ELZA MARIA DO SOCORRO DUTRA COMPREENSÃO DE TENTATIVAS DE SUICÍDIO DE JOVENS SOB O ENFOQUE DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Psicologia SÃO PAULO 2000 ELZA MARIA DO SOCORRO DUTRA COMPREENSÃO DE TENTATIVAS DE SUICÍDIO DE JOVENS SOB O ENFOQUE DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Psicologia Área de concentração : Psicologia Clínica Orientador: Prof. Dr. José Tolentino Rosa São Paulo 2000 COMPREENSÃO DE TENTATIVAS DE SUICÍDIO DE JOVENS SOB O ENFOQUE DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA ELZA MARIA DO SOCORRO DUTRA BANCA EXAMINADORA ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ Tese defendida e aprovada em: _____/_____/________ À minha filha Maria mais feliz da Luisa, projeto minha existência, pessoa que me ensina, a cada dia, a renovar as esperanças na vida e no amor, muitas esquecidas. vezes por mim AGRADECIMENTOS À UFRN, pela oportunidade de capacitação, oferecida através do convênio entre o Departamento de Psicologia e a USP, o qual, embora desenvolvendo-se muitas vezes de forma limitadora e sofrida, finaliza com um saldo de enriquecimento e ampliação de saberes, resultado deste percurso. Ao muito estimado Prof. Dr. José Tolentino Rosa, meu orientador que, desde o início deste trabalho e ao longo dele, sempre expressou uma acolhida generosa, humanista e respeitadora às minhas idéias, certezas e incertezas, superando posições e lugares no campo teórico da psicanálise e permanecendo ao meu lado como companheiro e guia em direção a outras formas de compreensão do ser humano. À Profa. Dra. Henriette Morato, feliz surpresa neste meu percurso, representando um novo caminho para este trabalho e que, generosa e disponivelmente, ajudou-me a pensar e a repensar novas e antigas idéias e, assim, a perceber uma outra dimensão do ser. Aos professores e colegas Oswaldo Yamamoto e Denise Dantas que, em diferentes momentos deste trabalho, compartilharam comigo das interrogações teóricas e angústias que o acompanharam, contribuindo, com as suas opiniões e as suas presenças, para o enriquecimento das minhas reflexões e superação das inquietações que perpassaram a construção dos caminhos percorridos. Às funcionárias do Depsi, especialmente Régina, pela importante ajuda técnica para a consecução deste trabalho e aos meus colegas de convênio, pela cumplicidade e solidariedade que pudemos vivenciar durante esse trajeto, muitas vezes trilhado de forma penosa, porém com a alegria de nos sabermos juntos na amizade e companheirismo. À minha filha Maria Luisa que soube, dentro da sua intensa vivência de adolescente e com muita sabedoria, respeitar e aceitar os limites que esta tese impôs aos nossos momentos de vida compartilhada, incentivando-me a alcançar e a realizar os meus projetos. À Maria Luiza, psicanalista, presença importante nesse meu percurso, ajudando-me a desvelar os significados do ser e não-ser, tão intensamente vivenciados nesse momento de vida. Aos meus clientes e jovens desta pesquisa que um dia tentaram não viver e que, através da sua dor e desesperança, me ensinaram sobre a vida, a morte e a angústia de ter que ser, ajudando-me a reafirmar a crença na vida e na esperança. Morrer não é difícil. Difícil é a vida e o seu ofício. Maiakowski SUMÁRIO RESUMO ....................................................................................................................ix ABSTRACT ................................................................................................................x RÉSUMÉ ....................................................................................................................xi APRESENTAÇÃO ....................................................................................................xii CAPÍTULO I: INTRODUÇÃO ..................................................................................1 1.1 1.2 1.3 1.4 Estudos epidemiológicos e clínicos sobre tentativa de suicídio ...........................3 Justificativa ...........................................................................................................7 Objetivos .............................................................................................................11 Os questionamentos ............................................................................................12 CAPÍTULO II: ROGERS E HEIDEGGER: UM ENCONTRO POSSÍVEL PARA COMPREENDER TENTATIVAS DE SUICÍDIO? ..................................... 16 2.1 A teoria de personalidade de Carl Rogers .......................................................... 17 2.2 Sobre Gendlin e o Befindlichkeit ....................................................................... 33 2.3 Sobre a filosofia de Heidegger ........................................................................... 36 2.3.1 Do método fenomenológico heideggeriano .................................................... 37 2.3.2 Sobre a cotidianidade .......................................................................................41 2.3.3 Da angústia e das estruturas existenciárias ......................................................42 2.3.4 Da morte ..........................................................................................................47 2.4. Heidegger e Rogers: um encontro possível? ......................................................48 CAPÍTULO III: COMPREENSÃO DA ADOLESCÊNCIA .................................. 64 3.1 Definindo a adolescência ................................................................................... 64 3.1.1 Uma definição de identidade .......................................................................... 66 3.1.2 Breve retrospectiva acerca da Psicologia da Adolescência ............................ 71 3.2 Adolescência, Cultura e Violência .....................................................................72 3.3 Um outro olhar ...................................................................................................87 CAPÍTULO IV: SOBRE O MÉTODO .....................................................................92 4.1 A experiência como uma dimensão existencial do vivido ................................. 94 4.2 Experiência e Linguagem .................................................................................. 96 4.3 A experiência segundo o pensamento de Walter Benjamin ...............................98 4.4. Experiência e Interpretação .............................................................................103 4.5. Os Rumos da Fenomenologia ......................................................................... .108 4.6. Narrativa e depoimento: um encontro possível ............................................. 112 CAPÍTULO V: AS NARRATIVAS ....................................................................... 118 CAPÍTULO VI: COMENTÁRIOS E INTERPRETAÇÃO....................................161 CAPÍTULO VII: CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÕES .......................183 CAPÍTULO VIII: REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................190 RESUMO DUTRA, E. M. do S. Compreensão de tentativas de suicídio de jovens sob o enfoque da abordagem centrada na pessoa. São Paulo, 2000. 195p. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. O objetivo deste estudo foi compreender as tentativas de suicídio de seis jovens adolescentes, entre 15 e 20 anos, residentes em uma capital do nordeste brasileiro, através de uma ampliação teórica do enfoque da Abordagem Centrada na Pessoa, tomando-se como referência o constructo de self, da Terapia Centrada no Cliente desenvolvida por Carl Rogers, e propondo-se uma articulação com conceitos da ontologia de Martin Heidegger. A análise da experiência desses jovens foi feita sobre as próprias narrativas, obtidas, inicialmente, sob a forma de depoimentos. Os significados aí apreendidos foram interpretados e comentados sob a perspectiva fenomenológica e existencial, inspirada pelos referenciais teóricos do estudo e pela própria experiência intersubjetiva da pesquisadora, como participante ativa na relação pesquisador-pesquisado. Conclui-se que a experiência de quase-morte é vista como um reflexo do estar-no-mundo de modo inautêntico, podendo o self ser considerado como uma expressão desse modo de ser. A angústia, a alienação de si mesmo e o ser-para-a-morte estão presentes nas vivências desses adolescentes, desvelando o mundo físico, cultural e sócio-econômico no qual o ser-aí se vê lançado na sua facticidade. Ressalta-se que a interlocução entre Rogers e Heidegger foi importante para se ampliar a compreensão fenomenológica da experiência de quasemorte dos jovens participantes da pesquisa. Descritores: tentativa de suicídio; adolescente; intersubjetividade; Carl Rogers (1902-1987); Martin Heidegger (1889-1976). ix ABSTRACT DUTRA, E. M. do S. Understanding suicidal attempts of adolescents based on the client-centered approach. São Paulo, 2000. 195p. Doctoral Thesis. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. The objective of the present study was to understand the suicidal attempts of six adolescents, between 15 and 20 years old, residents in a capital city in the Northeast of Brazil, using a theoretical expansion of the Person-Centered Approach, based on the construct of "self", from Carl Rogers' Client-Centered Therapy, combined with concepts of Martin Heidegger's ontology. The analysis of the experience of these individuals was founded on their own accounts, which were initially given in the form of statements. The apprehended meanings were interpreted and commented under the phenomenological and existential perspective, inspired by the theoretical basis of the study and by the inter-subjective experience of the investigator, as an active participant of the respondent-researcher relationship. It was concluded that the experience of quasi-death is seen as a consequence of being-in-the-world in an unauthentic manner, the self considered as an expression of this way of being. Anxiety, self alienation and being toward death are present in the experiences of the teenagers, uncovering the physical, cultural, social and economic world in which the being-here finds itself thrown into its own facts of life. The dialogue between Rogers' and Heidegger's ideas was important in order to broaden the phenomenological understanding of the quasi-death experience of the participants. Key-words: attempted suicide; adolescent; inter-subjectivity; Carl Rogers (19021987); Martin Heidegger (1889-1976). x RÉSUMÉ DUTRA, E. M. do S. Compréhension de tentatives de suicide chez les jeunes sous le regard de l’approche centrée sur la personne. São Paulo, 2000. 195p. Thèse (Doctorat). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Comprendre les tentatives de suicide de six jeunes adolescents, de 15 à 20 ans, qui habitent une capitale do Nord-Est brésilien, à travers une ampliation théorique du regard de l’Approche Centrée sur la Personne, tout en ayant comme référence théorique la construction du self, de la Thérapie Centrée sur le Client développée par Carl Rogers, et en proposant une articulation avec des concepts de l’ontologie de Martin Heidegger, c’est ce qui contitue l’objectif même de cette étude. L’analyse de l’expérience de ces jeunes a été faite sur leurs narratives, obtenues tout d’abord sous forme de témoignage. Les significations sont interprétées et commentées sous la perspective phénoménologique et existentielle, inspirées des références théoriques de l’étude et de l’expérience intersubjective du rechercheur, en tant que participant actif dans le rapport rechercheur- recherché. On conclu que l’expérience de presque- mort est vue comme un reflexe de l’être- dans- le- monde de façon non authentique, le self pouvant être considéré comme ume expression de cette façon d’être. L’angoisse, l’aliénation de soi-même et l’être-pour-la-mort sont présents dans la vie de ces adolescents, qui dévoilent le monde physique, culturel et socio-économique dans lequel l’être se voit lancé dans sa facticité. Il est convient de souligner l’importance de l’interlocution entre Rogers et Heidegger pour aggrandir la compréhension phénoménologique de l’expérience de presque-mort auprès des jeunes participant de la recherche. Descripteurs: tentative de suicide; adolescent; intersubjectivité; Carl Rogers (19021987); Martin Heidegger (1889-1976). xi APRESENTAÇÃO Tenho pensado muito sobre suicídio e tentativa de suicídio entre os jovens. Também tenho discutido bastante, tanto em sala de aula quanto em palestras e eventos científicos; e até mesmo em entrevistas na mídia. Além de tudo, esse tema ainda me introduziu na questão da violência, que pode ser considerada a principal característica do ato suicida, uma vez que está fundado, quase sempre, numa ação de extrema violência que alguém comete contra si mesmo. Todo esse percurso me levou a pensar sobre os motivos que me conduziram a esse estudo. Primeiro, em relação ao suicídio, pois jamais me interessaria por esse tema antes, da forma como o faço agora. Na clínica, tive poucos contatos com pacientes suicidas. Já na minha formação, essa questão surgia em meio a tantas outras, não como um problema a ser compreeendido teórica ou metodologicamente; e sim como uma possibilidade que acontecia muito distante da nossa realidade próxima, como se não fosse comum o suficiente para que nos preocupássemos com isso. Mais tarde, quando a violência passou a ser reconhecida como a "figura" que xii norteia este tema, mais uma vez quis compreender, a partir da minha experiência, se haveria uma vinculação da violência com a minha história. Teria eu uma história de vida em que a violência marcava a sua presença? Imaginava que não. Mas sabia, sem que houvesse uma cognição acerca desse "saber", que algo me unia àquele estudo sobre o qual me debruçava agora. Sabia que essa ligação era de uma natureza vivida, forte e que me toma os sentidos, me coloca junto e igual a todos os casos dos quais me aproximo nesse estudo, sejam eles jovens que tentam morrer ou sejam aqueles jovens internos na FEBEM, que se rebelam de uma forma brutal, lutando por liberdade. Sinto-me distinta, mas semelhantemente parecida. E o que nos une é um sentimento de indignação, uma dor lancinante por sentir violentados os direitos de ser livre, de ver-se impedida de existir de forma autêntica, de ver cerceada a liberdade de existir de maneira autônoma; de não poder sentir o que se sente; de não poder falar o que se pode e precisa falar; enfim, de não poder ser o que se é. Esta é a mais sutil forma de violência, que pode culminar na dose excessiva de medicamentos ou no engatilhar a arma que acionará o tiro no suicida. Infelizmente, essa também pode ser a vivência dos adolescentes em alguns momentos da sua vida, tão marcada pelas alternâncias e ambivalências no seu viver, próprios dessa etapa de vida. Após esse mergulho em minha própria experiência como adolescente, consigo identificar um sentimento de angústia que muitas vezes foi presente em meus momentos de juventude e que ainda hoje, numa outra etapa de vida, é tão presente que consegue atualizar essa experiência no meu estar-no-mundo como adulta. Percebo o meu percurso através desse estudo como se houvesse embarcado numa canoa, ou num barco, semelhante àqueles dos esportes radicais, que inicia o seu trajeto numa parte tranqüila e bela do rio para, posteriormente, atravessar 13 cachoeiras caudalosas, correntezas e obstáculos no meio do caminho, jornada essa que exige que me segure bem nas bordas do barco, para não correr o risco de cair na água, pois essa aventura torna-se angustiante, em alguns momentos. Ao mesmo tempo, ao lado do medo de cair e da vontade de poder chegar em algum superar os obstáculos e ponto, há, também, a visão bonita e diversificada do que se encontra fora do rio, nas suas margens, nas coisas pelas quais vamos passando. Assim me sinto. Nesse momento da viagem, vejo-me mais esclarecida quanto aos meus motivos. Descubro uma dimensão adolescente na minha experiência. Posso desvelar, dentro de mim, toda a violência sentida e vivenciada, que sempre esteve lá, mas que nunca foi capaz de se mostrar. Estava guardada em algum ponto da minha experiência; era uma coisa sentida, mas ainda não dita. No entanto, como diz Gendlin (1978/79), essa experiência "chamou" a palavra. Esse "saber" chamou o tema suicídio, ligou-me a ele, conduziu-me a essa aventura, sem que eu "conhecesse", de forma consciente e articulada, o que me levava a isso. Essa clareza do meu estar-no-mundo dessa forma me reportou à adolescente que ainda vive em mim. E explica a sensibilidade, a mobilização com que me vejo abraçando a causa dos jovens. Descobri que esta também é uma causa minha. Tento "reparar" a violência antiga, hoje, no presente. Sou capaz de enxergar no jovem adolescente a angústia que permeia toda essa fase de transição. Penso que a adolescência sempre será um período de muitas angústias, que podem ser acompanhadas pela violência. Tentar "ser" o que ainda não se é. Presenciar , no próprio corpo, as mudanças que surgem e que colocam o jovem diante de um novo 14 esquema corporal, diante da exigência e necessidade de construir uma outra consciência do seu corpo, assimilar um "estar-no-mundo" distinto do vivido até então. Conviver com a voz que se modifica, com algo sobre o qual ele não tem domínio. Perceber a sexualidade aflorando, no desejo adulto pelo outro, objeto do desejo, revelado na concretude do funcionamento fisiológico do seu corpo, é extremamente angustiante. Além de tudo, tais mudanças "solicitam" uma postura diante do mundo diferente, o que é lembrado todo o tempo pelas pessoas do seu convívio. Gera-se uma expectativa de um ser diferente do ser da infância. Esperamse comportamentos condizentes com o novo ser-adulto, em alguns momentos; e espera-se que o ser-criança permaneça, em outros momentos. A ambivalência própria desse momento também se faz presente nos pais e na sociedade em que o jovem vive. Diria que é a "época da contradição": dele e dos outros, pois nessa fase, em que esse jovem reformula os seus valores, busca identificações, separa-se dos pais para poder se afirmar enquanto ser adulto, autônomo e, assim, conquistar um espaço próprio, é também nesse momento que ao buscar "sair" de casa, no sentido simbólico, principalmente, que ao chegar "fora", ele não encontra outras referências que posssam ocupar aqueles espaços "perdidos", ou que os ocupam de forma nefasta ou destrutiva. Assim, posso dizer que este estudo foi inspirado pelos jovens que se mataram, por aqueles que tentaram se matar e pela angústia do adolescente que sempre se faz presente, de forma singular, nesse período da existência. E agora reconheço que a maior inspiração foi mesmo aquela que só veio se revelar nesse momento: a minha própria experiência de ser adolescente. 15 CAPÍTULO I INTRODUÇÃO As mortes voluntárias têm sido consideradas, em alguns países do primeiro mundo, como um problema de saúde pública. No Brasil, embora as taxas de óbitos não se assemelhem às daqueles países, pois ainda são consideradas baixas, já é possível ver as mortes por suicídio como uma questão também de saúde pública, por se constituírem num problema que se agrava a cada dia. No que se refere às tentativas de suicídio, estas têm aumentado em todo o mundo. Em se tratando do Brasil, embora a maioria dos estudiosos do assunto concordem que os registros dessas ocorrências são subestimados, ainda assim é possível considerar as taxas bastante altas. Em algumas regiões, como se pode ver nos estudos de Andrade (1979), Cassorla (1984; 1985), Teixeira (1997) entre outros, as tentativas de suicídio têm uma freqüência alarmante. Em Campinas, Cassorla (1984b) encontrou 150 casos para cada 100.000 habitantes. O mais preocupante desses estudos, tanto os internacionais quanto os 16 realizados no Brasil, é a constatação de que a tentativa de suicídio é mais comum entre os jovens com menos de 27 anos e, com raras exceções, as mulheres são maioria. Os autores citados acima também verificaram que a uma tentativa de suicídio geralmente outras se seguirão, podendo uma delas ser fatal. Em razão dessas evidências, os estudos sobre as condutas autodestrutivas, de uma forma geral, têm buscado uma compreensão mais profunda dos aspectos psíquicos que possam ter uma relação com essas condutas, almejando, assim, um conhecimento mais consistente que possa nortear estratégias preventivas no contexto da saúde e da educação. Durkheim (1992), considerava suicídio, ... todo o caso de morte que resulta directa ou indirectamente de um acto positivo ou negativo praticado pela própria vítima, acto que a vítima sabia dever produzir este resultado. A tentativa de suicídio é o acto assim definido, mas interrompido antes que a morte daí tenha resultado. (p.10). Para este autor, o suicídio e a tentativa de suicídio se equivalem. Pensamos que a tentativa de suicídio pode ser considerada como um suicídio que fracassou. Mesmo porque a questão da intensidade da intenção em um e outro ato é difícil de ser verificada. A propósito disso, retomo mais uma vez este autor, ao colocar que , A intenção é algo de demasiado íntimo para poder ser atingida do exterior, a não ser por aproximações grosseiras. Até da observação interior ela se oculta. Quantas vezes nos enganamos sobre as verdadeiras razões que nos levam a agir! Quantas vezes explicamos por paixões generosas ou por considerações elevadas atos que nos foram inspirados por sentimentos mesquinhos ou por uma rotina cega! (p.9) 17 A diversidade de resultados e opiniões científicas a respeito da intenção da conduta autodestrutiva tem sido extremamente responsável pela dificuldade de se alcançar um entendimento sobre essas condutas. E também um dos motivos que fazem muitos autores, entre os quais Feijó (1998), a questionarem a validade de resultados obtidos através de autópsias psicológicas1, sabendo-se que jamais alcançarão os verdadeiros motivos e intenções de quem cometeu o suicídio. Assim, como conhecer a experiência de querer morrer e que de fato pode levar à morte? Pensamos que a tentativa de suicídio é a principal via a nos conduzir para essas questões, já que aquele que viveu esse momento é quem poderá atribuir o seu significado a este ato. O que importa deixar claro, nesse momento, diz respeito ao que consideramos como tentativa de suicídio, a qual entendemos como um suicídio interrompido. O entendimento da Organização Mundial de Saúde (OMS) equivale ao adotado neste estudo, uma vez que a tentativa de suicídio é considerada como todo ato em que o indivíduo causa alguma lesão a si mesmo, qualquer que tenha sido a sua intenção e conhecimento do motivo que o levou a isto. Portanto nos interessa, neste estudo, o suicídio não consumado, ou seja, a TENTATIVA DE SUICÍDIO. 1.1 Estudos epidemiológicos e clínicos das tentativas de suicídio Consideramos importante apresentar, brevemente, alguns estudos epidemiológicos e clínicos sobre as tentativas de suicídio. Tal iniciativa poderá contribuir para que se tenha uma noção mais concreta e realista da existência desse 1 Usar a expressão "autópsia" psicológica leva a pensar o quanto a questão da intenção da morte é de fato negligenciada em vida, talvez pelo fato de que não se possa " ver" e nem "admitir" a possibilidade da morte própria, e ver a do outro nos colocaria em contato com nossa própria angústia da finitude. Autópsia remete a encontrar a morte "do" e no "outro", somente depois dele próprio morto e interditado em seu sentido e linguagem. Autópsia é falar do outro pelo outro "em si". 18 fenômeno não só no Brasil, mas em todo o mundo, além de situar o nosso objeto de estudo, principalmente nesse momento inicial, em relação não só aos aspectos sóciodemográficos nele envolvidos, mas também aos determinantes de ordens diversas relacionados a esse ato. A estabilidade de tendências e características reveladas nos estudos epidemiológicos sobre o suicídio não se revelam quando se trata das tentativas de suicídio. De acordo com alguns autores (Andrade, 1979; Barros, 1991; Cassorla, 1984, 1991 e Nunes, 1988), as características epidemiológicas da população que tenta o suicídio não são as mesmas daqueles que o cometem. Esses autores constataram que em relação às tentativas, as mulheres as cometem mais do que os homens, sendo os jovens com menos de 30 anos os mais suscetíveis a esse ato; e, o que é mais alarmante: estima-se que o número de tentativas de suicídio é bem maior do que o de suicídios exitosos. Segundo Cassorla (1985; 1987; 1991), para cada suicídio consumado existiriam de oito a dez vezes mais o número de tentativas. Entre os jovens de 15 a 19 anos, esta proporção chega a ser 50 a 120 vezes maior. Oliveira e Nishiyama (1997) verificaram em estudo realizado no Paraná, que a freqüência maior das tentativas de suicídio ocorriam entre mulheres jovens, com idade entre 20 e 29 anos, residentes em zona urbana e apresentando como motivos para o ato os conflitos conjugais e familiares. Os medicamentos foram utilizados por essas pessoas na tentativa de morte. Mello e Abreu (1990), analisando os casos atendidos num pronto- socorro em São Paulo, também constataram uma freqüência maior entre as mulheres, embora não tenham observado nenhuma diferença significativa em relação às faixas etárias. Neste estudo os autores chamam atenção para o grande número de ocorrências em 19 adolescentes de 10 a 19 anos. Esses autores fazem referências a estudos realizados na comunidade européia, onde verificou-se maior ocorrência de tentativas de suicídio entre mulheres de 15 a 19 anos e em homens de 30 a 34 anos. Nunes (1988), encontrou resultados semelhantes na sua pesquisa: as tentativas foram mais freqüentes entre pacientes do sexo feminino, 76,8%, e com idade abaixo dos 24 anos (68,8%); entre estas, 60,6% tinham entre 15 e 24 anos. O método também confirma resultados de outros estudos, onde se vê que os medicamentos, de uma forma geral, são mais utilizados para esse fim. Quanto aos motivos, Cassorla (1991) encontrou, nas histórias de vida de adolescentes que tentaram suicídio, brigas, problemas com a família, na escola e no trabalho. Em outro estudo, Cassorla (1984), encontrou a desagregação familiar, de onde as jovens que tentaram o suicídio vinham, em sua maioria, mostrando perturbações emocionais e depressão desde a infância. Bastos (1974) observou que, quanto ao meio utilizado nas tentativas de suicídio, em primeiro lugar estão as substâncias químicas, seguidas de arma de fogo e incêndio nas vestes. Miranda e Queiroz (1991), viram que as tentativas de suicídio cometidas pelos pesquisados em seu estudo, alunos de um curso de medicina, 2,3% destas aconteceram quando eles tinha entre 15 e 19 anos (as mulheres) e antes dos 15 anos (os homens). Quanto ao método, a maioria utilizou substâncias tóxicas; em segundo lugar, precipitação de lugares elevados. Resultado semelhante foi encontrado em estudo2 realizado com estudantes de Psicologia no RN, quando se 2 Elza Maria do S. Dutra. Ideação e tentativa de suicídio entre estudantes de Psicologia.. Relatório de Pesquisa apresentado à PPPg (Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação), UFRN, Natal, 1998. 20 verificou que 4,9% dos alunos haviam cometido tentativa de suicídio e, dentre estes, 4,2% o fizeram entre os 13 e 15 anos. Kotila e Lonnquist (1987)3, citados por Miranda e Queiroz (1991), mostraram que os adolescentes que tentaram suicídio mais de uma vez tinham como origem famílias mais pobres e mal integradas, apresentando problemas de adaptação decorrentes de desordens de personalidade e estiveram em tratamento psiquiátrico. Botega e outros (1995) verificaram, em estudo realizado num pronto- socorro de um hospital universitário, que a clientela atendida por tentativa de suicídio tinha, em média, 27 anos; 70,5% eram do sexo feminino e a maioria residia em zona urbana. A ingestão de medicamentos ocorreu em 73% dos casos. Quanto aos motivos, as pessoas relataram a ocorrência de uma briga com pessoa próxima no mês que antecedeu a tentativa de suicídio. Os autores (op.cit. p.24), observaram que os pacientes atendidos tiveram o ato precipitado por situações de crise, envolvendo discussões e rompimentos com pessoas significativas para o paciente. Freqüentemente, isso ocorreu em um contexto onde se mesclam dificuldades de ordem pessoal, familiar e social. Em relação ao Rio Grande do Norte, em pesquisa4 realizada nos boletins de ocorrência do Hospital Geral do Estado, verificou-se que no ano de 1997, foram atendidas, no Pronto Socorro, 251 pessoas que haviam tentado o suicídio. De maneira geral, os números confirmam as características reveladas em outros estudos, sendo as mulheres, 62,9%, as que mais cometeram este ato. A maioria das pessoas 3 KOTILA, L. e LONNQUIST, J. Adolescents who make suicide attempts repeatedly. Acta Psiq. Scand., 76: 386-393, 1987. 4 Elza Maria do S. Dutra. Características epidemiológicas das tentativas de suicídio no RN.. Relatório de Pesquisa apresentado à PPPg (Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação), UFRN, Natal, 1999. 21 que tentaram suicídio reside na capital (70,9%), têm entre 15 e 30 anos (64,2%) e é formada por solteiros; quanto ao método utilizado, a ingestão de medicamentos é mais freqüente. Como se pode constatar através dos estudos citados, a tentativa de suicídio é mais freqüente do que pensa a maioria das pessoas, não só nos países chamados de primeiro mundo, mas também no Brasil. Contudo, o mais preocupante nesses resultados é a constatação de que são os jovens, em sua maioria as mulheres, aqueles que mais buscam a morte voluntária. Tais evidências nos fazem lembrar o filósofo existencialista Albert Camus (1952), ao afirmar que a única questão realmente filosófica diz respeito ao suicídio, já que esse ato coloca em evidência a vida, se vale a pena ou não ser vivida. 1.2 Justificativa A repercussão de uma tentativa de suicídio envolve reações diversas. Um ato dessa natureza pode ser ignorado, negado ou encoberto pelas pessoas que dele tomam conhecimento, como os médicos, amigos e familiares. No entanto, sempre causa alguma perplexidade, principalmente quando o autor é um jovem. Tal fato torna este ato ainda mais incompreensível, considerando-se a sociedade em que vivemos, na qual ainda persiste o mito da "juventude feliz", reforçado por valores que privilegiam a juventude, a beleza e a riqueza, entre outros tantos mandatos de vida deste final de século. São esses valores os mesmos que poderão constituir-se em objetivos que poderão aprisionar aquele jovem que se perceba excluído de tal perspectiva e, assim, condenando-o a uma vida de angústia e insatisfações. Além de tudo, uma tentativa de suicídio é um acontecimento que mobiliza mais fortemente 22 conteúdos de ordem afetiva, moral e religiosa em todos aqueles que, de alguma forma, estão envolvidos em um acontecimento de tal natureza. A clareza dos motivos que me conduziram a esse tema só emergiu na etapa atual desse estudo. Antes, me despertou a curiosidade científica o significativo número de suicídios de adolescentes na minha cidade, alguns anos atrás, quando então, perguntamo-nos sobre os motivos que levariam um jovem a desejar interromper o processo de viver. Quais os aspectos sociais, afetivos e culturais que podem favorecer este ato? Como se constitui a subjetividade desse jovem que tentou o suicídio, qual a sua forma de estar-no-mundo, como ele se percebe nas suas relações afetivas, consigo e com os outros? Enfim, como seria a vivência de um jovem que deseja eliminar a sua vida, como é o seu estar-no-mundo dessa forma angustiada que o leva a não querer viver? Foram questões como estas que me fizeram desejar desenvolver esse estudo, numa tentativa para compreender com mais clareza os aspectos envolvidos nos questionamentos que me inquietavam. A partir desse momento, iniciamos os estudos acerca desta temática procurando conhecer, primeiramente, a estatística do suicídio no Rio Grande do Norte, cujos resultados podem ser conhecidos através de algumas pesquisas (Dutra, 1997 e 1998c). Nos estudos de natureza epidemiológica que empreeendemos até agora, ficou evidente uma realidade até então desconhecida no nosso estado: em onze anos, de 1985 a 1996, houve 567 ocorrências de suicídio, sendo 26,8% (152) delas, entre jovens de 10 a 24 anos, passando de três ocorrências em 1985 para vinte e nove (29) em 1996. Posteriormente, passamos a nos interessar pelas tentativas de suicídio e constatamos um número bastante significativo somente no ano de 1997, como já revelamos antes. Além de tudo, os resultados evidenciaram, junto a outros estudos de 23 regiões diversas do Brasil, uma tendência de aumento de tentativas de suicídio entre os adolescentes no nosso país. Não temos dúvidas de que somente esses números já seriam suficientes para se justificar o desenvolvimento de estudos sobre a TENTATIVA DE SUICÍDIO, e de forma contextualizada, a partir da nossa realidade sócio-cultural. Principalmente por se saber que o número de mortes devidas às causas externas, entre elas o suicídio, expressam, acima de tudo, o nível de saúde mental da sociedade onde ocorre o fenômeno, já que o número de óbitos inseridos nesta categoria também podem se constituir num indicador de saúde da população. No entanto, o que desejamos ressaltar é a revelação contida nos estudos sobre suicídio os quais mostram que o ato fatal geralmente foi precedido por uma ou mais tentativas de suicídio; este dado confirma a importância e a necessidade de se conhecer melhor a TENTATIVA DE SUICÍDIO. Nesse sentido, os estudos que permitem uma aproximação da vivência dos jovens pesquisados mostram-se de extrema importância, pois à medida em que o ser-no-mundo-com-outros se revele nesses jovens, práticas preventivas poderão ser pensadas a nível de saúde mental da sociedade, fundamentadas nas experiências subjetivas de quem as viveu, o que, sem dúvida, impede uma generalização desse conhecimento, mas, por outro lado, permitirá uma melhor compreensão da dinâmica psíquica que habita o ser-adolescente. O estudo proposto poderá contribuir de várias formas ao campo da Psicologia, seja nas dimensões teórica, acadêmica ou prática. Conhecendo-se mais sobre a forma de estar-no-mundo do adolescente que tenta o suicídio, certamente não só o campo do saber psicológico poderá ser acrescido por tais conhecimentos, bem como os resultados poderão ensejar reflexões a nível de prevenção no contexto da 24 saúde e educação; pois sabe-se que esta é uma das perspectivas que se configuram como das mais pertinentes quando se aborda a saúde mental, ou seja , o nível de atenção primária. Conhecendo-se mais o processo existencial que conduz o jovem a não querer viver, será possível empreender reflexões mais embasadas cientificamente e que possam ensejar o desenvolvimento de estratégias educativas e de saúde em escolas, unidades básicas da rede pública de saúde, junto aos trabalhadores da área de saúde e à população em geral, por exemplo, no sentido de informar, esclarecer, orientar e, principalmente, de acolher as angústias e preocupações acerca das questões problematizadas. Além de todos os argumentos apresentados até este momento, outras implicações do estudo planejado mostram-se igualmente válidas. Neste caso estamos nos referindo à formação do profissional da área de saúde. Sabe-se que esse profissional nem sempre recebe uma formação adequada para lidar com a morte, (Kovács, 1992; Cassorla, 1991b), principalmente com as condutas autodestrutivas, como as tentativas de suicídio; e aqui enfatizamos, principalmente, o psicólogo. Alguns estudos comprovam esta afirmação (Almeida, 1996; Dutra, 1999). Nestes, observou-se que a maioria dos psicólogos que atuam na rede pública de saúde não se sentem e nem se percebem habilitados para lidar com pacientes suicidas. Portanto, outra das implicações de um estudo de tal natureza se refere à formação desses profissionais, já que, além deste trabalho possibilitar a divulgação de um tema ainda tão cercado de tabus e preconceitos, poderá fornecer subsídios para a formação do profissional da área de saúde, visando uma formação mais adequada e que atenda às demandas dessa realidade com a qual nos deparamos atualmente. 