A INSERÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA QUESTÃO URBANA:
A PRODUÇÃO SOCIAL DO HABITAT
Anna Karina Borges de Alencar1
Este artigo busca refletir sobre a inserção dos movimentos sociais na construção da
política nacional de desenvolvimento urbano, com foco na política nacional de habitação.
Buscaremos identificar o alcance dos movimentos urbanos de luta por moradia apontando
alguns progressos e entraves através dos espaços institucionais de participação e sua difusão
na gestão das políticas de habitação.
Nossa análise se dará em torno de três elementos referenciais: o processo brasileiro de
avanço da democratização e participação social tendo os movimentos sociais urbanos como
sujeitos coletivos desse processo; a influência dos movimentos de luta por moradia como
sujeitos políticos na interlocução com o Estado e a sociedade em geral e do Fórum Nacional
de Reforma Urbana - FNRU nas políticas urbanas.
E por fim, sobre as mudanças ocorridas recentemente nas políticas de habitação e de
desenvolvimento urbano ao longo desta década (2001 – 2010) que demonstram o ensejo de
enfrentar o quadro de desigualdades sócio-territoriais como a criação do Estatuto da Cidade
(2001) o Conselho das Cidades(2003) e de programas voltados para a habitação de interesse
social.
PALAVRAS-CHAVE: Movimentos Sociais Urbanos, Democracia, Produção Social do
Habitat.
Partimos da questão habitacional como aspecto central no processo histórico de
exclusão territorial urbana. Nesse âmbito percebemos um discurso disseminado de que os
problemas urbanos são resultados da falta de planejamento, no entanto, concordamos com
alguns autores como Maricato (2000), de que não se trata da falta de planejamento, mas sim
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UFPE – MDU – Observatório de Pernambuco de Políticas Públicas. Email: [email protected]
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da presença de um planejamento excludente praticado durante décadas, desarticulado da
realidade da maioria da população que vive nas grandes cidades.
Perante a imensa desigualdade de renda e desta política hegemônica que permite a
especulação sobre a terra urbana, a população de baixa renda tem tomado como principal
solução de moradia as favelas, através de produção informal de suas habitações em
assentamentos irregulares.
Diante deste planejamento excludente, os movimentos sociais urbanos têm lutado pela
reversão deste quadro de desigualdade e exclusão social, tentando se inserir nas gestões das
políticas públicas com o anseio de que este planejamento contemple a realidade da população
de baixa renda historicamente excluída.
A luta pelo direito à moradia tem buscado ir além da produção de habitações
populares, busca-se pelo direito à cidade, que implica na articulação do acesso à casa, a
distribuição justa do acesso à terra, ao saneamento ambiental, ao transporte, à mobilidade e
mais recentemente, a fundos permanentes para habitação como já foi conquistado para saúde
e educação.
Podemos afirmar que no Brasil, os movimentos sociais urbanos têm protagonizado
uma resistência às políticas centralizadoras, autoritárias, clientelistas e ultimamente
neoliberais. Desde as ocupações de terras na década de 1980 os movimentos de luta por
moradia perceberam a necessidade de ter uma intervenção organizada com propostas e agenda
de luta que avançassem na organização superando o caráter reinvidicatório.
Com a elaboração da nova Constituição de 1988 configurou-se o início de um
processo de descentralização e impulso à participação social na gestão das políticas públicas.
Vale ressaltar, que desde o início do governo Lula (2003), houve uma intensificação desse
processo com a criação do Mistério das Cidades e do Conselho das Cidades, proporcionando
a participação dos movimentos nos conselhos e conferências apoiados pelo Fórum Nacional
de Reforma Urbana - FNRU no debate sobre as políticas urbanas.
Além desta participação, os movimentos de luta por moradia na busca de alternativas
para o acesso à moradia digna, tem adotado novas formas de produção, que tem sido chamada
de Produção Social da Moradia ou do Habitat, com a principal característica de que se realiza
a partir do protagonismo da própria população, para a produção de sua moradia e do espaço
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urbano. A população de forma organizada assume a gestão do processo de produção do seu
habitat contando com o apoio das três esferas de governo, de outras instituições e do mercado
imobiliário.
