A Judicialização da Política e a Criminalização dos Movimentos Sociais no RS Tarson Núñez DOUTORANDO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL I. INTRODUÇÃO O tema da judicialização da política tem sido um dos pontos importantes das análises da relação entre o Poder Judiciário, a sociedade e o Estado no Brasil. A interpenetração entre o campo da política e o campo do direito vem ganhando uma visibilidade crescente, colocando novos desafios às análises da ciência política. O próprio conceito de judicialização da política, no entanto, pode ser objeto de controvérsia, em função da multiplicidade de contextos e abordagens possíveis segundo os autores que o utilizam. Koerner e Maciel (2007) destacam esta polissemia, mostrando que, na literatura, este conceito envolve múltiplas dimensões, que vão desde a constitucionalização de direitos e os mecanismos de “checks and balances” até a introdução ou expansão do staff judicial ou de procedimentos judiciais no poder executivo e no legislativo. Neste sentido, o tema da judicialização da política por vezes está associado a um processo análogo, porém distinto, que dá conta de uma dimensão de politização da justiça. A distinção entre estes dois processos, ainda que relevante, apenas encobre uma dinâmica real de interpenetração entre dois campos, o campo do direito e o universo do sistema judicial com o campo da política. Para efeito da análise proposta neste estudo, a judicialização será abordada de modo amplo, como a dinâmica de expansão das fronteiras do sistema judicial e seus efeitos institucionais sobre os processos políticos. Em uma parte significativa da literatura existente sobre o tema, o fenômeno da judicialização da política é encarado de uma forma restrita. A identificação de um fenômeno real, o deslocamento de uma parte importante dos conflitos políticos para o campo judicial, é vista predominantemente como um avanço democrático, uma ampliação das possibilidades de materialização de novos direitos sociais através da utilização de mecanismos judiciais. Frente à incapacidade dos demais poderes, legislativo e executivo, em dar conta de demandas sociais significativas, o Poder Judiciário emerge como um novo espaço de resolução de conflitos e, mesmo, de afirmação de direitos. No entanto, o fenômeno é mais complexo e demanda uma abordagem mais abrangente. A observação empírica de alguns processos políticos recentes no Brasil sinaliza com outras possibilidades de abordagem da questão. A experiência recente tem demonstrado que a judicialização da política em muitos casos pode representar também a utilização dos instrumentos do Poder Judiciário no sentido de um “bloqueio”, da política. Se analisarmos de uma forma mais cuidadosa as relações entre o Poder Judiciário e a política, poderemos identificar um processo no qual o deslocamento de lutas sociais e disputas políticas para a arena judicial representa muitas vezes um recurso de setores sociais e econômicos dominantes no sentido de interditar processos de luta política. Diversos autores, e mais do que eles, os próprios atores sociais envolvidos nos processos políticos em curso, vem identificando um movimento no qual o campo do direito vem se convertendo em um mecanismo auxiliar no sentido de contenção das ações políticas voltadas para a ampliação dos direitos de setores sociais subalternos. Este processo se caracteriza pela utilização de instrumentos legais no sentido de bloquear lutas sociais voltadas para ampliação de direitos, sejam eles no campo da da Reforma Agrária, pela Reforma Urbana ou por salários e condições de trabalho. Mais do que isto, o recurso à arena judicial permite uma identificação dos movimentos sociais e de suas demandas como ameaças à própria democracia, permitindo a mobilização do poder coercitivo do Estado contra estes movimentos. Este processo vem sendo caracterizado por estes autores como “criminalização dos movimentos sociais”. Este termo expressa uma percepção por parte dos movimentos de uma dinâmica através da qual se produz um deslocamento das disputas do campo político para o campo judicial, visando transformar em delitos as lutas sociais. Este processo assumiu tal gravidade a ponto de motivar a constituição de uma comissão constituída no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana com objetivo “apurar tentativas de criminalização de movimentos sociais, a partir de iniciativas do Ministério Público Estadual, decisões