25 1.3. Objetivos Aliada aos argumentos expostos anteriormente, situados que estão muito mais no âmbito do ensino e pesquisa, está a nossa prática clínica, que vem se norteando, ao longo desses anos de profissão, através de princípios humanistas e existenciais. De acordo com a perspectiva humanista -existencial que fundamenta a Abordagem Centrada na Pessoa, o ser humano é considerado sob uma ótica positiva da natureza humana, atribuindo-se-lhe uma essência eminentemente construtiva e uma tendência5 para que se desenvolva em direção ao crescimento e auto-realização e tendo como direcionador dessa tendência, o self (Rogers, 1975). O contato com a realidade da tentativa de suicídio gerou, a partir de então, inúmeras reflexões em relação à articulação desses princípios com os atos autodestrutivos, como a tentativa de suicídio. O que levaria o jovem a atingir o máximo da autodestrutividade, expressa no suicídio e na tentativa de suicídio? Como seria vivenciada a existência por aqueles que chegam a um nível de sofrimento tal que os tornam desesperançados com a vida e assim tentam eliminá-la? A partir desses questionamentos e ao longo desse estudo, tomamos conhecimento das idéias de Heidegger na sua ontologia, o qual representou uma luz para o entendimento da questão objeto deste estudo, aliado ao pensamento de Rogers. Assim, o nosso objetivo constitui-se numa tentativa de compreensão da experiência de jovens que tentaram o suicídio. 5 Para Rogers (1975, p. 159), " todo organismo é movido por uma tendência inerente para desenvolver todas as suas potencialidades e para desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e seu nriquecimento". Esta noção, a tendência atualizante, corresponde ao postulado principal em que se apóia a Terapia Centrada no Cliente. 26 Portanto, interessa-nos interrogar para conhecer a experiência daquele jovem que tentou o suicídio, a fim de encaminhar a compreensão da intenção que leva a um ato autodestrutivo. Podemos definir o nosso objetivo, neste trabalho, como uma tentativa de conhecer, tanto quanto possível, a experiência de alguns jovens que tentaram o suicídio, almejando obter uma compreensão dos significados que eles atribuem a esse ato. 1.4. Os questionamentos Antes de explorar mais detalhadamente as questões colocadas, é importante esclarecer melhor a origem desses questionamentos. A escolha desse novo objeto de estudo no doutorado, a tentativa de suicídio, levou-nos a buscar, na prática, uma maior atenção, ou, melhor dizendo, ensejou uma postura mais atenta aos problemas teóricos, filosóficos e metodológicos que surgiram a partir de então. Buscamos experiências profissionais específicas, como o trabalho desenvolvido no Hospital Geral do Estado, quando tivemos oportunidade, durante um semestre e através de um Projeto de Extensão6, de prestar atendimento aos pacientes hospitalizados em função de tentativas de suicídio. Essa atividade teve continuidade na Clínica-Escola da UFRN, onde os pacientes oriundos do hospital continuavam o seu tratamento, já que a alta da hospitalização não supunha qualquer tipo de acompanhamento, uma vez que a instituição não desenvolve atividade ambulatorial. Além dessas atividades, a prática em consultório privado também foi enriquecida com esse tipo de demanda, propiciando, desse modo, uma importante articulação da prática com a teoria. Durante as experiências vivenciadas nesse tempo, 6 Elza M. S. Dutra: Intervenção de Crise nas Tentativas de Suicídio. Relatório de Projeto de Extensão, apresentado à PROEX (Pró-Reitoria de Extensão), UFRN, 1998. 27 percebemos, com clareza, que algumas questões emergiam nesse processo de conhecimento, impondo-se à reflexão ampla, à luz dos aspectos teóricos e práticos/vivenciais. A partir do contato terapêutico estabelecido com as pessoas que tentaram suicídio nas experiências relatadas acima, observamos que alguns aspectos emergiam com mais evidência nos casos referidos, em razão do que, lançamos algumas questões que se configuram como os principais aspectos implicados nesse estudo. Primeiro, a percepção que o jovem tem de si, que denominaremos de autoconceito ou noção de self (segundo a perspectiva de Rogers); e, a seguir, os aspectos afetivos e sócio-culturais que favoreceriam o desenvolvimento desse self. Em princípio, supomos que a tentativa de suicídio tenha alguma relação com o self e, conseqüentemente, com o seu desenvolvimento, segundo o pensamento de Carl Rogers. Temos observado, durante os contatos com os pacientes suicidas, que a tendência autodestrutiva parece impor-se ou desenvolver-se mais facilmente quando o indivíduo não possui uma concepção positiva de si-mesmo, quando se revela com um baixo sentimento de estima por si mesmo. Quando o auto-conceito é vivenciado ou se desenvolve através de conflitos, inseguranças e incongruências, isso vai gerar um autoconceito que será responsável pela auto-imagem resultante dele. Por sua vez, a forma de estar-no-mundo com-outro será norteada pela maneira como o indivíduo se percebe nesse mundo. Se essa auto-imagem caracterizar-se por percepções positivas e baseadas em características reais para o indivíduo, então as suas escolhas serão, provavelmente, compatíveis com a forma com a qual ele se percebe. Se ocorrer o contrário, as suas escolhas serão inadequadas e gerarão insatisfação, frustração e sentimentos de inadequação e irrealização, o que, sem dúvida, poderá 28 favorecer atitudes autodestrutivas. Tal forma de se perceber no mundo está sempre relacionada com o contexto familiar e social em que o indivíduo está inserido. Isso pela razão de não ser possível perder-se de vista o papel do outro, representado tanto pelos primeiros vínculos parentais, assim como o outro, representado pela dimensão sócio-cultural que nos circunda, na constituição da subjetividade. Contudo, a visão teórica oferecida por Rogers em sua teoria de personalidade, carece, ao nosso ver, de uma perspectiva mais ampla em termos do mundo vivenciado pelo indivíduo, principalmente no que concerne ao papel desempenhado pelo self na sua conduta. Embora esse autor retire do self o papel de uma entidade ou homúnculo que determinaria a conduta do indivíduo, na medida em que enfatiza, também, o campo fenomenal, ainda assim, o criador da Abordagem Centrada na Pessoa tem sido questionado ( Moreira, 1984; 1990), pela ênfase que confere ao poder individual da pessoa no mundo em que vive e, desse modo, privilegiando a individualidade, que se explicita na noção de self. Daí surgiram questionamentos relativos ao desenvolvimento do self e a sua relação com o mundo, o que nos remete à questão da subjetividade e a importância do mundo concreto na sua constituição. Ao buscar essa compreensão, nos deparamos com a ontologia de Martin Heidegger, por pensarmos permitir uma visão mais ampla e compreensível dessa interação entre self e campo fenomenal de que Rogers fala e que, no nosso entender, pode ser ampliada através do pensamento desse filósofo, a partir da sua noção de seraí e ser-com. Do mesmo modo, o olhar heideggeriano também nos permite obter uma compreensão da tentativa de suicídio, sob a perspectiva da insegurança ontológica que caracteriza a angústia de estar-no-mundo. 29 Assim, tomaremos a teoria de personalidade de Rogers como "pano de fundo", "cenário" ou "terreno", sobre o qual caminharemos tecendo considerações, valendo-nos da contribuição filosófica de Heidegger para fazer um ensaio com a interpretação das narrativas de adolescentes que tentaram o suicídio. 30 CAPÍTULO II ROGERS E HEIDEGGER: UM ENCONTRO POSSÍVEL PARA COMPREENDER TENTATIVAS DE SUICÍDIO? O motivo deste capítulo, dedicado às teorias de Heidegger e Rogers, reside na justificativa deste trabalho, apresentada no seu início. O fato de termos adotado, desde o início da nossa formação, o referencial Centrado na Pessoa e, com isso, absorvido os seus conceitos, fez-nos questioná-los no momento em que nos deparamos com uma outra demanda psíquica, revelada nas tentativas de suicídio. Isto nos impulsionou para que investigássemos melhor os conceitos adotados, agora à luz de uma nova realidade com a qual nos deparávamos na nossa prática clínica. No horizonte do entendimento dessa questão, o que sempre vislumbrávamos tinha, como fundo, a auto-percepção da pessoa, crucial nos seus momentos de escolhas existenciais. Isso nos remetia à questão do auto-conceito, ou seja, ao self, tal como o havíamos incorporado, através da perspectiva rogeriana. No entanto, ao 31 longo dos estudos articulados com as novas experiências profissionais, a tentativa de morte, vista sob o olhar do self, carecia de uma visão de maior alcance. Foi quando nos deparamos com a filosofia de Heidegger, que surgiu lançando uma luz que, além de nos favorecer uma visão mais ampla daquilo que representava o foco do nosso olhar, ainda amenizava as nossas inquietações. Este capítulo tem o intuito de apresentar a teoria de personalidade tal como elaborada por Carl Rogers, na Terapia Centrada no Cliente. Será discutido o constructo de "self ", o qual representa o núcleo central deste corpo teórico, tendo ele um papel importante na dinâmica do comportamento, inclusive na sua regulação, como afirma Rogers (1975): A idéia do eu aparece, pois, como um mecanismo regulador do comportamento ( p. 167). Ao mesmo tempo, também são apresentadas as principais idéias que constituem o pensamento de Heidegger, objetivando, com isso, criar uma base teórica que permita uma interlocução entre este filósofo e o psicólogo Rogers. Portanto, este passeio pelas construções teóricas de Heidegger e Rogers tornase necessário, uma vez que assim o fazendo, poderemos tentar articular uma fala que nos traduza e que possa nos dizer dos sentidos do ser, de uma maneira concreta, tal como se revela na facticidade da experiência existencial. 2.1. A teoria de personalidade de Carl Rogers O self é o núcleo central da teoria de personalidade desenvolvida por Carl Rogers. Originária da prática clínica, essa teoria é considerada, pelo seu criador, de natureza eminentemente fenomenológica e se apóia nas teorias organísmicas da 32 personalidade, que encontram em Kurt Goldstein o seu principal representante, e na fenomenologia, segundo as idéias de Snygg e Combs (1949). Rogers percebeu, nos seus contatos com os clientes, que a maioria deles costumava se referir ao "si mesmo", ao "mim", quando buscavam, na sua experiência, aqueles aspectos que os caracterizavam como a pessoa que sentiam ser. Desse contexto da prática clínica foram surgindo as convicções de Rogers a respeito desse constructo. Ao elaborar a sua teoria de personalidade, Rogers preocupou-se para que as suas definições fossem o mais operacionais possíves e as hipóteses, verificáveis. Tal postura ele a explicita claramente ao afirmar: Um dos nossos objetivos permanente foi o de submeter a dinâmica e os resultados da terapia a rigorosas investigações experimentais. Estamos convencidos de que a psicoterapia é uma experiência existencial profundamente subjetiva tanto para o paciente como para o terapeuta, repleta de sutilezas complexas e englobando inúmeros matizes da interação pessoal. Contudo, estamos igualmente convencidos de que, se a nossa experiência significa alguma coisa, se nela surgem profundos ensinamentos que provocam uma modificação da personalidade, nesse caso essas alterações devem poder ser verificadas pela investigação experimental. (1974, p. 202) A despeito dessa preocupação, a sua teoria contrariava os ditames científicos da época, ao colocar a ênfase na subjetividade e ao postular, como único enfoque possível na psicologia, o marco de referência da pessoa ( Rogers, 1975; 1975b). A teoria de personalidade desenvolvida por Carl Rogers apresenta-se distinta da maior parte das outras no campo da psicologia, por constituir-se muito mais numa teoria de mudança da personalidade do que numa teoria que visa o estudo das suas 33 estruturas fixas ou imutáveis ( Rogers, 1974). Algumas influências podem ser observadas na teoria em questão, como a Psicologia da Gestalt, através da formulação teórica de campo fenomenal ou perceptual, de acordo com Snygg e Combs (1949), os quais introduziram a perspectiva fenomenológica nos Estados Unidos e a Teoria Organísmica de Kurt Goldstein. Essas influências favoreceram o desenvolvimento de uma teoria que assume como prioridade o vivido, a experiência subjetiva do indivíduo, ou seja, o mundo interno da experiência. Para ele, a realidade objetiva não existe, pois cada pessoa percebe o mundo ou essa realidade de acordo com o seu mundo interno, os seus sentimentos, emoções e experiências; enfim, de acordo com a percepção que ela tem do seu estar- no- mundo. A esse respeito diz ele que O organismo reage ao campo perceptivo tal como este é experimentado e apreendido. Este campo é, para o indivíduo, "realidade". Rogers, (1975b, p. 468). E reforça esta valorização do mundo interno ao afirmar que o melhor ângulo para a compreensão da conduta é a partir do quadro de referência interno do próprio indivíduo (ibidem, p. 477). Nesse processo, a percepção que cada um tem das suas características, dos seus afetos, humores, relações e valores, ou seja, o seu auto-conceito ou self, tem uma importância crucial, na medida em que é essa imagem com que cada um se percebe no mundo, que irá influenciar, para não dizer orientar ou determinar, a conduta do indivíduo. Rogers (1975, p. 44) é bem explícito nesse sentido, quando reafirma a importância do self, inclusive no desenvolvimento da tendência à atualização do organismo, atribuindo-lhe um papel determinante: 34 A conjugação destes dois fatores, a tendência à atualização e a noção do eu- determina o comportamento. A primeira representa o fator dinâmico, a segunda representa o fator regulador. Uma fornece a energia; outra, a direção. Em relação ao campo fenomenal ou perceptual, tão importante para o constructo de self, este é definido por Rogers (1975b, p.467) como o que inclui tudo o que é experimentado pelo organismo, quer essas experiências sejam captadas pela consciência ou não. O campo fenomenal ou perceptual foi emprestado de Snygg e Combs (1949) e busca refletir e contemplar a relação entre o mundo interno da experiência e o mundo externo, e toda a influência que esta relação representa no processo experiencial. A fenomenologia na qual Rogers se inspira está fundamentada nas idéias dos autores citados antes, as quais parecem refletir a fenomenologia ditada por Husserl, já que observa-se uma valorização do mundo interno do indivíduo, princípio este contido na intencionalidade da consciência proposto por aquele filósofo. Os autores americanos propunham que o campo fenomênico do indivíduo era o principal determinante da conduta e sugeriam, como tarefa da psicologia fenomenológica, a exploração desse campo fenomênico (Snygg e Combs, 1949). Para eles, a conduta é considerada um problema de percepção humana. As seguintes palavras de Rogers (1974) apontam para o significado que ele atribuía à fenomenologia, quando explica que, Se no capítulo precedente o processo terapêutico é encarado de uma perspectiva quase exclusivamente fenomenológica, a partir do quadro de referência do paciente, este capítulo procura captar aquelas qualidades de expressão que podem ser observadas por outra pessoa e situa-se, portanto, num quadro de referência externa. (p. 108) 35 Podemos dizer que, para Rogers, adotar uma perspectiva fenomenológica como ele o fez, significa priorizar o marco de referência interno do outro, na intenção de penetrar nos seus significados pessoais, por considerar que a verdade de cada pessoa é a sua percepção da realidade, tal como ele a vive na sua experiência. Morato (1987) reconhece uma atitude fenomenológica e existencial em Rogers, ao dizer : Creio poder inferir que Rogers assume uma atitude investigadora e científica a partir da utilização do método fenomenológico. Ou seja, a necessidade de um despojamento e suspensão de julgamento para entrar em contato com o outro, captando-o, reconhecendo-o, e comunicando-se.(...) Rogers põe em prática princípios existencialistas, reenfatizando o método fenomenológico. (p.36) Concluímos que esta postura situa-se muito mais próxima e identificada com a fenomenologia de Husserl, no que ele nos apresenta em torno dos seus pressupostos mais básicos, como o princípio da intencionalidade da consciência. Dessa forma, amparando-se no constructo desses autores, Rogers (1975b, p. 467), assim se refere ao indivíduo inserido nesse campo perceptual: todo indivíduo vive em um mundo continuamente mutável de experiências, das quais ele é o centro. Esse pensamento reafirma a importância do indivíduo como centro de suas experiências. Mesmo considerando-se o campo perceptual, que implica tudo que afeta a existência do indivíduo, a ênfase continua sobre a pessoa; ou seja, o mundo é percebido a partir da sua própria referência pessoal. Tal postura nos leva a visualizála como uma perspectiva de inspiração husserliana, já que poderíamos reconhecer nesse pensamento, uma ênfase na subjetividade, à medida em que valoriza a consciência e seus significados, pensamento presente no princípio da intencionalidade da consciência e no eu transcendental. 36 Tal opinião é acompanhada por Morato (1987), ao relacionar a atitude despojada de Rogers para contactar com a experiência do outro como expressão de um compromisso com a perspectiva fenomenológica e também por Pagès (1976), ao estabelecer um paralelo entre o tema da compreensão de si tal como o proposto por Rogers, que leva à congruência, com Husserl. Reconhece, na empatia, a colocação entre parênteses, ou seja, a redução fenomenológica de Husserl, quando o terapeuta se abstém dos seus próprios valores para compreender o outro. Rogers (1975b, p.484), nos apresenta duas importantes definições do self. Na sua primeira versão, assim o constructo é visto por ele: A estrutura do si-mesmo é uma configuração organizada das percepções do si mesmo que são admissíveis à consciência. Se compõe de elementos tais como as percepções das próprias características e capacidades, os perceptos e conceitos de simesmo em relação com os demais e com o meio; as qualidades de valor que se percebem como associados com as experiências e com os objetos; e as metas e ideais que se percebem como possuindo valor positivo ou negativo. É, portanto, a pintura organizada existente na consciência, seja como figura, seja como fundo, do si-mesmo em relação, juntamente com os valores positivos ou associados a estas qualidades e relações percebidas como existentes no passado, presente e futuro. Na segunda versão da sua teoria de personalidade, Rogers (1959,p. 200), esta se apresenta mais sintética, com definições mais elaboradas, ao mesmo tempo em que é possível se observar uma marcante influência da perspectiva existencialista. O self, conceito de self e estrutura de self são assim definidos por ele: Estes termos referem-se à gestalt conceitual, consistente e organizada, composta de percepções das características do "eu" ou "mim" e as percepções das relações entre o "eu" ou "mim" com os outros e os vários aspectos da vida, junto aos valores relacionados a essas percepções. É uma gestalt que é disponível 37 à consciência, mas não necessariamente consciente. É uma gestalt fluida e mutável, um processo, mas que em qualquer momento é uma entidade específica a qual é parcialmente definível em termos operacionais por uma técnica Q ou outro instrumento de medida7. Nessas definições do constructo self, principalmente na primeira versão, percebe-se, claramente, uma característica do self de natureza relacional, constituindo-se não só da percepção que o indivíduo possa ter dos seus atributos pessoais, como também destes em relação ao mundo. O self apresenta algumas características: é consciente, é uma gestalt ou configuração organizada e contém, principalmente, percepções do próprio indivíduo, em relação ao mundo. O caráter consciente do self responde à necessidade de Rogers de comprovar cientificamente, dentro dos parâmetros positivistas, a sua teoria. Amparado somente nas percepções conscientes, o self poderia, assim, ser verificado objetivamente e receber uma definição operativa, posição esta constatada, principalmente, na última definição. Esta opinião pode ser observada na sua referência ao self, aqui traduzido como eu: Tendo em vista o fato de que toda noção teórica representa uma abstração mais ou menos arbitrária da realidade, há diversas maneiras de definir o eu. De acordo com Hilgard, por exemplo, a definição do eu inclui dados tanto conscientes quanto inconscientes. Esta é, sem dúvida, uma maneira legítima de abstrair a partir dos fenômenos. Não é, contudo, em nossa 7 Rogers, C. (1959, p. 200): Self, Concept of self, Self-structure. These terms refers to tha organized, consistent conceptual gestalt composed of perceptions of the caracteristics of the "I"or "me" and the perceptions of the relatioships of the "I"or "me" to others and to various aspects of life, together with he valus attached to these perceptions. It is a gestalt wich is available to awareness though not necessarily in awareness. It is a fluid and changing gestalt, a process, but at any given moment it is aspecific entity which is at least partially definable in operational terms by means of a Q sort or other instrument or measure. 38 opinião, uma maneira cientificamente muito útil. Com efeito, porque faz intervir dados inconscientes, tal definição não se presta, no momento atual, a definições operacionais. Por isto, parece-nos mais útil conceber o eu como uma estrutura de experiências disponíveis à consciência. Esta concepção abriu, por outro lado, o caminho a um poderoso movimento de pesquisa. Rogers (1975, p. 168) Como uma configuração organizada ou gestalt, o self passa a ser regido pelas leis do campo perceptual. Isto significa que não se trata de uma percepção ou estrutura rígida do si-mesmo; pelo contrário, envolve mudanças e flutuações bruscas que assumem novas organizações de acordo com os aspectos envolvidos na maneira de estar-no-mundo. É uma percepção que flui e se movimenta de acordo com o estarno-mundo da pessoa e a qual reflete os seus afetos, idéias e humores e que a existência nos propicia o seu experienciar, como nos mostra Rogers (1975): O eu (...) essencialmente, é uma Gestalt cuja significação vivida é suscetível de mudar sensivelmente e até mesmo sofrer uma reviravolta, em conseqüência da mudança de qualquer um destes elementos. O caráter estrutural do eu pode se comparar às figuras ambíguas encontradas nos manuais de Psicologia da Forma e que apresentam, por exemplo, um traçado que se percebe como o contorno de um vaso, e logo- em conseqüência de um ligeiro desvio da atitude perceptual- como duas figuras humanas de perfil. Alguma coisa deste gênero pode produzir-se na imagem que o cliente faz de si mesmo. Por ocasião de algum acontecimento, às vezes insignificante, sua atitude em face de si mesmo se modifica dando origem a uma mudança considerável na idéia que faz de si mesmo. O eu se revela então, como uma gestalt que se modifica, não essencialmente, por meio de adição ou de subtração, mas por meio de organização e de reorganização. (p. 167). Tal como apresentado por Rogers, o self expressa, com muita evidência, a ênfase no subjetivo e individual. Poder-se-ia afirmar que, em termos gestaltistas, o indivíduo seria figura, enquanto o mundo seria o fundo dessa configuração. Isto 39 mostra a natureza de tal definição, que surge de uma prática psicoterápica e situada numa teoria de personalidade, no âmbito da psicologia clínica e por isso preocupada com os processos subjetivos do indivíduo. O self, ainda que se constitua numa configuração perceptual e mutável, acolhe as características que dizem mais do indivíduo ou que ele as percebe assim e as quais tendem a ser preservadas em função da tendência à atualização do self. Esta dimensão consciente do self, ou seja, os atributos que o indivíduo considera como fazendo parte de si, é responsável tanto pelo desenvolvimento saudável do indivíduo quanto pela patologia das suas condutas, o que vai depender da forma como essas experiências serão simbolizadas, se serão distorcidas ou negadas. Isto é, se elas correspondem a um acordo, que Rogers chama de congruência, entre a experiência sentida e a sua simbolização; ou seja, entre a experiência do organismo e o autoconceito do indivíduo. A função do self, além daquela de influenciar a percepção do mundo, constitui-se, acima de tudo, como regulador da conduta, substituindo a avaliação organísmica que ocorria na fase em que a criança assim funcionava, antes de se constituir como um eu separado dos pais ou figuras significativas. A discrepância na conduta desenvolve-se como resultado da distorção na percepção daquelas experiências que não se relacionam ao self. As outras, que são percebidas como compatíveis com o self, se desenvolvem e mantêm o conceito já estabelecido. Através desse processo incorreto de simbolização é que se daria a incongruência, ou seja, o desacordo entre a experiência e a sua simbolização e a inautenticidade do indivíduo e, conseqüentemente, da sua conduta, já que o self é considerado, nessa teoria, como o responsável pela regulação desta última. É nessa direção que as 40 palavras de Rogers (1994, p. 49)8, se dirigem: Assim, chega-se ao reconhecimento de que, sob condições próprias, o self é um fator básico na formação da personalidade e na determinação do comportamento. Desse modo, a congruência passa a ser considerada por Rogers como um processo de comunicação interna, quando a experiência sentida é simbolizada corretamente na consciência. Funcionar de forma congruente significa contactar com a experiência sentida e poder representá-la na consciência, sem que seja preciso distorcê-la ou negá-la, em função de um auto-conceito já organizado, ao qual determinadas experiências podem mostrar-se incompatíveis. Essa maneira de funcionar consistiria, então, num modo incongruente de ser que, na verdade, significa agir de forma inautêntica, fundada numa concepção de si não verdadeira; seria assumir valores de outros, seria alienar-se do seu si-mesmo. A teoria de personalidade de Rogers recebeu grandes contribuições dos estudiosos da abordagem desenvolvida por ele. Um dos seus principais colaboradores foi Eugene Gendlin que, ao desenvolver a Teoria da Experienciação e da Mudança de Personalidade, consolidou alguns princípios introduzidos por Rogers e modificou outros. Alguns autores ( Rezola, 1975; Spiegelberg, 1972) afirmam que Gendlin conseguiu resolver um conflito com o qual Rogers se debatera a vida inteira: fazer uma ciência subjetiva, sem perder de vista os rigores metodológicos do positivismo, além de colocar essa teoria numa dimensão verdadeira e concretamente existencial, através do conceito de "experiencing". 8 Some Observations on the Organization of Personality. The American Psychologist, vol. 2 (9): 358368, 1947. Discurso proferido pelo autor ao término de seu mandato como Presidente da Associação Americana de Psicologia, na Reunião Anual de setembro de 1947. 41 Este termo foi introduzido por Gendlin, sendo definido por ele como o processo do sentimento corporal concreto, o qual constitui a questão básica do fenômeno psicológico e da personalidade (1970, p. 138)9. Enquanto que Hart (1970, p. 10), escreve em relação à definição do termo: a palavra experienciação refere-se tanto à teoria, quanto ao fenômeno da experienciação. Algumas das mudanças ocorridas na teoria desenvolvida por Rogers foram possíveis através deste novo conceito, bem como da nova concepção de autenticidade, surgida a partir das idéias de Gendlin. Uma das dificuldades identificadas na teoria de personalidade desenvolvida por Rogers diz respeito ao conceito de congruência (Rezola, 1974; Gendlin, 1970). Questiona-se em como se poderia conceber a congruência, uma perspectiva fenomenológica, sabendo-se que a experiência, por definição, não era consciente, enquanto o self, sim. Sendo a verificação empírica uma preocupação constante de Rogers, como se poderia medir a congruência, se esses aspectos possuíam tais características? A meta de Rogers, inalcançável, como bem reconhecia ele, seria fazer uma ciência que, sem desprezar os referenciais positivistas, ainda pudesse valorizar e focalizar a experiência humana. A necessidade de Rogers de conciliar estas duas tendências também é considerada por Rezola (1974) e Pagès (1976), que a entende como derivada dos conflitos de Rogers entre as ciências e a religião, vividos desde o início da sua formação profissional. Por isso Pagès (ibidem) diz que Rogers tenta satisfazer e integrar duas exigências aparentemente contraditórias: uma exigência fenomenológica e outra experimental (p. 30). 9 Experiencing is the process of concrete, bodily feeling, which constitutes the basic matter of psychological and personality phenomena. Gendlin, (1970, p. 138). 42 Assim, Gendlin, com a teoria da experienciação mencionada antes, efetivamente colabora para que esse conflito seja solucionado. Nessa teoria, a congruência passa a ser concebida não mais como uma equação entre o organismo e a consciência, mas como uma forma de experienciar-se pleno e imediato, e a experienciação torna-se o aspecto principal da teoria de Rogers, o que possibilitará um novo entendimento do self. A teoria de Gendlin foi formulada pela primeira vez em 1955 e pretendia, acima de tudo, articular a filosofia com a teoria de Carl Rogers, estabelecendo, assim, um novo fundamento para a sua teoria de personalidade, como afirma Spiegelberg (1972). O esforço de Gendlin para aproximar a filosofia existencialista da psicoterapia pode ser observada em um texto dedicado a este tema, Gendlin (1970b), no qual ele propõe uma relação existencial, que se funda no processo de experienciação, tanto do paciente quanto do terapeuta: o relacionamento experiencial, o encontro existencial, então, é completo e mutuamente pessoal e não somente profissional; é mais do que verbal, é uma ação recíproca e conectada (p. 76)10. Segundo este autor, o existencialismo, muitas vezes, é encarado como visando objetivos vagos, abstratos, constituindo-se eles num convite para se glorificar o efêmero, o que, na sua opinião, é um erro. Pois o que se pretende é a experiência diretamente sentida e ser-aí em sua concretude pré-ontológica e prédefinida. Gendlin, (1970b, p. 86). Para ele, então, o existencialismo tem êxito se nós 10 The experiential relationship, the existential encounter then, is fully and mutually personal and not just professional; it is much more than verbal, it is a concrete interplay and connectedness. Gendlin (1970b, p. 76). 43 equacionarmos "existência" com "experienciação"; as idéias apresentadas aqui confirmam o seu movimento pessoal para aproximar essa filosofia da psicoterapia, como já foi dito antes, e tendo como apoio e fundamento do seu pensamento, o processo de experienciação. A experienciação tornou-se o constructo principal da teoria de Gendlin e consiste num fluxo de experiência que é anterior à lógica, mas não contrário a ela. Constitui-se numa fonte de significados, os quais surgem de uma interação entre a experiência e os processos simbólicos. Sendo a experienciação anterior à lógica, é de natureza existencial, porém não se opõe àquela. Para Gendlin (1962, p. 8), Até agora se assumiu ou que o significado reside na experienciação sentida e que a lógica não fazia mais que distorcê-la, ou que este reside na lógica e o sentimento, portanto, não é mais que um caos que deva ser evitado. Isto não é certo. O significado se forma da interação entre a experienciação e algo que funciona como símbolo. Experienciação é um processo fluido e sempre em movimento, da experiência concreta e de natureza processual. Enquanto experiência é considerada como o sentimento de ter experiência, a experienciação refere-se à experiência concreta, o funcionamento puro, presente e contínuo disso que ordinariamente é chamado experiência; Gendlin (ibidem, p. 11). Daí em diante, Rogers incorpora esta nova perspectiva da experienciação e passa a definí-la assim: A experienciação se refere ao sentimento fluido de ter experiências, a essa corrente parcialmente informe de 44 sentimentos que temos em todo o momento. É pré-conceitual, contém significados implícitos; é algo basicamente prévio à simbolização ou conceitualização. Pode ser conhecido pelo indivíduo mediante a referência direta- isto é, atendendo interiormente a este fluxo de experiências. Esta referência direta é uma diferenciação fundamentada em uma atenção ou indicação subjetiva ao processo da experiência. Este processo fluente é suscetível de simbolização e esta pode estar baseada na referência direta. Mas também podem realizar-se simbolizações mais complexas, tal como a chamada conceitualização. O significado se forma da interação entre a experienciação e os símbolos. (1963, p. 126-127) Ao lado de todas essas mudanças, Gendlin (1970) propõe uma nova concepção para a congruência, que passa a ser denominada de autenticidade. Para ele, diferentemente de Rogers, cuja congruência seria a simbolização correta da experiência, a autenticidade, tendo como base agora a experienciação, não se constitui mais na simbolização da experiência, mas na abertura do ser ao vivido. A autenticidade, tal como proposta por Gendlin, diferentemente da noção rogeriana, passou a representar não mais a simbolização da experiência, mas a posssibilidade de abertura para o mundo, a possibilidade de se vivenciar as experiências. Carl Rogers foi alvo de muitas críticas ao longo da sua trajetória profissional. Algumas delas dirigem-se ao lugar da fenomenologia em sua teoria. Moreira (1990), partindo de uma visão fenomenológica apoiada em Merleau-Ponty, afirma não ser possível o enfoque fenomenológico na Abordagem Centrada na Pessoa, em razão da noção de pessoa dessa perspectiva centrar-se na subjetividade e individualidade do homem, e por isso, dicotomizando-o entre mundo interno e externo, o que lhe retira o caráter histórico e mundano. Diz a autora, em relação à psicoterapia de Rogers, que é preciso que evolua para uma concepção de homem enquanto ser-no-mundo e, 45 como tal, como fenômeno em mútua constituição com o mundo (p. 162). Outras contradições e paradoxos rogerianos também são apontados por diversos autores (Pagès, 1976; Dutra 1982; Moreira, 1990 e Almeida, 1999). Por outro lado, Pagès (1976) considera Rogers um fenomenólogo, embora ele não tenha se preocupado com isso em sua obra e nem tal termo seja encontrado nos seus escritos. Diz ele que, Rogers é implicitamente fenomenólogo, em nossa opinião, na medida em que, para ele, a fonte de qualquer conhecimento autêntico reside em uma experiência imediata de si e de outrem; uma experiência que, partindo da experiência cotidiana, se desprende do que esta contém de preconceitos e de molduras intelectuais deformantes; Rogers a descreve como "uma pura cultura", sem inibições ou precauções intelectuais, não limitada pelo conhecimento de sentimentos contraditórios. (p. 31). A esse respeito, já havíamos mencionado antes a nossa opinião, compartilhada por Pagès, da visão de um Rogers fenomenólogo. No entanto, é preciso situar a perspectiva fenomenológica à qual nos referimos, uma vez que, desde Husserl, esse método seguiu direções distintas, de acordo com os seus pensadores. Certamente, se partimos de uma perspectiva husserliana, que atribui à consciência os significados da experiência, colocando o eu transcendental em evidência, ao mesmo tempo que institui o sujeito em relação direta com a realidade, entende-se que tais premissas podem ser identificadas nas proposições de Rogers, principalmente no que se refere à empatia, ao mundo perceptual e fenomênico e na importância que ele confere ao mundo da experiência do sujeito no mundo. Foge dos objetivos deste trabalho pensar em termos do que seria a verdadeira fenomenologia, 46 penetrar na questão das essências, da verdade do ser e outros conceitos que, vistos de perspectivas diferentes, modificam o objeto da fenomenologia. Porém não restam dúvidas de que, sem o saber e sem que tenha se preocupado com a questão da fenomenologia, Rogers construiu uma teoria na qual se percebe uma presença da fenomenologia enquanto método e filosofia. No entanto, voltaremos a discutir a questão da fenomenologia em Rogers tomando como ponto de partida o pensamento de Heidegger. A despeito do que acabamos de dizer, uma das críticas mais freqüentes (Moreira, 1990; Pagès, 1976), refere-se ao fato de Rogers propor uma postura fenomenológica enquanto clínico e exercer um fazer científico amparado em princípios positivistas. No entanto, no que tange ao self, o que se revela nas entrelinhas dessa formulação teórica é uma concepção de natureza fenomenológica, husserliana, diga-se de passagem, já que focaliza o eu transcendental e, assim, a subjetividade; e existencial, na medida em que apresenta a existência humana como um processo que se pauta nas possibilidades de um poder-ser que se constrói a cada momento da experiência. Nessa perspectiva, o entendimento de Rogers sobre o que constitui o self poderia repousar numa compreensão filosófica que prioriza a experiência subjetiva; contudo, ao mesmo tempo, poderia também parecer contemplar o estar-no-mundo do indivíduo à medida em que coloca o campo fenomenal como parte dessa experiência. Seria esta uma posição eminentemente fenomenológica e existencial? Talvez seja importante esclarecer, uma vez mais, de qual perspectiva fenomenológica e existencial se esteja falando. Como poderia ser compreendido o self caso ouvíssemos 47 a fenomenologia heideggeriana? Seriam as contribuições de Gendlin um caminho possível para essa aproximação? 