Este artigo tem o objetivo de fazer uma análise da incidência dos movimentos de
moradia através do FNRU no desenho e implementação da política de habitação, no intuito de
considerar em que medida os espaços de participação vêm incorporando as propostas dos
movimentos de moradia e a nova Política Nacional de Habitação – PNH incorpora a
participação da sociedade civil através da Produção Social do Habitat.
MOVIMENTOS
SOCIAIS
URBANOS:
SUJEITOS
DO
PROCESSO
DE
DEMOCRACIA
O processo histórico de democratização do Brasil é acompanhado pelos movimentos
sociais, que a partir da organização de setores socialmente excluídos do crescimento e da vida
econômica, entram na cena pública reivindicando direitos sociais e melhores condições de
vida. Os movimentos sociais urbanos de luta por moradia são entendidos aqui como ações
coletivas organizadas pela população pobre na busca pelo direito à cidade, através do acesso
ao solo urbano, à moradia e aos serviços e equipamentos coletivos.
A luta pelo direito à cidade tem como marco de referência o início dos anos 1960,
nesse período, surgiram no Brasil vários movimentos sociais em favor das chamadas “reforma
de base”: Estes movimentos provocaram uma forte pressão social, que foi interrompida pelo
golpe de 1964. A ação repressiva do governo provocou o corte dos direitos individuais e
coletivos, criando um vazio político de mecanismos de representação na sociedade.
Diante deste ambiente repressivo provocado pelo golpe militar, deu-se início o
trabalho das igrejas, das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs - e de outros agentes
pastorais. Este trabalho serviu como alternativa para criação de espaço de participação
popular com o objetivo de discutir os problemas dos bairros e das condições de trabalho da
população.
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A rearticulação da sociedade civil só aconteceu em maiores proporções na segunda
metade da década de 1970, vinculada a descentralização e o redirecionamento parcial das
políticas de desenvolvimento urbano e habitacional, com a criação de programas alternativos,
caracterizados por intervenções de urbanização e legalização de posse nos assentamentos
precários das comunidades de baixa renda.
Esta rearticulação da sociedade civil ganha impulso nos anos 1980 em meio a uma
conjuntura econômica recessiva que apresentava a redução das taxas de crescimento da
economia, inflação acelerada e alto índice de desemprego. O processo de distensão política
passa a ser chamado de "abertura política". A partir disto, crescem as lutas por anistia política
e democratização, além das diversas lutas sindicais e urbanas por melhores condições de vida.
São dessa época os movimentos de ocupação de terras.
A demanda por terra e por moradia, nas últimas três décadas, fizeram surgir além de
favelas, dos cortiços e dos assentamentos irregulares os movimentos populares que se
organizaram na luta pelo direito à cidade. A estratégia popular de obtenção da casa através da
autoconstrução nos assentamentos irregulares ou com iniciativas individuais estava cada vez
mais difícil com o aumento do custo da terra e dos materiais. Com a legislação cada vez mais
rigorosa contra os loteamentos irregulares, o inchaço das favelas com áreas livres escassas e
com a tendência de estarem cada vez mais distantes do centro das cidades levaram a
população pobre a se organizar coletivamente para realizar as ocupações de terra, que trazia
embutida a luta pelo acesso à cidade.
Assim, a forma que os movimentos encontraram para incidir sobre a questão
habitacional passava primeiramente pela questão da distribuição de terra urbana, que denota o
processo de exclusão social, pois como aponta Maricato (2010, p13), “a desigualdade no
Brasil passa essencialmente pela questão fundiária”.
A luta pelo acesso à moradia envolveu um grande número de famílias em várias
metrópoles brasileiras, que adotaram práticas de infração à regulação do mercado, através das
invasões de terras urbanas. Cabe ressaltar a importância do trabalho de aglutinação,
organização e conscientização das famílias que participavam das ocupações. Podemos
analisar de forma geral, que as ocupações organizadas obtiveram um resultado mais efetivo
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em relação às ocupações espontâneas, pois através de ações individuais as ocupações não
ganhavam tamanha proporção em relação as organizadas.