do Poder Judiciário Gaúcho, e ações da Brigada Militar do Rio Grande do Sul” (CDDPH, 2008). Esta constatação nos desafia a fazer uma abordagem da judicialização da política que dê conta desta dimensão do fenômeno. Um olhar sobre a judicialização da política que permita mostrar que, para além de um recurso institucional que permite a ampliação do exercício dos direitos de cidadania, a judicialização da política pode significar também um bloqueio do exercício democrático de questionamento da ordem existente. II. A judicialização da política como instrumento de ampliação de direitos No caso brasileiro o tema da judicialização da política tem sido abordado por um grande número de autores. O crescente interesse sobre o tema no campo da ciência política vem ensejando toda uma série de iniciativas voltadas para a análise do papel específico do Poder Judiciário no processo de consolidação da democracia no Brasil. No entanto os limites deste ensaio impedem um levantamento mais cuidadoso e extensivo desta bibliografia. Portanto o esforço se concentra em analisar algumas das abordagens existentes sobre o tema e fazer uma reflexão sobre os seus limites. Trata-se de demonstrar que em determinadas circunstâncias o tema da judicialização da política tem sido analisado de uma maneira unilateral, o que gera um viés que não dá conta da complexidade do fenômeno. Em um dos principais estudos sobre o tema em nosso país, Viana (1999) realiza uma profunda reflexão acerca da judicialização da política e das relações sociais no Brasil. O autor adota este conceito para descrever as transformações constitucionais pós-88, que permitiram um maior protagonismo dos tribunais em virtude da ampliação dos instrumentos de proteção judicial. Para Viana, a sociedade civil descobre no Poder Judiciário um caminho para a realização dos novos direitos, frente aos bloqueios do poder legislativo e a inoperância do executivo. Com este processo temos um Poder com “um crescente envolvimento com a questão social, abandonando, progressivamente, o cânon que lhe vinha de décadas de positivismo jurídico Kelseniano...o judiciário, antes um poder periférico, encapsulado em uma lógica com pretensões autopoiéticas inacessíveis aos leigos, distantes da agenda pública e dos atores sociais, se mostra uma instituição central à democracia brasileira, quer no que se refere à sua expressão propriamente política, que no que diz respeito à sua intervenção no âmbito social” (Viana, 1999,p.9) A própria seleção dos exemplos utilizados no seu estudo é uma demonstração prática do conteúdo da visão de Viana sobre o fenômeno da judicialização. Esta é analisada, de um lado, no âmbito do controle da constitucionalidade exercido pelo STF, à luz de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINS) impetradas no sentido de garantia de direitos estabelecidos pela constituição. De outro lado analisa o que chama de judicialização das relações sociais, através do funcionamento dos Juizados Especiais (JECs), onde mais uma vez o que se vê é o processo de judicialização analisado enquanto um processo de afirmação de direitos do cidadão. Esta visão do processo de judicialização da política como um processo de afirmação de novos direitos de cidadania é compartilhada também por Arantes (1999), em sua análise sobre o papel do Ministério Público na defesa dos direitos coletivos. Da mesma forma que Viana, a análise de Arantes está associada ao novo contexto institucional constituído a partir da constituição de 1988. Neste quadro a afirmação dos direitos garantidos pela nova carta, combinado com o novo papel assumido pelo Ministério Público, resultaria em um processo no qual a judicialização da política representa um instrumento de uma sociedade hipossuficiente, sem organização e com pouca capacidade de vocalização e afirmação de suas demandas, no sentido da garantia de implementação dos direitos sociais. É evidente que tanto a leitura de Viana como a de Arantes são muito marcadas pelo contexto no qual emergiram, de afirmação de uma nova ordem institucional, resultante das mudanças constitucionais de 88. Mas esta leitura do papel do Ministério Público se expressa ainda em também em trabalhos mais recentes, nos quais ainda predomina esta visão limitada da judicialização da política. Casagrande (2008) analisa o papel do MP e reproduz dez anos depois uma visão muito semelhante, o que indica a subsistência deste tipo de abordagem. Da mesma forma que