2.2-Sobre Gendlin e o Befindlichkeit Gendlin parece ter enriquecido a perspectiva da Terapia Centrada no Cliente ao tentar aproximá-la da visão de Heidegger. Para isso, ele procurou no conceito de Befindlichkeit, principalmente, a ponte para um referencial filosófico à esta abordagem. Befindlichkeit representa um dos mais importantes conceitos da ontologia pensada por Heidegger, ao mesmo tempo em que se apresenta como um dos mais incompreendidos. Befindlichkeit, segundo Heidegger (1927), é um dos três parâmetros básicos da existência humana, juntamente com a compreensão e a linguagem. Para Gendlin (1978/79), refere-se `aquilo que é ordinariamente chamado estar em um estado de espírito, estar num humor e também ao que é chamado sentimento (p.43). Heidegger oferece um modo diferente de pensar essa experiência ordinária. Esse conceito denota como nos sentimos nas situações Gendlin (1978/79, p. 45). Usualmente, sentimento é pensado como alguma coisa interior, contrariamente ao significado proposto por Heidegger, o qual se refere a alguma coisa tanto interna quanto externa, antes que a divisão dentro-fora seja feita. Como afirma Gendlin (ibidem), nós vivemos sempre em situações, no mundo, num contexto, vivendo com outros, tentando conseguir algumas coisas e evitando outras. O humor ou estado de espírito não é somente interno; mas antes, representa um estar-no-mundo. Como afirma ele: 48 As situações não existem separadas de mim. A situação não é puramente os atributos físicos, mas fatores relacionais humanos, o que eu posso e não posso fazer, necessitar, esperar, adquirir, usar, evitar e assim em diante. Todos os atributos dos fatos como situações são em termos da vida de alguém, fazendo, usando e evitando, alterando ou falhando em alterar. Mas isso significa que não há fatos dados como terminados para nós, ou ao nosso redor. Ao dizer como eu me sinto, isso é um processo de viver que ultrapassa o que foi dado quando comecei a falar. E para dizer a você como eu me sinto é, naturalmente, um diferente ser-no-mundo, do que dizer para mim mesmo ou para outra pessoa. Gendlin (1970b, p. 85) Pode-se pensar o befindlichkeit como um conceito interacional, mais do que psíquico. Entretanto, ele consiste em ambos, pois existe antes que tal distinção seja feita. Interação também não diz desse termo, já que pressupõe a existência de duas partes a serem integradas, o que não corresponde ao seu sentido. Para Heidegger (1927), os seres humanos são seu estar-no-mundo-com-outros. Humanos são ser-aí e ser-com. Um outro parâmetro existencial é a compreensão. Significa que nem sempre conhecemos o nosso estado de espírito, embora tenhamos uma certa compreensão dele, do nosso viver no momento. Não significa uma compreensão cognitiva e sim implícita, do nosso existir. A linguagem é o outro parâmetro constituinte da existência. Sobre a fala, Heidegger (1927) afirma que ela sempre está envolvida em qualquer sentimento ou humor; na verdade, em qualquer experiência humana. É a articulação da compreensão, o que não significa dizer que sempre haverá uma fala que diga o que alguém vive, em palavras. Mas que há sempre falas e escutas para cada um e abertura à fala do outro, pois isso faz parte do que somos e do que vivemos, de modo que a fala já está envolvida no nosso viver, seja qual for o que podemos atualmente falar 49 ou não. Resumindo, nós nos sentimos vivendo em situações com outros, com uma compreensão implícita do que estamos fazendo e com uma comunicação entre nós já envolvida. Um sentimento é sempre tudo isso. Falar é a articulação da compreensibilidade. A partir dessa perspectiva do befindlichkeit, Gendlin (1973) reflete sobre uma nova relação entre filosofia e psicologia, a qual implica a eliminação de conceitos como fora-dentro, self, afetivo e cognitivo, entre outros. O importante reside nos "modos de ser" e não em conceitos e propõe uma reestruturação do conceito de sentimento, o qual deve ser compreendido como um sentido implícito e em mudança, que ocorre através de passos ou degraus de explicação ou articulação. Aqui se constata, uma vez mais, a importância da experienciação, já que esta significa nada mais que um sentimento concretamente sentido e que pode ser levado adiante, quando se faz uma referência direta a ele, como nos mostra Gendlin (1970), em sua teoria. O sentimento conhece como falar e demanda somente as palavras certas, sendo ele suficiente para trazer as palavras ao discurso da pessoa. Gendlin sugere que se compreenda Heidegger experiencialmente, sem, contudo, reduzir a ontologia à psicologia, já que as implicações disso são muito mais amplas do que se imagina, envolvendo não só esta, mas também outras ciências. Ele entende que ao falar em befindlichkeit, Heidegger fala da estrutura básica do ser-nomundo e também do mundo e de qualquer assunto-questão ou problema de qualquer ciência a que o homem tem acesso. Esse befindlichkeit é, contudo, o mesmo sentimento ou sensação estudado em psicologia. (1978/79, p.54) Compreender Heidegger experiencialmente é compreender a relação inerente entre viver, sentir, compreender e cognições de quaisquer espécies. 50 Para Heidegger (1927), o befindlichkeit também se relaciona com o método, pois é a revelação da qual o método fenomenológico depende. Se a descoberta do befindlichkeit não está lá como parte do método, então não haverá fenomenologia, mas uma livre-flutuação. Para ele, o fenômeno, no sentido básico do método fenomenológico, não é aquele que é imediatamente óbvio, mas aquele que se mostra em resposta ao logos, à colocação ou formulação, enfim, à fala. Insiste em que a estrutura ontológica do ser humano e outras questões só podem ser estudados em relação ao befindlichkeit; só podem ser compreendidos fenomenologicamente e nunca como uma tese flutuante: Somente como fenomenologia a ontologia é possível ( ibidem, p.35). Assim, podemos entender o befindlichkeit, após a compreensão de Gendlin (1978/79), a partir do processo de sentimento que se vive todo o tempo e ao qual se pode referir a cada momento. Nesse sentido, o befindlichkeit é parte constituinte da experienciação, já que revela o sentimento que se vive em cada momento da existência concreta. Sobre o pensamento de Heidegger, de uma maneira geral, tentaremos, a seguir, apresentar um panorama da sua filosofia, na intenção de favorecer uma discussão entre algumas das suas idéias e aquelas discutidas até este momento. 2.3. Sobre a filosofia de Heidegger Martin Heidegger foi um filósofo que provocou muitas polêmicas no campo da filosofia e também fora dela. Tendo sido discípulo de Husserl, opôs-se à sua fenomenologia, ao elaborar uma ontologia em que a questão do ser e do sentido do ser se constituíam na sua busca, pensamento apresentado na sua obra inacabada, Ser e Tempo (1927). 51 A sua trajetória de vida foi marcada não só pela importância do seu pensamento filosófico, mas também por fatos políticos que fazem desse homem, ainda hoje, objeto de discussões, depositário de ódios e amores em função dos seus envolvimentos com o regime alemão nacional-socialista, na época da segunda guerra. Até a sua vida amorosa tem sido alvo de especulações11, tal o interesse despertado pelo homem Martin Heidegger. Consideramos importante ressaltar algumas questões contidas na sua obra, muitas delas envolvendo a questão do método da fenomenologia e do seu objeto, as quais se constituem nas principais diferenças filosóficas entre Heidegger e o seu mestre e criador da fenomenologia, Edmund Husserl. Ao mesmo tempo, discutiremos as idéias principais da ontologia heideggeriana, e que representam as questões axiais do seu pensamento. 2.3.1 Do método fenomenológico segundo Heidegger Heidegger foi discípulo de Husserl, em Freiburg, mas, paralelamente aos estudos que empreendia com o mestre, desenvolveu seminários com alunos mais adiantados, na intenção de discutir as questões filosóficas que o inquietavam. Embora tenha se iniciado com Husserl, como tantos outros, rompeu com a sua fenomenologia ao longo do tempo. Heidegger teve que voltar à Aristóteles e à metafísica, para encontrar o ser. Perguntava ele sobre a redução, responsável pela sua principal divergência com 11 Ver o livro Hannah e Heidegger, de Elzbieta Ettinger, Petrópolis, R.J., Zahar, 1996, no qual a autora comenta a correspondência entre os dois filósofos, num relacionamento amoroso que durou cinquenta anos, e em que o homem Heidegger é apresentado com uma imagem nem sempre muito positiva. 52 Husserl. Seria o voltar " à coisa mesma", a consciência e sua objetividade, ou é o ser do ente em seu velamento e desvelamento? ( Heidegger, apud Steiner, p.40). Heidegger não aceitava a radicalidade da redução, pois o aspecto principal da sua filosofia consistia no mundo da vida, na facticidade do ser-aí; portanto, a fenomenologia transcendental de Husserl pretendia eliminar esta facticidade, ao assumir todo o mundo da vida no eu transcendental. Assim, o transcendentalismo reduziria a compreensão do ser à dimensão da subjetividade o que, para ele, seria limitar o ser-aí. Entendo que, para Heidegger, a compreensão do ser, embora incompleta, por se dar na cotidianidade do ser-no-mundo, ou seja, na sua facticidade, ainda assim seria uma busca da verdade do ser, como bem lembra Steiner (ibidem), quando afirma que, A fenomenologia heideggeriana se tornaria uma meditação da finitude. A idéia de verdade e não-verdade, de velamento e desvelamento aponta para a incompletude de toda a compreensão do ser e da verdade na medida em que se dão na facticidade do ser-aí. (p.49). Seria, então, através da analítica existencial que Heidegger pretendia abordar a questão do sentido do ser, alcançando o fenômeno da temporalidade, em relação ao que, Steiner vai adiante: O ser do ser-aí é a existência. A explicitação da estrutura ontológica da existência visa a compreensão da constituição da existência. O conjunto das estruturas que constituem a existência é a existencialidade. A analítica destas estruturas tem o caráter da compreensão existencial. Estas estruturas têm o nome de existenciais. Heidegger os distingue radicalmente das categorias; estas são determinações do ente que não é ser-aí. (p.81). 53 O pensamento de Heidegger sobre o ser indica o caminho do que é velado, e a partir do qual, segundo Stein (1983), Heidegger propõe a sua concepção de método, na tentativa de superar o velamento da questão do ser: A fenomenologia heideggeriana pretende ser um método que se situa nos antípodas da subjetividade (...) Heidegger aplica o método fenomenológico, fundado num modelo binário: velamento-desvelamento. A aplicação do método fenomenológico a estas duas frentes visa pensar o ser que, na medida em que está velado, deve ser conduzido ao desvelamento. (p.21) Assim Stein apresenta a problemática heideggeriana: Compreendido o ser como velamento e desvelamento, decidido que o ser é "a coisa mesma", estabelecido que o ser desde a antiguidade se dá como tempo, determinado que o método da filosofia é o mostrar fenomenológico, está resumida toda a problemática heideggeriana e o que a separa das experiências e das intenções de Husserl. Tarefa fundamental da filosofia será, portanto, para Heidegger, captar o ser como velamento e desvelamento através de um método e no horizonte adequados. O método será a fenomenologia esboçada em Ser e Tempo. O horizonte será o tempo que desde a antiguidade se liga ao ser. (p. 42). Um aspecto inovador em Heidegger e que aumenta a distância entre ele, Husserl e outros filósofos, diz respeito ao primado da tendência para o encobrimento (Ser e Tempo, 1927). Ao invés de pensar como aqueles filósofos, de que a realidade se apresenta aos nossos olhos, esperando ser por nós apreendida, ele acredita que o homem e o essencial nas coisas tendem para o disfarce ou estão efetivamente encobertos. Por isso, ele se volta para o como, buscando o modo de levar o objeto de sua investigação à revelação. Steiner, (1983, p.103). E este é o ser que deve se 54 revelar no ente, resultado de uma busca constante de desvelamento do que está velado, a partir de si mesmo. Esse processo recebe várias denominações ao longo do pensamento do filósofo, passando de "ser dado", depois "encontro", "descoberta", " revelação", vindo a dominar o termo "desvelamento", que, às vezes, surge como "clareira". O termo hermenêutica é assumido por Heidegger ao longo da sua obra, embora sofra modificações principalmente em relação ao lugar que nela ocupa. Entretanto, pode-se dizer que este termo é utilizado por ele no sentido da compreensão, melhor dizendo, da ontologia da compreensão. Por isso sua fenomenologia é uma ontologia hermenêutica Steiner (ibidem). Embora ainda hoje a obra do filósofo seja identificada como uma ontologia hermenêutica, o seu pensamento evoluiu ao longo dela, inclusive no que se refere ao hermenêutico, ao deixar de lado os termos hermenêutica e hermenêutico. Diz Heidegger (apud Stein, op.cit. p.91), a esse respeito: Isto não aconteceu, como muitos pensam, para negar o significado da fenomenologia, mas para deixar o caminho de meu pensamento numa região sem nome. E explica que utilizou esta palavra para caracterizar o pensamento fenomenológico e no intuito de levar o ser do ente a se manifestar como fenômeno. Assim, o que prevalece e sustenta a vinculação do ser humano com a diferença ontológica é desta maneira a linguagem. Ela determina a relação hermenêutica. É a linguagem, portanto, que determina a vinculação hermenêutica do homem com o acontecer do ser. E continua a afirmar que ...a linguagem é a casa do ser, ser que acontece como fenômeno na linguagem. 55 2.3.2. Sobre a cotidianidade A cotidianidade é considerada por Heidegger (1979), como uma forma de existência inautêntica, que se constitui de três aspectos fundamentais: a facticidade, a existencialidade e a ruína. A facticidade significa que o homem é lançado ao mundo, sem que para isso tenha feito qualquer escolha. Vale lembrar que para este filósofo, o mundo tem um significado distinto daquele que o vincula somente ao mundo físico. Do modo como ele a emprega, a palavra mundo diz do conjunto das condições geográficas, históricas, sociais e econômicas em que a pessoa está inserida (Heidegger, 1979). A existencialidade ou transcendência, diz respeito ao que torna o homem um ser de possibilidades e projetos. Um ser que, ao atribuir significados às coisas do mundo, dele se apropria de maneira singular. E é justamente a respeito desse pressuposto que Stein (in Heidegger, 1979), nos brinda com uma interpretação do pensamento de Heidegger que, a meu ver, é surpreendentemente pertinente às reflexões teóricas que buscamos desenvolver neste trabalho. A existencialidade, segundo a visão do filósofo, significa a existência interior e pessoal, aquilo que projeta o homem no mundo: Trata-se de uma projeção no mundo, do mundo e com o mundo, de tal forma que o eu e o mundo são totalmente inseparáveis (p.VIII). Tratase de uma frase curta, mas que, nas entrelinhas, perpassa a questão do self, de acordo com Rogers, abordado neste estudo. O terceiro aspecto contido na cotidianidade seria a ruína, que representa a perda de si-mesmo e que vem a ocorrer em razão da impessoalidade da vida humana, que mergulha num mundo massificado, o qual o pressiona em termos dos seus 56 valores e princípios, favorecendo, desse modo, uma forma de vida inautêntica. Assim, o homem restringiria a sua vida ao que é público, afastando-se do seu mundo privado, e alienando-se da sua existência, vivendo uma vida na impropriedade, o que significa não se apropriar das coisas do mundo de acordo com o seu Ser, o que o faz sentir-se como um ser-para-a-morte. Significa, acima de tudo, afastar-se do simesmo, reflexo do seu Ser verdadeiro. Para o filósofo, foco dessa discussão, o ser jamais poderá ser analisado objetivamente, pois a sua determinação de ser-no-mundo impede que isto aconteça. Para isso, a fenomenologia heideggeriana vigiará o âmbito do velamento e desvelamento em que residem todas as essências, Steiner (1983, p. 48). Para o filósofo, a essência do ser-aí é a existência, o que diz da irredutibildade do ser-aí. 2.3.3 Da angústia e das estruturas existenciárias Para Heidegger, a angústia representa o único estado de ânimo que conduz o seraí para uma compreensão de si-mesmo. Para Boss (1981), cada angústia humana tem um de que, do qual ela tem medo. E continua: (...) O do que de cada angústia é sempre um ataque lesivo à possibilidade do estar-aí (dasein) humano. No fundo, cada angústia teme a extinção deste, ou seja, a possibilidade de um dia não estar mais aqui. O pelo que da angústia humana é por isto o próprio estar-aí, na medida em que ela sempre se preocupa e zela só pela duração deste. Por isso, as pessoas que mais temem a morte são sempre as mesmas que mais têm medo da vida, pois é sempre o viver da vida que desgasta e põe em perigo o estar-aí. ( p. 26) A angústia tem um papel "reparador", podemos pensar assim, nesse processo inautêntico de viver. Esse sentimento levaria o homem a mergulhar em si mesmo e, 57 assim, ao autoconhecimento, o que pode significar a sua saída da vida alienada, na medida em que o redime pela traição de si mesmo, favorecendo uma retomada de outros caminhos pelo mundo. Nesse ponto se vislumbram duas alternativas: ou o homem poderá retornar da angústia para o cotidiano que continua a afastá-lo de si mesmo, ou poderá ser conduzido a uma superação desse vazio, para um caminho em direção ao seu próprio SER, a uma existência mais reveladora do seu SER. Nesse sentido, a angústia pode ser uma abertura para a autenticidade, constituindo-se essa crise por que passa o indivíduo, numa chance de uma retomada dos seus projetos e possibilidades, como bem o demonstra Procópio (1999), ao refletir sobre o significado desse momento para o encontro do indivíduo consigo mesmo. Nesta mesma direção segue o pensamento de Boss (1981, p. 36), acentuando o valor de se enfrentar a angústia: (...) Mas se alguém se mantém realmente aberto à essência total e não disfarçada da angústia, é aí justamente que ela abre aos seres humanos aquela dimensão de liberdade na qual, e só então, se possibilita o desdobrar das experiências do amor e da confiança. Pois a angústia, liberada da mesquinhez subjetivista, do mesmo modo que o amor, leva o estar-aí humano não só à possibilidade do maior e mais rico, mas também, imediatamente, à possibilidade do totalmente diferente diante de tudo que, antes de mais nada, é, e que como algo que é, tem, ainda assim, seus limites restritivos. Em outras palavras, ela ainda abre para a dimensão- bem diversa- do "Não-Estar" do "Nada", mas daquele grande nada que, ao contrário do vazio da nulidade meramente nihilista, abriga tudo dentro de si, e de tal forma que ele tanto pode encobrir como também desvelar-nos e desvelar as coisas do mundo. Nesse retorno ao mundo, quando o homem se projeta em direção às suas possibilidades, ele nunca está só, mas junto-com, pois ele é um ser-com, transcendendo-se em si-mesmo e em relação ao mundo. Por constituir-se num ser de possibilidades e que se projeta numa dimensão infinita de possibilidades é que o 58 homem vivencia uma permanente inquietação, por deparar-se sempre com a tensão entre o que é e poderá vir a ser. Em razão do que, para Heidegger (1979, p. X), a inquietação estrutura o ser do homem dentro da temporalidade, prendendo-o ao passado, mas, ao mesmo tempo, lançando-o para o futuro, de forma que é ao assumir o passado e se projetando no futuro que o homem marca a sua presença no mundo, assumindo as suas escolhas e se apropriando da sua existência. Sabendo-se que o ser se revela através e sob o ente, que volta ao ser-aí, importa encontrar os modos como o ser-aí se mostra dissimulado na sua cotidianidade, que para Steiner (ibidem, p. 103) assim se dá: Heidegger descobre o ser-aí no movimento de fuga de si mesmo, numa tentativa de não se assumir na sua totalidade, como preocupação, que se articula como existência, facticidade e decaída ou ser-adiante-de-si, já-ser-em e junto-dos-entes. O seraí se vela para si mesmo, encobre suas possibilidades e assim barra a possibilidade de uma revelação de ser. A atitude do filósofo, para contornar a fuga do ser-aí de si mesmo, é partir da análise da cotidianidade e descobrir nela o homem no movimento de fuga. Somente, uma vez realizada a analítica do ser-aí cotidiano, se descobre como o ser-aí pode assumir-se, pela decisão enérgica, na sua verdade, para descobrir que sempre está simultaneamente na não-verdade. Este interesse pela nãoverdade é o sinal da fuga de si mesmo. Heidegger, em Ser e Tempo (1927), define o que para ele são os aspectos axiais da sua filosofia. Um deles refere-se à pre-sença, que pode ser compreendida como o modo de ser do ente, segundo as suas palavras: Como atitude do homem, as ciências possuem o modo de ser desse ente (homem). Nós o designamos com o termo pre-sença (p. 38). A pre-sença remete ao ser-no-mundo, à medida em que também é parte da existência, como mostra o filósofo: 59 Chamamos existência ao próprio ser com o qual a pre-sença pode se comportar dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se comporta de alguma maneira. (...) A questão da existência sempre só poderá ser esclarecida pelo próprio existir. A compreensão de si mesma que assim se perfaz, nós a chamamos de compreensão existenciária. Entendemos a existencialidade como a constituição ontológica de um ente que existe. (p. 39) Aqui já se percebe a valorização da facticidade no pensamento heideggeriano e o lugar que a compreensão ocupa, esta que constitui, juntamente com a linguagem e o befindlichkeit, humor ou disposição afetiva, as estruturas existenciárias do ser. A compreensão, desse modo, seria o "como" em direção à descoberta do ser, como afirma o filósofo: Assim, a compreensão do ser, própria da pre-sença, inclui, de maneira igualmente originária, a compreensão de "mundo" e a compreensão do ser dos entes que se tornam acessíveis dentro do mundo (p. 40). A compreensibilidade seria possível pelo fato de o homem poder antever e projetar as suas possibilidades, ao mesmo tempo em que o faz refletindo sobre o passado. Isso significa compreender a si mesmo, além de acolher a interpretação, já que esta se dá através da apropriação do que foi compreendido. Tal pressuposto nos leva a conceber a compreensão na pesquisa não só como uma compreensão que se limita à experiência imediata ou restrita à subjetividade da dimensão psicológica. Implica também, acima de tudo, em se encarar tal experiência como expressão, em termos ônticos, da estrutura de um ser e da sua revelação, da qual tal experiência é portadora, nos permitindo, assim, penetrar no ser do ente. Através da compreensão, que já faz parte do ser, por isso é pré-ontológica, desvela-se o ser, naquilo mesmo em que ele se vela. Da mesma maneira, na compreensão, o mundo no qual o ente se encontra inserido também se revela, já que 60 faz parte da existência e esta, se encontra no tempo, como lembra Heidegger (ibidem): (...) o tempo como horizonte de toda compreensão e interpretação do ser (p. 45). E continua: Persiste o fato de que, na acepção de ser e estar no tempo, o tempo serve como critério para distinguir as regiões e modos de ser (p. 46). Depreende-se disso que o tempo desempenha uma função ontológica fundamental no pensamento desse filósofo. A compreensão, como já foi apresentado antes, é fundamental no pensamento fenomenológico de Heidegger. E, como tal, passa a constituir-se num sustentáculo à pesquisa que apresentamos neste trabalho. Referenda não só o método do fazer a pesquisa, como também, o que é mais importante para nós, legitima a inspiração fenomenológica desse estudo, ao mesmo tempo em que passa a se constituir numa base de sustentação filosófica para a teoria psicológica que o norteia. A propósito da compreensão, Heidegger (ibidem, p. 200), diz que Compreender é o ser existencial do próprio poder-ser da pre-sença de tal maneira que, em si mesmo, esse ser abre e mostra a quantas anda seu próprio ser. E continua: Como abertura, a compreensão sempre alcança toda a constituição fundamental do ser-no-mundo. Como poder-ser, o ser-em é sempre um poder-ser-no-mundo. Este não apenas se abre como mundo, no sentido de possível significância, mas a liberação de tudo que é intramundano libera esse ente para suas possibilidades. (p. 200) O próprio filósofo se pergunta o por quê da compreensão conduzir às possibilidades, ao que logo responde: Porque, em si mesma, a compreensão possui a estrutura existencial que chamamos de projeto. A compreensão projeta o ser da presença para a sua destinação de maneira tão originária como para a significância, entendida como mundanidade de seu mundo (p.200). 61 2.3.4 Da morte A morte é uma possibilidade com a qual o homem se depara ao longo da vida e que perpassa toda a sua existência. Para Heidegger (1927, p. 28), a morte não se encontra ao final de uma jornada de vida, como uma etapa prevista de um percurso vivido, já que ela pode acontecer a qualquer momento. No sentido mais amplo, a morte é um fenômeno da vida. Deve-se entender vida como um modo de ser ao qual pertence um ser-no-mundo. Esta possibilidade atinge todos os homens, de forma indistinta. A morte consiste numa possibilidade concreta da existência, inerente ao SER do homem, ao seu-poder-ser, como afirma o filósofo: O ser-para-a-morte é antecipação do poder-ser de um ente cujo modo de ser é, em si mesmo, um antecipar. Ao desentranhar numa antecipação esse poder-ser, a pre-sença se abre para si mesma, no tocante à sua extrema possibilidade. Projetar-se para seu poder-ser mais próprio significa, contudo: poder se compreender no ser de um ente assim desentranhado: existir. (...) Deve-se ainda atentar para o fato de que, primariamente, compreender não diz agarrar um sentido, mas compreender-se em suas possibilidades de ser, desentranhadas no projeto. Sendo o ser-aí, o dasein, um ser de abertura e, assim, de possibilidades, a morte também representa uma possibilidade. Aliás, é a possibilidade mais concreta com que o homem pode contar, como afirma ele: A morte é uma possibilidade ontológica que a própria pre-sença sempre tem de assumir. A morte afirma a finitude da vida e da existência. E representa, além de tudo, a única certeza que se tem na vida. Entretanto, essa certeza, reconhecida por todos, pode também significar uma fuga do si-próprio, na medida em que a certeza se confirma a cada vez que se sabe da morte de alguém, o que, de alguma maneira, nos assegura que estamos vivos. 62 A existência do ser-aí no cotidiano favorece ou mesmo leva o homem a desenvolver um falatório sobre a certeza da morte, como lembra Heidegger (ibidem): A public-idade da convivência cotidiana "conhece" a morte como uma ocorrência que sempre vem ao encontro, ou seja, como "casos de morte". Esse ou aquele, próximo ou distante, "morre". Desconhecidos "morrem" dia a dia, hora a hora. "A morte" vem ao encontro como um acontecimento conhecido, que ocorre dentro do mundo. (...) O discurso pronunciado ou, no mais das vezes, "difuso" sobre a morte diz o seguinte: algum dia, por fim, também se morre mas, de imediato, não se é atingido pela morte. (v. II, p. 35). Por isso Heidegger concebe o ser como um ser-para-a-morte, pois desde que nasce o homem já está apto para morrer. A morte, para ele, não significa o final de uma etapa de vida, quando se espera que ela aconteça. Na verdade, a morte que atravessa a existência é uma presença que pontua as escolhas da vida. A morte sinaliza para a vida, na medida em que aponta para a autenticidade ou não do ser-aí. Aceitando a finitude, através do ser-para-a-morte, o homem é capaz de re-significar a sua pre-sença no mundo, fazendo da sua existência uma revelação do seu si-mesmo verdadeiro e autêntico. 2.4. Heidegger e Rogers: um encontro possível? Como bem o disse Gendlin anteriormente, não se trata aqui de reduzir uma filosofia, nesse caso a ontologia de Heidegger, a uma teoria psicológica; e nem o contrário. Trata-se, ao invés disso, da tentativa de viabilizar uma interlocução entre o pensamento de Heidegger e a noção de self na teoria de Rogers, visando a construção de um horizonte teórico que possa servir como fundamento para a compreensão das tentativas de suicídio, objeto deste trabalho. 63 Muitos aspectos envolvidos em ambas as teorias nos obrigam a colocá-las a uma grande distância, dificultando, assim, uma aproximação. Contudo, se destacarmos alguns aspectos do pensamento rogeriano, particularmente aqueles pertinentes ao self e reformulados após as contribuições de Gendlin, as diferenças não serão eliminadas, mas tornar-se-ão passíveis de aproximação, ao assumirem uma nova configuração. Algumas questões podem ser apontadas desde já. Comecemos por pontuar alguns aspectos que se mostram, num primeiro momento, incompatíveis no corpo teórico desses dois autores. Posteriormente, e ao longo deste texto, discutiremos as possibilidades de uma leitura heideggeriana de algumas noções teóricas do pensamento rogeriano. Se nos detivermos no self e no ser-aí, podemos verificar que, enquanto o self se baseia somente no que é consciente, tal como mostram as primeiras definições de Rogers sobre esse constructo, o ser-aí inclui todas as dimensões da existência, não se limitando ao que é consciente ou inconsciente. O pensamento rogeriano, no que respeita ao self, prioriza o mundo interno, o vivido, ou seja, a subjetividade. Para Heidegger, o transcendentalismo de Husserl limitaria o ser-aí. Aqui temos uma característica da ontologia de Heidegger que mostra a sua clara oposição ao subjetivismo encontrado no eu transcendental de Husserl. Tal posição pode ser entendida como igualmente contrária àquela também vista em Rogers, na sua concepção de self: a ênfase na subjetividade, como já foi dito antes. A questão do velamento e desvelamento do ser, pressuposto da filosofia de Heidegger, nos leva a pensar que, em razão disso, não é possivel pensar o ser 64 humano, nesse caso o ente, como prioritariamente sujeito às influências do self, que não diz tudo dele. Também em função disso não se pensa o ente como uma subjetividade que se destaca no mundo e na sua existência a partir dela. Ao invés disso, com Heidegger, torna-se possível pensar o ente como revelação do ser, que, por sua constituição existencial, está inserido num mundo que já existe, mergulhado na sua facticidade, o que decorre da sua característica ontológica de ser-aí (Dasein), um ser de abertura a tudo que já está e também um ser de relação, um ser-com. Tal pensamento comprova que a ontologia de Heidegger, bem como a analítica existencial, transcende qualquer posição teórica que tente reduzir, explicar ou compreender o ente através de self, pulsão, ou características que , de uma certa forma, fragmenta-o, eliminando, assim, a sua estrutura de dasein. Isso já foi reconhecido por vários autores, entre eles Biswanger e Boss (1979), Boss (1981) e, inclusive, pelo próprio Heidegger (1927), ao tratar da Análise Existencial. A despeito disso tudo, esta questão ainda será alvo de discussão neste trabalho, ao longo da sua evolução. Da mesma forma, se tomarmos como referência o campo fenomenal, tal como proposto por Rogers, num primeiro momento podemos perceber, como no constructo self, uma limitação em relação ao ser-aí, estrutura existencial presente na ontologia de Heidegger. No entanto, a despeito dessa evidência, é preciso reconhecer a importância do campo fenomenal como uma idéia que pode aproximar o self do ser-aí. Seguindo esse pensamento, trazemos uma citação de Rogers (1994, p. 43). que ilustra muito bem este ponto de vista. Diz ele que à medida que ocorrem na percepção do self e na percepção da realidade, as mudanças ocorrem também no comportamento. Esta fala 65 nos faz pensar num estado constante de abertura no qual o campo fenomenal se constitui e representa. Por ser um campo fenomenal e amparado no processo de percepção do mundo que surge a cada momento da experiência, e, sendo assim, mutável, é oportuno pensar que esta idéia contempla e se sustenta num modo de pensar o homem que inclui a sua abertura ao mundo. Esta abertura se dá justamente à medida em que a experiência de viver ocorre; e esta ocorre todo o tempo. Por que não pensar, então, que tal condição de abertura e por que não dizer, possibilidade de mudança, representam a estrutura do ser-aí e suas possibilidades de ser? O campo perceptual é importante na determinação da conduta e inclui o próprio indivíduo e tudo que o cerca, tal como as situações vividas, as forças fisiológicas e também culturais. Todos esses fatores influenciarão a conduta do indivíduo, que será empreendida em função da percepção que ele tem desses aspectos. Podemos propor que esta é uma maneira de se entender a facticidade do ser, ou seja, o homem vivendo nas situações do mundo, correspondendo ao modo de ser-com, estrutura do ser-aí heideggeriano. A conduta, de acordo com o pensamento de Rogers, seria determinada pela percepção que se tem de si mesmo, de um estar-no-mundo em determinado momento. O self, então, se situa na abertura para o mundo que constitui o ser-aí. O self, tal como Rogers o concebe, se constitui, ele próprio, num poder-ser do homem, já que representa uma configuração perceptual que se apóia no fenômeno da percepção e, em sendo mutável, impossível de ser enquadrado em concepções rígidas e estáticas de características do ser e potencialmente passível de assumir uma configuração diferente em cada situação vivida, o que significa dizer, a partir da experiência imediata. 