A atuação destas ocupações organizadas passa a ser estratégia central da demanda dos
movimentos de moradia e repercute como pauta das políticas de habitação popular nos anos
de 1980. Destacamos também outras conseqüências desta atuação dos movimentos de luta por
moradia como a criação de instituições assessoras e em políticas de reforma agrária.
A conjuntura política a partir de 1982 foi marcada por intensas lutas democráticas.
Uma das maiores mobilizações da história do país foi a campanha pelas “Diretas Já”, para
presidente, em 1984. Foi a partir dela que se estabeleceu um calendário de lutas políticas que
culminou com a Constituinte e as eleições presidenciais.
Em meio a forte crise financeira que o país passava, que gerou uma imensa massa de
desempregados excluídos dos direitos sociais, o Sistema Financeiro de Habitação que atuava
através do Banco Nacional de Habitação estava sendo extinto e com isto se criava um vazio
nas políticas habitacionais. No intento de uma reestruturação do governo federal, o mesmo
passa por um processo de descentralização da política, quando repassa para municípios e
estados a condução das políticas habitacionais.
Este processo de descentralização brasileira trouxe à tona ações coletivas da sociedade
civil relacionadas com o Estado. Direitos sociais, cidadania, participação e parceria passam a
ser reivindicados por diversos setores sociais e também incorporados pelo Estado.
Podemos
citar
como
exemplo
de
um
processo
de
redemocratização
a
institucionalização das ZEIS no Recife e AEIS em Belo Horizonte, em 1983, com a
reestruturação dos modelos de gestão pública em áreas de interesse social. A concepção por
lei de um instrumento normativo e da gestão democrática das ZEIS originou o PREZEIS que
foi resultado de um projeto de entidades e organizações da sociedade civil com o apoio do
Estado. Estes mecanismos anteciparam os instrumentos que foram posteriormente aprovados
na Constituição Federal de 1988.
A promulgação da Constituição de 1988 representou a aprovação dos direitos civis e
de um novo momento no processo democrático. Para as esferas populares viabilizou-se a
participação e o acesso à gestão das políticas públicas com aprovação da criação de conselhos
em várias áreas da política social. No entanto, a descentralização das políticas sociais
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efetivamente avançou apenas em algumas áreas – saúde, educação, assistência social –
(ARRECTHE, 2000 apud Santos Junior, 2009) enquanto que a promoção de saneamento
ambiental e habitação permaneciam centralizados pelo Estado.
Esta breve retrospectiva sobre a democratização acompanhada pelos movimentos
sociais urbanos tem o objetivo de recuperar os períodos atravessados e demonstrar a
importância do papel dos movimentos na busca da democracia que em diversos momentos
mudaram as estratégias de lutas. Identificamos a atuação dos movimentos na década de 70
como de resistência e enfrentamento ao regime militar. Já nos anos 80, percebemos que a
visão e a própria relação com o Estado começaram a mudar, com as lutas pela democratização
tornaram-se comum a agregação de movimentos sociais ou de lideranças, avançando para o
estabelecimento de mecanismos de participação e de negociação com o Estado.
Segundo Gohn (1995), os anos 80 foi “a era da participação”, ponto de pauta da
agenda política dos movimentos sociais e também das classes dominantes, seja pela crise de
governabilidade do Estado provocada pela ditadura, seja pela pressão dos movimentos
sociais.
A partir da década de 1990, o papel do Estado foi se transformando pela pressão da
economia internacional com a globalização. A visão neoliberal vigente que acompanhou este
processo provocou a redução do Estado, a privatizações de várias empresas e serviços
públicos e a abertura da economia brasileira ao capital internacional. Neste momento foram
criados pelo governo alguns programas habitacionais destinas à população de baixa renda que
contavam com recursos internacionais, por falta de recursos internos, mas estes programas
obtiveram impactos discretos.