Werneck Viana e Arantes, o autor identifica a judicialização da política como “a participação ativa de juízes e tribunais na criação e no reconhecimento de novos direitos, bem como no saneamento de omissões do governo” (Casagrande, 2008, p.16). Abordando especificamente a intervenção do MP, sua reflexão acerca da judicialização da política identifica este processo com a afirmação de direitos de cidadania. A seleção dos casos empíricos analisados aponta para esta visão. O autor utiliza cinco exemplos: 1) A efetivação do direito a educação pública em face do poder municipal; 2) Liberdade para o exercício da profissão de jornalista sem diploma; 3) concessão de benefícios previdenciários a companheiros homossexuais; 4) Retirada de crianças que trabalham em lixões; e 5) Direito ao ingresso na Administração Pública por concurso. Estes exemplos têm em comum, apesar de sua diversidade em termos de temas e atores, a afirmação de direitos abstratos de cidadania frente ao Estado. Em outra escala Sikkink (2006) aborda o tema da judicialização do ponto de vista das lutas dos ativistas dos direitos humanos na América Latina. Para esta autora o recurso à esfera judicial se constitui em uma “estrutura de oportunidade” no sentido de romper com os bloqueios políticos internos em relação à apuração dos delitos contra os direitos humanos. Mas também neste caso, a judicialização é vista como um instrumento para a afirmação de direitos. No entanto estas análises se tornam insuficientes quando a discussão se relaciona a noções de direitos conflitantes. E, especialmente, quando a expressão destes direitos são materializados em conflitos sociais, em disputas concretas acerca de direitos por parte dos atores sociais. É o caso, por definição, da luta pela Reforma Agrária, onde o direito de propriedade se conflita com direitos sociais e políticos, como o uso social da propriedade, com o direito à vida e mesmo, nos casos analisados, com os direitos democráticos à livre organização e à manifestação. Ou então no caso do conflito entre capital e trabalho no campo das lutas sindicais. Uma análise mais apurada aponta para a constatação de que esta visão da judicialização da política apenas como afirmação de direitos é insuficiente, na medida em que encara este processo apenas em uma de suas possíveis dimensões. A abordagem de Taylor (2007) nos aponta para uma ampliação da perspectiva desta análise: “Os tribunais agem em três dimensões de relevância para a ciência política, que podem ser descritas como as dimensões hobbesiana, smithiana e madisoniana. Estas dimensões têm impactos importantes, respectivamente, no monopólio da violência pelo Estado, nas regras de funcionamento da economia e na relação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário” (Taylor, 2007, p.4) A maior parte das análises citadas acerca da judicialização da política se concentram na dimensão “madissoniana” da relação entre o Poder Judiciário e a esfera política propriamente dita. Tanto a leitura de Viana, como a de Arantes e de Casagrande, assim como outras da mesma linha, tendem a identificar o fenômeno da judicialização da política na esfera da relação entre os poderes, do exercício de direitos, e na relação dos cidadãos com as instituições do Estado. E neste sentido a judicialização da política tende a ser vista como um fenômeno positivo para o exercício da cidadania. No entanto a interface do Poder Judiciário com a esfera da política, que caracteriza o fenômeno da judicialização, tem repercussões em muitos outros campos. Se, adotando uma perspectiva diferente, nos concentrarmos sobre a dimensão “hobbesiana” da atuação do Poder Judiciário, enquanto árbitro dos conflitos e instrumento para a normatização do exercício do poder coercitivo através do monopólio do uso da força pelo Estado, poderemos analisar o fenômeno da judicialização da política a partir de outra perspectiva. Neste caso é possível identificar na intervenção do Poder Judiciário um conteúdo eminentemente conservador, e uma utilização instrumental do seu poder no sentido de restrição de direitos da cidadania e defesa de interesses sociais de determinados grupos sociais. Este mesmo exercício também poderia ser realizado a partir da dimensão “smithiana”, analisando o significado da judicialização da política a partir de conflitos de natureza econômica. Os conflitos judiciais em torno das políticas de privatizações, ou o papel dos tribunais em relação