66 No que se refere à autenticidade, considero que esta, juntamente com a perspectiva do self, não exclui o ser-aí proposto por Heidegger. Isso porque o ser-aí, pelo fato de constituir-se numa abertura ao mundo, se revela através de um ser-simesmo que, em algum momento, no cotidiano da existência e enquanto pre-sença, assume escolhas, apropriando-se do seu estar-no-mundo. Podemos dizer que nesse momento existencial, o ser-no-mundo se revela tomando como fundamento a experiência de ser-com do ente. E isso implica em perceber-se de um certo modo em relação ao mundo, num estado de abertura ao que se apresenta na existência e cujo processo de viver ocorre na experiência de se ser a cada momento. Assim, sugerimos que a filosofia de Heidegger mostraria a direção para onde o ser se revela. Rogers, com a sua psicologia, nos diz como o ser pode se revelar, psicologicamente, na concretude da experiência. Citamos uma frase de Rogers (1974, p. 129), que ilustra muito bem o que acabamos de colocar. Referindo-se ao processo de mudança que ocorre na terapia, assim ele se refere ao self, traduzido aqui como eu: O eu, neste momento, é (grifo do autor) esse sentimento. (...) O eu é, subjetivamente, num momento existencial. Não é qualquer coisa que se percepcione. Podemos pensar esse sentimento de ser como uma expressão do befindlichkeit, tão bem traduzido anteriormente por Gendlin, como um sentimento. O self, nesse sentido, é a experiência de ser, de existir; como diz Rogers (1959, p. 223), o self é a consciência de ser, de funcionar, e não uma idéia ou noção estritamente consciente, como a sua definição nos leva a entender. É este caráter existencial contido no self que busco explicitar . 67 Em relação ao desenvolvimento do self, um aspecto merecedor de atenção e importante nesta discussão é a sua relação com o outro. Segundo Rogers (1959)12, o self se desenvolve a partir da diferenciação da experiência: Esta representação na consciência de ser e funcionar elabora-se através da interação com o meio, particularmente o meio formado pelos outros significativos, num conceito de self, um objeto perceptual no seu campo experiencial. (p. 223) Podemos apreender, nesta formulação do desenvolvimento do self, a presença do mundo na experiência de ser. O self não representa nem uma entidade que já faz parte da bagagem biológica e genética do homem e nem tampouco surge do nada. Ele somente se constituirá a partir da relação do indivíduo com o outro, quando este homem vê cumprir-se a sua vocação originária, que é ser-com, exercitando a sua abertura ao mundo da experiência, própria do ser-aí. Podemos entender o self, segundo as idéias de Rogers, imbuído de uma natureza fenomenológica, no sentido heideggeriano. Vale ressaltar, inclusive, o caráter de poder-ser que esta noção comporta, ao incluir a perspectiva de passado, presente e futuro, na vivência atual, que se abre para um projeto que se situa sempre numa possibilidade de ser, e que não se fecha ou se encerra aí. Pois à medida em que as experiências surgem e eu me volto para elas, sou capaz de seguir esse fluxo e me situar diante do mundo, assumindo escolhas e me projetando na existência que essa experiência revela e nela me envolve. Tal constatação nos permite enxergar, nesse ponto, o ser-aí, no que respeita 12 This representation in awareness of being and functioning, becomes elaborated, through interaction with the environment, particularly the environment composed of significant others, into a concept of self, a perceptual object in his experiential field . Rogers, C. (1959, p. 223). 68 ao ser de possibilidades, ao poder-ser que caracteriza o ser de Heidegger e que pode ser identificado, igualmente, no si-mesmo tratado por Rogers. Podemos dizer que o que Rogers denomina de incongruência e que passamos a denominar de inautenticidade, após Gendlin, se aproxima do que Heidegger chama de impropriedade. Quando o ser deixa de ser o si-mesmo, em razão da cotidianidade, ou seja, responde ao seu estar-com de forma distante do si-mesmo, de forma inautêntica, estaria existindo na impropriedade. Mas então, cabe-nos questionar sobre o ser e a sua característica de velamento-desvelamento, de nunca permanecer de uma forma ou outra, mas, ao invés disso, nesse processo de ser e não ser. Seria possível ao ser não viver na impropriedade? E como fazer para que tal forma de existir não o afaste totalmente de uma existência que, sem pretender a completude do ser, o impede de viver as suas alternâncias? O que faria o ser se apropriar do seu si mesmo e sair da impropriedade? Sendo o ser um ser-aí, o que significa que ele é lançado ao mundo com o que já está aí, encontrando-se nessa abertura, como preservar o simesmo sem perder o ser-aí ? Como existir em relação, no ser-com, sem que se perca na impropriedade? A resposta, para alguns (Procópio, 1999; Almeida, 1999), está no cuidado. Como afirma Almeida: Através do cuidar, encontramos a constância do si mesmo, isto é, a posssibilidade de ele permanecer na resolução de ser simesmo próprio. O cuidado mostra-me que posso sair da impropriedade, de como se é e entrar na propriedade, ou seja, tomar posse do meu poder-ser, empunhá-lo, algo sempre jogado adiante e que nunca é aquilo já configurado, porque o poder-ser está sempre adiante de mim: a impropriedade está na realidade e a propriedade na liberdade. (p.7). Retomando o pensamento desse autor e levando-o adiante, quando diz que a propriedade está na liberdade, em razão do si mesmo abrir-se à sua experiência e às 69 suas possibilidades, ao processo de existir que nele ocorre todo o tempo, e o qual lhe aponta aquilo que nele lhe é singular e próprio. Esta é uma noção de liberdade que tem como fundamento a liberdade experiencial. Isto é, baseia-se na capacidade de abertura, própria do ser-aí, que permite ouvir a experiência, ser a própria experiência, como já o dissera Rogers (1975): A liberdade de que se trata aqui é de uma outra ordem. Relaciona-se essencialmente com a experiência. (...) Consiste no fato de que o indivíduo se sente livre para reconhecer e elaborar suas experiências e sentimentos pessoais como ele o entende. (p.46) Enquanto a noção de self, tal como proposta por Rogers, sustenta-se somente no que é consciente, o que Gendlin sugere é que a autenticidade seria um processo além do que chega à consciência. Assim, o cuidado de que falamos antes consistiria, além de tudo, na abertura à experiência, o que significa nem limitar e nem excluir a simbolização da experiência preconizada por Rogers, mas ampliá-la. Estar-no- mundo na propriedade, significa existir ao mesmo tempo num estado de abertura para o mundo, em relação, no ser-com, o que significa estar aberto à experienciação, que é a própria existência, num fluido e permanente processo de viver. Significa assumir o risco de escolher a cada momento o que se quer, o que se pode e não pode ser. Nesse processo, a capacidade de se contatar com a experiência sentida nesse mundo de relação, bem como a sua conscientização, é fundamental para que o ser se conduza de forma responsável e autêntica em direção à realização dos seus projetos, sem que se perca do seu si mesmo e caia na impropriedade. Outro aspecto passível de aproximação entre as idéias de Rogers e Heidegger refere-se à cotidianidade, constituinte da existencialidade, condição em que é enfatizado o papel que o outro, entendido como o impessoal, influencia o si-mesmo 70 do ser-aí. Isto quer dizer que é a partir da aproximação do outro indeterminado e da sua apropriação indevida, na convivência do ser-com-no-mundo, que o homem se perde de si-mesmo. Assim, mais uma vez, instaura-se uma proximidade entre as idéias desses homens, pois Rogers destaca claramente a importância que o outro desempenha na construção de um modo de ser inautêntico desse homem, de modo que tal perspectiva nos faz reconhecer, em ambos, a relevância do mundo cotidiano na não-verdade do ser ou da pessoa. Relevância essa expressa pelo outro, que também é parte do si-mesmo, já que o ser-com é parte do ser-aí, na ruína ou decadência, ou mesmo na existência incongruente ou inautêntica, como dizem Rogers e Gendlin. A diferença mais visível a ser destacada nas idéias desses homens nas questões que vimos discutindo até agora, refere-se aos lugares de onde eles falam. De um lado, contempla-se o homem de um horizonte filosófico, ôntico; de outro, o homem é visto sob a luz das suas vivências individuais e subjetivas, num processo experiencial e sob a ótica de uma teoria psicológica. Embora Rogers seja interpretado por alguns como positivista na sua formulação teórica, é possível entender o self como uma dimensão através da qual o ser se revela; ou seja, é possível fazer uma leitura fenomenológia e existencial do self, de acordo com o pensamento de Heidegger. Claro está que um dos aspectos que afasta essas teorias se situa em relação ao alcance da filosofia de Heidegger, evidenciada na sua ontologia. Exemplo disso é a sua concepção de dasein: ser-aí, mergulhado num mundo e inseparável dele. Enquanto isso, embora Rogers pretenda dar um caráter total à existência concreta do homem através do self e o campo fenomenal, ainda assim a sua 71 concepção se mantém restrita, prioritariamente, às experiências subjetivas, conscientes, e que falam do mundo vivencial e psicológico. Se pensarmos esse aspecto em relação ao ser-aí, que tem no aí a abertura ao mundo, o que o remete para além de um mundo que privilegia o subjetivo e experiencial, não restam dúvidas de que noção de self é superada por esse conceito; além disso, por tratar-se de uma ontologia que visa alcançar o sentido do ser e a sua verdade, esta concepção é certamente muito mais ampla do que o self, que tem na teoria de personalidade de Rogers, a sua morada. Apesar dessas diferenças, entendemos o self como identificado com o que é denominado de si mesmo por Heidegger. Sendo assim, o self poderia ser pensado como uma revelação do ser-aí; seria a dimensão concreta e vivencial do desvelamento do ser, que se mostra no mundo concreto, em determinado momento da existência, através de uma percepção ou modo de estar-nomundo. O caráter fenomenológico e existencial do self pode ser facilmente identificado nas seguintes palavras de Rogers, ao considerar o processo psicoterápico na Terapia Centrada no Cliente: O ponto final do processo é o momento em que o paciente descobre que pode ser (grifo do autor) a sua experiência, com toda a sua variedade e contradição superficial; que ele se pode definir a partir da sua própria experiência (grifo meu), em vez de tentar impor-lhe uma definição do seu eu, negando-se a tomar consciência dos elementos que não entram nessa definição. Rogers, (1974, p. 81) Vemos o self, então, muito mais como um meio de se exercitar a abertura do ser-aí, na medida em que ao abrir-se à experiência do modo como ela se apresenta para o indivíduo no mundo, ele também estará abrindo-se e disponibilizando-se para 72 mergulhar nas suas posssibilidades de ser. Como destacamos na citação acima, a experiência permite ao indivíduo ser quem ele é, a se apropriar da sua experiência e, ao fazê-lo, também estará se apropriando do seu ser-no-mundo. Assim, podemos dizer que o self, aqui entendido como o fluxo de sentimentos que compõe a experienciação, poderia ser entendido como uma revelação do ser, o qual, pela sua natureza, se revela e se vela, seguindo o mesmo fluxo da experienciação. Pensamos que, contactar e se apropriar da experiência nos faz retomar o si mesmo; é o cuidado, que nos leva a nos desvincularmos, aos poucos, do impessoal, situado nos outros do cotidiano. Significa um retorno ao si mesmo, ao ser verdadeiro e, assim, existir na propriedade, como fala Heidegger. Por mais que se aponte a tradição positivista de Rogers e, conseqüentemente, a sua teorização do self, herdeiro dessa tradição, difícil será não reconhecer, apesar disso tudo, uma construção teórica que carrega, no seu âmago, uma filosofia que valoriza a experiência de se estar-no-mundo de maneira concreta e vívida. Heidegger (1927, v.II, p.52) diz que o ser si-mesmo em sentido próprio determina-se como uma modificação existenciária do impessoal. Ao pensar sobre isso, vemo-lo sinalizar para um questionamento que vimos fazendo ao longo deste trabalho, em relação ao si-mesmo; mais precisamente, a essa expressão tal como utilizada por Rogers e por esse filósofo. Temos nos perguntado sobre o que haveria de comum entre essas expressões. O que, concretamente, Heidegger quer dizer ao falar em si-mesmo? Quais as dimensões concretas que constituem esse pressuposto? Ou seja, como é possível abordar o si-mesmo na cotidianidade para que não se torne uma expressão 73 essencialmente abstrata? Pensamos que é isso que a Análise Existencial , através de Biswanger e Boss (1979), se propõem a fazer, quando transferem a ontologia heideggeriana para o contexto da psicologia clínica. E aqui esboçamos uma tentativa de promover um pensar sobre tal pressuposto numa direção que possa delimitar as fronteiras entre o que é pensado por Rogers e pelo filósofo. Inclinamo-nos a pensar e a interpretar o si-mesmo como sendo um voltar ao ser próprio, verdadeiro, de cada um. É saber que distante da impessoalidade do cotidiano, algo nos diz do que em nós é verdadeiro e do qual podemos nos apropriar e lançar-nos ao mundo, com autenticidade. Em que consiste tal revelação? Propomos que Rogers pode favorecer ou pelo menos lançar uma luz visando este entendimento. Vale lembrar que a singularidade que tratamos aqui não significa a ausência do mundo na experiência. Partimos do princípio de que esse homem do qual falamos está inserido num mundo e dele faz parte em todas as situações. O reconhecimento de que algo me é próprio, pode surgir na experiência, no sentir, no afeto, na sensação, ou seja, na experienciação. Alguma coisa que poderá nesse momento primeiro, traduzir-se apenas num estado afetivo, de humor, numa disposição, o que se situaria naquilo que é denominado de befindlichkeit, pela ontologia heideggeriana e que constitui, igualmente, a experienciação. Esse estado ou experiência também pode ser reconhecido conscientemente, como algo que diz de mim mesmo, vivência que, inclusive, poderá ainda ser articulada ao mundo através da linguagem, que servirá de veículo para que se manifeste o estar-no-mundodaquela-maneira. Certamente essa visão também comporta a inclusão do self, tal como proposto por Rogers, como uma expressão do si-mesmo, desta vez restrito à 74 dimensão consciente da experiência. No entanto, se trouxermos Gendlin (1970) para esta discussão, com a sua formulação de experienciação a qual, sem negar a noção de self rogeriana, empresta-lhe um caráter mais amplo, incluindo dimensões que alcançam o mundo vivido e concreto da existência, e que não se atém à dimensão consciente da experiência, como o faz Rogers, certamente fica mais próxima a discussão que vimos empreendendo até aqui. O que nos leva a sugerir, então, que o self poderia ser a tradução psicológica do que é tratado por Heidegger como o simesmo, expressão do ser-aí. A experienciação, segundo Gendlin (1970), envolve um processo vivencial corporalmente sentido, sem que se manifeste, necessariamente, no nível consciente. Constitui-se, de acordo com o seu pensamento, num processo essencialmente existencial de viver. É assim que ele concebe a autenticidade, de acordo com a sua teoria de mudança de personalidade e da experienciação. Para Gendlin, ser autêntico significa seguir o fluxo da experiência imediata, que ocorre o tempo inteiro, simplesmente porque é esse processo que nos permite dizer que existimos. É um fluxo constante e permanente de experiência, um processo que é corporalmente sentido, e que se torna uma referência pela qual nos posicionamos diante do mundo, efetuando escolhas, nos afirmando na existência e nos apropriando dela. Esse conceito nos ajuda a entender que mesmo se sabendo da impossibilidade de distinguir no processo de viver, a fronteira entre o que é vivido, chamado de mundo interno e o que pode ser nomeado de mundo externo, sinaliza para a vivência de estar-se existindo concretamente, através da experiência, que pode ser reveladora de uma dimensão do si-mesmo. Pensar dessa forma permite-nos levar adiante 75 algumas reflexões sobre a prática psicoterápica, tendo como ponto de partida as questões filosóficas ressaltadas aqui. Assim, passar de uma forma de-cadente e impessoal de viver, para assumir o próprio ser, exige que se efetue escolhas a partir do si-mesmo. E o que isso significa senão ter uma nova visão do mundo e das alternativas que a vida oferece, vislumbrados a partir do que se sente, se pensa, se quer ou se percebe como compatível com o que sou? Não se constituiría isso na obtenção de uma percepção mais profunda e sentida como pertencente a si-mesmo, a qual norteia e influencia uma determinada maneira de estar-no-mundo? Isso é o self. À medida em que se assume uma escolha, do mesmo modo se estaria assumindo uma experiência subjetiva que se impõe na sua verdade e a qual se constrói não de forma isolada, alheia ao mundo circundante, mas no ser-no-mundo. A idéia de Rogers ao propor a teoria de personalidade, é esta. Infelizmente, na tentativa de formular uma teoria com status científico, o que para ele parece significar a ciência experimental, e ao seguir aquela parte da sua formação de tradição metafisica13, faz do homem um ser fragmentado no seu estar-no-mundo, dividido em experiências conscientes e inconscientes. Em razão do que, tanto Rogers quanto outros autores e suas propostas de entendimento do homem não encontram acolhida em pensamentos filosóficos como aqueles afirmados por Heidegger, pelo fato de conceberem este homem a partir de uma visão psicológica que acaba reduzindo a sua existência a um self, ego, consciência ou algo semelhante. 13 exemplo disso é a sua tentativa de quantificar o grau de maturidade obtido na terapia, através de um instrumento de inspiração positivista: ROGERS, C. (1954), Changes in the maturity of behavior as related to therapy, Chicago, USA, Chicago Press, 1954. 76 Heidegger faz uma crítica ao personalismo da teoria de Husserl, que serve, com muita propriedade, à teoria de personalidade de Rogers, alvo do nosso interesse neste trabalho, principalmente na questão do self. Diz ele que mesmo a interpretação fenomenológica da personalidade, em princípio mais radical e lúcida, não alcança a dimensão da questão do ser da pre-sença (p.83). A pre-sença é um ente que, na compreensão de seu ser, com ele se relaciona, e comporta. Com isso, indica-se o conceito formal de existência. A pre-sença existe. Ademais, a pre-sença é o ente que sempre eu mesmo sou. Ser sempre minha pertence à existência da pre-sença como condição que possibilita propriedade e impropriedade. A pre-sença existe sempre num destes modos, mesmo numa indiferença para com ele. (1927, p. 90 ). Esta formulação nos permite compreender que a pre-sença, sendo ela mesma, sempre se dá de acordo com o se apropriar ou não dela mesma (grifo meu), refletida numa forma de ser que se apropria, propriedade; ou que não se apropria, impropriedade, dela mesma. Então, quando aproximamos a forma de ser preconizada por Rogers como incongruente, ou como diz Gendlin, inautêntica, podemos interpretá-las como uma expressão da pre-sença, desta vez acontecendo na impropriedade. Ou seja, os conceitos psicológicos propostos por aqueles psicólogos podem ser interpretados ontologicamente, como constituindo-se numa expressão do ser, seja na propriedade ou na impropriedade. A partir das discussões e problematizações realizadas até este momento, inclinamo-nos a pensar na possibilidade de uma aproximação entre Heidegger e Rogers, partindo de algumas das suas idéias, as quais acabamos de expor. 77 Deve-se ressaltar o fato de que falamos de teorias de distintos campos de saber e, desta forma, tratando de objetos de estudo diferentes. E ainda que, mesmo reconhecendo-se a natureza positivista e fragmentada com a qual Rogers aborda o homem, é possível identificar, no seu pensamento, uma filosofia de inspiração fenomenológica e existencial. Esse reconhecimento nos permite tentar uma aproximação entre o seu pensar e o de Heidegger, principalmente a partir das mudanças na sua teoria, graças ao seu discípulo Gendlin. É com a ajuda da filosofia moderna aliada às proposições rogerianas sobre o desenvolvimento do self, que pretendemos compreender as tentativas de suicídio experienciadas pelos jovens participantes deste estudo. Contudo, uma questão ainda se coloca neste momento, e que concerne à escolha do jovem adolescente como protagonista deste estudo. Sabe-se que tanto o suicídio como a tentativa de suicídio ocorrem em todas as faixas etárias, embora ultimamente seja possível constatar-se aumento de tentativas de suicídio entre: pacientes com esquizofrenia (depressão esquizofrênica) e entre jovens. Entretanto, cabe-nos propor algumas indagações sobre a justificativa do nosso interesse e o que nos direcionou para esses sujeitos. Além disso, como entendemos essa fase denominada "adolescência" e como é por nós considerada? Em razão de tais considerações, achamos pertinente dedicar o próximo capítulo ao tema ao qual denominamos de "compreensão da adolescência". 78 CAPÍTULO III COMPREENSÃO DA ADOLESCÊNCIA 3.1. Definindo a adolescência A adolescência é reconhecida como a fase de transição entre a infância e a idade adulta14. Diversos autores ( Muuss, 1973; Pfromm Neto, 1976; Hollingshead, 1960; Hall, 1916), entre muitos outros, possuem a sua própria definição dessa fase, comumente amparadas tanto em critérios cronológicos e fisiológicos quanto psicológicos e/ou sócio-culturais, que envolvem este momento da vida do jovem. Também é verdade que esse momento representa uma descontinuidade no seu desenvolvimento, em razão de todas as mudanças que provocam na vida do indivíduo, e que se constitui em uma característica intrínseca desse mesmo processo de desenvolvimento. Assim Muuss (1973), define a adolescência: 14 A palavra adolescência é derivada do verbo latino "adolescere", significando "crescer" até à maturidade. Muuss (1973, p. 16). - De acordo com o Dicionário de Psicologia de PIÉRON, H., p. 9, adolescência é o período do desenvolvimento humano, correspondente à fase de maturação sexual e que assim conduz ao estado adulto. 79 Sociologicamente, adolescência é o período de transição da dependência infantil para a auto-suficiência adulta. Psicologicamente, adolescência é uma "situação marginal" na qual novos ajustamentos, que distinguem o comportamento da criança do comportamento adulto em uma determinada sociedade, têm que ser feitos. Cronologicamente, é o tempo que se estende de aproximadamente doze ou treze anos até a casa dos vinte e um, vinte e dois, com grandes variações individuais e culturais. (p. 16) No entanto, para Pfromm Neto (1976, p. 1), (..) embora não seja possível fixar limites universais e exatos para sua duração, os doze e os vinte anos, aproximadamente, são em geral admitidos como as idades iniciais e finais desta etapa. Para Aberastury (1981), ...adolescência (latim, adolescência, ad: a, para a + olescere: forma incoativa de olere, crescer), significa a condição ou o processo de crescimento. O termo se aplica especificamente ao período da vida compreendido entre a puberdade e o desenvolvimento completo do corpo, cujos limites se fixam, geralmente, entre os 13 e os 23 anos no homem, podendo estender-se até os 27 anos. Embora se costume incluir ambos os sexos no período compreendido entre os 13 e 21 anos, os fatos indicam que nas adolescentes se estende dos 12 aos 21 anos, e nos rapazes dos 14 aos 25 anos em termos gerais. (p. 89) A adolescência constitui-se numa crise no desenvolvimento da criança, decorrente primeiramente das mudanças corporais, com a puberdade, que paralelamente ou posteriormente é acompanhada pelas mudanças psicológicas, ao mesmo tempo em que sofre as influências sociais e culturais do contexto em que vive, o que vai provocar alterações na vida do jovem. Essas alterações nos níveis mencionados irão gerar conflitos no adolescente e, dependendo da forma como 80 forem vivenciados e absorvidos, poderão favorecer o desenvolvimento de uma identidade adulta com mais ou menos competências existenciais para se assumir esse novo lugar no mundo, pois é nesse momento em que se delineia, mais efetivamente, a identidade do adulto que surge. Podemos dizer que aqui se inaugura uma subjetividade adulta; como diz Ausubel15, apud Pfromm Netto ( 1976, p. 3), é um período de extensa reorganização da personalidade, que resulta de mudanças no status bio-social entre a infância e a idade adulta. Embora a adolescência seja considerada como um processo de desenvolvimento que ocorre a partir de mudanças físicas e psicológicas próprias desta fase, não é possível ignorar e deixar de reconhecer que a identidade do adolescente já vem se constituindo desde a infância; portanto, este período reflete não só o período anterior, bem como as novas mudanças maturacionais, numa reorganização dessas estruturas, como reconhece Psathas (1963). A constituição da adultez certamente não representa uma identidade totalmente original, uma vez que esta nova forma de ser-no-mundo traz consigo as influências das marcas das experiências infantis. Ao chegar à fase adolescente, o jovem sofrerá as influências de todas as alterações físicas e psicológicas, bem como da cultura na qual ele está inserido, o que, vale ressaltar, ocorre desde o momento em que o homem é lançado ao mundo. 3.1.1 Uma definição de identidade As discussões sobre a adolescência sempre envolvem a questão da identidade, uma vez que a transição do período de desenvolvimento infantil para o adulto, reconhecida como sendo a fase da adolescência, implica uma diferente organização 15 D.P. Ausubel, Theory and problems of adolescent development. New York, Grune & Stratton, 1954. 81 da identidade deste novo ser que se anuncia. Porém, discutir o conceito de identidade não se constitui em fácil tarefa, uma vez reconhecida a imensa variedade dos seus usos nos diversos contextos das ciências humanas. E nem é este o nosso objetivo neste trabalho. Para nós é suficiente esclarecermos e fundamentarmos o nosso entendimento acerca da noção de identidade à qual nos referimos aqui. Para isso, nos apoiamos nos estudos de Erickson (1976; 1987), que é reconhecido como aquele que cunhou o termo identidade, nos seus estudos sobre a infância e adolescência, e que é definido por ele como um sentimento subjetivo de uma envigorante uniformidade e continuidade (1987, p. 17), embora isso não signifique uma cristalização desse sentimento, pois, como enfatiza o mesmo autor, a identidade nunca é "estabelecida" como uma "realização" na forma de uma armadura da personalidade ou de qualquer coisa estática e imutável (p.22). Esse mesmo autor reconhece a dificuldade de se estabelecer algumas dimensões desse conceito, já que, para ele, estamos tratando de um processo ' localizado' no âmago do indivíduo e, entretanto, também no núcleo central da sua cultura coletiva; um processo que estabelece, de fato, a identidade dessas duas identidades ( ibidem, p.21). Nas suas palavras identificam-se, claramente, dois aspectos que compõem o sentimento de identidade, que passa a ser detalhado pelo autor e que revela a importância da presença do outro na constituição desse sentimento, reafirmando, assim, a impossibilidade de se dissociar a experiência subjetiva e a sua constituição, do mundo. Este pensamento é retomado ao longo deste estudo, razão porque o ressaltamos desde já. Erickson (1987), afirma que, 82 Se fizermos agora uma pausa para anunciar alguns requisitos mínimos que nos permitam sondar a complexidade da identidade, teremos de começar por dizer algo deste gênero ( e digamo-lo sem pressa): em termos psicológicos, a formação da identidade emprega um processo que ocorre em todos os níveis do funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si próprio à luz daquilo que percebe ser a maneira como os outros o julgam, em comparação com eles próprios e com uma tipologia que é significativa para eles; enquanto que ele julga a maneira como eles o julgam, à luz do modo como se percebe a si próprio em comparação com os demais e com os tipos que se tornaram importantes para ele. Este processo é, felizmente ( e necessariamente ), em sua maior parte, inconsciente- exceto quando as condições internas e as circunstâncias externas se combinam para agravar uma dolorosa ou eufórica "consciência de identidade". Além disso, o processo descrito está sempre mudando e evoluindo; na melhor das hipóteses, é um processo de crescente diferenciação e torna-se ainda mais abrangente à medida que o indivíduo vai ganhando cada vez maior consciência de um círculo, em constante ampliação, de outros que são significativos para ele- desde a pessoa materna até a " humanidade". O processo "inicia-se" algures no primeiro "encontro" verdadeiro da mãe e do bebê como duas pessoas que podem tocar-se e reconhecer-se mutuamente; e só " termina" quando se dissipa o poder de afirmação mútua do homem. Entretanto, como foi sublinhado, o processo tem sua crise normativa na adolescência e é determinado, de múltiplas maneiras, pelo que ocorreu antes, e determina grande parte do que ocorrerá depois. ( p. 21) A adolescência contém a pergunta: "Quem sou eu" ? Acrescentamos a esta, a indagação que fazemos ao longo de todo este trabalho: "Como é a experiência de não querer viver do adolescente?" Não temos dúvidas de que uma relaciona-se à outra, já que esta fase contém todas as ambivalências possíveis de serem vividas pelo adolescente, principalmente pela ambivalência dos afetos. É uma fase de constituição de um ser diferente do ser-criança, o que pode causar grandes sofrimentos e angústias àquele que a vivencia. Como afirma Cassorla (1998), É nesta fase também que o jovem entra em contato com uma realidade fundamental, que não pode mais negar ou odiar, como 83 fizera enquanto criança. Essa realidade é que ele é um indivíduo separado de seus pais, e que deverá encontrar-se consigo mesmo, com todas as dificuldades, turbulências e satisfações que essa busca determina. Encontrar-se consigo mesmo significa que agora terá que descobrir quem ele é, e a partir dessa constatação descobrir como usará esse seu "ser" para enriquecêlo com experiências e viver sua própria vida, permitindo-se ser alguém que sente que a vida vale a pena ser vivida. (p. 14) A reorganização da identidade do jovem sofre a influência direta da cultura onde está inserido; ou seja, a ideologia do mundo circundante se apresenta como aquela que preencherá os vazios ideológicos que esse novo ser busca preencher, cabendo-lhe um papel de destaque no sentido de poder constituir-se numa valorosa ou nefasta influência aos seus jovens. Isso por saber-se que nesse momento de vida, o adolescente busca identificações, ideologias, junto às figuras por ele mitificadas, os heróis, seus pares e, principalmente, através da cultura, cujos valores, assim espera o jovem, sejam distintos daqueles absorvidos pela sua identidade infantil e, dessa forma, possam legitimá-lo como um ser apropriado da sua nova condição de ser-nomundo como adulto. A esse respeito, Erickson (1987, p. 130), reconhece que, E, com efeito, é o potencial ideológico de uma sociedade que fala mais claramente ao adolescente que está tão ansioso por ser afirmado pelos seus pares, confirmado pelos professores e inspirado por "modos de vida" que valham a pena ser vividos. Por outro lado, se um jovem pressentir que o meio tenta privá-lo radicalmente de todas as formas de expressão que lhe permitiram desenvolver e integrar o passo seguinte, ele poderá resistir com o vigor selvático que se encontra nos animais que são forçados, subitamente, a defender a própria vida. Pois, de fato, na selva social da existência humana, não existe sentimento vivencial sem um sentimento de identidade. Da mesma forma que se fala na busca de identidade do jovem, é preciso, igualmente, ressaltar aquilo a que este último autor se refere como confusão de identidade, resultado da alienação que também é vivenciada pelo adolescente e que 84 faz parte da construção desse novo lugar no mundo por ele buscado. A dificuldade de se inaugurar uma nova identidade perfaz todo o caminho percorrido pelo jovem. Retornamos a Erickson (ibidem, p. 132), que interpreta com muita clareza esse momento: Em geral, é a incapacidade para decidir uma identidade ocupacional o que mais perturba os jovens. Para se manterem juntos, eles superidentificam-se temporariamente com os heróis de facções e de multidões, ao ponto de uma perda aparentemente completa da individualidade. Entretanto, nesta fase, nem mesmo o "apaixonar-se" constitui inteiramente- ou sequer primordialmente - uma questão sexual. Em considerável medida, o amor adolescente é uma tentativa para se chegar a uma definição da identidade própria mediante a projeção de uma imagem difusa da própria pessoa numa outra, vendo-a assim refletida e gradualmente aclarada. É por isso que boa parte do amor jovem é conversação. Por outro lado, o esclarecimento também pode ser procurado por meios destrutivos. Os jovens poderão tornar-se extraordinariamente dedicados a um clã, intolerantes e cruéis na sua exclusão de outros que são "diferentes", na cor da pele ou formação cultural, nos gostos e talentos, e, freqüentemente, em aspectos mesquinhos de vestuário e gestos, selecionados como sinais de "ser do grupo" ou "não ser do grupo". É importante compreender, em princípio (o que não significa que se justifiquem todas as suas manifestações), que tal intolerância pode ser, por algum tempo, uma defesa necessária contra um sentimento de perda de identidade. Isso é inevitável num período da vida em que o corpo muda radicalmente suas proporções, em que a puberdade genital inunda o corpo e a imaginação com toda a espécie de impulsos, em que a intimidade com o outro sexo se aproxima e, ocasionalmente, é imposta à pessoa jovem e em que, enfim, o futuro imediato a coloca diante de um número excessivo de possibilidades e opções conflitantes. Os adolescentes não só se ajudam uns aos outros, temporariamente, no decorrer desse conturbado período, formando turmas e estereotipando-se a si próprios, aos seus ideais e aos seus inimigos, mas também testam, insistentemente, as capacidades mútuas para lealdades constantes, no meio de inevitáveis conflitos de valores. Todos nós vivenciamos essa fase e por isso sabemos que é um momento de vida permeado por vivências dolorosas e também felizes; por buscas, incertezas e 85 angústias, e que levam o adolescente a mergulhar num mar de instabilidades, que beiram o limite entre o normal e o patológico, podendo constituir-se, assim, no lugar favorável ao não querer-viver, ou seja, ao suicídio ou à tentativa de suicídio. Tal “comoção”, como diz Aberastury (1981), é o que caracteriza aquilo a que Maurício Knobel (1981) denomina de “Síndrome normal da adolescência“. É a etapa dos desequilíbrios extremos e instabilidades pelos quais passa o adolescente. É uma fase necessária para o jovem, considerando-se que é nesse processo que ele vai estabelecendo a sua identidade de adulto, principal finalidade da adolescência, quando se perdem partes da sua personalidade infantil, através dos lutos vividos nesta fase, como propõe Aberastury (1981). 