Perante o cenário de globalização os movimentos sociais precisaram mudar de
estratégia novamente, Segundo Gohn (1995) “a agenda política das elites dominantes se
modifica em função de problemas internos e das alterações que a globalização e as novas
políticas internacionais passam a impor ao mundo capitalista”. Os canais de participação se
transformaram em estratégia do governo, como forma de assimilar as demandas dos
movimentos como ocorreu nos orçamentos participativos.
Mesmo diante das várias transformações que os movimentos tiveram que passar,
destacamos mais uma vez Gonh (2003, p14), que reafirma a análise de Touraine de que “os
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movimentos são o coração, o pulsar da sociedade”. Desta forma, queremos enfatizar aqui que
a participação popular, enquanto reconstrução de espaços de organização é componente
imprescindível para a construção e concretização da democracia, na qual os movimentos
sociais se destacam como sujeitos políticos na interlocução com o Estado, objetivando a
implementação de políticas públicas, mesmo que tenham que passar por diversas mudanças
nas relações que estabelecem entre indivíduos, na sociedade em geral e com o Estado.
PRODUÇÃO
SOCIAL
DO
HABITAT,
PARTICIPAÇÃO
POPULAR
E
AUTOGESTÃO: BASE A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA HABITACIONAL
DE INTERESSE SOCIAL
A Produção Social do Habitat - PSH é aqui entendida como processos de autogestão
incitados e conduzidos por grupos sociais, que de forma organizada, gerem experiências
inovadoras para atender suas necessidades de moradia e de direito à cidade. Esta gestão
implica em manejar de forma integrada os processos políticos, construtivos, culturais e de
convivência entre o grupo e com outros importantes atores externos.
Para compreendermos como funciona a PSH se faz necessário que entendamos o
significado de três conceitos: a participação, a autogestão e a ajuda mútua. Segundo De La
Mora (2007) a participação é entendida como processo através da qual as pessoas identificam
problemas, propõem e negociam soluções, no entendimento que cada problema pode ser
resolvido de diversas maneiras, e que cada alternativa poderá atender melhor ou pior os
interesses dos diversos participantes. Os processos de participação podem ser consultivos e
deliberativos.
Segundo Bonduki (1992), autogestão implica na criação de uma alternativa de gestão e
organização popular, sendo as decisões tomadas autonomamente pela associação que
congrega os participantes, a qual gerencia todo o processo de construção. A autogestão tem
sido uma bandeira de luta, na qual os movimentos reivindicam a condução e a gestão dos
processos habitacionais pelas próprias comunidades. É um processo politizador que além de
construir a casa, constrói o cidadão que nela vai morar e fortalece os laços comunitários para
novas lutas.
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O conceito de ajuda mútua, mais conhecido como mutirão, é quando um grupo se
junta de forma organizada para construir um determinado equipamento social ou casas. A
construção de moradia em regime de mutirão foi uma importante experiência iniciada em São
Paulo no inicio dos anos 1980 e a partir de 1990 esta experiência ganha não só grande
visibilidade, como também se tornou um dos principais instrumento dos movimentos
populares para conquista da Moradia digna.
Inicialmente, como foi descrito acima, as lutas dos movimentos eram por terra, casa e
lotes urbanizados. No Brasil, uma referencia importante do avanço na relação política entre
governo local e movimentos sociais, foi em São Paulo, no governo de Luiza Erundina (19891992) do PT, onde a administração municipal apoiou os movimentos de moradia
incorporando as propostas de mutirão e autogestão como um conteúdo inovador de política
habitacional. O grande destaque desta experiência foram os mutirões com autogestão,
desenvolvidos através do programa conhecido como FUNAPS2.
Estas experiências precursoras dos movimentos de luta por moradia de São Paulo
tiveram como modelo o cooperativismo uruguaio, importante referencia de cooperativismo
habitacional, cuja forma de construção por ajuda mútua e autogestão passou a ser alternativa
para os setores da população organizados em sindicatos de trabalhadores.
