissexualidade. A polêmica causada pelo referido material, levantada particularmente, por diferentes grupos políticos e religiosos conservadores e/ou fundamentalistas, a intervenção do poder legislativo na questão e a conjuntura política do país, levou a presidenta da república a suspender a distribuição do material, fato surpreendente, inédito, e na nossa opinião lamentável, já que se trata de tema -material didático- de alçada do Ministério da Educação. Este fato evidencia de forma muito expressiva a dificuldade de se tratar desta temática na sociedade brasileira, especialmente, no âmbito da educação formal. Outra atividade citada por nossos entrevistados como significativa para a consolidação de iniciativas no âmbito escolar foi a pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar (2009), realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), vinculada à Universidade de São Paulo, e apoiada pelo INEP. A referida investigação foi coordenada pelo professor José Afonso Mazzon e teve por objetivo analisar de maneira global a incidência de preconceito e discriminação Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004448 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 36 nas escolas públicas, de forma a descrever um quadro consolidado que servisse de base para a elaboração de ações globais no campo da promoção da pluralidade cultural. Entre os resultados obtidos, é importante assinalar os altos índices de discriminação e preconceito, nas escolas investigadas, entre todos os atores e, além disso, a evidência de que as escolas nas quais os escores que expressam os níveis de preconceito e práticas discriminatórias apresentam valores mais elevados tendem a apresentar médias mais baixas na Prova Brasil, o que estabelece uma relação entre discriminação e preconceito e aprendizagem. Quanto à realização de atividades voltadas aos professores em exercício ou em formação, os entrevistados afirmam a existência de jornadas de educação, palestras e debates. Apoiam a introdução mais efetiva da temática da diversidade sexual nos cursos de formação de professores. A gente acredita que principalmente na formação dos professores, no ano passado [2010] eu dei uma capacitação para uma turma que estava se formando e eu acredito que seja assim tanto nas Escolas Normais, como nas Universidades, essa linha de pensamento, o tema diversidade sexual ele tem que entrar nesse currículo, porque na verdade são esses indivíduos, esses atores é que vão levar para sala de aula essa questão, ou de forma transversal ou mesmo na sua prática diária (Angela). Quanto à perspectiva da educação intercultural, novamente notamos que os entrevistados não têm familiaridade com a expressão ou temática e que tentaram aproximar-se dela enfatizando a valorização da diversidade. Uma educação intercultural... Bem é primeiramente, sei lá... Talvez um aprofundamento sobre as diversidades e uma forma de dialogar com essas diversidades sem ser “clichê” (Leonardo). Isso é um termo complexo. Eu não sei como te definir. A gente sempre debateu outros conceitos como heteronormatividade, transversalidade da temática nas disciplinas, mas essa, especificamente, acho que a gente não tem... Eu por exemplo não tenho acúmulo de debate sobre isso para poder ter uma opinião formada (Maurício). Nos depoimentos dos entrevistados que atuam no movimento negro encontramos, no que tange à educação formal, a ideia de que ele é muito propositivo “provocando” a educação escolar. Eu acho que o movimento está mais provocando a escola, até mesmo porque a maioria do movimento está dentro da escola, são professores que estão dentro do movimento e que estão dentro da escola e aí vão fazer com que esse universo todo seja modificado; [...] tem algumas mudanças por causa realmente das nossas propostas, das propostas do movimento popular e do movimento de direitos humanos, movimento LGBT, movimento de mulheres, movimento dos indígenas, movimento da questão da terra, então são esses movimentos que estão provocando a educação a mostrar o novo porque a educação está muito atrasada (Ana Maria). Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004449 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 37 A lei 10639/03 aparece como o principal exemplo destacado pelos entrevistados de proposição de mudanças que afetariam a escola. A Lei funcionaria, se devidamente implantada, como um disparador de questões e desafios capazes de mudar para melhor as relações raciais desenvolvidas na/pela sociedade brasileira. Os depoimentos dão conta de diferentes dificuldades enfrentadas na execução da Lei como a tendência a reduzi-la a alguns momentos como a “Semana da África” ou o “Dia da Consciência Negra” ou ao desenvolvimento de algum projeto específico e à realização de palestras e oficinas esporádicas, numa abordagem aditiva, que não afeta a estruturação do currículo habitual das escolas; o desconhecimento por parte dos professores da História da África e da cultura afro-brasileira “o que a gente esbarra muito é o professor dizendo: eu não aprendi isso, eu não sei como lecionar, eu não sei como lidar” (Lúcia); a pouca presença da temática abordada pela Lei nos cursos de Formação de Professores; a insuficiência