3.1.2 Breve retrospectiva acerca da Psicologia da Adolescência Embora seja possível identificar atualmente um grande interesse pelo estudo da adolescência, é somente no início deste século que a preocupação científica com a adolescência passou a existir, a partir dos estudos de G. Stanley Hall, considerado o pai da "Psicologia da Adolescência", segundo Muuss (1973). Para Pfromm Neto (1975), tal como a psicologia, o estudo da adolescência possui um passado longo, mas uma breve história, enquanto estudo científico, que tem início neste século. O interesse pelo jovem sempre esteve presente nas cerimônias de iniciação das civilizações primitivas, nas especulações filosóficas e textos literários produzidos ao longo da história da humanidade. Hall16 apud Muuss (1973), baseou-se na literatura alemã do final do século XVII, ao incluir os trabalhos de Schiller e Goethe e descreveu a adolescência como 16 G. Stanley Hall. Adolescence, (2 vol.), New York, Appleton, 1916. 86 um período de "tempestade e tensão". Este psicólogo fez uma analogia entre os temas desse grupo de escritores e as características da adolescência: idealismo, revolução contra o arcaico, manifestação de sentimentos pessoais, paixão e sofrimento. No entanto, estudos posteriores, realizados em sociedades primitivas por estudiosos da antropologia, entre os quais (Benedict, 1934), (Mead, 1928; 1930) entre outros, mostram que a adolescência não é necessariamente uma fase de conflitos e tensões, e evidenciam a relevância do aspecto cultural no processo da adolescência. Vários autores continuam a ver na adolescência uma crise, embora pareçam menos extremados do que Stanley Hall, como foi visto antes. Debesse (1958; 1960) e Anna Freud (1958), também consideram esse período como de perturbação; esta última, inclusive, afirma que tal perturbação constitui-se, ela mesma, na normalidade da adolescência. Tal opinião, por sua vez, vai ao encontro do pensamento de Aberastury (1980), ao identificar nesta fase uma "comoção" e Knobel (1981), ao referir-se à "síndrome normal da adolescência". 3.2. Adolescência, cultura e violência Segundo o pensamento de Arminda Aberastury (1980; 1981), são identificados no processo de desenvolvimento da adolescência três fases ou momentos vivenciados pelo jovem e que se relacionam aos seus lutos. O primeiro, diz respeito ao luto pelo corpo infantil, em razão das alterações fisiológicas e corporais características desta fase; o segundo, refere-se ao luto pela perda da identidade e dos papéis infantis, levando o jovem a assumir-se independentemente 87 diante do mundo; e o terceiro, é o luto pela perda dos pais da infância, o que é expresso pela ambivalência, tão presente nesses momentos, de busca de dependência e independência dos pais, numa tentativa de mantê-los como antes. Esta situação também é vivida com muita dificuldade pelos pais, que, ao verem os filhos crescerem, percebem, em si mesmos, o seu próprio envelhecimento e o quão prescindíveis já se tornaram na vida dos seus filhos. Todos esses aspectos irão configurar um quadro em que o jovem vive momentos de extrema instabilidade de humor, conduta, atitudes ambivalentes de dependência e independência, em busca de valores e referências que lhe propiciem a construção de uma identidade adulta. É nesse momento que o adolescente torna-se um receptáculo, devido à sua situação de vulnerabilidade, das influências da sociedade, principalmente da família, primeira reprodutora dos padrões e valores sociais. A Síndrome normal da adolescência, como afirma Knobel (1992, p.28), é o produto da própria situação evolutiva e surge da interação do indivíduo com o meio”. E continua: o adolescente isolado não existe, como não existe ser algum desligado do mundo, nem mesmo para adoecer. A patologia é sempre expressão do conflito do indivíduo com a sua realidade, seja através da inter-relação de suas estruturas psíquicas ou do manejo das mesmas frente ao mundo exterior. Temos, aqui, uma perspectiva que reforça a abordagem psicossocial que os principais suicidologistas, desde Durkheim (1992) já colocavam, ao afirmarem que o suicídio constitui-se num fenômeno social, transcendendo, dessa forma, a dimensão estritamente individual. Tal perspectiva conduz a maioria dos estudiosos das condutas autodestrutivas, como a tentativa de suicídio, à convicção de que o estudo 88 dos aspectos relacionados a tais condutas não pode prescindir de uma visão do indivíduo inserido no contexto social. Como diz Maris (1971) , não se pode negar a synergia; se preferirmos utilizar outras terminologias com significados semelhantes, podemos falar em Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo de Lewin ou até de Física Quântica e Holismo, para nos referirmos às redes de relações que são muito bem expressas no princípio de que “o todo é mais do que a soma das partes”. Esse princípio respalda a afirmação de que o sistema social é também uma importante variável a se considerar quando se busca compreender o que leva as pessoas a cometerem um ato autodestrutivo, o qual funda-se, sempre, numa ação de extrema violência que alguém comete contra si mesmo . A necessidade de se perceber a totalidade na qual o jovem se insere nesse mundo também nos remete à filosofia, quando se almeja contemplar o homem através de uma visão do ser do homem. Nessa mesma direção, portanto, encontramse as reflexões de Heidegger na sua ontologia, ao conceber o ser como constituído de uma vocação originária para estar-com o outro num mundo e existir numa abertura para um vir-a-ser constante na sua existência. Sabendo-se que a adolescência se constitui num momento de crise, assim o jovem se torna mais susceptível aos reflexos de uma realidade frustrante. Para Aberastury (1981), o adolescente detém uma vulnerabilidade especial para assumir as projeções da sociedade, seja ela macro ou micro (como é a família). Dessa forma, o adolescente pode representar um objeto propício às projeções, conflitos e aspectos doentios do meio em que vive. Esse pensamento também é compartilhado por Figueiredo (1998), ao questionar se não seria o adolescente um "pára-raios" das 89 impropriedades17 da nossa sociedade, uma vez que este ser possui uma sensibilidade e vulnerabilidade para se constituir num depositário das patologias sociais, como já afirmaram, além da última autora citada, Kalina e Kovadlof (1984) e Cassorla (1998). Nessa fase de desenvolvimento, ao mudar o seu corpo de criança para o de um adulto, o jovem também modifica o seu estar-no-mundo. Muda, principalmente, a sua identidade. Necessita, nessa etapa, adotar uma ideologia, valores e normas de conduta que possibilitem uma nova forma de estar-no-mundo como adulto. Porém nem sempre essa é uma tarefa fácil, considerando-se o mundo em que vivemos nesses tempos de final de século e globalização, o que torna oportuna a indagação: e se o mundo se encontra em transição, com a sociedade confusa, incoerente em relação às suas ideologias, valores morais e ética, como essa realidade irá influenciar a constituição da identidade nesse jovem ao qual nos referimos? E o que dizer dos pais, quando eles próprios, como parece ser a situação da maioria atualmente, experimentam a insegurança, incerteza e confusão diante da mudança dos valores da nossa sociedade globalizada e sem saberem como conduzir a educação dos filhos porque nem eles mesmos estão sabendo orientar-se em relação ao seu próprio rumo de vida ? Qual a influência que esse panorama exerce sobre os nossos jovens? Kalina e Kovadloff , (1984.p.26) enfatizam o papel do social e da cultura e afirmam que, a sociedade propõe ao indivíduo uma ordem alienada: pede-lhe que mude para se adaptar, que se adapte para obedecer, que obedeça para que nada se altere senão em função dos interesses daqueles que detêm o poder político e econômico. Quando descobre a injustiça, deve aceitá-la; 17 O autor denomina "impropriedade constitutiva", um modo de funcionamento psíquico marcado por uma condição de violência tão alastrada quanto invisível. Figueiredo, ( 1988, p. 55). 90 quando apreende o valor das perguntas, adverte, simultaneamente, a necessidade de calar. Suas contradições não são toleradas porque não há tempo nem recursos efetivos para lhe dar o apoio de que necessita. Sua solidão lhe oferece duas saídas definidas: encontrar um paliativo artificial ou renunciar à vida. Como se vê, a opção é drástica. Pede-se-lhe que escolha uma das duas formas de auto-sacrifício: ou o suicídio coletivo, socialmente legitimado (alienação, vícios, submissão ideológica), ou o suicídio pessoal que, entre outras formas, pode assumir perfeitamente a de qualquer dos extremismos políticos aos quais estamos tão acostumados em nossa época. A formação da identidade do adolescente é resultante da forma como o jovem vivencia os conflitos característicos dessa fase, tais como a perda do corpo infantil e o luto dessa perda, assim como o luto pela perda dos pais da infância, da bissexualidade, como acredita Aberastury (1980), aliados à sua história passada. Nesse período é crucial a maneira como os pais do adolescente lidam com essa crise, que, por sua vez, os remete à sua própria adolescência. Outro aspecto relevante é a cultura, como já foi ressaltado, assim como o contexto social que envolve o jovem e a sua família. A relevância do papel da cultura nesse processo de formação da identidade do adolescente é ressaltada nas idéias de Erickson (1987), Levisky (1998), Figueiredo(1998), Outeiral (1998) e outros. Nesse sentido, podemos dizer que, além da cultura propriamente dita, existe uma cultura do adolescente, que diz respeito aos valores, formas de condutas, atitudes e símbolos que são próprios do jovem. Tais aspectos irão determinar a maneira como este jovem vai se constituir como identidade social. A cultura do adolescente, à qual nos referimos antes, muitas vezes é intolerante com este, impaciente e preconceituosa; outras vezes, não. Existem 91 culturas que reconhecem esse período de passagem para a idade adulta, favorecendo a sua transição de forma positiva, quando formalmente criam rituais de passagem. Outras vezes, como acontece na sociedade brasileira atual, percebe-se uma cultura em que o adolescente é visto como protagonista de episódios de violência com os quais nos deparamos no cotidiano. A ênfase da violência recai, em muito, sobre os jovens, tão em moda nos noticiários da mídia. Como acredita Cassorla (1998), é preciso reconhecer uma relação estreita entre violência e adolescência, constituindo-se a tentativa de suicídio como uma das suas mais violentas formas de expressão, pensamento tão bem manifestado em suas palavras: A violência se manifesta na sociedade de várias formas, e ela poderia ser considerada a antítese do amor. A falta de condições básicas de sobrevivência é a violência básica; aqui incluímos desde a fome e a miséria, a falta de oportunidades e a coisificação do ser humano, visto como objeto de uso e abuso, desumanizado. Seguem-se os mecanismos sofisticados que impedem que a pessoa pense, manipulada por idéias perversas, por vezes travestidos de ideais de consumo, "religiosos" ou ideológicos. E, no meio disso tudo, nos defrontamos com a violência mais concreta que envolve maus-tratos, acidentes, tortura e morte, incluídas as condutas autodestrutivas. (p. 16) Levisky (1998) pensa que os adolescentes de hoje vivem os mesmos mitos presentes nas culturas primitivas, cujas características são a coragem, desafios e descobertas dos seus potenciais físicos e psíquicos. Assim, o grafiteiro que sobe vários andares de um prédio para deixar a sua marca, pode ser uma expressão dessa coragem e necessidade de afirmação, assim como o uso de drogas e até a morte voluntária podem significar uma forma de dizer: eu existo! 92 Podemos dizer que, se reconhecermos que a cultura na qual o indivíduo está inserido é extremamente importante para o seu desenvolvimento, o mesmo se aplica ao jovem, por constituir-se ele, assim como os outros entes, num ser que existe no mundo e a partir dele. O fato de se enfatizar o tema "adolescente" neste trabalho visa ressaltar, além do reconhecimento da cultura como fornecedora de elementos de identidade do indivíduo, que ao se falar em adolescente considera-se que, em razão dessa fase representar um período importante do desenvolvimento humano, marcado por características bem definidas, a cultura na formação da identidade do jovem assume um lugar dos mais relevantes, não devendo, por isso, ser ignorado, quando se pretende conhecer a experiência desses jovens. No âmbito da Psiquiatria e da Psicologia, o suicídio e as tentativas de suicídio de adolescentes têm sido objeto de estudo principalmente nas últimas décadas, o que não deixa de ser um período recente, considerando-se que esta questão caminha paralela à evolução do homem. A esse respeito, Chabrol (1990), reclama da pouca atenção dispensada a essas questões e argumenta que isso pode ser explicado em razão da psicopatologia do adolescente ser encarada como "previsível" (grifo do autor) e normal nessa fase de desenvolvimento. Tal argumento é enfatizado por Anna Freud (1958), que reconhece a normalidade das condutas inconseqüentes e imprevisíveis na fase adolescente. Consideramos pertinente a opinião do citado autor e ainda acrescentamos que as sinalizações emitidas pelo adolescente, tais como o isolamento, a depressão, a angústia, entre outras, muitas vezes são banalizadas e subestimadas e o que se vê posteriormente são condutas autodestrutivas, como as tentativas de suicídio. 93 Aberastury (1980), chama a atenção para o aspecto da inserção social do adolescente no mundo adulto. É nesse momento que o adolescente busca novos valores éticos, intelectuais e afetivos nos novos planos de vida que passa a estabelecer, o que sem dúvida não é vivido com poucos conflitos. Ao mesmo tempo em que o adolescente busca a liberdade, independência e afirmação, ele também sofre o conflito em relação à perda do corpo infantil, dos pais da infância e todos os lutos que essas perdas representam. Pensamos que pode ser nesse momento de vida do adolescente que se dá o "vácuo", o vazio existencial, conseqüência da impossibilidade de ultrapassar a dificuldade vivenciada, pela incapacidade de estabelecer projetos, metas e ideais de vida. O suicídio e as tentativas de suicídio também têm sido investigados sob a ótica da Psicologia Existencial, já que noções como morte, consciência, liberdade, projeto de vida , entre outros, fazem parte da condição humana, interesse principal tanto da doutrina filosófica do Existencialismo quanto da própria Psicologia Existencial. Angerami (1992), afirma que apesar dessa temática ser bastante "vulnerável e delicada", os estudos sobre o suicídio têm avançado, apesar de reconhecer que noções existenciais como tédio e solidão somente num passado recente ganharam a devida importância na análise do suicídio. Para ele é importante, igualmente, no que concorda com Kalina e Kovadloff (1984), que a compreensão do suicida passe por uma inserção dele na sociedade. E segue adiante colocando que do mesmo modo que existe uma correlação entre o suicida e a sua família, essa correlação também existe entre este e a sociedade em que vive e morre. Para Angerami (1992, p.50), existe uma relação significativa entre o suicídio e a solidão, o tédio existencial e a falta de sentido na vida. E afirma que o suicida em 94 seu gesto pode estar manifestando total falta de adaptação às próprias condições sociais e um profundo inconformismo diante da condição humana. Tillich (1976), referindo-se à questão da ansiedade, a qual pode ser associada ao desejo de morrer, relaciona esta ao "não-ser" em oposição ao "ser". Para Sartre (1978), um dos mais conhecidos existencialistas contemporâneos, o exercício da liberdade faz parte da condição humana e propõe que a existência precede a essência, o que significa dizer que o homem se constrói a cada momento. É agindo, existindo, que ele se faz. Considera que, o homem é, antes de mais nada, um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu inteligível, o homem será antes de mais nada o que tiver projetado ser. Não o que ele quiser ser. (p.6). E continua : um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem estes empreendimentos (ibidem, p.14). Heidegger (1927), por sua vez, também destaca a singularidade da existência humana, ao dizer que o ser é diferente de uma pedra, já que esta, diferentemente do homem, é incapaz de escolher, pensar e agir. Não há como separar a constituição da subjetividade desse jovem da cultura ou, melhor dizendo, do mundo no qual ele vive, nos seus mais diversos contextos: social, cultural, físico, biológico, etc. A dimensão subjetiva do ser humano não é um lugar isolado, separado do mundo que o cerca. O "ser-com", como a expressão já evoca, é um ser de convivência, de relacionamentos, que se constitui enquanto subjetividade através do outro, do seu olhar, da sua palavra, dos vínculos afetivos estabelecidos com esse outro. O "ser-aí" provoca o estado de abertura desse jovem 95 para o mundo; por isso ele se torna, principalmente nessa fase de mudança, um receptáculo às influências sociais, como bem o colocam Kalina e Kovladof (1984). O adolescente torna-se um campo fértil, onde muitos tipos de sementes podem ser plantadas, uma vez que, além da vulnerabilidade natural que o caracteriza nessa etapa de desenvolvimento, ele é um ser que, originariamente, se coloca existencialmente num estado de abertura para o mundo, o "ser-aí", de acordo com a ontologia de Heidegger (1927). A nova forma de estar-no-mundo que o jovem constrói nessa fase, envolve uma auto-imagem, um self, que é uma parte da experiência vivida por ele a cada momento. É o reconhecimento do que ele apreende e que surge na sua experiência, como representando o que ele é naquele momento. Significa, ampliando a noção de Rogers (1975), o seu-estar-no-mundo em cada momento da sua existência, que surge através da sua experienciação, a qual envolve o mundo circundante mais amplo que está aí, incluindo o passado, presente e perspectiva de futuro, numa dimensão de temporalidade que é constitutiva do ser. Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que vivemos num mundo onde se observa a perda de identidade das culturas, como, por exemplo, os índios Kaiowás, população onde o índice de suicídio é altíssimo (Meihy, 1991); a perseguição de valores vinculados ao sucesso a-qualquer-custo, a competição incentivada, sem falar na institucionalização da impunidade e da violência, que aos poucos passam a ser legitimadas pela nossa sociedade18, além das desigualdades sociais com as quais convivemos cotidianamente; e então, para sobrevivermos a essa 18 Quem não se recorda dos jovens que incendiaram um índio em Brasilia e que praticamente já foram absolvidos pela justiça ? 96 realidade, nos embrutecemos um pouco mais a cada dia. Podemos dizer que vivemos todos numa sociedade suicida, onde as pessoas se matam silenciosamente, em decorrência da falta de condições dignas e humanas de vida. É suficiente nos lembrarmos dos milhões de desempregados e das inúmeras crianças que morrem de desnutrição antes do primeiro ano de vida, para não falar nos milhares que não têm oportunidade de se alfabetizar ou que morrem à mingua nas portas dos hospitais por falta de uma política social que respeite e garanta aquele que é um direito sagrado e insubstituível de qualquer cidadão: o direito à vida. A adolescência se caracteriza por um comportamento crítico e rebelde dos jovens em relação aos valores sociais vigentes. É natural que se espere atitudes de revolta contra o modo de vida da família e da sociedade, reclamando por novos costumes e formas de vida, ou seja, ao que já está constituído como normas sociais e de condutas. No entanto, pensamos que o comportamento do jovem de hoje sofreu modificações, como é de se esperar em cada fase da história. O momento histórico que atravessamos nos leva a tecer algumas considerações a partir das características da sociedade atual. O que se observa nos nossos adolescentes de hoje, idéias que já vimos desenvolvendo antes, (Dutra, 1998), é um comportamento quase que totalmente alienado das críticas sociais, ao se submeterem, agora, não mais à autoridade da família, mas também esta, tal qual o jovem, se conduz através dos caminhos que a mídia e os valores da sociedade globalizada lhes aponta. Vemos os adolescentes, como a maioria dos adultos, fecharem os olhos, a boca e os ouvidos às questões políticas e sociais; conseqüentemente, à realidade que lhes cerca. A sua capacidade de rebeldia e contestação se encontra esmagada pelo poder dos meios de 97 comunicação. O jovem de hoje, diferentemente daquele de vinte, trinta anos atrás, já não carrega nenhuma bandeira política e ideológica como, por exemplo, a do Comunismo, a de Paz e Amor, Liberdade sexual, que caracterizaram os jovens dos anos sessenta. Porque até essa característica de rebeldia em favor dos seus ideais arrefeceu, e a única forma do jovem expressar a sua insatisfação é extremamente mórbida e destrutiva, recorrendo às drogas, ao sexo irresponsável em tempos de AIDS e cometendo o suicídio deliberado e consciente, além daqueles chamados de indiretos ou inconscientes, como são evidenciados através de determinadas formas de vida autodestrutivas e dos gestos suicidas. Este é o caso dos milhares de jovens drogados, alienados, ou que levam uma vida autodestrutiva (basta ver o alto número de acidentes de trânsito, os “pegas” ou “rachas”, a violência mortal nas escolas, o uso de armas e as lutas entre as gangues), sem falar no número de suicídios exitosos e nas tentativas de morte voluntária que têm crescido nos países do primeiro mundo e que se repetem no Rio Grande do Norte e em outros estados do Brasil. Podemos dizer que vivemos, todos, numa sociedade mórbida e suicida, a qual induz e favorece os jovens a não aceitarem o sistema de vida e projetos que lhes são oferecidos e à qual ele responde de uma forma radical, que é mostrando que não vale a pena viver. Todo esse panorama irá favorecer um dano à subjetividade do adolescente, o que é reconhecido por Levisky (1998), ao afirmar que as dificuldades existentes no estabelecimento dos contornos geográficos entre os diferentes níveis de subjetividade (intra, inter e transpessoal), geram elevadas doses de angústia, apatia, negação e desesperanças, terrenos propícios para as drogas e violência (p.27). 98 Nesse momento da vida o adolescente vê-se buscando, em razão da fase de desenvolvimento que vivencia, referenciais, valores e uma ideologia que muitas vezes ele não encontra em nossa sociedade, a qual, ao estabelecer os padrões sociais, cria uma escala de valores e propõe estilos de vida aos quais ele deve adequar-se. Esse jovem vê a sua auto-estima vincular-se e submeter-se às expectativas de realização dessa sociedade. Adota valores, conceitos e maneiras de ser que não refletem a sua experiência genuína, o seu verdadeiro ser, buscando, unicamente, corresponder às expectativas que o outro (família, sociedade) lhe impõem. Como diz Levisky (1998), o sentimento de impotência se exacerba e ampliam-se as frustrações pelas distâncias que se estabelecem entre ideal do ego insuflado pela cultura narcisista e as possibilidades de realização egóica (p. 29). Assim, esse jovem tenderá a orientar a sua vida muito mais em função de um si-mesmo idealizado, que pode ser traduzido como um ser absorvido pela cotidianidade, vivendo na decadência, como pensa Heidegger (1927). Tal generalização de comportamento contribui para a construção de uma sociedade massificada e inautêntica, na medida em que as pessoas perdem o contato com as suas experiências mais genuínas, com o seu ser verdadeiro e passam a se conduzir em função e em busca de uma imagem virtual, ideal, perdendo, cada vez mais, a coragem de ser, como disse Tillich (1976) e vivendo na impropriedade, como diz Heidegger. O jovem passa a vivenciar as suas experiências de uma forma inautêntica, já que as mesmas não se adequam ao seu auto-conceito, como bem o coloca Rogers (1974). A deficiência nesse processo de experienciação vai fazer com que as experiências mais autênticas não sejam vivenciadas. Tal modo inautêntico de viver 99 acarretará escolhas existenciais inadequadas, porque incompatíveis com o seu ser verdadeiro, levando a pessoa a uma existência marcada pelo fracasso, pela baixa auto-estima, irrealização e infelicidade, gerando uma total incapacidade de amar e ser amado. Dá-se, então, o vazio existencial e a falta de sentido para a vida, que podem levar o jovem a, numa postura fatal, querer sair do vazio e tentar preencher esse vácuo em que se encontra, ainda que seja em direção a um desconhecido que lhe resgatará do sofrimento, ainda que seja ceifando a sua vida através de um ato de extrema violência, como o são o suicídio e a tentativa de suicídio. Esta é uma das dimensões do poder de destruição que a sociedade atual tem sobre o psiquismo humano, e que é reconhecido por Levisky (1998): Na atualidade, a globalização associada aos poderes da mídia e econômicos exercem o maior controle, a maior escravidão praticada sobre a mente humana jamais conhecida. Junte-se a estes ingredientes as intensas e rápidas transformações tecnológicas e sociais e teremos como resultado a fragmentação da relação têmpora-espacial, regressões a estados primordiais da mente (concretude do pensamento, cisões, negação da realidade, onipotência, busca de satisfação imediata dos desejos, baixa tolerância às frustrações). Estas condições psicológicas favorecem a passagem ao ato e contribuem para o aumento da violência, graças a uma sociedade insuficiente para dar conta de toda a excitabilidade e frustração que gera sobre seus integrantes. (p.29). Contudo, a violência não pode ser considerada somente pelo seu aspecto nefasto. Esta é a idéia de Figueiredo (1998), que discorda da crença de se falar em violência somente sob um ponto de vista condenatório. Para ele, não há sociedade que seja destituída de fatos agressivos e violentos, acreditando que, ....se há, evidentemente, condições de violência excessiva e destrutiva, há, também, em qualquer cultura, uma prática inevitável e, atrevo-me a dizer, indispensável de violência, violência estruturante e constitutiva das subjetividades (p. 54). 100 O aspecto da crise ética e moral da sociedade globalizada, especialmente a sociedade brasileira, e seu reflexo na constituição da subjetividade do adolescente, também é abordado por este autor, ao referir-se à produção de falsos-selves: Em termos winnicottianos, poderíamos falar numa produção social de verdadeiros falsos-selves, com a ressalva de que, como veremos adiante, o caráter de impostura desta identidade nunca fica completamente dissimulado. (p. 58). Por outro lado, ele reconhece a dificuldade dos adultos, mergulhados que estão nessa impropriedade, para constituirem-se num amparo e poderem acolher esses jovens de forma segura nos desafios que eles lhes dirigem. Reconhece que o enfrentamento da imaturidade do adolescente é sempre problemático em qualquer sociedade (p. 63). E é ainda mais sério quando a sociedade, como a nossa, tal a diversidade de tipos de violência que temos presenciado e que nos acomete, ela mesma encontra-se às voltas com a impropriedade. O que leva o autor a hipotetizar a existência de um "sofrimento adolescente" no nosso país, maior do que seria esperado nas culturas menos cindidas e constitutivas de subjetividades menos dissociadas (p.63). Não poderia este panorama relacionar-se às condutas suicidas dos nossos jovens? Assim, no desespero que surge desse contexto psicossocial, a morte se apresenta não como um fim em si mesmo, pois como muitos já colocaram, o suicida não deseja morrer, mesmo porque a morte lhe é desconhecida, já que o que dela se conhece são manifestações que habitam o nosso imaginário de formas diversas. A morte surge como saída do sofrimento. A morte é a alternativa para calar a dor. A morte pode ser a alternativa para a solidão existencial que dilacera a vida. Como diz Angerami (1992, pág. 47): 101 A solidão ao transformar-se num processo contínuo e doloroso pode até culminar em suicídio. Ato de desespero quando não se enxerga nenhuma outra saída para uma situação insuportável. A morte se apresenta, então, como única alternativa para a sensação de não suportar o peso da própria vida, da própria condição humana. 3.3. Um outro olhar... Esta forma de ver o adolescente representa um olhar existencial sobre o momento de vida desse jovem. É uma perspectiva que vai além das mudanças biológicas, físicas, culturais e sociais. É uma perspectiva que enxerga não somente todas essas características, mas, acima de tudo, as supera, ao encontrar o tema maior da vida, que é a existência. Embora sejamos seres com características biológicas que nos fazem também um ser do reino animal, nos destacamos de outros animais justamente pelo fato de sermos dotados de uma experiência singular a cada um de nós, que é a nossa própria existência. Embora sejamos iguais aos outros seres vivos que habitam o mundo, deles nos distinguimos pela capacidade de pensar, sentir e falar, pois, como disse Heidegger (1927), a linguagem é a morada do ser. É através das palavras que o ser se revela, num jogo de velamento-desvelamento, que reflete o que na sua essência, cada ser humano é naquele momento da experiência. Nos dizemos pela experiência, com a linguagem. Assim também se passa com o jovem adolescente. Diríamos que mais do que no ente adulto, o processo de viver, de ser, torna-se, muitas vezes, mais penoso e intenso do que para aqueles. A crise da adolescência, vista sob esse ângulo, assume diferentes dimensões quando se pensa nos significados existenciais que essas 102 mudanças podem representar para esse ser que se instaura no seu novo mundo existencial. Perceber o corpo se transformando, assumindo novas formas, texturas, dimensões físicas e alterações semelhantes, que ao jovem ser se impõem, significa, talvez, sentir-se alçado a estar num novo patamar do mundo, sem que se queira ou esteja preparado para isso, porque nunca se sabe até onde irá essa transformação e quais implicações elas acarretarão no seu estar-no-mundo. Significa ter que se submeter a essa mudança, deixar-se levar pelos apelos do corpo e da alma, sem que se tenha qualquer domínio sobre eles. É uma explosão hormonal, fisiológica, que se acompanha de uma mudança existencial com todas as implicações que esse processo acarreta. É viver o risco de não escolher a posssibilidade que virá, já que todas aí já estão. É desconhecer-se num mundo já conhecido e repleto dos seus "lugares". Mudar fisicamente quer dizer, igualmente, mudar também fisicamente no mundo. Fisicamente e simbolicamente, significa começar a "perder" roupas e calçados. É não mais "caber" nos antigos tamanhos do seu mundo. Seja no mundo das coisas materiais, seja no mundo dos afetos. Crescer significa não caber mais no lugar da criança que era; e que às vezes precisa continuar sendo, pela impossibilidade de ser diferente. E isso causa angústia, sofrimento. E não só isso. Crescer é também tentar acompanhar a mudança fisica com a mudança psicológica, afetiva e emocional e estabelecer novos vínculos a partir desta nova configuração, o que geralmente não ocorre de forma simultânea. É viver esse descompasso com toda a perplexidade e estranheza que provoca. Que sofrimento pode isso representar! Contudo, nem sempre o adolescente é visto sob tal perspectiva. Costuma-se tratá-lo, comumente, de "aborrecente"! É a fase 103 das reclamações, inquietudes, contradições e irritações. E isso tanto aborrece quanto incomoda tremendamente os seres adultos. Mas também é a fase das grandes gargalhadas com os amigos...Da cumplicidade...Mas não com os pais, o que às vezes os coloca em situações regressivas de ciúme, inveja e sentimento de abandono.... Tudo isso porque o adulto geralmente olha para o jovem com o olhar de um ser distante, que não consegue sair desse lugar. Quando não, acontece o que disse antes: é o olhar que transporta as irrealizações, o que já foi e os projetos inconscientes do adolescente que ele foi e do que não foi ou não pode ser. O viver do adolescente é repleto de angústia, mesmo que ela se apresente de outras formas: como excessiva alegria, oposições constantes, condutas destrutivas e outras mais....Isso não exclui, certamente, as também verdadeiras experiências de alegria de viver. Porque tudo isso é parte da existência humana. As alternâncias...As contradições....As inquietudes....Ambivalência tão presente nesse momento, e que faz o adolescente viver tudo isso de forma intensa e visceral o processo existencial do que significa viver. É a existência que também se transforma junto com a voz, os pelos que crescem, os desejos pelo outro. Ser adolescente é experienciar na pele, no corpo, nos sentimentos e pensamentos, as transformações e a fluidez da existência. E também a incompletude. É um mar revolto que se precisa singrar, até se poder alcançar a calmaria. É um ensaio intensivo do que é a vida. É um risco constante de um ser que não se sabe e de um não ser intermitente, que surge na ambivalência de todos os momentos. Adolescer, crescer, é ter que se apropriar de um ser que se revela a cada momento, novo, e que inaugura a escolha de se ser o que não se sabe, a cada momento. Desde a aparente facilidade, para nós, adultos, de se escolher uma roupa 104 para sair, até a escolha dos amigos, lugares, jeitos de ser, preferências musicais, até a escolha da profissão, representam um risco que, pela sua novidade, implica em momentos de grande sofrimento e angústia. É uma fase de transformação. De transição, e em sendo assim, nada é completamente. Tudo é e não é. Todas as coisas existem num processo de vir-a-ser, próprio da condição humana, mas que surge na adolescência como uma tempestade que cai de repente e fortemente, sobre as cabeças do jovem, encharcando todo o seu ser. Adolescer é escolher, no novo que surge e que vai constituindo uma nova identidade, uma possibilidade entre tantas, desconhecidas, inauguradas naquele instante. Significa, mais do que tudo, ter que se apropriar de um ser que ainda não é...sendo. E isto, reconheçamos, é uma tarefa sempre existencialmente difícil. Viver os lutos do que já se foi, na adolescência, é também experienciar o serpara-a-morte. Significa também viver essa possibilidade do ser, que é a morte. E que para o adolescente é constante. A sua crise de passagem também significa que ele vive a alternância entre viver e morrer: do que já foi, ainda é e do que será. Surge no luto da criança que já não é, mas que ainda não deixou de ser completamente. É a vivência intensa da incompletude de um ser que se transforma, sem deixar de ter sido. É viver os lutos das perdas, a morte do ser, vivendo, ao mesmo tempo, com a perspectiva de um futuro, de um projeto que se faz a cada momento. Viver a adolescência, portanto, é experienciar todas as contradições que a condição humana nos oferece, de uma vez só, e intensamente. Por isso reclamamos mais respeito e compreensão a esses jovens. Pois ninguém, mais do que eles, sentem na pele todos os preços que a vida nos fazem pagar, ao escolher os nossos projetos. São eles quem mais se arriscam a viver na 105 impropriedade, a exercitar uma vida inautêntica, por se encontrarem numa situação de extrema vulnerabilidade existencial e, assim, presas fáceis para as armadilhas do mundo. O jovem é um ser que nesse momento da sua existência, ainda não é totalmente independente; pois é nesse momento que ele desenvolve uma identidade que servirá, também, de sinalizador para a sua apropriação do ser que ele é. Aqui se encontram as razões da escolha do adolescente como protagonista deste estudo. Embora sabendo que as condutas suicidas ocorrem nas diversas faixas etárias e pelos mais diferentes motivos, aos quais jamais poderemos responder de forma conclusiva, penso que com o adolescente, por todas as idéias apresentadas até agora, esses acontecimentos assumem uma feição diferente. A experiência de não querer viver, muitas vezes expressa através de uma tentativa de suicídio, como é visto neste estudo, pode ter uma configuração diferente, já que encontra-se envolta pelas singularidades que fazem desse período do desenvolvimento humano, a adolescência, uma fase tão crucial para a construção inicial e permanente, de uma existência que possa ser exercida de forma autêntica e consciente da sua condição de um ser de posssibilidades. O capítulo seguinte tratará da forma como se desenvolveu este estudo, o método utilizado e as razões que justificaram a sua escolha. 