Esta experiência de São Paulo foi tão importante no fortalecimento da luta dos
movimentos de moradia, que incitou os mesmos para a elaboração do projeto de lei do Fundo
Nacional de Habitação Popular, com mais de um milhão de assinaturas. Estes três conceitos
(participação, autogestão e ajuda mútua) e a influência da experiência uruguaia influenciaram
os técnicos no apoio dos movimentos para o desenvolvimento de metodologias para
construção e organização comunitária.
Assim, os movimentos de moradia organizados em entidades, vêm estabelecendo
relações de interlocução e convivência com outros movimentos sociais, igreja e partidos
políticos, ONGs e assessorias técnicas e finalmente com o Estado, em todo Brasil,
compartilhando processos participativos com o objetivo de consolidar a produção social do
habitat.
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Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal ou FUNACOM que viabilizou o
estabelecimento de convênios com grupos organizados de famílias em associações de moradores de construção
por mutirão e autogestão.
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Vale destacar a participação dos movimentos de moradia na Secretaria Latino
Americana de Vivienda Popular – SELVIP, entidade articuladora dos movimentos de moradia
da América Latina, criada em 1991, que defende a autogestão como uma alternativa de
política habitacional. Esta articulação se faz importante porque possibilita a construção de
uma rede de movimentos de moradia que intercambiam experiências e conhecimentos.
A INCIDÊNCIA DO FNRU
Com o debate da questão urbana inserido na pauta dos movimentos sociais em meados
da década de 1980, diversos movimentos uniram-se com a expectativa de influenciar o
processo de elaboração da nova Constituição Federal (1988) trazendo o princípio da “função
social da propriedade” e o instrumento do “usucapião urbano para fins de moradia”.
De acordo com Rolnik (1995), as resistências enfrentadas no Congresso Nacional para
aprovação da Constituição foram diversas, como resultado da luta dos movimentos terminou
que na Carta Constitucional foram incorporadas algumas demandas populares ao sistema
urbanístico, reforçando o papel do Estado e de suas diferentes instâncias, na condução da
política urbana. Nesse sentido, no capítulo “Da Política Urbana”, da Constituição Brasileira,
apenas dois artigos foram incluídos, (182 e 183) e mesmo assim, ainda dependiam de
regulamentação legislativa. Apenas em 2000, a emenda constitucional foi aprovada, incluindo
a moradia como um direito social fundamental (sendo equiparada à saúde e educação).
Importante destacar o papel exercido pelos movimentos sociais no processo de
construção da política nacional de desenvolvimento urbano, e o FNRU como principal
expressão dos movimentos sociais em torno da mobilização para implementar leis, programas
e projetos que promovam a reforma urbana, a gestão democrática e a promoção do direito à
cidade. Com atuação nacional, estas entidades vêm construindo alternativas e lutando pela
participação em diversos níveis de atuação.
Assim, desde 1988, pouco a pouco os movimentos sociais urbanos e o FNRU,
envolvem-se nos processos de proposição de alternativas de políticas públicas e de legislação
que contemplem os interesses populares. De forma a cada vez mais conquistar espaços e
instrumentos de participação institucional, adquirindo o reconhecimento como sujeito político
que intervém e negociam com outras forças sociais.
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A LUTA PELA CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA POLÍTICA DE HABITAÇÃO
POPULAR
Com base nas experiências de mutirão que estavam em curso em São Paulo, no
período de 1989-92, o programa FUNAPS, contando com as influências do sistema uruguaio
e com a necessidade de ampliar o programa de habitação por autogestão, os movimentos de
moradia assumiram uma nova postura com o governo. A cada reivindicação começavam a
propor diretrizes, programas e projetos alternativos implementados pelos órgãos
governamentais. Como conseqüência desta nova postura, os movimentos formularam o
Projeto de Lei de Iniciativa Popular do Fundo Nacional de Moradia Popular. Destacamos
aqui, esta iniciativa como uma das principais experiências geridas pelos movimentos de
moradia, como uma alternativa à política oficial.
Desde a promulgação da Constituição, a iniciativa popular virou um instrumento que
viabilizou a participação direta da sociedade, no sentido de apresentação de propostas de
interesse da população, aperfeiçoando os mecanismos de representação política. Ao
apresentar o primeiro Projeto de Lei de Iniciativa Popular, o conjunto dos movimentos de
moradia com o FNRU fez emergir o tema da habitação popular como uma questão nacional,
que atinge a grande maioria dos moradores das cidades.