às concessões de pedágios no RS que geraram conflitos de natureza econômica decididos judicialmente podem ser analisados dentro da mesma perspectiva. Uma análise desta dimensão “smithiana” da ação do Poder Judiciário, no entanto, demandaria uma ampliação do escopo da análise que vai muito além dos limites deste ensaio, o que impõe, portanto, uma concentração na dimensão “hobbessiana” da interferência do Estado sobre os conflitos políticos, que em muitos casos se materializa num processo que pode ser caracterizado como de criminalização dos movimentos sociais. III. A criminalização dos movimentos sociais no RS A experiência brasileira recente traz à tona um aspecto desta relação, na qual a interferência do Poder Judiciário e do Ministério Público assume características distintas. Sua atuação na esfera da defesa da lei e manutenção da ordem tem servido para possibilitar o deslocamento de conflitos sociais e de seus desdobramentos políticos para a arena judicial. Isto caracteriza um processo de judicialização da política, neste caso, voltado para a contenção de demandas reivindicatórias associadas à democratização dos direitos da propriedade da terra no país. Uma série de acontecimentos recentes demonstram de maneira muito nítida uma atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público, na qual o processo de judicialização da politica representa efetivamente uma ofensiva dos setores proprietários contra os movimentos sociais. Um primeiro exemplo desta dinâmica foi a votação no Conselho Superior do MPRS no sentido da dissolução do MST e a declaração de sua ilegalidade (CDPPH, 2008, p.7). Os procuradores propunham: “ações judiciais para a ‘dissolução do MST e declaração da sua ilegalidade’, ‘suspender marchas, colunas outros deslocamentos’; ‘investigar os integrantes de acampamentos e a direção do MST por prática de crime organizado; desativar os acampamentos’.” (Scalabrin, 2008, p.5) A intensa reação dos movimentos sociais e de organizações da sociedade civil, bem como de setores do próprio MP à abordagem proposta pelos procuradores levou a um posterior recuo e uma desautorização da proposta. No entanto o seu sucesso inicial revela a disposição por parte de um contingente significativo dos quadros do MP estadual no sentido de adotar uma postura de enfrentamento ao MST e à luta pela Reforma Agrária. Já em 11 de março de 2008 o Ministério Público Federal de Carazinho ingressou com ação criminal, aceita pela justiça federal, contra oito integrantes do MST pelo cometimento de delitos contra a “segurança nacional”, com base na Lei de Segurança Nacional, de 1983. (Scalabrin, 2008, p.1). Em 4 de junho de 2008, um mandato de busca e apreensão emitido pela justiça estadual mobilizou 800 PMs e 60 policiais civis contra o XIV Congresso Estadual do MST, determinando o cerco do local e a revista geral das dependências. Nada foi encontrado mas os trabalhos finais do congresso foram inviabilizados (Scalabrin, 2008, p.4) Ainda em 2008 o MPE ingressa com ação estabelecendo a proibição de quaisquer manifestações do MST, determinando o despejo de acampamentos e pedindo o cancelamento de títulos eleitorais de ativistas do movimento na Comarca de Carazinho. Em junho, vários promotores obtiveram liminares para o despejo de dois acampamentos do MST localizados em áreas privadas legalmente cedidas pelos proprietários. A seguir os mesmos promotores ingressaram com outras três ações nas Comarcas de São Gabriel, Canoas e Pedro Osório, criando zonas de restrição de direitos ao redor de três fazendas que são reivindicadas para fins de reforma agrária pelo MST. Em junho de 2008 o Ministério Público Estadual propõe uma Ação Civil Pública no determinando a dissolução do acampamento “Serraria” do MST em Coqueiros do Sul. Em 10 de setembro de 2008 com base numa decisão de busca e apreensão, proferida numa ação de reintegração de posse no município de Pedro Osório, a brigada militar conduziu presos até a delegacia, mais de 100 integrantes do MST. Em 8 de maio de 2008 a Polícia Militar do RS invade um acampamento do MST na Fazenda São Paulo II, que já tinha sido desapropriada pelo INCRA. “Sob o pretexto de cumprimento de uma ordem judicial de busca e apreensão, a qual tinha como objeto a apreensão de um suposto objeto furtado da Fazenda Southall, centenas de pessoas foram expostas a um tratamento cruel e degradante durante a operação” (CDPPH, 2008, p.12) Os exemplos utilizados até agora se