106 CAPÍTULO IV SOBRE O MÉTODO Embora esteja falando sobre essas coisas, mas eu me sinto bem agora. Acho bom estar falando. É bom porque eu conversando assim, eu desabafo mais. Você procura tirar tudo; quando a gente conversa com alguém sobre alguma coisa que aconteceu, algum problema, algum tempo atrás, já vai saindo do corpo e da memória, entendeu? Você vai procurando, é como se fosse uma alma perdida. Quando a gente morre o nosso espírito não sai do corpo? Então, pra mim é a mesma coisa quando eu vou contando as histórias pra pessoa; vai saindo aos poucos...a alma perdida...Que é a dor dos sofrimentos que eu já passei. Aí já vão saindo essas histórias da minha vida toda. Mas não é pra todo mundo que eu conto, mas só para as pessoas que eu confio é que eu conto. É alívio. Parece que a cada dia que eu conto a minha história diminui o meu sofrimento. (Excerto da Narrativa 2: Valda, 18 anos) 107 O trecho do depoimento de Valda nos diz da sua experiência, além de sinalizar o caminho metodológico percorrido nesta pesquisa, em direção àquilo que Benjamin (1994) chama de narrativa. A narrativa de Valda revela dimensões que envolvem uma perspectiva fenomenológica e existencial da pesquisa, pois trata, basicamente, da sua experiência ao viver uma tentativa de morte. Ela nos conta a sua história, narrando os fatos, acontecimentos e afetos que percorrem a sua trajetória vivencial. E na medida em que o faz, desvela a sua experiência, ao mesmo tempo em que a constrói e reconstrói, através da linguagem. Ao contá-la, ela nos introduz na sua vida, nos sensibiliza e nos coloca como participantes da sua experiência, fazendo do pesquisador um sujeito dessa experiência, a propósito do que, Schmidt (1990) afirma que cabe ao pesquisador colocar-se, então, mais como um recolhedor da experiência, inspirado pela vontade de compreender, do que como um analisador à cata de explicações (p70). A relevância da participação do pesquisador no contexto da pesquisa é enfatizada por vários autores, ao se referirem à modalidade da pesquisa qualitativa. Ainda que tal perspectiva metodológica não suponha a utilização de variáveis apriorísticas, diferentemente do método quantitativo, não implica na ausência do cientista, como coloca Triviños (1995, p.123): ...mas isso não significa que o pesquisador assuma uma postura neutra; ao contrário, ele é sujeito participante da pesquisa, diretamente implicado na relação pesquisador-pesquisado. (...) O investigador, sem dúvida, ao iniciar qualquer tipo de busca, parte premunido de certas idéias gerais, elaboradas conscientemente ou não. É impossível que um cientista, um buscador ou fazedor de verdades, inicie seu trabalho despojado de princípios, de idéias gerais básicas. 108 Carl Rogers expressa idéia semelhante a respeito da pesquisa, ao afirmar : Uma das minhas convicções mais profundas diz respeito à razão de ser da pesquisa científica e da explicação teórica. Em minha opinião, a finalidade capital deste tipo de empreendimento é a organização coerente de experiências pessoais significativas. A pesquisa não me parece, pois, alguma atividade especial, quase esotérica, ou um meio de adquirir prestígio. Vejo a pesquisa e a teoria como um esforço constante e disciplinado visando descobrir a ordem inerente à experiência vivida. ( 1975, p. 149). Schmidt (1990, p. 59), vincula o pesquisar (grifo meu) à experiência, quando afirma que, A pesquisa, muitas vezes, é a elaboração de elementos diversos e difusos da teoria e da experiência, elaboração construída em torno de um fenômeno. Nesse sentido, uma pesquisa concluída é o relato do percurso de um pesquisador ou de um grupo. É, então, na direção da experiência, que esta pesquisa se encaminhou, apoiando-se na narrativa como uma das suas formas de expressão. Este trabalho inspirou-se numa atitude compreensiva acerca da experiência contada, a qual, posteriormente, foi comentada e interpretada, tomando-se como base as reflexões filosóficas e teóricas às quais a experiência das entrevistadas conduziram, com o intuito de apreender os significados que nela se revelaram. 4.1. A experiência como uma dimensão existencial do vivido O termo experiência19 tem sido empregado para nomear situações das mais 19 Segundo o Dicionário de Filosofia, MORA, J.F., p. 263, o termo experiência é empregado em vários sentidos: 1) A apreensão por parte de um sujeito de uma realidade, uma forma de ser, um modo de fazer, uma maneira de viver, etc. A experiência é, então, um modo de conhecer algo imediatamente antes de todo juízo formulado acerca do apreendido. 2) A apreensão sensível da realidade externa. Diz-se então que essa realidade é dada por intermédio da experiência, mais comumente também antes de toda reflexão - e, como diria Husserl, pré-predicativamente. - De acordo com o Dicionário de Psicologia e Psicanálise, CABRAL, A., p. 113, experiência é a aquisição prática, pelo indivíduo, dos conhecimentos que o contato direto com os eventos físicos ou mentais lhe proporciona. Segundo E.B. TITCHENER, é a totalidade dos fenômenos mentais diretamente recebidos em determinado momento, assim excluindo a inferência 109 diversas. O uso dessa palavra costuma ser variado e confuso. No entanto, a experiência sempre nos remete àquilo que foi aprendido, experimentado, ou seja, aquilo que em algum momento, foi vivido pelo indivíduo. Na psicologia, não se dispõe de uma teoria da experiência, em razão do que, tal termo tanto pode referir-se a um objeto de pesquisa relacionado a um experimento, no contexto da pesquisa experimental, como também nos remete à dimensão vivencial da psicoterapia, ao mundo vivido, singular e existencial do indivíduo. Assim Rogers (1975, p. 161) define experiência, segundo a sua teoria: Esta noção se refere a tudo que se passa no organismo em qualquer momento e que está potencialmente disponível à consciência; em outras palavras, tudo que é suscetível de ser apreendido pela consciência. A noção de experiência engloba, pois, tanto os acontecimentos de que o indivíduo é consciente quanto os fenômenos de que é inconsciente. A noção descrita pelo criador da Abordagem Centrada na Pessoa constitui-se numa definição psicológica e refere-se a todos os acontecimentos que ocorrem no mundo fenomenal ou campo perceptual do indivíduo; referese, ainda, a tudo aquilo que afeta a experiência vivida no momento, sejam esses aspectos conscientes ou inconscientes. Ou seja, podemos entender a experiência, tal como proposta por Rogers, como referência ao mundo vivido, ao momento existencial da pessoa, incluindo-se aí todas as vivências que compõem tal momento, mesmo que algumas delas não sejam conscientes, mas certamente fazem parte e influenciam o seu estar-no-mundo em determinado momento. 110 Nesse sentido, experimentar, para Rogers (ibidem, p. 162), representa a "versão-processo" da experiência. Reitera o que já foi dito antes, pois relaciona-se "ao aspecto vivido, ativo e mutável dos acontecimentos sensoriais e fisiológicos que se produzem no organismo". Gendlin (1970), um dos mais produtivos colaboradores de Rogers, propõe uma teoria do experienciar (Gendlin, 1962), e sugere que o experienciar seja considerado um processo, devendo ser visto em termos do quadro de referência desse processo. No entanto, a palavra experiência, ainda que de usos muitas vezes confusos, em psicologia sempre significa " eventos psicológicos concretos" (idem,ibidem, p.138), o que nos conduz ao significado de experienciar como querendo dizer um processo sentido, experimentado interiormente, corporalmente sentido e que torna o material concreto da personalidade ou seu conteúdo constituídos por esse fluxo de sensações corporais ou sentimentos. Para Gendlin (1973), a experiência já está sempre organizada pela, ou nas situações. Este autor propõe-se a discutir fenomenologia e análise lingüística a partir da filosofia da experienciação, refletindo sobre uma nova abordagem fenomenológica, que solucionaria o problema básico para uma diferente forma de abordagem. 4.2. Experiência e Linguagem Gendlin (1973) entende que ser-no-mundo é a forma de Heidegger definir os humanos como ser-aí, como experienciando situações. De acordo com ele, as situações são diferenciadas através da linguagem e distinções lingüísticas em muitas 111 texturas de situações com as quais nós vivemos.A linguagem é usada para distinguir situações e para diferenciá-las. Quando se estuda experiência e afirmações em relação às experiências, é preciso estar claro que elas já estão ou são sempre relacionadas e essa relação ocorre em torno de situações. Assim, não se estuda experiência pura como se ela fosse um tipo de massa, pois a experiência é sempre organizada pela história evolucionária do corpo e também pela cultura e situações organizadas parcialmente pela linguagem (p. 291). Embora a linguagem esteja sempre envolvida na complexa organização da experiência, ela nunca está totalmente envolvida. O papel da linguagem não diz tudo de uma experiência. Quando se relaciona a linguagem a uma situação, não se está fazendo isso pela primeira vez, pois a linguagem já está envolvida na experiência. Nesse momento, Gendlin se refere a um método criado por ele, de focalização, que pretende fazer referência direta ao processo de sentimento, ou seja, à experiência. Assim, quando a experiência direta serve como base para afirmações ela não está à parte da situação, já que a estrutura situacional está implícita. É possível, por isso, estruturar situações com sentimentos e palavras (Gendlin, 1973). Refere-se aos passos da referência direta ( uso de palavras para afirmar, separar alguns aspectos da experiência que podem ser chamados "este"ou "aquela" experiência ). As palavras usadas podem ser pronomes demonstrativos ou podem ser algo descritivo. O que eles dizem pode ser vago, mas "apontam" para alguma coisa, sendo esta a principal colocação da sua teoria, afirmando que no processo de referência direta, no “reconhecimento”, o sentimento parece chamar pela palavra. Se alguém tem o sentimento, então a palavra vem. A relação entre palavras e 112 experiência aparece aqui como uma relação direta- a palavra diz a experiência, a experiência chama pela palavra (p.263). Esse pensamento de Gendlin coloca a linguagem num lugar privilegiado dentro da fenomenologia, pois, de acordo com essa última frase, através da palavra pode-se abordar ou encontrar a experiência, a existência, o ser-aí, o ser-com, pois a linguagem, trazendo o sentimento à tona, revela também a situação, ou o contexto situacional, já que todos estão relacionados entre si. 4.3. A experiência segundo o pensamento de Walter Benjamin Benjamin (1994), filósofo alemão, tinha como conceito central de sua filosofia, a experiência e, como expressão desta, a narrativa. Dizia ele que a narrativa é uma forma artesanal de comunicação. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele (idem, p. 205). Embora, na sua opinião, a narrativa estivesse desaparecendo (ele escreveu sobre isso nos anos 40), já que a experiência estava em baixa, esta seria a forma de comunicação mais adequada ao ser humano, já que reflete a experiência humana. Por essas razões, adotamos a narrativa como método de pesquisa desta tese. Entretanto, a despeito da opinião desse autor sobre o desaparecimento da narrativa, ainda assim esta forma de pesquisar a experiência tem sido bastante adotada nos meios acadêmicos. Exemplo disso é a pesquisa realizada por Morato e Schmidt (1998) que estudaram, através de narrativas, a experiência de alunos num curso de psicologia. Há quem advogue, inclusive, em favor da utilização da narrativa de forma bem mais ampla, pelos pesquisadores atuais. Daí originam-se os 113 questionamentos de Schmidt (1990), se não seria adequado e pertinente, para os pesquisadores atuais, ... trabalhar a sua experiência e a de outros (incluindo-se sujeitos de pesquisa, pesquisadores e teóricos), transformando a pesquisa num produto que, embora possa não ter a solidez e a durabilidade das narrativas de outros tempos, seja útil enquanto apreensão e elaboração de fragmentos da realidade vivida? (p.64). Para Benjamin (1994), na narrativa o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros (p.201) É a narrativa, pela sua característica oral, aquela que mantém as tradições e as conserva, o que não ocorre quanto ao romance, que se origina do indivíduo isolado e trata, geralmente, do sentido da vida, encerrando sempre a história com um final que é, então, imposto ao leitor. Na narrativa, por sua vez, o conselho, como forma de sabedoria, está presente. No entanto, aqui, o conselho é encarado de maneira distinta daquele assimilado pelo senso comum, uma vez que aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada (p.200). Assim, o conselho passa a significar a continuação de uma história que se tece à medida em que é contada, e carrega consigo a sabedoria de um saber que perpassa o tempo. Um outro aspecto que favoreceu o declínio da narrativa foi o surgimento de uma nova forma de comunicação, a informação. Surge como reflexo de um momento histórico em que a burguesia se consolida, passando a imprensa a representá-la, como um dos seus mais importantes instrumentos. 114 A informação, além de ser estranha tanto ao romance quanto à narrativa, passa a ser mais ameaçadora à preservação da cultura da experiência, uma vez que a informação precisa ser plausível, o que não acontece com a narrativa, que não pretende explicar ou informar qualquer fato. A consolidação deste tipo de comunicação, a informação, implicará na alteração do que se entende por saber. Se antes o "saber" vinha de longe, seja este entendido na sua dimensão temporal ou no sentido de se perpetuar na tradição, com a informação passa-se a exigir uma verificação imediata do que se comunica. Com a narrativa tal não ocorre, em razão do que o autor responsabiliza a informação pelo declínio da narrativa. Nesse sentido, os fatos e as informações já vêm trazendo as suas explicações, diferentemente da narrativa, já que, segundo Benjamin (ibidem, p. 203), metade da arte da narrativa está em evitar explicações. A propósito do que, faz referências a um texto de Leskov, escritor russo, afirmando que o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (p.203). Benjamin considerava a arte de contar uma história, um acontecimento infinito, pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois (p.37). Desse modo, a narrativa, ao invés de ser uma lembrança acabada de uma experiência, ela se reconstrói à medida em que é narrada, uma vez que narrar alguma coisa consiste na faculdade de intercambiar experiências, configurando-se naquilo que Eco (1993 ) chama de obra aberta, posição antecipada por Benjamin (1994), na sua obra " O Narrador", segundo prefácio da obra aqui referida. 115 A narrativa contempla a experiência contada pelo narrador e ouvida pelo ouvinte da narração. Este, por sua vez, ao contar aquilo que ouviu, transforma-se ele mesmo em narrador, por já ter amalgamado à sua experiência a história ouvida. E esta é a mesma situação da clínica. A consonância com tal modo de pensar a experiência e a narrativa como a sua expressão, levaram-nos a eleger a narrativa como técnica metodológica deste estudo. Através da narrativa, buscamos apreender a experiência, tal como ela é vivida pelo narrador, neste caso, os jovens adolescentes que tentaram suicídio. Entendemos que a modalidade da narrativa mantém os valores e percepções presentes na experiência narrada. É a história de uma tentativa de morte que está sendo transmitida naquele momento para o pesquisador. O narrador não "informa" sobre a sua experiência, mas conta sobre ela, dando oportunidade para que o outro a escute e a transforme de acordo com a sua interpretação, levando a experiência a uma maior amplitude, tal como acontece na narrativa. A narrativa tem a capacidade de suscitar, nos seus ouvintes, os mais diversos conteúdos e estados emocionais, uma vez que, diferentemente da informação, ela não nos fornece respostas. Pelo contrário, a experiência vivida e transmitida pelo narrador nos sensibiliza, nos alcança nos significados que atribuímos à experiência, assimilando-a de acordo com as nossas. Nesse sentido, a narrativa se aproxima daquilo que se constitui como uma obra aberta, já defendida por Eco (1993) que, ao propô-la, faz uma distinção entre esta e uma obra acadêmica e científica, distinção esta em torno da criatividade. Discorda, inclusive, de Paul Valéry, que afirma "il n'y a pas de vrai sens d' une texte" e conclui afirmando que um texto pode ter muitos 116 sentidos (p.165), que é o caso da obra aberta. Porém não aceita a opinião de que um texto poderá ter qualquer sentido. A narrativa, tendo florescido no ambiente artesanal, seja ele na terra, nos campos ou no mar, pode ser vista como uma forma artesanal de comunicação, como lembra Benjamin: Contar história sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. (1994, p. 205) O autor, na sua forma de ver a narrativa, reconhece-a, legitimando-a, como expressão de uma dimensão fenomenológica e existencial. Supõe que, de uma certa maneira, o ato de contar e ouvir uma experiência envolve um estar-com-no-mundo, uma relação de intersubjetividades, que se dá num universo de valores, afetos, num passado que se articula com o presente e apoiado numa situação que reflete, revela, conserva e transcende o mundo em que esses personagens estão inseridos. Podemos confirmar esse pensamento quando ele diz que quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia (p.213) Pensamento que também é compartilhada por Schmidt (1990 ), ao reconhecer que , A narrativa é preciosa pois conecta cada um à sua experiência, à do outro e à do antepassado, amalgamando o pessoal e o coletivo. E o faz de uma maneira democrática ou, mais precisamente, da única maneira possível para que uma prática social seja democrática- fazendo circular a palavra, concedendo a cada um e a todos o direito de ouvir, de falar e de protagonizar o vivido e sua reflexão sobre ele. (p. 51) 117 Portanto, ao se trabalhar com as narrativas de jovens adolescentes sobre as suas tentativas de suicídio, estamos não só participando da sua história expressa na experiência vivida, mas também participando da sua reconstrução, através da profusão de sentidos, em função do seu não-acabamento essencial , como diz Jeanne Marie Gagnebin, no prefácio das Obras Completas de Benjamin (1994). Significa ainda dizer que esse não-acabamento expressa o sentido de abertura que constitui o ser na sua existencialidade. 4.4. Experiência e Interpretação A nossa compreensão do sentido de interpretação, tal como utilizado neste trabalho, apóia-se no entendimento sugerido por Figueiredo (1994), para um novo sentido da interpretação. Ele propõe uma terceira via de entendimento da interpretação, além de outras duas mais comuns, e apontadas por ele; aquela que envolve um juízo reprodutivo e outra, que considera o significado subjetivo da obra; ambas, no entanto, sustentando-se numa relação sujeito-objeto. Essa nova perspectiva concebe a interpretação como fala que responde a uma virtualidade entreouvida (p.19). Desse modo, a interpretação ...responde à obra, fala a obra, (realiza a obra) mas ainda não fala da obra, não é um julgamento da obra nem uma decifração dela na sua suposta objetividade. Esta interpretação não goza da liberdade que se espera de um juízo; ela é solicitada ao intérprete pela experiência que a obra lhe propicia (e se ela não propicia nada de muito notável, nada haverá para interpretar); ela é uma exigência ao intérprete colocada pela sua própria experiência com a obra. Esta interpretação tem, portanto, uma dimensão existencial. (idem, ibidem, p.20). 118 Embora o autor esteja se referindo ao contexto da clínica psicanalítica ao utilizar essa concepção de interpretação, e por isso distinto do plano da pesquisa científica aplicada, entendo que essa perspectiva assemelha-se ao significado da compreensão tal como a exercitamos não só na relação entre entrevistadorentrevistado, mas também no tratamento e interpretação da narrativa. Com isso quero dizer que a relação estabelecida nessa técnica de pesquisa, situa-se muito mais próxima de uma relação de intersubjetividades, própria do existir humano e da própria clínica e a qual se insere numa perspectiva existencial, do que aquela da pesquisa científica tradicional. Isso porque o encontro ao qual nos referimos aqui, implica na abertura dos sujeitos à experiência, nesse caso, pesquisador-pesquisado, quando um deles revela-se para o outro, que, por sua vez, é afetado por essa e na sua experiência. Para Figueiredo (1994, p.18), desde Heidegger, compreensão e interpretação são dimensões originárias do estar-no-mundo; ou seja, o homem é compreendendo o mundo que se abre para ele e interpretando os entes que se mostram a ele dentro do mundo. Para Heidegger, (1927, p. 204), A interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-versa. Interpretar não é tomar conhecimento de que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão. Compreensão e interpretação, desse modo, andam juntas em direção a uma abertura do ser. Isto é o que se pode depreender das palavras de Heidegger: Toda compreensão guarda em si a possibilidade de interpretação, isto é, de uma apropriação do que se compreende (ibidem, p. 218).. 119 Assim como Heidegger e outros autores, Figueiredo (1995, p.67), também considera a linguagem como meio universal da experiência, o que a institui como abertura ao "ser-com". Ainda em referência a isso, Schmidt (1990, p.70) diz que, A experiência, porém, como objeto de pesquisa delineia-se como objeto e conteúdo de uma busca- análoga à do narradorque, seguindo o impulso central do desejo do encontro, se abre à pluralidade de sentidos e esbarra sempre no indizível, no não alienável, no que não se entrega. Pode-se dizer, portanto, que Figueiredo fala da clínica como a escuta do excluído, do que ainda não se revelou. É através da escuta compreensiva que o ser se vela e revela, exercitando aquela que é a vocação originária do ser: nunca atingir uma completude ou desvelamento total. A linguagem ocupa um lugar central na filosofia heideggeriana. Sendo ela a morada do ser, como já se falou anteriormente, é na linguagem que o ser se desvela. É ainda a linguagem aquela que assume a condução na direção da elaboração do método e da analítica existencial. Assim, (...) o método fenomenológico visa o redimensionamento da questão do ser, não através de uma abstrata teoria do ser, nem numa pesquisa historiográfica de questões ontológicas, porém numa imediata proximidade com a praxis humana, como existência e facticidade, a linguagem- o sentido, a denotação, não é analisada num sistema fechado de referências, mas ao nível da historicidade. (..) podemos encontrar(...) no método fenomenológico de Heidegger uma certa onto-lógica do dizer, isto é, uma explicitação da dimensão pré- ontológica da linguagem, ligada à compreensão do mundo como horizonte da transcendência. Steiner (1983, p. 100). 120 Oportuno destacar a importância desse aspecto da hermenêutica heideggeriana no que se refere à pesquisa científica, na medida em que fundamenta uma praxis que ao mesmo tempo em que busca alcançar a experiência vivida, possibilita, numa outra dimensão, o encontro da verdade do ser que se desvela na linguagem. Nesse sentido, a narrativa, modalidade adotada neste estudo, vai ao encontro de um pensamento filosófico que, acima de tudo, respalda e sustenta uma maneira de se fazer o saber científico. No entender de Heidegger (1927), O discurso é constitutivo da existência da pre-sença, uma vez que perfaz a constituição existencial de sua abertura. A escuta e o silêncio pertencem à linguagem discursiva como possibilidades intrínsecas. (...) O discurso é a articulação "significativa" da compreensibilidade do ser-no-mundo, a que pertence o ser-com, e que já sempre se mantém num determinado modo de convivência ocupacional. (p.220). Tomando como base esse pensamento, podemos pensar a narrativa e a sua ênfase na experiência, como uma das formas através da qual o ser-no-mundo exercita a sua compreensibilidade, pois à medida em que o narrador conta a sua história, esta carrega consigo os significados que constituem o seu estar-no-mundo, cujo ser-aí se revela e se encobre nas palavras, principal articuladora da sua compreensão num modo de existência. Desse modo, aproxima-se a experiência da interpretação; e a narrativa, tal como proposta por Benjamin (1994), do ser-aí constituinte da estrutura existencial do ser, presente na ontologia de Heidegger. O que nos leva a dizer que a pesquisa que se utiliza da narrativa, visando compreender a experiência e do modo que fazemos aqui, 121 situa-se numa ótica fenomenológica e existencial. O que também significa reconhecer que a relação pesquisador-pesquisado acontece na dimensão da experiência de ambos, transcendendo, assim, os papéis destinados a esses sujeitos na pesquisa científica tradicional, já que a experiência comporta um trabalho de elaboração do vivido cujo sentido se completa ao ser comunicado, transmitido (Schmidt,1990, p.36). Pensamento semelhante está contido nas palavras de Valle (1991, p. 181), ao relatar uma experiência de pesquisa: Em minha convivência com os pais de crianças com câncer, o que se apresentou foi a busca de um sentido que poderia ser revelado na intersecção das minhas experiências com as deles, quando retomava as minhas experiências passadas nas presentes ou ainda quando retomava as experiências deles nas minhas. Isto se constituiu na intersubjetividade das minhas próprias vivências e as dos pais com os quais me relacionei, obtidas através de seus discursos. Isso não é o que acontece, primordialmente, no contexto de uma relação terapêutica? Daí vem a semelhança dos usos da interpretação, tal como sugerido por Figueiredo, antes citado, e que tem origem na clínica psicanalítica. Nesse sentido, torna-se pertinente lembrar o processo que ocorre na relação entre o que se fala, e aqui o discurso surge como parte desta fala e aquele que ouve. Heidegger (1927), mais uma vez, nos oferece a oportunidade de refletirmos fenomenologicamente a esse respeito, quando afirma que A conexão do discurso com a compreensão e sua compreensibilidade torna-se clara a partir de uma possibilidade existencial inerente ao próprio discurso, qual seja, a escuta. Para ele, escutar é o estar aberto existencial da pre-sença enquanto ser-com os outros (p. 222). 122 Importante ressaltar a relevância existencial também daquele que escuta e a sua capacidade para isso. Heidegger diz: Somente onde se dá a possibilidade existencial de discurso e escuta é que alguém pode ouvir. Quem "não pode ouvir" e "deve sentir" talvez possa muito bem e, justamente por isso, escutar. (... ) Discurso e escuta se fundam na compreensão. A compreensão não se origina de muitos discursos nem de muito ouvir por aí. Somente quem já compreendeu é que poderá escutar. (ibidem, p. 223). Entretanto, embora as idéias argumentadas antes nos conduzam ao entendimento do que seja uma pesquisa de inspiração fenomenológica, não deixa de ser relevante, ao mesmo tempo, alguns comentários em relação às diferentes compreensões dos significados da fenomenologia. 4.5. Os rumos da fenomenologia Embora tenha se consolidado no início deste século, a fenomenologia, na sua história, se inaugura através dos trabalhos de Husserl no século passado, os quais giravam em torno da matemática e da psicologia, ocasião em que os estudos realizados sofriam grande influência de Franz Brentano e Karl Stumpf. A filosofia, com o advento da fenomenologia, representou grandes mudanças no cenário filosófico da Europa naquela época e desde então, em todo o mundo. A esse respeito Stein (1983) afirma que: O sopro de renovação da filosofia européia continental trazido pela obra de um desconhecido livre-docente, as Investigações Lógicas de Edmund Husserl, publicadas no início deste século, só tem similar no movimento grandioso do idealismo alemão, única corrente filosófica imediatamente anterior que se aproxima, pela riqueza de suas conseqüências, do movimento fenomenológico. (p. 30) 123 Através das idéias de Husserl, o método fenomenológico propõe a apreensão da realidade através de uma "volta às coisas mesmas", respondendo a outro princípio, o da intencionalidade. Para Husserl, a consciência é sempre intencional. E nas palavras de Forghieri (1993, p.15), A intencionalidade é, essencialmente, o ato de atribuir um sentido; é ela que unifica a consciência, o objeto, o sujeito e o mundo. Com a intencionalidade há o reconhecimento de que o mundo não é pura exterioridade e o sujeito não é pura interioridade, mas a saída de si para um mundo que tem uma significação para ele. Mas para alcançar o mundo-vivido, a essência do fenômeno, é preciso um distanciamento de tudo que existe a priori, o que é alcançado através da redução fenomenológica que, ainda segundo Forghieri (ibidem), consistiria num retorno ao mundo vivido; colocar em suspenso os conhecimentos, idéias, teorias e preconceitos, retornando, assim, à experiência do sujeito, visando alcançar a essência do conhecimento. De acordo com essa perspectiva, através da redução fenomenológica é possível captar o sentido e o significado que as experiências vividas possuem para as pessoas no seu viver. E está claro que nesse processo encontra-se implicada a presença do pesquisador, a sua vivência, como afirma Merleau-Ponty (1994, p. 11): ...é no contato com a nossa própria experiência que elaboramos as noções fundamentais das quais a Psicologia se serve a cada momento. Mas, para alcançar isso, é preciso se fazer a redução fenomenológica, que, embora almejada, nunca será completa, como afirma Merleau-Ponty (op.cit.): O maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa. Para ele, então, a redução 124 fenomenológica consiste numa profunda reflexão que nos revele os preconceitos em nós estabelecidos e nos leve a transformar este condicionamento sofrido em condicionamento consciente, sem jamais negar a sua existência (p. 22). Entretanto, a fenomenologia, desde Husserl, assumiu novas e complexas ramificações, como bem o reconhece May (1963). Mesmo formando escola, Husserl, em função das suas idéias, dividiu os seus seguidores. No entanto, as tendências surgidas então se aglutinavam em torno de uma idéia do movimento fenomenológico: às coisas mesmas. Para Stein (1983, p. 33), essa palavra de ordem Escondia em si o princípio axial de toda a fenomenologia: cada espécie de ente tem seu modo próprio de se revelar ao investigador e, constatações filosóficas, para terem sentido, somente podem ser feitas quando fundadas nesta auto-revelação. Assim, é importante esclarecer que falar em pesquisa de inspiração fenomenológica neste trabalho não significa adotar, entre outros aspectos, a perspectiva husserliana de redução fenomenológica. O método por nós adotado ancora-se numa perspectiva fenomenológica que não contempla a redução fenomenológica. Ao contrário, parece caminhar no sentido inverso. Ou seja, justamente por saber-se da impossibilidade de uma redução completa, tal como já fora reconhecido por Merleau-Ponty anteriormente citado, entendemos que o retorno ao mundo da experiência implica no reconhecimento de que somos seres de abertura e de relação. O pensamento acima aponta para uma das diferenças reconhecidas entre Heidegger e Husserl, quanto à questão do objeto e método da filosofia, já 125 apresentada por Stein (1983), referindo-se às diferenças entre Heidegger e Hegel. Segundo ele, Heidegger se afasta do modelo especulativo-dialético (triádico) de Hegel, em razão deste se apoiar na subjetividade, constituindo-se no seu estatuto fundamental. Desde Ser e Tempo (1927), a superação da subjetividade coloca-se como a saída para o redimensionamento da questão do ser. Heidegger, no seu método fenomenológico, busca libertar-se das conotações subjetivas já presentes em Husserl. Diante do que, Stein (ibidem) afirma que o método especulativo-dialético de Hegel tem como organon a razão ligada à subjetividade; por sua vez, o método especulativo-hermenêutico, de Heidegger, se constitui a partir da compreensão ligada ao ser-aí. As divergências filosóficas entre Husserl e Heidegger se dão, principalmente, a partir da idéia de mundo da vida, da facticidade da vida e o ser-no-mundo, que se constitui, ademais, no aspecto que interroga o ser, além de representar o núcleo que sustenta a crítica desse filósofo à fenomenologia transcendental de Husserl. Para Heidegger (1927), O ser-aí já vem sempre envolto na autenticidade e inautenticidade, na verdade e na não-verdade, no velamento que acompanha todo o desvelamento. Desta maneira a fenomenologia não será mais o instrumento de redução de tudo à subjetividade, nem um caminho para transformar tudo em 'objeto'. A fenomenologia heideggeriana vigiará o âmbito do velamento e desvelamento em que residem todas as essências. (p.142) Acredita Heidegger (1927) que é essa a vocação do homem: o ser de abertura e de relação (ser-aí e ser-com), que o coloca no mundo, junto a outros seres e entes, posição esta que elimina qualquer teoria, método ou qualquer coisa que classifique o ente em mundo interno e externo, ou que o fragmente em partes ou momentos, tal 126 como se faz necessário na redução fenomenológica, pois, como já afirmara Heidegger (ibidem), existimos numa disposição afetiva, num "befindlichkeit", que, inclusive, nos dota de uma compreensibilidade anterior à dimensão cognitiva e da consciência. Esse é o mundo vivido, o mundo da experiência e da existência e, por isso, irredutível. Nós "somos" e "ex-sistimos" (grifo meu) de forma total, nesse momento, inseridos no mundo da experiência, que se constrói e reconstrói à medida em que existimos junto-com o mundo, não se limitando, assim, à subjetividade. 