A proposta tinha em vista a criação de um Fundo com recursos onerosos e
subsidiados, que apontava o atendimento à população de baixa renda e seria gerido por um
Conselho com participação popular. O projeto foi apoiado por inúmeras lideranças políticas,
porém este projeto teve uma forte reação da equipe econômica do governo e só foi aprovada
14 anos depois. Durante todo esse período, os movimentos acompanharam sua tramitação e
pressionaram a Câmara por sua aprovação.
A partir de 2003 com o início da gestão de Lula, retomaram-se as negociações com o
Governo e com o Congresso Nacional, a qual ainda encontravam obstáculos para a sua
aprovação do projeto de lei e só então em 2005, com a Lei 11.124 / 05 foi sancionado o
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, que tem por objetivo implementar
políticas e programas que promovam o acesso à moradia digna para a população de baixa
renda. Através deste Sistema foi instituído o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
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e só então instalado em julho de 2006. Entretanto as associações e cooperativas só puderam se
submeter a avaliação para acessar este fundo a partir da aprovação da Lei 11.578/07 em 2007.
Podemos afirmar que desde o início do governo Lula (2003), este novo modelo de
gestão participativa ganhou corpo, baseado na mobilização de conferências e na
institucionalização de conselhos de políticas setoriais. A criação do Ministério das Cidades,
em 2003, fruto de reivindicação histórica dos movimentos sociais, veio em direção da
superação da lacuna de articulação governamental e para superar a fragmentação das políticas
de desenvolvimento urbano. Apesar de ainda atuar de maneira bastante setorial, há iniciativas
de construção de políticas de maneira mais integrada. O Ministério das Cidades, na área de
habitação, atuou em dois eixos principais, um em curto prazo, revendo os programas
existentes e ampliando os recursos investidos e em longo prazo está modificando a
regulamentação do setor.
Outras iniciativas que apontam para o caminho de uma política mais integrada são as
Conferências das Cidades, em 2003, 2005, 2007 e a ultima agora em junho de 2010. A 1ª
Conferência Nacional das Cidades, realizado em 2003, num amplo processo de mobilização
social, consolidou as bases da atuação do governo e propôs a criação e composição do
Conselho Nacional de Habitação, instalado em 2004 e ainda da Campanha Nacional do Plano
Diretor Participativo. Com isto, deu-se início ao processo de construção da política nacional
de desenvolvimento urbano com a adoção de estruturas participativas de acordo com os
princípios defendidos pelos movimentos sociais urbanos em torno do FNRU.
Na segunda edição, a Conferência Nacional das Cidades centrou-se em aspetos da
política
de
desenvolvimento
urbano,
como
financiamento,
questão
federativa,
desenvolvimento regional e controle social. A terceira edição por sua vez, tratou da
intervenção urbana contando com a integração de políticas, o controle social, os recursos e o
Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU), inserindo em seus debates a
prevenção e mediação de conflitos urbanos. Por último, a quarta edição, que aconteceu agora
em junho de 2010, tratou sobre os Avanços, Dificuldades e Desafios na Implementação da
Política de Desenvolvimento Urbano.
O Conselho das Cidades é a primeira grande experiência de participação institucional
em nível nacional na área do desenvolvimento urbano. Um conselho com uma composição
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inovadora com maioria dos participantes da sociedade civil, onde cerca de 42% de seus
membros são do poder público – federal, estadual e municipal – e os outros 57% de diversos
segmentos da sociedade civil. Destes, o segmento com maior representação é o movimento
popular. Participam ainda, empresários e trabalhadores da área, ongs e entidades acadêmicas e
profissionais.
Pouco a pouco, com o apoio e luta dos movimentos de reforma urbana representados
no ConCidades, foram se incorporando novos elementos para a implantação da PNH 3.