referem especificamente ao caso do MST, mas o processo de utilização do Poder Judiciário como legitimador do uso da violência contra os movimentos sociais não se resume aos conflitos fundiários. Em fevereiro de 2010 a justiça concedeu à metalúrgica Randon, de Caxias do Sul, um interdito proibitório que impedia o Sindicato dos Metalúrgicos de realizar qualquer atividade a menos de 100 metros de distância da empresa 1. O direito à livre manifestação foi suprimido e a luta reivindicatória do sindicato foi bloqueada pela via judicial, ainda que não houvesse qualquer questionamento da empresa em relação á legitimidade ou legalidade das postulações dos seus funcionários, objeto de negociação coletiva que continuou. Este exemplo sinaliza que a interferência do Poder Judiciário e do Ministério Público do Rio Grande do Sul nas lutas sociais não se limita a um confronto específico com o MST. O exemplo citado, de Caxias do Sul, é apenas um entre muitos que poderiam ser arrolados no campo dos movimentos sociais urbanos. A agilidade com que são normalmente concedidas as liminares de reintegração de posse quando da ocupação de prédios vazios por parte do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), em Porto Alegre também sinaliza com uma diferença do tratamento dado pelo Poder Judiciário aos movimentos sociais em contraste com a forma com que se relaciona com outros atores sociais. Em Porto Alegre, clubes de futebol ocuparam áreas públicas para instalação de áreas esportivas e nunca tiveram esta atitude contestada na justiça. IV. O sentido da intervenção do judiciário Este processo de recurso à justiça por parte de atores sociais de maior poder econômico e político é identificado por alguns autores como um elemento importante no sentido da importância de incorporar o Poder Judiciário nas análises acerca da dinâmica da disputa política. Taylor utiliza o conceito de “venue seeking”, que identifica o processo através do qual “os grupos de interesse procuram o local institucional mais favorável para contestar as políticas públicas... os atores políticos procuram as instâncias institucionais que mais lhes convém” (TAYLOR, 2007, p.4). Neste sentido, o Poder Judiciário se constitui em um espaço no qual os conflitos sociais, de natureza eminentemente política, são encapsulados em uma estrutura na qual o processo de decisão está além da legitimidade das demandas ou da capacidade de mobilização dos grupos sociais envolvidos. 1 Resenha do TRT da 4 Região. N.1745, fevereiro 2010, p.2 Seria possível argumentar que esta intervenção do Poder Judiciário na esfera da política é parte do processo democrático, e que este processo de judicialização faz parte da consolidação institucional da democracia no país. No entanto existem inúmeros exemplos de que o esforço do Poder Judiciário e do Ministério Público pela manutenção da ordem legal não é sempre tão rigoroso. No próprio tema das questões fundiárias se podem identificar situações onde este rigor na defesa da lei depende em muitos casos da condição social dos atores envolvidos. Em abril de 2009, 50 ruralistas da região de Palmas, em Bagé fecharam uma estrada vicinal para impedir as vistorias que seriam realizadas pelo INCRA para o reconhecimento de uma comunidade quilombola 2. O bloqueio durou mais de uma semana, com os ruralistas mantendo “vigílias nas estradas que dão acesso às fazendas a fim de impedir o trabalho do órgão federal”. 3 Este é apenas um exemplo da estratégia sistematicamente adotada por setores proprietários no RS. Bloqueios deste tipo têm sido realizados desde 2003 para impedir vistorias para avaliação de terras para desapropriação. E não há notícias de intervenções do Ministério Público e do Poder Judiciário no sentido de impedir estes bloqueios. Uma das possibilidades explicativas deste comportamento é sinalizada por Roussel (2002), na medida em que a autora identifica nos mecanismos sociais de recrutamento da magistratura um elemento importante que incide sobre o comportamento da instituição. Sua análise do caso francês, onde mostra que um recrutamento mais diversificado socialmente dos quadros do Poder Judiciário resultou em uma menor solidariedade dos magistrados com as estruturas de poder local. Para esta autora a alteração do processo de recrutamento da magistratura francesa resultou distanciamento da magistratura em relação aos circuitos sociais em que anteriormente se inseria, resultando em uma atuação diferenciada. No