4.6. Narrativa e depoimento: um encontro possível As narrativas desenvolveram-se durante entrevistas realizadas com jovens adolescentes, através de depoimentos sobre a sua experiência de quase-morrer. Adotamos o termo depoimento após contato com os textos de Queiroz (1991), que empreende vasto estudo acerca de técnicas de pesquisa. Para ela, nas Ciências Sociais este termo não possui a mesma conotação que tem na sua área de origem, a jurídica. Enquanto que nesta, o depoimento significa o conhecimento a respeito do fato sob julgamento, nas Ciências Sociais este termo significa o relato de algo que o informante efetivamente presenciou, experimentou, ou de alguma forma conheceu, podendo assim certificar (1991, p.7). A mesma autora estabelece algumas diferenças entre o depoimento e a história de vida. As diferenças residem nas distintas formas de agir do pesquisador, em uma e outra técnica. Diferentemente da forma como atua nas histórias de vida, no depoimento o pesquisador dirige a entrevista em direção ao assunto que lhe interessa, além do depoimento poder ser finalizado em apenas um encontro, o que não acontece quando se pretende pesquisar uma história de vida, que exige vários encontros, os quais são dirigidos, prioritariamente, pelo narrador. 127 Das características que constituem o depoimento tal como as apresentadas pela autora, adotamos aquela da brevidade, podendo ocorrer em somente um encontro, como realmente aconteceu em todas as entrevistas, e pela definição de depoimento, que se insere na narrativa. No que respeita ao relacionamento entre narrador e pesquisador, embora o depoimento se limite apenas a uma parte da história de vida do narrador, o relato da sua experiência revela e transmite dimensões existenciais que assumem configurações próprias naquele momento, com aquele pesquisador, que também é "tocado" na sua experiência por tal narrativa. Embora seja a história de algo que lhe aconteceu, naquele momento a experiência ganha um novo formato e se revela de acordo com o total da estrutura existencial das pessoas envolvidas. Embora as entrevistas tivessem como objetivo apreender a experiência dos entrevistados sobre a tentativa de suicídio cometida, a nossa escuta transcendia a finalidade previamente estabelecida, não se limitando a ela. A partir do momento em que se pedia para que o jovem contasse um pouco da sua experiência, criava-se um espaço onde o ritmo era dado por ele e a pesquisadora atuava acompanhando, de perto, lado a lado, os afetos e sentimentos que surgiam nesse momento. Muitas vezes interferimos assumindo uma postura de facilitadora da experiência, ao favorecer o contato do narrador com a sua experiência que, não raro, era carregada de emoções que afloravam a partir da revivescência dos seus momentos de angústia, dor e desesperanças, atualizados naquele momento de contato. As palavras de Valda revelam o processo existencial que esse momento representa, significando compartilhar-com-o-outro a sua dor e, assim, amenizá-la. É o ser-com que aí se revela. Como diz ela, é a alma perdida que busca se encontrar. 128 Essa busca do encontro que muito bem pode ser entendida como a revelação do ser, pois é pela fala que o homem, o ente, se manifesta. É através dela que o homem se revela, explicita-se e pode captar o significado das suas experiências, pois à medida em que se expressa, ele se transforma, exercitando a sua possibilidade de um construir-se, de um vir-a-ser constante. É a angústia que, ao se revelar nas palavras, encontra o outro, o ser do outro. E na medida em que a sua experiência se abre para o ser-com, coloca-nos como parte dela. Não se trata, portanto, de um pesquisador que observa o sujeito. Não significa ouvir a sua história de longe, analisando-a, interpretando-a logicamente; enfim, não existe uma postura de estar "de fora", como observador, da experiência. Pelo contrário, a experiência da narrativa é uma experiência também minha. Faço parte, como pesquisadora, psicóloga e pessoa, ou seja, na minha totalidade ali presente, desse momento existencial. Existimos, naquele momento, como seres-com; numa imbricação impossível de ser definida ou classificada como mundo interno e externo, como dentro e fora. A sua experiência toca a minha experiência de viver aquele momento. Os meus afetos, a minha disposição afetiva, estão ali, atuantes. Ou seja, existimos naquele momento, com um afeto, um humor, ou estado de espírito. Por isso não me sinto e nem me coloco como alguém indiferente ou inatingível pelo que está ocorrendo. Vivo ali, existo na experiência do outro, que se articula com a minha experiência. Existimos com-juntamente, como seres que exercitam a sua estrutura de ser-no-mundo, encontrando ressonância nas palavras de Benjamin (1994): O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes (p.201). 129 A escolha de um método de inspiração fenomenológica pareceu o mais compatível com as questões perseguidas nos objetivos quando se planejou este trabalho. E foi configurando-se à medida em que a articulação das dimensões intelectual e vivencial evoluíam ao longo do trajeto por mim percorrido em todo esse tempo de atividade profissional. No entanto, essa perspectiva veio a se consolidar definitivamente como método a partir das entrevistas, à medida em que elas iam acontecendo, pois, como as palavras de Valda expressam, o ato de contar a sua experiência não se restringe somente a dar a conhecer os fatos e acontecimentos da sua vida. Mas significa, além de tudo, uma forma de existir com-o-outro. Significa com-partilhar o seu ser-com-o-outro. Assim, as narrativas que constituíram as entrevistas realizadas, definiram o método deste estudo. Os jovens entrevistados foram selecionados tomando como referência os boletins de urgência do Hospital Walfredo Gurgel, onde se encontra o maior ProntoSocorro do Estado e através de indicações de pessoas que conheciam alguém próximo que havia tentado suicídio. Foram entrevistados seis jovens, sendo cinco mulheres e um homem; duas pessoas em suas próprias residências, duas no hospital, onde encontravam-se internados (o rapaz e uma das moças), com queimaduras no corpo em conseqüência da tentativa de suicídio; a outra, no seu local de trabalho e a última, na Clínica-Escola da Universidade. Todos os jovens têm idade entre 15 e 20 anos e, sem que este aspecto tenha sido requisito para a escolha dos entrevistados, todos pertencem a um nível sócio-econômico baixo. Os depoimentos foram gravados, transcritos e literalizados, para, posteriormente, serem submetidos à apreciação dos entrevistados, para que eles conferissem a sua fidelidade à narrativa feita. Embora todos tenham permitido a 130 divulgação dos seus nomes, resolvemos mantê-los preservados; assim, optamos pela utilização de nomes fictícios. A seguir, os depoimentos foram comentados e interpretados, a partir dos significados que se revelavam na experiência narrada e como produto das reflexões feitas pela pesquisadora na sua vida pessoal e profissional, sempre ancoradas numa ótica existencial da condição humana. 131 AS MENINAS DESSE MUNDO As meninas desse mundo são como as que eu tenho visto. Têm corpo de menina e vivência de mulher. São meninas filhas do abandono. Seviciadas, abusadas e feridas na sua dignidade. São solitárias, indefesas e desprotegidas. Brigam pelas ruas, disputando os seus amores e territórios. Os seus corpos trazem as marcas da luta. Unhas que cortam a pele, deixando um risco no corpo e no coração. Ferimentos que materializam a raiva de si mesmas e do mundo. Agressão que fere a vida. Corpo machucado que anda, vive e expõe o tanto de destrutividade contido em si. São meninas que choram, por muitas coisas. Pelo amor perdido, principalmente o amor a si mesmas. São meninas que exibem a autoridade de quem muito já viveu. E no entanto deixam que as lágrimas deslizem pelo seu rosto, como só uma criança abandonada pode fazê-lo. Um pranto de desamor. Sonham com o dia em que alguém virá resgatá-las dessa vida. Talvez um príncipe encantado, montado num cavalo branco, e que surge nos seus sonhos trazendo a felicidade. Como num conto de fadas.... São meninas que gritam para serem ouvidas, nem que seja através de um ensaio da morte, destruindo-se. Que se desesperam e ingerem soda cáustica, venenos, medicamentos e se atiram ao mar. Que gritam por socorro. Que desejam ser amadas. Que choram pelo pai ausente. Que lamentam a incompreensão. Que se sentem sozinhas no mundo. E ainda precisam continuar vivendo. Para isso se armam e confrontam os inimigos, principalmente aqueles da alma. E enfrentam os seus "fantasmas" lutando com raiva e revolta. No entanto, elas só querem um pouco de amor... Elas pedem carinho e um colo... Elas buscam aquilo que perderam no meio do caminho e que nunca deveriam ter perdido: o direito de serem meninas. Somente meninas... Simplesmente meninas.... Produção da pesquisadora após entrevista com uma das jovens deste trabalho, e que expressa, acima de tudo, a relação intersubjetiva na vivência da experiência. 132 CAPÍTULO V AS NARRATIVAS Narrativa 1- Elizabete, 20 anos. Vou falar sobre a minha experiência de vida... inclusive sobre as tentativas de suicídio que cometi. Tudo começou meio por acaso... A nossa família veio do interior em 1989 e viemos morar aqui nesse município perto da capital... eu tinha... então...12 anos. Foi quando eu tive uma oportunidade e me envolvi com drogas...por um certo período. Deixei de lado em 96, 97, quando eu entrei aqui no CAIC e me deram oportunidade para trabalhar. Me deram carta branca, sabe? Disseram: "– olha, você vai tomar conta de uma equipe de futsal feminina". Maravilha...adoro esporte! Aí...foi quando eu comecei a trabalhar isso. Tentei sair da droga... mas surgiram outras coisas: problemas financeiros em casa... porque eu sou muito de ajudar à família... eu não gosto que falte nada em casa...e um certo dia...no ano passado...deu aquele desespero... "– Bom, tenho que acabar com minha vida". E até hoje meus pais não sabem... a família não sabe.... 133 Bom... então saí das drogas....Mas ficaram aquelas ameaças entendeu? Os caras com quem eu tinha me envolvido diziam: "–Vou entregar pra sua família". Me desesperei...pois para a minha família...sou eu na terra e Deus no céu...De tudo eu faço para eles... estou presente em tudo... e de repente... pensei: "- Não....Tenho que acabar tudo... porque eu não quero que minha família saiba". Fui muito ameaçada por essas pessoas que eu falei.... eram de fora daqui...da máfia da droga...do Rio e São Paulo..... Cheguei a tentar me matar várias vezes... foram umas cinco tentativas.... A última que eu tentei foi agora.... Acho que não faz dois meses... Já tem uma psicóloga aqui... que vem me acompanhando... pra tentar amenizar as coisas.... Em maio do ano passado...no final de semana....estava sem dinheiro...pedi a minha mãe mas ela não tinha.... Fui até à casa de um colega... consegui três reais e saí.... Fui pra praia.... Cheguei lá e me joguei ao mar... sem saber nadar.... Fui salva por outras pessoas que viram... depois elas queriam me deixar em casa, mas eu não aceitei. A minha família não poderia saber do acontecido.... Para você ver... eu sempre estou escondendo Outra vez eu tomei bastantes comprimidos... comprimidos que eu não me dou bem... como a dipirona. Eu tomei uma dosagem muito grande de dipirona e tiveram que fazer uma lavagem estomacal. Isso foi em maio... ou em julho...véspera de meu aniversário... e cheguei meio zonza em casa e disse que estava passeando por aí.... Mas eu já tinha ingerido os comprimidos e fui parar no hospital... 134 A terceira vez foi aqui... no colégio...no sábado. Eu subi nessa caixa d’água... mas ao chegar a uma certa altura.... eu vi uma movimentação do pessoal da escola chegando.... Aí eu tive que descer pra abrir o portão... Na quarta vez... eu parei na BR e o carro me pegou de cheio.... Não tive ferimentos graves... mas machuquei o pé e fiquei quinze dias com o pé inchado e dolorido. E quando fui ao médico... ele detectou uma fratura no pé devido ao impacto.... E a última tentativa... a quinta vez... foi em casa... nesses dois últimos meses. Usei um punhal que eu comprei a um colega de trabalho... porque eu tinha que sair pra rua e não queria ir sem arma.... Eu estava no banheiro... calada.... Quando eu já ia fazer... mãe entrou... porque achou estranho eu estar calada no banheiro... aí entrou escondida e perguntou o que eu estava fazendo. Nada não... respondi. E tentei outra.... No mesmo dia... eu tentei novamente... minha irmã chegou assim... de repente.. também.... Essa é uma experiência muito... muito... muito ruim.... Eu não desejaria isso para o meu pior inimigo. Depois que passa... depois que você pára... aí você pensa.... E depois... minha família... como é que iria ficar? Por isso eu sempre deixava.... Quando eu tinha o pensamento de me matar... eu deixava carta escrita e quando não acontecia nada... rasgava aquela carta e minha mãe perguntava por que eu rasgava e queimava tanto papel. Mas é uma coisa assim... até hoje eu ainda estou... como se diz... não muito alegre no trabalho... não fico muito em casa... estou super calada... Sinceramente... eu não estou entendendo o que se passa comigo. Estou num estágio de vida em que me vejo parada... eu estacionei. Eu nem ando... nem volto... 135 nem para um lado e nem para o outro.... Eu parei.... E tenho tido crises depressivas.... Às vezes eu páro em casa e fico pensando em quantas vezes eu quis me matar. Por que será...? Aí vêm aqueles motivos... tem vários sentidos.... As drogas... que eu não quero que descubram... nem quero que elas sonhem. Talvez... um dia... quem sabe? Mas eu sempre estou com aquela coisa... sabe... porque eu sou a santinha: "- Oh, Elisabete é tudo.... Elisabete faz isso... aquilo.... Elisabete não reclama...." Às vezes... até brincando mesmo... eu constato que realmente elas não sabem o que se passa.... Você vê cair o preconceito em cima de você. Como... por exemplo... a forma como eu me visto. Se eu gosto de andar de shorte... se eu gosto de andar de camiseta... não tem nada a ver uma coisa com a outra! Se eu tenho um namorado e não quero sair na rua com o namorado... é problema meu.... Acho que ninguém tem nada a ver.... E tem, também... algumas questões financeiras em casa... que eu me vejo aperreada... como vou fazer pra pagar o que eu devo e comprar comida pra dentro de casa.... Só depende de mim... esse mês sou eu... então... como é que eu vou me virar... se o que eu ganho não dá pra nada? E sinto também demais em ver meus pais precisarem de uma coisa e eu não poder dar.... E aí... chego no trabalho e dizem "- Ah, isso é besteira!" Eu estava no centro comunitário e disse que não ia mais... então alguém me disse: - "Você não vai resolver seus problemas saindo do centro comunitário". Bom... o que eu sei é o seguinte: não adianta eu estar num lugar em que as pessoas não vão comigo... entendeu? Isso é muito... sei não... difícil. Não vou dizer que parei de pensar nisso.... Ontem mesmo eu pensei nessa situação de novo... morrer... Será que foi um dos meus melhores momentos? Você fica naquela.... Eu não sei.... Ultimamente eu não estou com os meus pés no chão. Por exemplo... ando bebendo... o que não é normal pra mim. Fumando... não a 136 maconha... não... ou cocaína... mas outros cigarros... e eu acho que isso não é legal. Não acho legal... sabe.... Será que é uma necessidade de manter as drogas lá atrás... essa bebida...? Essa necessidade de eu ter que beber alguma coisa hoje... será que traz as drogas que eu já ingeri? Não sei.... Já usei vários tipos de droga: maconha... letinol... e fazia o tráfico também. Cheguei a fazer umas dez entregas.... Foi o tempo que eu parei e disse: "- vou ter que sair". E eles disseram: "- olha, você sai... mas sabe que não sai". E me pegaram em abril desse ano. Eu fui visitar meu pai no interior e... na volta... eles me pegaram ... tomaram meu dinheiro...me roubaram....e ainda me bateram.... Eu não devia nada a eles. O que eu devia... já tinha pago.... Não sei o que eles queriam de mim. Me deixaram em algum lugar...num descampado. Quando eu cheguei em casa... estava super desorientada e zonza... de tanto apanhar.... Quando eu cheguei... pensei como dizer para minha mãe que me pegaram... pois ela iria perguntar...E aí tive que mentir mais uma vez.... Às vezes eu fico assim em casa... pensando... ou aqui mesmo no trabalho... tem um lugar aqui que eu até gosto.... Tem um estrada ali e à noite... às vezes... eu fico aí até 10... 11horas... pensando: - "o que foi que eu fiz da minha vida?" Perdi toda a minha juventude... De repente essas pessoas me perseguem... de repente ameaçam me entregar pra minha família... e é meio complicado.... Eu conheço muito bem minha família e eu sei que se chegar com um notícia dessas... eu já era...! Toda essa situação me dá muito medo.... Tenho certeza de que a minha família não me aceitaria mais... porque as pessoas que eu amo assim de paixão mesmo... são meu pai e minha mãe e minhas irmãs... demais...! Aí fica aquela coisa... se eu contar... e um dia eu vou ter que contar.... Já tentei várias vezes... mas não 137 adianta... então eu vou ficar calada aqui... embora eu ache que não é o ideal.. não... Vamos ver no que é que vai dar.... É muito difícil...! Daí vem a vontade da pessoa se matar... tomar comprimido.... É uma coisa super difícil.... É ruim... é ruim demais.... Quando eu penso sobre isso, penso que não cheguei a fazer uma besteira porque sempre chega alguém. É uma coisa super interessante.... Sempre ocorre de alguém chegar...às vezes eu fico até chateada....E penso... puxa...você tinha que aparecer aqui agora? Aí começo a brincar. Mas sempre... sempre... sempre... tem que chegar alguém. Aí...eu comentando com uma colega... ela disse que eu então não queria morrer. Sobre essa história de sempre acontecer alguma coisa que impede que eu me mate... eu penso que isso significa que ainda tenho que sofrer um pouco na terra.... Acho que não chegou a minha hora. Mas é aquela coisa... eu não sei o que fazer mais! E estou um pouco violenta... fora... na rua.... Mas eu não fui sempre assim.... Eu comecei com isso nos meus doze anos... quando eu comecei a me envolver com drogas....Antes eu não era assim....Gostava de jogar futebol... Atualmente...nem à televisão eu gosto mais de assistir.... Aí me pergunto: "- por que será ?" Eu não estou... realmente... com meus pés no chão.... Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo que eu acho que sou já que eu não era assim... entende? Quando eu saí das drogas, eu fiquei super... super tensa.... Eu praticava esportes normalmente... numa boa.... Só que depois parei... estacionei... acabou.... Mas até hoje comprei material novo... tudo... pra jogar.... Mas não senti mais motivação.... No próprio trabalho... às vezes... eu digo que estou muito desgostosa... mas não sei qual o motivo.... Mas a verdade é que não estou me sentindo à vontade no trabalho... 138 E o que me incomoda mais nisso tudo é minha família não saber e eu tenho medo de contar e elas não quererem mais conversar comigo.... Porque eu vejo nas reportagens sobre isso.... quando sai na televisão e elas comentam que esse fulano é isso... é aquilo.... E aí... eu saio de perto. Eu me emociono quando falo nisso porque eu acho que um dos pontos que mais me magoam ainda é esse....Eu estar guardando essa verdade e eles não saberem.... E se eu contar...e porque eu sei quem são eles...eu tenho certeza que eles me botarão na rua.... Dirão que eu não pertenço mais a essa família Eu imagino isso.... É difícil demais! Por mais que eu já tenha deixado... acho que eles não vão me aceitar mais.... O meu relacionamento com a minha família é bom e é ruim. Porque... às vezes... minha mãe conversa comigo numa boa... mas depois vem com 4... 5 pedras na mão. .. Tem outra coisa, eu sou mediúnica... As pessoas diziam isso porque no ano passado eu tinha umas sensações de que ia me jogar. As pessoas diziam que não era eu... era outra pessoa. E eu sentia que não era eu.... Quantas vezes eu não chegava e dizia à professora que ia me jogar dali. A professora dizia que eu parasse com aquilo e eu fiquei super... super... deprimida. E ainda ficava mais quando as pessoas diziam: "- Olha, você tem que rezar". Eu digo que ficava deprimida porque tinha vontade de me jogar e chorava bastante. Às vezes... pegava minha cabeça... apertava e ficava tentando entender o que era aquilo que eu sentia... qual o motivo que me fazia sentir daquele jeito. Depois passou e eu me acalmei... Cheguei a tomar uns remédios... não tomei nem todos.... O que me fez usar drogas foi a curiosidade.... Um rapaz chegou no colégio e me ofereceu um cigarro e eu disse que não fumava.... Eu não me lembro como era o nome dele... Só sei que ele estudava no colégio.... Então... aceitei... pensando que só 139 uma vez não faria mal. Então... comecei.... E às vezes eu tirava dinheiro escondido... porque se eu pedisse... minha mãe desconfiaria. E ela não podia saber... Aí eu ia lá e tirava... por isso me sinto muito mal... por saber que eles não sabem... por eles pensarem que eu sou a boazinha. Na verdade... estou escondendo a verdade... como se estivesse escondendo uma parte de mim... a de que não sou tão boazinha. 140 Narrativa 2- Valda, 18 anos. Vou falar um pouco sobre a minha vida e de tudo que eu já passei... Eu sempre passei por dificuldades na minha vida... Sou filha adotiva, entendeu? Me deram a um casal porque minha mãe verdadeira não tinha condições de me criar. Depois disso... as pessoas que me criaram fizeram-me sofrer muito porque o meu pai de criação faleceu... e a minha mãe adotiva passou a viver com outro homem. A partir daí a minha vida e a do meu irmão...que é filho biológico dos meus pais adotivos... ficou muito difícil porque o novo padrasto começou a mandar nela... exigindo que ela fizesse só o que ele queria e então ela passou a nos deixar para trás... a cuidar menos de nós e mais dele. Ele batia muito em mim de cabo de aço... de cinto... de corda... enfim... com qualquer coisa que ele tivesse à mão. E isso o meu pai que me criou... nunca havia feito. Então... aos onze ou doze anos eu saí de casa. Passei a viver na rua... a conviver com vagabundo... ladrão... maconheiro. Depois... meu irmão foi atrás de mim e eu voltei pra casa de novo. Passei uns dois anos em casa... embora vivesse na rua. E quando eu sofria muito do meu padrasto... eu voltava a sair de casa. A minha avó foi quem me criou quando a minha mãe foi para o Rio. Ela traiu o meu pai com esse outro homem com quem ela viveu aqui em Natal. Quando isso aconteceu... eu e meu irmão ficamos com a minha avó... que já não tinha saúde para cuidar da gente. Assim... passamos a viver no mundo sozinhos... Foi quando começou o sofrimento... Como o meu irmão era mais velho... tinha cabeça suficiente para resolver o que queria. Até porque esse meu irmão é filho de outro homem... entendeu? 141 Voltando ao meu padrasto... quando eu vi que ele estava me batendo muito... me espancando muito... eu saí de casa. Depois eu voltei porque tinha engravidado e tive um filho. Porém eu não tinha condições de sustentá-lo... Então a minha mãe de criação pediu para criá-lo e até hoje ela vive com ele... que está com três anos. Eu penso em entrar na justiça para tomar o meu filho porque eles não têm responsabilidade. Eles o espancam e a mesma coisa que eles fizeram comigo... podem fazer com meu filho... e não é isso que eu quero pra ele. Além de tudo... meu padrasto já pegou nos meus seios... deu-me balas para que eu não contasse nada a minha mãe. Porém eu disse a ela... que então brigou com ele mas não adiantou de nada... passou um mês brigando e depois voltou tudo. Ele batia em mim e ela não ligava. Quando ele me espancava... ela não falava nada... Isso trouxe uma revolta para os filhos... tanto pra mim quanto para o meu irmão... Esse meu irmão é filho legítimo dela... mas hoje ele não quer nem ver o meu padrasto... de tanta humilhação que a gente já passou... O meu irmão já se atracou com meu padrasto porque ele me bateu tanto que cheguei a sangrar... Ele batia muito em mim... Certa vez ele me jogou no chão...me pisando... Me maltratava muito.... Por isso tanto eu quanto meu irmão ficamos revoltados. A relação com a minha mãe sempre foi mal. Sempre foi bruta, sempre foi ruim. Porque ela sempre me humilhava e me maltratava. Do que ela me dava amor, ela dava mais ao filho dela, claro, que era o filho legítimo, não é? Ela sempre passou em rosto que eu era negra, que eu não era filha dela. Toda vez que eu fazia alguma coisa errada, ela me batia. Isso desde que eu era pequena. Aí pra mim isso foi crescendo, foi crescendo, e o ódio foi aumentando. Eu tendo ódio dela. Aí meu ódio 142 foi aumentando. Toda vez que ela batia em mim, eu olhava pra ela e dizia "– eu tenho ódio de você!" Ela dizia: "- eu também tenho! Eu nunca tive uma adolescência... nunca soube o que foi ter um brinquedo... uma boneca... nunca tive condições de me divertir. Eu caí na prostituição porque foi minha mãe de criação que me botou nisso. Aconteceu aqui em Natal...e eu estava então com quatorze... quinze anos. Antes disso... quando eu cheguei aqui... depois que eu tive meu filho e dei a ela... ela me mandava pedir esmola para sustentá-los. Todos os dias eu saía de casa de manhã... logo cedo... às sete horas... pra pedir esmola. O povo dizia: "Você é tão nova por que não vai trabalhar?" Agüentava humilhação.... Depois eu vi que não agüentava mais...então parei. Aí ela fez a minha cabeça e eu caí na prostituição... Eu ia para a Praia do Meio e vendia meu corpo.... Saía com um e com outro...nas casas de drink. O dinheiro que eu ganhava... vinte...trinta...quarenta... cinqüenta reais...era para ela... porque eu não tinha condições de comprar roupa boa pra mim... entendeu? Eu não tinha condições de comprar roupas e sapatos... porque ela reclamava quando eu comprava e batia em mim... Ela ia até à casa de drinks atrás de mim...bater em mim...porque eu não arrumava dinheiro pra levar pra casa. Uma noite... ela foi até lá... e na frente das meninas... deu uma tapa na minha cara porque eu não arrumei dinheiro.... Uma vez eu cheguei pra ela e disse que ia arranjar um emprego. Aí ela disse assim: "- Não, você não vai trabalhar porque cento e trinta reais por mês não vai dar de comer a ninguém". Aí eu fui pensando bem...e foi quando eu conheci esse rapaz que é meu marido hoje... na casa de drinks. Ele era casado e começamos a nos gostar.... Mas ela não queria que eu ficasse com ele porque o que ela queria mais era o dinheiro...entendeu? Ela nunca aceitou que eu ficasse com ele porque ela sempre quis 143 que eu trabalhasse pra sustentá-los... ela e o marido. Ela tem dois aparelhos de som... duas televisões e a maioria de tudo que ela comprou foi com o meu dinheiro... foi com o meu sustento... com o meu corpo... Eu conheci o meu marido através da dona da casa de drinks... que trabalha com ele no governo. Ela chegou lá e me apresentou a ele.... Foi no dia de eleição para governador. A gente começou a brincar...a farrear...a nos conhecer mais. Começamos a gostar um do outro... a nos encontrar... aí nos apaixonamos. Então ele me perguntou se eu queria sair mesmo daquela vida. Eu respondi que sim... porque eu não agüentava mais. Eu estava nessa vida não por querer... mas porque era forçada a estar... E disse-lhe que saía de casa às sete da noite e voltava às seis da manhã. Quando chegava em casa...cansada de tanto fazer programa...para dar de comer aos meu pais... aí eu ia arrumar a casa... lavar a roupa... cuidar de criança. E...mesmo cansada...quando eram seis horas da noite... de novo eu voltava a pegar o mesmo rojão...isso acontecia todo os dias... Ele se surpreendeu com isso... quase sem acreditar. Passou a freqüentar a minha casa e meus pais pensavam que ele era um homem que tinha condições financeiras... entendeu? Depois que viram que ele não tinha essas condições todas... aí começaram a humilhá-lo e a me humilhar também.... Tiraram o carro dele... além do som . Ele teve que vender tudo para passar uns tempos lá em casa porque ele tinha deixado a mulher e os filhos... tiraram tudo o que nos restou... Acho que tudo era inveja e olho grande. Não queriam que eu ficasse com ele...a minha mãe foi na governadoria atrás dele... atentar... dizendo a ele que eu voltasse pra casa... Nessa ocasião ele perguntou à minha mãe como eu iria me sustentar... se eu não tinha renda.... Ela então respondeu que eu me "viraria"...que desse os meus 144 "pulinhos". Certamente ela queria dizer que eu voltasse à casa de drinks para vender o meu corpo... Aí eu disse: "Não! Isso não é vida para mim... não!" Saí... estou com ele até hoje...vai fazer um ano que estamos juntos. Eu tenho dois filhos... um com três e outro com dois anos... Só tive com ele o de dois e que mora conosco...o outro... não. O outro vive na casa deles... de meus pais.... Aí a mulher dele... a mulher de meu esposo... começou a ir atrás da gente... com a minha mãe... sabe? A minha mãe conheceu a mulher dele... aí começaram a fuçar... infernizaram... eu estava na casa do irmão dele... então começavam a ligar... era um inferno... a gente não conseguia ter sossego. Já tentei muitas vezes cair em suicídio por causa disso... porque eu não tinha sossego... era de noite e de dia. Tentei o suicídio mais de uma vez... A primeira vez que tive vontade de me matar foi quando já estávamos morando juntos em Nova Parnamirim. Chegamos a passar fome uma semana... eu e meu esposo porque ele estava sem trabalho e tinha pedido licença da governadoria. Nessa fase a gente descia à pé pra casa dos irmãos dele... nos humilhando por um prato de comida... Quando chegávamos lá os irmãos dele já tinham almoçado... aí a gente... com a barriga seca... voltava pra casa de novo. Como a gente era fumante... viciado... ficávamos catando piúba no meio da rua... entendeu? Isso tudo me deu vontade de me matar porque eu disse assim: -"Meu Deus... o que é que está acontecendo?" Outra coisa... a gente passou um período ruim... brigado... porque na casa do irmão do meu marido tinha uma menina que trabalhava lá... só que quando ela saiu dessa casa o meu marido pediu-me para que ela ficasse uns dias na nossa casa enquanto não voltava ao interior. Eu concordei.... Mas essa menina dava em cima do meu marido... eu via e reclamava. Aí... por duas vezes... ela escondeu a chave do carro do irmão do meu marido... que ele havia pedido emprestado. A partir 145 daí ele ficou mudando pro meu lado e me desprezando. Percebi que ele estava dando mais atenção a ela do que a mim....tratava-me com agressividade. Aí dessa vez eu tomei veneno... realmente tomei duas vezes veneno... Baygon. Mas não adiantou porque eu vomitei tudo pra fora.... A Segunda vez que tentei suicídio foi com um tipo de pozinho que parece com açúcar que se usa para matar mosca.... Eu botei bastante num copo... desmanchei e tomei... mas também não adiantou de nada... não cheguei nem a ir ao hospital. Pronto... só foram essas duas vezes... Dessa vez....agora... em relação a esta queimadura sobre o meu corpo... aconteceu o seguinte. No domingo... antes desse último feriado, eu fui à casa do meu irmão que mora lá em Parnamirim. Nós o chamamos pra passar o domingo lá em casa. Eles foram....Aí a gente chamou meu irmão para sair.... Ele não queria ir porque estava sem o dinheiro do ônibus e não gostaria de ir....insistimos demais... ele foi. No domingo... meu irmão teve uma dor de cabeça. Aí arrumamos um remédio pra ele porque queríamos sair...e meu irmão saiu bom. A gente passou a noite na praia... o dia todinho na praia...Na segunda-feira... eu fui trabalhar com meu marido... pois ele estava fazendo um serviço na casa do irmão dele. Aí ele chamou-me para irmos à praia no outro dia... na terça-feira. Eu concordei.... Mas como eu vi que a casa... o apartamento que a gente morava... estava muito sujo... eu disse que não ia sair e que ia limpar a casa... lavar roupa... porque no outro dia eu já estaria livre daquele serviço. Aí eu acho que ele ficou com raiva porque eu prometi que ia à praia e não fui. Então fui lavar roupa na casa da vizinha... fui dar água ao meu filho... fui trabalhar com ela... levando o menino. Ao terminar de lavar roupa... eu vejo uma batedeira daquelas de botar de pé... na casa da mulher onde eu estava lavando roupa. 146 Aí eu perguntei onde ela tinha comprado...Ela respondeu que havia comprado ali perto...Como eu estava com dinheiro nesse dia... resolvi ir comprar a batedeira.... Só que eu pedi a ela para ficar com o menino...que eu ia comprar pão. Eu disse isso só para que ela ficasse tomando conta do menino e eu não ter que levá-lo.... Quando cheguei lá no lugar....não tinha a batedeira. Só que ao voltar... encontro com o meu marido... bufando de raiva... com uma lata de cerveja na mão e me perguntou de onde vinha. Disse-lhe a verdade... que tinha ido comprar a batedeira. Ele não gostou porque a mulher lhe informara que eu tinha ido comprar pão. Aí começou a confusão.... Ele começou a dizer que eu estava mentindo... que eu o estava traindo... que eu estava fazendo isso e aquilo... e aquilo outro. E disse que isso não era verdade... mas a discussão durou o dia inteiro.... Então pedi-lhe o dinheiro que eu ia embora. Ele estava com duzentos e poucos reais para pagar o aluguel do apartamento. Deu-me.... então... cinqüenta reais para eu comprar uma bolsa de viagem. Tomei banho... arrumei meu filho e peguei um ônibus. Ao passar pelo shopping... deu vontade de descer e comprar alguma coisa para agradá-lo. Então comprei um CD de Zeca Pagodinho... que ele gosta....Comprei ainda um celular de brinquedo para o meu filho. Voltando pra casa... ainda comprei uma camisa pra ele... meu esposo. Chegando em casa... eu dei a ele a camiseta e o CD. Só que ele jogou fora...não quis.... ficou furioso. Começamos a discutir de novo.... Então eu fui perdendo a paciência porque ele me chamou de rapariga.... Isso porque uma vez ele me olhou e disse que se me tirasse daquela casa de drinks jamais iria chamar-me de rapariga.... Por isso eu fiquei furiosa... porque ele não devia ter dito aquilo por causa de uma besteira.... Aí ele começou a discutir.... disse que tinha ido beber... gastou o dinheiro quase todo e queria ir para a casa de drinks. Eu disse que não ia deixá-lo gastar o dinheiro e então meti a mão dentro do seu bolso várias vezes e ele a tirava.... 