Resultado das pressões dos movimentos sociais, o Ministério das Cidades criou em 2004 o
Programa Crédito Solidário voltado para cooperativas e associações de fins habitacionais para
o atendimento da população de baixa renda prevendo a concessão de financiamento
diretamente ao beneficiário a juros zero com recursos do Fundo de Desenvolvimento Social.
No entanto, o Programa Crédito Solidário, encontrou diversas dificuldade para se efetivar, em
especial nas exigências burocráticas e na falta de cultura do governo federal para tratar com
organizações sociais e com a autogestão.
Foi também criada em 2004, a Resolução 460 do Conselho Curador do FGTS, que
começou a dar resultados em 2005, enfim possibilitando a ampliação dos subsídios
habitacionais com recursos desse fundo, resultando na ampliação do atendimento à população
de renda mais baixa. Mas, para acessar os recursos desta resolução os movimentos precisam
estabelecer parcerias com municípios, estados ou ONGs, pois a mesma condiciona a
concessão dos financiamentos à oferta de garantias na forma de cauções que podem ser
mensuradas em dinheiro, em terreno ou em bens e serviços, no caso de poder público esta
garantia pode ser também o comprometimento do orçamento em lei municipal.
Apenas em 2007, na 3° Conferencia Nacional das Cidades a bandeira dos movimentos
enfim foi reconhecida após longa jornada de ocupações. A Lei 578/2007 foi sancionada,
alterando a Lei 11.124/2005, viabilizando o acesso direto dos movimentos, através de
associações e cooperativas aos recursos do FNHIS. Finalmente, em 2008, após muita
3
A Política Nacional de Habitação foi elaborada pela Secretaria Nacional da Habitação do Ministério das
Cidades entre 2003 e 2004, com a consultoria do Instituto Via Pública. Foi aprovada em dezembro de 2004 pelo
ConCidades.
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negociação, foi aprovado no Conselho Gestor do FNHIS o Programa de Habitação de
Interesse Social – Ação de Apoio à Produção Social da Moradia4.
Apesar dos avanços ocorridos com a abertura de espaços de participação social e da
criação de uma nova política de habitação, com a crise econômica o governo Lula decidiu
aplicar os recursos públicos para dinamizar a construção civil e isto acabou atropelando o
processo de construção do PlanHab5, que seria divulgado no início de 2009, mas em seu lugar
foi lançado o Programa Habitacional de Governo Minha Casa Minha Vida.
Do subsídio disponibilizado por este programa, com recursos da União e do FGTS,
97% são destinados à oferta e à produção direta por construtoras privadas, enquanto somente
3%, restrita à faixa de 0 a 3 salários mínimos, esta faixa de renda é a que menos interessa às
empresas privadas, poderão ser acessados por entidades sem fins lucrativos, cooperativas e
movimentos sociais, através do programa MCMV – Entidades, para a produção de habitação
urbana e rural por autogestão. Vale destacar que este programa MCMV - Entidades veio
como uma resposta do governo aos movimentos, já que o programa Crédito Solidário com seu
excesso de burocracia inviabilizou o atendimento à população de baixa renda e o Programa
Ação de Apoio à Produção Social da Moradia, ainda está em fase muito inicial para
demonstrar algum resultado.
Respaldado com a justificativa da dificuldade, burocracia e lentidão dos poderes
públicos e de que os movimentos com seus mutirões não teriam capacidade de responder a
uma demanda tão alta, (1 milhão de moradias) o governo lançou o pacote apostando na
iniciativa privada, dirigindo o mercado imobiliário à demanda de baixa renda e para que o
mercado incorpore os setores antes não alcançados disponibilizou fundos públicos para
produção via mercado.
4 O Programa de Habitação de Interesse Social – Ação de Apoio à Produção Social da Moradia foi
construído a partir de proposta elaborada pelo FNRU, pela União Nacional de Moradia Popular
(UNMP), pela Central de Movimentos Populares (CMP), pela Conferencia Nacional das Associações
de Moradores (CONAM), e pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM).