caso brasileiro se assiste ao processo contrário. Ainda que o ingresso por concurso público estabeleça critérios meritocráticos e repubicanos no recrutamento do MP e do Poder Judiciário brasileiro, as distinções sociais em termos do acesso ao capital cultural e às 2 3 Zero Hora, 7 de abril de 2010, p.28 Zero Hora, 14 de abril de 2010, p.29 oportunidades de educação, necessárias para o sucesso no processo seletivo, estabelecem um filtro de natureza socioeconômica. E a remuneração dos quadros da magistratura e do MP coloca os sues quadros objetivamente em uma situação social muito mais próxima dos setores dominantes do que dos setores subalternos da sociedade, o que fortalece laços de solidariedade social e ideológica entre os membros do PJ e do MP com os setores proprietários. Por outro lado é importante perceber também que o recurso ao poder judiciário por parte dos setores dominantes em termos sociais e econômicos também resulta das transformações sociais e políticas vividas no país nos últimos 20 anos. A democratização política abriu espaços crescentes para as demandas dos setores populares, que ampliaram sua presença institucional e sua força política. O Poder Legislativo e principalmente o Poder Executivo tornam-se crescentemente permeáveis às demandas por uma maior democratização política e por mudanças nas estruturas sociais. O espaço crescente conquistado pelos movimentos sociais, pelas demandas dos setores subalternos da sociedade debilita em muito a possibilidade do recurso à interferência estatal sobre os conflitos sociais por parte dos setores social e economicamente dominantes. E reduzidas as possibilidades de ativar a ação do executivo e do legislativo contra os movimentos, o espaço da esfera judicial se converte em um instrumento de contenção. Já no Poder Judiciário, este processo de renovação e democratização ocorre de maneira mais lenta, se é que ocorre. Isto tem como consequência o fato de que este poder se converte em um recurso a ser ativado em situações nas quais setores proprietários demandam uma intervenção estatal sobre os conflitos sociais. V. O campo do direito, sua especificidade e sua relação com a política O processo de consolidação democrática no Brasil, assim como ocorreu em outras partes do mundo, está associado a uma crescente codificação dos direitos acompanhada de uma institucionalização dos processos políticos. Esta institucionalização da democracia se materializa na organização dos poderes de Estado, entre os quais cabe ao judiciário um poder de arbitragem e de garantia de cumprimento das “regras do jogo” democrático. Este papel, no entanto, não é neutro, está condicionado por uma série de fatores entre os quais se podem destacar os mecanismos de recrutamento dos quadros do poder, sua origem social, seus valores compartilhados, a sua formação e seus compromissos políticos. Para compreendermos a relação entre a judicialização da política e a criminalização dos movimentos sociais precisamos ter como ponto de partida uma caracterização da especificidade do campo jurídico, e o papel que o mesmo cumpre na reprodução social. Neste sentido tomamos como ponto de partida a noção de Bourdieau, segundo a qual “o campo judicial é o espaço social organizado no qual, e pelo qual, se opera a transmutação do conflito direto entre partes diretamente interessadas no debate juridicamente regulado” (Bourdieau, 1989 p.229). Esta especificidade do campo jurídico, um sistema estruturado a partir de uma divisão do trabalho social que estabelece uma distinção profunda entre os especialistas, os profissionais capazes de se apropriar de um conjunto de saberes e títulos, e os cidadãos comuns atores sociais que dependem deste corpo técnico e destas instituições para fazer valer os seus direitos, estabelece um campo de disputa distinto do campo da política, no qual os setores subalternos têm maior dificuldade de operar. E estes quadros técnicos do campo do direito têm interesses concretos tanto do ponto de vista interno às instituições judiciais como nas suas relações com o conjunto da sociedade. A significação prática da lei não se determina realmente senão na confrontação entre diferentes corpos animados de interesses específicos divergentes (magistrados, advogados, notários...), eles próprios divididos em grupos diferentes animados por interesses divergentes, e até mesmo opostos, em função sobretudo da sua posição na hierarquia interna do corpo, que corresponde sempre de maneira bastante estrita à posição da sua clientela na hierarquia social.