de material pedagógico disponível, mas reconhecendo que as publicações de caráter educacional têm crescido, especialmente as de literatura infantil que valorizam a cultura negra. Como fato positivo, no tocante à educação, foi destacada a importância da versão em língua portuguesa da obra editada pela UNESCO sobre História Geral da África, em 2011, que em parceria com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, e Diversidade do Ministério de Educação (SECAD/MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFCAR), viabilizou a edição completa em português da Coleção, considerada até hoje a principal obra de referência sobre o assunto. Nos depoimentos dos militantes negros os pré-vestibulares comunitários são particularmente valorizados, tanto por estimularem a capacitação de jovens negros para o ingresso nas universidades, quanto por favorecerem uma maior consciência da identidade étnico-racial dos sujeitos. Ressaltamos que, para o entrevistado participante do movimento quilombola, a escola se apresenta como um “mundo distante” da comunidade quilombola. Assume como perspectiva a construção de uma “educação diferenciada”, proposta que está sendo gestada coletivamente e que visa construir uma cultura escolar que incorpore componentes fundamentais da especificidade cultural e social dessas comunidades. Quando foram solicitados a expressar o que entendiam por educação intercultural, os entrevistados manifestaram pouca familiaridade com a expressão. Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004450 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 38 Um único depoimento explicitou que a entendia como sendo a incorporação de “histórias e do papel de outras culturas”, chegando a afirmar “intercultural é você conhecer a história do outro” (Antônio). No entanto, foram feitas algumas relações, de modo genérico, à importância do respeito ao outro, assim como à necessidade de se conhecer diferentes culturas, sendo mencionado o papel da escola nesta direção. Quando perguntados sobre experiências interculturais concretas, um entrevistado relacionou a educação intercultural com a questão indígena, outro com a educação quilombola e um terceiro com a “escola aberta”, entendida como aquela que nos fins de semana oferece diferentes espaços de expressão cultural à comunidade. Considerações Finais Este texto teve por objetivo apresentar e analisar a representação dos militantes dos movimentos sociais sobre a relação entre seus movimentos e a educação formal numa perspectiva intercultural. Realizamos ao todo dezoito entrevistas semiestruturadas com integrantes dos movimentos que exerciam ou tinham exercido alguma função de coordenação e/ou liderança, no âmbito local, regional, ou nacional. Foram seis entrevistas com militantes dos três movimentos escolhidos: movimento de mulheres, o movimento negro e o movimento LGBT. A educação formal e as escolas têm grande importância, são fundamentais, na representação dos sujeitos entrevistados dos três movimentos focalizados, quando têm em mente e constroem uma sociedade mais plural e menos violenta num futuro próximo. Os movimentos nos quais atuam os entrevistados valorizariam a educação e a escola visando o desenvolvimento de suas pautas de reivindicações e lutas que empreendem por um lado, pela igualdade de direitos e, por outro, pelo reconhecimento de suas diferenças culturais, especialmente no tocante ao racismo, sexismo e homofobia/lesbiofobia/transfobia, que operam fortemente na sociedade brasileira. Todavia, atestam a pouca inserção que têm seus movimentos e demandas na educação formal, nas práticas e currículos escolares, nos cursos de formação de professores, embora seja crescente a presença tanto das demandas quanto dos militantes no espaço da educação formal, inclusive através da legislação. No que diz respeito à educação intercultural os depoimentos tomados dos militantes dos três movimentos demonstraram a pouca familiaridade com a expressão, Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004451 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 39 um estranhamento, evidenciando a pouca reflexão explícita dos entrevistados e seus movimentos em relação à temática. É possível afirmar que a educação intercultural não está marcadamente presente nas agendas dos movimentos de mulheres, LGBT e negro, Referências Bibliográficas CANDAU, Vera. Educação Escolar e Cultura(s): multiculturalismo, universalismo e currículo; In: CANDAU. V. M. (org.). Didática: questões contemporâneas. Rio de Janeiro: Ed. Forma & Ação, 2009. _________. Didática e perspectiva multi/intercultural: a produção dos ENDIPE’S de 1994 a 2002. In: CANDAU, Vera (org.). Educação intercultural e cotidiano escolar. Rio de janeiro: 7Letras, 2006, p.52-73. FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova: Revista de Cultura e Política. São Paulo, 2007, nº 70. GOHN, M. da G. Teoria dos Movimentos Sociais. São Paulo: Loyola. 1997 (1ªEd.). HALL, Stuart. The work of representation. In: Hall, S. (Org.) Representation: cultural representation and signifying practices. London: Sage, 1997. MENEZES, P. A Ação afirmativa no direito norte-americano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004452