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O PlanHab foi elaborado entre julho de 2007 e janeiro de 2009. Tem por objetivo planejar as ações
públicas e privadas, em médio e longo prazo, para equacionar as necessidades habitacionais em
âmbito nacional, definir as prioridades regionais de intervenção e os critérios para a distribuição
regional dos recursos de acordo com o perfil do déficit habitacional. A formulação deste plano passou
por um processo participativo, que envolveu todos os segmentos da sociedade civil.
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Diante deste atual cenário nos remetemos aqui a concepção de Estado ampliado de
GRAMSCI, apud CARNOY (1986):
“...por Estado deve-se entender, além do aparelho governamental,
também o aparelho privado de hegemonia ou sociedade civil...na
noção de Estado entram elementos que também são comuns à noção de
sociedade civil... neste sentido, poder-se-ia dizer que o Estado =
sociedade política + sociedade civil, isto é hegemonia revestida de
coerção.”
Amparados sobre esta concepção de estado ampliado, concluímos que se por um lado
o governo deseja que os subsídios favoreçam o deslocamento do mercado imobiliário para
produção de habitação da população pobre, no intuito de se legitimar, por outro o mercado
quer aproveitar os subsídios para obter maiores ganhos econômicos.
O governo se apropriou da ideologia da população sobre a casa própria, ao obter a
adesão das classes populares, dirigindo suas atenções para a conquista da propriedade privada,
através da hegemonia que se expressa pela ideologia da elite dominante, desviando a atenção
sobre as lutas sociais e dificultando a realização de uma mudança mais profunda, como uma
reforma urbana.
A criação deste programa enfraqueceu mais uma vez a luta dos movimentos, que com
recursos limitados, podem entrar numa grande disputa entre si. Ainda que os movimentos
estejam inseridos nos conselhos de habitação e das cidades, acabam funcionando de forma
dispersa à política pública, assumindo apenas o papel de entidades organizadoras de só uma
parcela da política pública, diga-se, de uma política de governo, que distorce toda uma
construção de uma política que permitiria a diminuição da desigualdade social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A democratização no Brasil ainda está em curso, da transição política à Constituição
de 1988, à eleição presidencial em 1989, à criação do Estatuto das Cidades em 2001, à criação
do Ministério e Conselho das Cidades em 2003, muitos passos foram dados no sentido da
conquista e consolidação dos instrumentos democráticos. Novas relações se estabelecem entre
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os sujeitos da sociedade civil e desses com o Estado, especialmente regionalmente, onde se
observa várias experiências inovadoras de implantação de políticas públicas com participação
da sociedade.
Todavia, diante de tantos avanços, nos deparamos com uma política de governo que
provoca um enfraquecimento do processo participativo, a elaboração do programa Minha
Casa Minha Vida, que segundo relatos de vários autores,contou apenas com a participação do
governo federal e de grupos empresariais, nesta elaboração não foram consultados o Conselho
das Cidades, nem o Conselho do FNHIS. O FNHIS que deveria concentrar todos os recursos
da política de habitação de modo a uniformizar os critérios de acesso a habitação de baixa
renda foi desfavorecido.
Na análise sobre a inserção dos movimentos sociais urbanos através do FNRU nas
políticas de habitação, apesar dos grandes avanços da participação do FNRU na criação de
vários instrumentos da política urbana, os interesse privados na busca pelo crescimento
econômico mantém a hegemonia sobre as decisões nos recursos públicos e as políticas
sociais, findando que a grande maioria de programas e projetos são ainda estabelecidos, via de
regra, sem a participação dos beneficiários e dos diversos setores sociais.
O fortalecimento de atores políticos se faz imperativo, através de um processo
educativo de construção de um modo de vida coletiva, achamos que é pertinente a incidência
dos movimentos com o apoio do FNRU nos espaços institucionais para que se concretize de
forma institucional a mudança estrutural das políticas públicas e dos mecanismos de gestão.
Para que esta mudança estrutural aconteça acreditamos que é necessária também a
participação da sociedade civil através da Produção Social do Habitat como estratégia da
sociedade civil para buscar maior autonomia e incidência no cenário político e assim provocar
as mudanças necessárias para um modelo de sociedade mais justa.
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