(Bourdieau, 1989, p.217-218) Os conflitos sociais são também conflitos essencialmente políticos, ainda que não necessariamente envolvam um acesso às dimensões institucionais da política. A separação das dimensões pública e privada operada a partir de concepções liberais, a partir das quais os conflitos em torno da propriedade privada, ou das relações contratuais de venda da força de trabalho estariam fora do domínio da política, oculta as relações de poder efetivamente existentes entre os distintos grupos sociais. E neste caso a judicialização do conflito tem o papel de “neutralizar” a dimensão política do mesmo: A situação judicial funciona como um lugar neutro, que opera uma verdadeira neutralização das coisas em jogo por meio da ‘desrealização’ e da distanciação implicadas na transformação da defrontação direta dos interessados em diálogo entre mediadores (Bourdieau, 1989 p.227) VI. Conclusão Este breve estudo teve como objetivo confrontar algumas das formulações acadêmicas existentes acerca da judicialização da política, demonstrando a sua insuficiência no sentido de captar a complexidade do fenômeno. São estudos que analisam o Poder Judiciário e o MP a partir de sua lógica interna, assim como de sua relação enquanto instituição com as demais instituições e com a dimensão mais geral do exercício dos direitos de cidadania. São análises que, nos termos de Taylor (2006), se concentram na dimensão “madissoniana” da relação entre a política e o Estado. Esta lógica limita a possibilidade de perceber outras dimensões da relação entre o campo do direito e a política, nas quais muitas vezes a judicialização da política pode significar na prática uma interdição da política. O campo jurídico se torna um espaço mais favorável à manutenção da ordem, de um lado pela desigualdade de acesso e assimetria dos recursos jurídicos mobilizáveis, e, de outro, pelas pretensões de neutralidade e de universalidade do poder, que permitem mascarar o seu papel enquanto mecanismo de reprodução social. A lista de casos e situações que apresentamos, nas quais se pode perceber claramente uma intervenção do Poder Judiciário e do Ministério Público como instrumentos de contenção de lutas sociais e de exclusão das mesmas do campo da política, mostra que em muitos casos o recurso à judicialização pode representar um instrumento para a limitação do exercício dos direitos democráticos. Através da judicialização dos conflitos setores social e economicamente poderosos conseguem bloquear as possibilidades de exercício de direitos democráticos de grupos sociais subalternos. As mudanças nas condições da luta política, com o fortalecimento dos setores subalternos no campo da política institucional, joga para a arena judicial muitos dos conflitos sociais e políticos. Na medida em que as esferas do executivo e do legislativo se tornam mais permeáveis às demandas dos “de baixo”, as classes dominantes tendem cada vez mais a deslocar as disputas para o campo judiciário. E neste campo, o direito de propriedade é o instrumento para um processo de criminalização dos movimentos sociais, no qual o Poder Judiciário cumpre um papel central na medida em que se constitui no instrumento de legitimação do exercício do poder coercitivo do Estado contra os movimentos. Nesta medida a judicialização da política se torna um instrumento que possibilita a mobilização dos recursos coercitivos do Estado por parte dos setores econômica e socialmente poderosos que conseguem deslocar para além da esfera da política democrática a solução dos conflitos. A judicialização dos conflitos neste caso afeta não somente a imagem do poder judiciário como fragiliza a própria democracia. Conforme O’Donnell (1998) este é um dos fatores que leva ao que o autor denomina a “inefetividade da lei” que fragiliza as democracias latino-americanas. “A aplicação discricionária, e amiúde excessivamente severa da lei aos fracos pode ser um eficiente meio de opressão. O lado oposto disso são as múltiplas maneiras pelas quais os privilegiados...se isentam de cumprir a lei” (O’Donnell, 1998, p.44). Como mostram Koerner e Maciel (2007) uma das vertentes predominantes da análise acerca da judicialização da política tem por base uma leitura de que as transformações contemporâneas do direito o teriam tornado aberto às aspirações e necessidades coletivas. Segundo eles, para Viana “a institucionalização do direito no mundo contemporâneo teria incorporado os princípios da filosofia política da modernidade, transformando-os em formas de ação à disposição do homem comum para participar da criação do direito estatal” (Koerner & Maciel, p.125). No entanto os diversos exemplos concretos citados apontam para um uso do direito no sentido oposto, no sentido da conservação de determinadas estruturas sociais enquanto materialização de direitos de propriedade inatacáveis. Esta contradição mostra que é necessário incorporar uma dimensão maior de complexidade à análise do processo de judicialização da política, na medida em que o recurso ao judiciário pode tanto servir a uma expansão do exercício de direitos como à sua supressão. E esta contradição está inscrita tanto no caráter ambíguo e contraditório dos direitos, tal como estão institucionalizados, como também por um motivo prático, de que as instituições também têm contradições orgânicas internas. “Não existe um Poder Judiciário. Existem muitos poderes judiciários, se os encaramos do ponto de vista organizacional, econômico, sociológico ou político...o Poder Judiciário é uno e múltiplo ao mesmo tempo” (FALCÃO in SADEK, 2006 p.119). Assim a atuação do Poder Judiciário, assim como do Ministério Público, tende a representar uma resultante de uma disputa de forças internas, o que explica o caráter ambíguo e por vezes contraditório de sua ação. Em determinados momentos, como nos casos analisados por Viana e Casagrande, temos o Poder Judiciário e o MP atuando como instrumentos de ampliação do exercício de direitos. Em outros, como nos exemplos citados na análise do processo de criminalização dos movimentos sociais, o recurso ao Poder Judiciário e a ação do MP representa um esforço no sentido da interdição da política, e de uma limitação efetiva de direitos. E como vimos, não apenas a limitação de direitos sociais (direito à vida, direito à terra, uso social da propriedade) mas de direitos políticos elementares (direito de manifestação, direito de ir e vir). A percepção desta ambiguidade inerente ao processo de judicialização da política, e principalmente de um viés classista que pode emergir da solidariedade de perspectivas entre setores proprietários e o Poder Judiciário frente às crescentes demandas por parte dos setores subalternos, desafia a ciência política. Assumindo, ainda que cautelosamente, uma perspectiva normativa e prescritiva de análise do problema, fica demonstrada a necessidade da reforma do poder judiciário. Santos (1999) defende uma “democratização da administração da justiça”, que passa por três pontos essenciais e inter- relacionados: a) a reforma nos procedimentos, no processo e na legislação; b) a reforma na organização do Poder Judiciário; e c) a reforma da formação e dos processos de recrutamento dos magistrados (Santos, 2006, p.180). Estas seriam as condições para uma efetiva democratização da instituição, um processo de reformas que podem ser o início de um caminho que neutralize a instrumentalização do Poder Judiciário no sentido da criminalização dos movimentos sociais. As mudanças propostas abririam o caminho para neutralizar a capacidade dos setores dominantes no sentido de deslocar os conflitos sociais para a arena judicial, impermeável à política e menos adequada para uma ação transformadora das relações sociais. A perspectiva de reforma do Poder Judiciário, portanto, se enquadra no processo mais geral de aprofundamento da democracia no Brasil. Este processo, que envolve não apenas as mudanças institucionais nos poderes de Estado como também uma ação mais geral no sentido da democratização da sociedade, é ainda um processo inconcluso. No entanto tudo indica que é o processo de luta social dos setores subalternos que vem permitindo uma ampliação dos espaços democráticos, e é desta ação de baixo para cima do ponto de vista social, e de fora para dentro do ponto de vista das instituições que a inovação política e a democratização do país pode avançar. Porto Alegre, junho de 2010 Bibliografia ARANTES, Rogério. Direito e Política: o Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos. RBCS vol.14, nº39, fev 1999. COMISSÃO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS. Relatório Azul 2009: Garantias e violações dos Direitos Humanos. Porto Alegre, Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2009. 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