147 Aí eu dei duas tapas na cara dele e o empurrei no chão. Ele bateu a cabeça no chão... parecendo que havia machucado... Nesse momento consegui tirar do seu bolso o dinheiro... um cheque e uns trocados...Ele ficou muito zangado e saiu quebrando as coisas.... Quando eu vi que ele ia atear fogo no guarda-roupa... jogando um pouco de álcool no guarda-roupa... e quando eu vi aquele negócio pegando fogo... aí pronto! Peguei o álcool... coisa que nunca temos em casa... mas nesse dia havia esse álcool porque foi meu irmão que pediu no domingo... para curar a sua dor de cabeça. Quando eu vi que meu esposo tocou fogo no guarda-roupa... aí eu fiquei louca e pensei: "- se ele vai acabar com as minhas coisas.... eu acabo comigo também.". Então eu joguei álcool... derramei a garrafa de ácool todinha na minha blusa... que era uma blusa bem grossa de lã... de algodão.... Aí corrí pro banheiro e ele correu atrás de mim pra tomar a garrafa... só que eu já tinha despejado todinha.... Ele não viu que eu estava com o isqueiro na mão. Eu sempre tirava uma brincadeira com ele... mas eu nunca fazia... sabe? Essa brincadeira era dizer que ia tomar veneno... botar dentro do copo e não bebia fora aquelas vezes que eu disse que havia tentado duas vezes. Aí eu acho que ele pensou que era brincadeira e não viu o isqueiro na minha mão... de jeito nenhum. Ele não percebeu porque eram dois esqueiros... talvez ele tenha achado que o isqueiro estava com ele.... Então quando ele foi pra geladeira... eu risquei sem querer... sem querer mesmo... eu não ia me riscar... não. Na hora que eu risco... o fogo sobe. Aí eu comecei a pular... gritar... meu filho estava lá no parque e ficou vendo e chorando também.... Comecei a pular agoniada... pedindo socorro! A gritar... e ele gritava também pedindo socorro.... Ele... querendo colocar um pano pra apagar e não conseguia... porque ficou bastante álcool no meu corpo... consegui tirar a blusa e ele me empurrou para o chuveiro. Aí eu desci as escadas pedindo socorro quase seminua... ele então vestiu uma blusa em mim e eu 148 pedi para fechar a porta e pegar meu filho.... Desci as escadas pedindo socorro e ele atrás com meu filho nos braços.... Ele caiu na escada... machucou o cotovelo...se cortou.... Saímos loucos no meio da rua... pedindo socorro. Tinha gente no prédio que estava com carro... mas não quis socorrer a gente. Então chamaram um táxi da prefeitura pra me levar ao hospital.... Uma vizinha chegou a dizer que tinha sido ele quem me queimou.... Eu disse que não havia sido ele... fui eu mesma.... E ela retrucou que tinha escutado ele bater em mim a tarde toda... o que eu desmenti... chamando-a de mentirosa. Quem me ajudou a sair foi a menina que cuidava do meu filho. Chamou um táxi... pegou um lençol e me enrolou e eu então fui com meu esposo. Agora já faz uns quinze dias que estou aqui no hospital com ele... que deixou de trabalhar para ficar comigo.... Depois de tudo que houve... hoje eu me sinto... triste. É doloroso porque meu corpo era muito bonito... sabe? Meu corpo era um corpo bem feito... era muito bem feito.... Não tinha uma marca de ser morena... negra... não tinha um pingo de marca.... Eu corria.... Eu brincava na praia com meu filho.... Eu corria pro meu marido.... Hoje... quando eu olho pro meu corpo... quando vejo essas marcas... eu fico triste por que dá tristeza... porque você relembrar que brincava...e hoje não estar podendo fazer mais nada disso.... Hoje são os outros que... quer dizer... hoje é ele que está cuidando de mim... Não tenho condições de fazer o que sempre gostei de fazer... entendeu? Minhas coisas estão abandonadas lá na casa do irmão dele porque eu não estou em condições de fazer nada.... Quanto aos meus projetos... estou pensando... depois que estiver tudo melhor... em fazer tratamento... para minha pele voltar ao normal. Penso em construir... em tirar esse pensamento que vem de instante em instante. Esse 149 pensamento que vem é o registro e a memória do que aconteceu... sabe? É como se fosse um filme que está passando na minha cabeça a toda hora.... Mesmo que eu não queira... ele vem... perturbando.... E o que aparece mais é o fogo queimando o meu corpo e a gente gritando.... Rever e relembrar tudo isso dói tanto no corpo como na alma e no coração.... Porque as vezes ... eu penso mais no meu filho... eu não penso em mim somente... eu não penso em mim.... Eu penso no meu filho.... Eu quero sair daqui pra cuidar do meu filho por que ele está na mão dos outros... na mão da minha cunhada... mas eu não sei o que os outros podem fazer com meu filho.... Estou falando do meu filho menor... de dois anos. Em relação ao outro... o mais velho... eu me sinto triste porque ele é uma criança muito amorosa. Mas se Deus quiser... se Deus me der força.... quando eu sair daqui eu vou entrar na justiça... eu vou fazer qualquer coisa... vou tomar meu filho de volta. Porque quando eu dei meu filho eu era de menor. Eu tinha quatorze anos.... quinze anos... aliás. Entendeu? Ele foi registrado pelos meus pais... mas não pode. Porque tem um direito que você tem que ir na justiça pedir autorização para registrar como filho.. mas nem pode registrar como filho legítimo. Ela registrou como filho legítimo.... Não foi em justiça... não foi em nada.... Quanto aos estudos.. só cursei até à 2ª série.. só. Mas sei ler...Embora esteja falando sobre essas coisas... mas eu me sinto bem agora.... Acho bom estar falando.... É bom porque eu conversando assim... eu desabafo mais.... Você procura tirar tudo... quando a gente conversa com alguém sobre alguma coisa que aconteceu... algum problema... algum tempo atrás... já vai saindo do corpo e da memória... entendeu? Você vai procurando... é como se fosse uma alma perdida. Quando a gente morre o nosso espírito não sai do corpo? Então... pra mim é a mesma coisa quando eu vou 150 contando as histórias pra pessoa... vai saindo aos poucos... A alma perdida....que é a dor dos sofrimentos que eu já passei.... Aí já vão saindo essas histórias da minha vida toda.... Mas não é pra todo mundo que eu conto... mas só para as pessoas que eu confio é que eu conto.... É alívio.... Parece que a cada dia que eu conto a minha história diminui o meu sofrimento... 151 Narrativa 3: Leila, 17 anos Vou falar sobre a minha experiência de tentar o suicídio. A primeira vez que isso aconteceu foi lá na casa da minha mãe... só que ela não sabia. Eu tinha mais ou menos de nove a dez anos. Eu levei uma surra imensa do meu padrasto... então eu tomei um monte de remédios....Porque eu sempre me senti rejeitada pelas pessoas... Passei bastante mal e fui parar no hospital.... já quase morrendo. O médico fez lavagem e eu voltei de novo pra casa..... Aí passou... mas... eu acho que a tentativa de suicídio é mais o “rejeitamento”.... Eu me sinto rejeitada pelo pessoal... pela minha família.... Eu não sei.... Ser filha assim...do meu pai de criação... e saber que só ele me dá apoio... também me dói... porque minha mãe me abandonou....Antes de me abandonar ela já não ligava pra mim.... Aí foi juntando tudo.... Após certo tempo aconteceram muitos problemas. Eu conheci um rapaz... comecei a namorar com ele. Minha mãe... a família... fez um escândalo. Eu tive que sair de casa... fugi.... E depois disseram que eu estava doida e então me internaram no hospital psiquiátrico. Eu vivia pensando em me suicidar porque eu acho que pra pessoa que pensa em se suicidar ela é muito pensativa... sabe? Não sei porque... eu... pelo menos... sou muito pensativa....Tudo o que eu vou fazer eu penso muito... muito... muito mesmo... antes de fazer.... Eu sou muito pensativa. Aí...junta tudo. Eu acho que pra pessoa tentar se suicidar sempre tem que ter um motivo. A pessoa não vai tentar querer tirar a vida sem ter um motivo... tem aquele motivo... do problema.... Eu acho que desde pequenininha eu me sentia rejeitada... pois eu morava com minha mãe... e ela sempre batia em mim...batia na minha cabeça.... Eu era sempre a 152 que mais apanhava.... Eu tenho uma irmã mais nova que eu. Mas ela nunca bateu na minha irmã....Bater pra deixar marca... era só em mim... Eu não sei porque... mas ela só batia em mim pra deixar marca.... A última surra que eu levei do meu padrasto quando eu morava lá... eu quase que morria mesmo.... Se não fossem os filhos da minha madrinha eu tinha morrido... eu acho. Eu tinha uns dez anos... foi uma surra que eu levei dele... Ele me esmurrou qui... na minha nuca... e eu saí de lá desmaiada. Não vi nada.... Só depois é que voltei à consciência. Nunca me dei bem com a minha mãe.... Eu nunca disse nada com ela. Mas agora... ela sempre achava alguma coisa pra discutir comigo... sempre... sempre. E depois vieram os padrastos...Aí ela tinha ciúme de mim com os meus padrastos.... Com o primeiro... ela nunca teve nada. Tudo que eu via dele... eu dizia a ela. Aí eles começavam a discutir e ela ficava chateada comigo. Eu achava engraçado.... porque ela pedia pra eu dizer e depois ficava chateada comigo.... Depois de muito tempo... quando aconteceram esses problemas com o meu namorado... eu fui pra lá. Antes disso eu saí de casa.... Cheguei quase a tomar um litro de cachaça.... Não tomei porque não deixaram... Isso foi há quatro anos atrás ou mais ou menos cinco anos atrás.... Eu tinha em torno de doze anos.... Depois disso... me internaram no hospital psiquiátrico Acho que nesse momento eu só pensava em me matar.... Morrer.... Eu não pensava em outra coisa... não.... Em cortava meus pulsos e botava uma corda no pescoço... eu queria morrer.... Morrer era uma coisa em que eu pensava sempre... sempre...sempre me senti rejeitada pela família.... porque eu sei que minhas tias nunca gostaram de mim... as irmãs do meu pai. Porque as irmãs da minha mãe eu não conheço....Minha mãe muito pior....Nunca gostaram de mim. Mas eu não 153 entendo... porque o pessoal de fora gosta muito de mim... eu me dou super bem... mas com a minha família... não. O pessoal não gosta de mim.... Eu não sei por que.... Eles têm raiva.... A minha mãe sempre falou que quando eu era pequenininha eles não queriam que me adotassem e me registrassem.... Às vezes eu penso que é isso... sabe.... revolta.... Eles não queriam que me registrassem porque minha mãe era prima dele.... Ela casou com ele... esse com quem eu moro.... Só que eu já era nascida e a família não queria.... Ele é meu pai de criação.... Eu não conheço o meu verdadeiro pai. Então ele... meu pai... me criou e até hoje me dá apoio...de mãe... não só de mãe... como de pai também. Ele faz os dois papéis e eu gosto dele... muito... mas também às vezes me dá revolta. Muitas vezes eu chego lá na casa da minha tia... e eu sinto que não sou bem vinda. E eu sei que é isso porque quando a gente não é bem vinda... a gente sente....Aí chego na casa da outra... do mesmo jeito.... Aí começa a revolta e o desespero...Nessa hora eu só penso em me suicidar... em me matar.... O pessoal não gosta de mim.... E eu...sou uma pessoa muito sentida.... Qualquer palavrinha que você disser... me agrava. Eu me sinto revoltada... sabe? Tem hora que eu “expludo”.... Tem hora que eu digo uma porção de coisas..... Eu não agüento nem o meu pai..... Sem motivos... eu começo a dizer coisas até com meu pai. Sem razão alguma... é uma revolta dentro de mim.... Eu não sei.... mas eu acho que é uma revolta muito grande.... Aí... com o tempo... passa Na primeira vez em que fui internada na casa de saúde... eu fiquei três meses... O médico sempre disse que eu não tinha nada de loucura... eles diziam que eu era louca.... Não tinha nada de loucura... só precisava de um amor... de uma coisa assim.... E lá na casa de saúde... eu não queria mais sair de lá... porque as enfermeiras 154 de lá.... nossa... todas gostavam de mim.... Meu apelido lá era anjinho.... Eu era o anjo da casa... a mais nova da casa.... Eu tinha doze anos... nesse meu primeiro internamento.... O último...eu já tinha treze. Até hoje eu me sinto querida lá....O único remédio que eu tomava era complexo B... uma vitamina porque eu não queria comer de jeito nenhum. O médico não passou nenhuma outra medicação.... E tomei soro porque eu não queria comer de jeito nenhum. E eu me sentia muito rejeitada.... Mas o amor das meninas... que elas tinham por mim... o carinho da assistente social....da psicóloga... Aí foi passando o tempo... fui começando a comer e quando fiquei melhor... voltei pra casa. Quando eu voltei pra casa... começaram as mesmas coisas.... Voltei pra casa do meu pai e aí houve uns desentendimentos.... Eu joguei uma cadeira nele e só sei que fui internada de novo... e dessa vez... passei quatro meses. Eu sei que nisso tudo eu fiquei um ano lá internada.... Depois eu voltei de novo e dessa vez voltei pra casa da minha mãe. Lá em minha mãe eu fiquei tomando remédio controlado.... Eu dormia demais..... Um dia... ela foi pra festa... quando chegou....eu estava dormindo na cama dela... Eu só sei que ela disse que eu tinha tido relações com o marido dela. Aí começou a confusão.... e aí discutimos.... A revolta foi tão grande que eu comecei a quebrar as coisas dentro de casa.... Comecei a querer bater nela porque eu sabia que eu não tinha feito aquilo... mas ela insistia... queria que eu dissesse que tinha feito.... Só sei que me amarraram e me levaram pro hospital psiquiátrico...de novo...... Essa já foi a terceira vez.... quando eu passei um monte de tempo....Saí depois do Ano Novo. Faz tempo... Depois....por conta de um namorado...infernizaram a minha vida.... começaram a me agredir...a dizer coisas comigo...minhas tias me chamando de rapariga... me chamando de um monte de coisa... aí eu não tinha como... não sabia 155 como me defender. A única maneira que eu achei de me defender foi ou me matar... ou então dizer que não me lembrava de nada. Aí eu tentei me suicidar.... E depois eu dizia que não me lembrava das pessoas.... Isso foi antes de eu me internar... depois foi que eu fiz o internamento... depois disso eu fiquei boa.... E assim... eu me sentia... sei lá... O pessoal chega a me chamar de louca... de doida. Eu sei que esse namorado também chegou a dizer que eu era louca e que não namorava comigo.... Mas namorava....sim....Aí eu acabei o namoro com ele....depois eu conheci um rapaz. Começamos a namorar e ele dizia que queria casar comigo... me levou pra conhecer a família dele. Quando eu cheguei lá... me trataram super bem... Só que depois eu descobri que ele tinha sido junto com uma mulher... mas eu me sentia muito bem com ele e até hoje eu sinto falta dele... sabe.... Ele se suicidou.... Até hoje eu sinto falta dele.... Depois que esse rapaz se suicidou... aí meu pai bebia e dizia que eu era culpada... e a família dele atrás de mim...querendo me matar. E diziam que eu era a culpada.... o irmão dele tentou bater em mim... tentou me matar.... Aí... depois disso tudo eu fiz uma carta. E não sei nem onde anda essa carta... por onde anda. Eu fiz uma carta e deixei lá na minha madrinha... a assistente social. Na hora que eu deixei lá... ela pegou e não me deixou mais sair de lá... na unidade mista de saúde de Felipe Camarão. E nesse tempo... em vez da minha psicóloga me dar apoio... eu chegava... e minha madrinha já tinha dito a ela que eu estava muito deprimida... mas ela nunca podia me atender.... Porque nesse tempo eu já agredia os alunos da escola e eles já não podiam olhar pra mim que eu já começava a agredir...Eu brigava com o diretor da escola....coisa que eu nunca fiz....sempre fui uma excelente aluna... meu pai nunca foi 156 chamado por mim pra ir à escola... mas dessa vez foi...precisava conversar com alguém. E na hora que eu ia na minha psicóloga... ela sempre dizia que estava ocupada demais... que não podia me atender... que meu dia era tal dia... e realmente meu dia era na quinta-feira. E ela não podia me atender e aí é que eu me sentia só mesmo.... Depois minha madrinha ligou pro SOS Criança... que veio me buscar. Perguntaram porque eu queria me suicidar....Eu disse que já não agüentava mais meu pai...minha família... contei tudo e então eles me levaram pra Casa de Passagem. Quando eu cheguei lá na Casa de Passagem... o pessoal sempre tinha muito cuidado em mim... porque que eu tinha tentado suicídio... porque eu me sentia rejeitada pela minha família... porque meu pai dizia as coisas comigo.... Lá... encontrei grandes amigos... o pessoal... os funcionários da casa... porque com os adolescentes eu não me dava muito bem. Eu acho que... pelo carinho que os educadores tinham por mim... alguns tinham ciúmes de mim.... Mesmo assim... teve um dia la' que eu tentei me suicidar.... Coloquei um cordão no meu pescoço... ainda hoje sofro com isso... pois alguma coisa deslocou no meu pescoço. Quem me socorreu foi a educadora. Meu pescoço estava preso e eu já quase sem fôlego.... De tanto arrochar... eu sei que eu fiquei sem fôlego... sem fala... tive que tomar nebulização... um monte de coisa. Depois disso... outra vez que eu fugi de lá... eu tentei me suicidar.... Dessa vez eu estava com um problema de uma raspadinha... eu ia tentar de novo e aí as meninas da praia já me conheciam. Umas meninas que fazem programas... e me conheciam porque elas tinham me tirado da água. Foram elas que chamaram o salva-vidas porque elas tinham visto que eu queria morrer.... Dessa vez... elas não deixaram... foram conversar comigo... dizendo que havia um meio 157 melhor de superar isso... aquela dívida que eu tinha com o rapaz da raspadinha. E eu não sabia a quem pedir ajuda... Ele disse que eu tinha que arrumar um dinheirinho de qualquer maneira. Aí... eu fui pra praia. Quando eu cheguei na praia eu fiquei amiga delas... aí elas disseram que tinha um meio de vida melhor... você pode até ficar na praia. Mas pra eu ficar na praia eu tinha que dizer a meu pai que tinha arrumado um emprego de manicure.... Eu sei que fiquei indo pra praia... trabalhando... fazendo aquelas coisas... só fiz programa uma vez. Fiquei lá três semanas.... Ia todo dia e voltava... e foi aí que o juizado me pegou. Foi aí que eu conheci a psicóloga de lá... Quando fui pro juizado eu dizia a eles que ia voltar pra praia mas eu não voltei mais não. Eu achei que esse trabalho foi uma nova experiência.... Eu me sentia bem porque as meninas gostam de mim...Aonde eu chego... eu pego amizade e o pessoal sempre fica gostando muito de mim.... Eu não sei você... mas o pessoal sempre fica gostando muito de mim. Assim... a gente ficou amigas...colegas... desde o dia que elas me tiraram de dentro d’água... aí é que me dava mais força... mais vontade de ir.... Eu não tenho amigas... eu nunca tive amigas.... Eu estudo num colégio... o Maria Tereza... mas as meninas têm ciúme... eu não sabia disso. Eu sabia que as meninas tinham um pouquinho de raiva de mim... mas eu não sabia que era ciúme dos professores... porque os professores sempre me admiraram muito.... Todos os meus professores... aliás... a minha primeira professora que foi Elza... mora ali em cima. 158 Hoje eu me sinto a mesma pessoa... Às vezes... eu ainda me sinto rejeitada pela minha família. E meu pai proibiu de ir lá pra minha mãe.... Eu acho que é ciúme que ele tem.... A minha relação com o meu pai é normal.... Ele passa o dia fora... e eu passo o dia em casa. A minha iniciação sexual foi ruim demais...Eu tinha onze ou doze anos. Foi aí que eu comecei a ser internada. A minha família disse que eu tinha tido relações com aquele rapaz.... Mas eu disse que não tinha... e eu não tinha mesmo tido relações sexuais com ele. Aí eu saí de casa e quando eu saí de casa... eu liguei pra ele... dizendo que queria sair com ele.... Aí ele disse que não queria fazer isso comigo porque ele gostava muito da minha família.... Ele era trabalhador demais. Mas eu disse que eu queria porque eles estavam dizendo que eu fiz amor... sem eu ter feito e agora eu ia fazer mesmo.... E foi aí que começou toda a minha complicação porque eles queriam porque queriam que eu tivesse tido relações com esse rapaz.... E daí eu o obriguei... eu o forcei... e disse que ele tinha que ir... porque se não fosse ele... seria outro. Então ele aceitou... mas era com uma raiva tão grande que ele me deixou toda machucada....E foi assim... muito ruim... eu não gostei.... E é por isso que eu nunca dei muito valor.... Eu nunca tinha dado muito valor a minha vida sexual.... Vim começar a dar valor agora... depois que eu conheci esse rapaz com quem estou saindo...Depois que eu comecei a participar de várias jornadas... sobre sexualidade na adolescência...é que comecei a valorizar isso. 159 Narrativa 4: Márcia, 15 anos. Vou contar sobre o que me aconteceu quando tentei tirar a minha própria vida. Tudo aconteceu porque eu gostava muito de um rapaz. Mas ele ficava sempre com minhas amigas.... Então...um dia... eu cheguei da praia e tinha bebido muito... Aí cheguei... vi o veneno... que era soda cáustica... e tomei ..."– Eu quero morrer"! Era o que eu pensava.... A soda cáustica que eu tomei era em pedrinha... acho que tomei umas três... então eu comecei a inchar... a inchar... aí parei de tomar. Foi então que me levaram para o Hospital Walfredo Gurgel. Primeiro eu fui pro Hospital da Cidade da Esperança... mas quando cheguei lá... desmaiei. Aí me encaminharam pro Walfredo... na ambulância e ao chegarmos lá... me deram soro. Depois de mais ou menos 1 hora... me deram leite.... eu ainda cheguei a tomar dois litros de soro.... Depois vim embora pra casa. Fiquei um pouco fraca durante a semana... depois melhorei. Senti vontade de morrer por causa de um homem sem futuro.... Um rapaz sem futuro... que não presta.... Eu pensei em morrer por causa dele.... Depois eu vi que não adiantava... que ele tinha a mulher dele... tinha um filho.... Acho que ele queria acabar com minha vida... sabe? Me fazendo sofrer.... Aí a gente se deixou depois disso. Faz um bom tempo que a gente não se vê mais.... Depois eu vim trabalhar aqui... e no final de semana eu vou pra lá....pro meu bairro...na semana eu também costumo ir.... Naquela época eu me sentia muito triste. Só vivia chorando.... Só fazia chorar.... Se ia dormir... era chorando. Se acordava... era chorando! E assim... sofria... doía... acordava muito agitada. Era... sei lá... não tenho nem como falar.... Não tinha 160 apoio de ninguém... só da minha mãe.... Porque meu pai só fazia reclamar... dizer as coisas comigo.... Dizer que eu não prestava...! Que ele já tinha raiva de mim porque eu só vivia brigando lá... quando eu vou lá no meu bairro. A turma de lá tem raiva de mim... e quer bater em mim. São umas vagabundas de lá...nojentas.... Elas vêm brigar comigo... aí eu brigo também.... Meu pai só vive chorando por causa disso. Ele fala que quem não presta sou eu. Aí...eu escuto o que ele tem pra falar.... Às vezes.... eu perco a paciência e começo a falar as coisas com ele... responder... dizer coisas que ele não gosta.... E isso que acontece comigo e com o meu pai... não é de agora...já acontece há muito tempo... desde que eu fui junta... que ele é assim. Fui junta com treze anos.... Vivi com um rapaz lá... depois eu me separei dele... mas voltei. Só que depois que eu retornei pra casa dele... ele começou a falar as coisas comigo de novo.... Uma porção de besteira. Aí eu arrumei um quartinho... e saí de dentro de casa. Final de semana eu vou pra lá... Mas ainda vou em casa ver minha mãe.... No meu primeiro relacionamento.... Eu tinha treze anos. Nos conhecemos na praia.... Aí ele pediu pra namorar comigo... mas meu pai não deixou.... Queria namorar em casa... mas meu pai não deixou... Ele era solteiro... Depois de três dias... eu o encontrei numa festa.... Aí fui lá onde ele estava. Ele me chamou.... Chegando lá... ele botou um comprimido... uma droga... dentro da bebida... e me deu. Aí eu bebi... sem saber que estava tomando isso. Não sabia que tinha essa droga dentro... não. Aí tomei.... Comecei a ficar tonta.... Não via nada... minha vista escureceu. Ele me chamou pra subir numa moto e me levou pra um motel. Fez o que quis comigo. Aí... no outro dia... umas três horas da manhã... eu acordei... chamando ele pra ir pra casa... perguntando o que tinha acontecido.... Então ele disse que eu já era mulher. 161 Eu respondi que não... eu não era mulher.... Me lembro que era dia 22 de dezembro. Quando cheguei em casa... contei pro meu irmão mais velho....Ele então contou pra minha mãe. Aí começou aquela discussão... minha mãe chorando... porque eu era ainda uma criança.... Meu pai chegou de viagem e queria ir atrás dele... queria matar ele.... Denunciou ele na justiça.... A delegada queria que eu casasse com ele. Eu não queria casar... que não gostava dele... nem ele de mim.... Ele não queria casar comigo... só queria se juntar e depois me deixar.... Aí eu disse que não queria me juntar com ele.... Depois de muito tempo... eu comecei a gostar dele. A gente então se juntou... por causa da delegada... que forçou muito... Mas todo dia ele batia em mim.... Só vivia batendo em mim.... Até mulher ele levava lá pra dentro de onde a gente morava... um quarto...Eu só vivia chorando atrás dele...e ele dando surra em mim todo dia.... Aí a gente se deixou. Depois que eu deixei ele... eu conheci umas meninas lá... todo dia bebia... chegava de manhã em casa... isso acontecia todo dia.... Aí eu saía com homem... bêbada. Depois eu deixei disso. Então conheci um rapaz que é casado.... Esse por quem eu tentei me matar.... Eu já sofri tanto... assim... por causa de besteira.... Mas agora eu estou quieta.... Estou começando a me ajeitar.... Agora... quando eu olho pra minha vida... quando eu vou dormir e penso como era antes... eu começo a chorar.... mas agora... não. Antes eu vivia bebendo... bagunçando no meio da rua... brigando... Aí fico pensando como era antes e como é agora. Antes... era desse mesmo jeito que estou falando... bebendo todo dia.... Sempre foi assim... sempre... Antes foi... agora não... eu estou mais quieta. Mas antes era sempre assim.... Isso tudo aconteceu dos treze anos aos quatorze anos... eu vivia assim.. bebendo. Antes eu vivia dentro de casa.... Não saía.... Era do colégio pra dentro de 162 casa... não arredava o pé de dentro de casa. A minha vida era melhor... Ninguém nunca dizia que eu era perdida... ou vadia.... Minha vida sempre foi boa. Meu pai... pra onde ia... pra qualquer canto... me levava. Quem conhece aquele ditado que diz que o amor de pai não acaba nunca? Mas o amor dele era muito bonito comigo... sempre me senti amada por ele.... Agora não.... Sentia... agora só me sinto amada por minha mãe.... Porque a única pessoa que eu gosto ali é dela... ela me apoiou em tudo.... Mesmo eu fazendo coisas erradas... ela me apoiava. Me tratava com carinho... amor... Agora é um pouco diferente... Sinto falta do amor do meu pai.... Se ele me tratasse como era antes... eu acho que eu não vivia trabalhando dentro da casa dos outros... eu estaria na minha casa... e não na casa de ninguém.... Eu seria a melhor pessoa do mundo pra ele.... Eu gostaria que ele me tratasse melhor.... Mas nunca conversei com ele sobre isso... Não assim... A nossa conversa era assim: primeiro ele pedia pra eu esquecer o rapaz com quem eu vivia...que era casado. Ele não entendia que ninguém tem culpa de não mandar no coração... de gostar de alguém... Eu ainda gosto daquele rapaz... mas não como era antes. Tentei me matar por causa dele... Ainda gosto... mas procuro evitar... me afastar dele... pra minha vida se tornar melhor.... Ainda estou ligada nele... mas faz um bom tempo que não o vejo.... Ele está com uma menina que era amiga minha. Tá namorando com ela... Continua casado...mas namorando com ela.... Eu me sinto triste com isso... mas não posso fazer nada.... A vida é deles... é dela... Eles que façam a vida deles pra lá. Eu gosto dele.... Mas não posso fazer nada.... Eu já tentei fazer tantas das coisas... tentar me matar... e toda vez ele chegava e falava: "eu gosto muito de você... você é isso... você é aquilo pra mim... eu nunca vou deixar você". Mas ele dizia que eu era criança demais... aí quem se deu mal nessa história fui eu... não foi ele. Ele só vive falando 163 que está com um bocado de menina de família... mocinha... e pra que ele ia querer uma vagabunda como eu? São os amigos dele que me contam isso... mas eu não acredito não.... Apesar de me sentir muito triste com tudo isso... por tudo que tenho passado... não tenho feito nada pra mudar essa situação.... Trabalho aqui e aluguei um quartinho pra passar o final de semana... Quando vou em casa... me sento lá na área... fico conversando com minha mãe.... Quando meu pai chega... peço a benção a ele.... Mas ele não quer conversar comigo... ele não conversa... Se eu pedir dinheiro pra ir numa festa... no SESI.. por exemplo... ou em qualquer lugar... ele não me dá. Ele me manda pedir aos meus machos! É por isso que eu criei raiva dele.... Um tipo de ódio assim... que eu não sei o que é ódio.... Dá uma raiva... assim... Que eu acho que se ele chegasse pra mim e conversasse bem direitinho... eu seria a filha melhor do mundo pra ele.... Gostaria de ouví-lo dizer que gostava de mim.... Que me pedisse pra voltar pra casa... como era antes.... Acho que é por isso que não fico em casa quando vou pra lá.... Eu moro nesse quartinho...que eu aluguei.... Só tem minha cama... minha cômoda... minhas roupas... alguns objetos meus... íntimos. Não tem fogão... geladeira... nem nada.... Às vezes... quando eu vou pra lá... no final de semana... eu não como nada.. só pra não ir lá comer... pra ele não falar. Tudo o que ele fala é que eu só vou pra casa comer e tomar banho e depois vou pro meio da rua... vagabundear.... Por isso que eu não vou nem lá... Prefiro ficar onde eu estou morando no final de semana... Quanto a essa casa onde eu trabalho... eu também gosto de ficar aqui. Eu passo a semana aqui e final de semana lá... às vezes eu fico aqui e outras vezes eu 164 vou em dia de semana pra lá. Vou conversar com uma amiga minha que está grávida... não sai de casa.... Sempre vou lá conversar com ela.... Acho que meu pai não me compreende e nem a ninguém... lá em casa. Não me sinto tratada do jeito que gostaria.... Por isso eu sinto ódio dentro de mim... Quando eu pego em dinheiro vou logo beber. Atualmente... só bebo às vezes... Antes eu bebia muito... agora não... parei mais... Tinha dia que eu não passava um dia sequer sem beber... que eu ficava doida... Eu bebia muito porque pensava que bebendo... ia apagar tudo... ia esquecer... mas não... aí volto no outro dia à realidade. Por isso que eu deixei mais de beber.... Cada vez que eu me lembrava de tudo... ia beber de novo. E assim... ia... Quando bebo... começo a chorar... a desabafar... não tem quase ninguém com quem eu possa conversar... só tem uma amiga mesmo que eu converso meus assuntos com ela. É essa amiga que está grávida.... Só com ela que eu converso mesmo.... Às vezes... ela me dá conselho pra eu não beber. Ela é super legal... Com exceção da bebida... eu não uso outro tipo de droga. A única coisa que eu fiz na minha vida foi tomar esse comprimido que eu nem sabia que tinha na minha bebida. Quem me contou sobre isso foram os amigos dele... que o viram colocando na bebida.... No outro dia me contaram...e aí falei pro meu pai. A vontade do meu pai era que eu dissesse à delegada que eu tinha sido estuprada... que havia sido forçada.... Mas eu não queria isso.... Um dia ele vai pagar o que fez comigo e com outras. Embora eu não estivesse sabendo o que se passava... por conta da droga... eu também não queria que ele passasse o resto da vida dentro das grades... preso.... Um dia ele vai pagar o que ele fez comigo.... 165 Hoje... pensando na minha vontade de morrer... eu achava... naquele tempo... que eu fiz isso.... que se eu morresse as coisas iam melhorar.... e eu não ia sofrer mais.... depois... ao mesmo tempo eu pensei: "– eu vou morrer... todo mundo vai ficar aí... rindo da minha cara... que eu morri por causa de um homem." Eu falei pra mim mesma: "eu não! Eu vou curtir minha vida". Eu sou muito nova... eu tenho quinze anos agora... eu ainda vou aproveitar muito.... Que um dia vai chegar uma pessoa que me faça feliz... Eu estou esperando isso.... E também não estou fazendo nada para ser feliz... Eu tenho planos de estudar. Eu fiz até a quarta série... mas saí do colégio... no tempo em que me juntei àquele rapaz.... Eu não penso nem em me casar... mas em ter um filho.... Teve um tempo que eu acho que estive grávida... não sei.... Foi desse rapaz casado... então minha mãe me mandou tomar remédio pra abortar. Pois... realmente... ter um filho de um homem casado... Ele já não tem o que dar ao filho dele... que dirá ao meu! Aí eu tomei alguns remédios e então a minha menstruação voltou... depois de muito tempo... Atualmente não tenho vida sexual. Não tenho namorado... nem quero... agora não. Mas antes eu me prevenia pra não engravidar... com camisinha... ou então eu tomava uns comprimidos... só uma vez que eu esqueci... essa que eu falei e que eu pensei que estava grávida... eu acho que estava. Faz mais ou menos um ano.... Depois daquela vez que tentei me matar... nunca mais pensei nisso. Agora... pelo contrário... eu faço amizades com as meninas que estão com ele. Ainda assim... ando brigando com algumas delas.... Estou assim toda marcada por conta de umas brigas com uma menina que sai com ele... pois ela falou que eu estou com ele... sem estar. Aí ela veio bater no meu rosto... deu um tapa no meu rosto... aí eu briguei com 166 ela. Isso aconteceu somente duas vezes... durante uma semana. Eu briguei com essa domingo... e com a outra... terça-feira. 167 Narrativa 5: Marta, 15 anos Vou contar sobre a minha experiência quando eu quis morrer. Me lembro que veio algo na minha cabeça... Aí eu pensei: "Eu vou fazer isso que é melhor pra todo mundo". Fechei a porta do quarto...me deitei na cama... Depois eu fiquei pensando... Aí veio aquela agonia... aquela coisa na minha cabeça: "Faz... Faz... Faz isso..." Foi quando eu peguei o lençol e ... enrolei assim no pescoço... aí eu fiquei meio agoniada. Aí minha mãe bateu na porta do quarto. Como eu não tinha respondido... ela abriu e ... Não tenho certeza de como estava me sentindo...Sei lá...! Na hora me deu vontade. Pensei: "Vou fazer isso que é melhor pra mim...pra todo mundo". Aí eu fiz...! Fiquei agoniada na hora...só. Minha mãe... quando viu...tirou o lençol e perguntou porque eu queria fazer isso. Na hora...eu fiquei tão agoniada... sei lá...! Eu tive pena dela...Vi que não devia fazer isso... não.... É que eu gosto muito da minha mãe... Não vale a pena fazer isso. Primeiro...que eu vou fazer ela sofrer.... Aí eu...Não vou fazer isso não...não.... Não vale a pena... mas toda vez que eu fico desse jeito...me dá vontade.... Às vezes eu me sinto assim....Mas não sei dizer o que me faz sentir desse jeito...Sei lá...! Eu fico...agoniada... tento resolver os problemas... não consigo.... aí ah... eu vou resolver assim...! Mas...às vezes... eu acho que não vale a pena... não.... Tudo isso é por conta dos problemas que eu quero resolver e não consigo. Aí... eu fico..."Não vou fazer isso...não..." Porque eu tenho pena da minha mãe também. Às vezes...eu acho que não vale a pena... 168 A primeira vez que eu tentei isso... eu sei lá... eu também me arrependi... Eu tentei uma outra vez...que eu peguei o negócio do fogão e queria tomar...Foi com um líquido que se usa pra limpar o fogão...alguma coisa desse tipo... Essa tentativa com o lençol faz uns dois meses...ou uns três... E essa tentativa com o líquido foi depois...Acho que foi mais ou menos há um mês atrás...Eu estava lá fora...e minha mãe estava lá dentro fazendo as coisas. Aí eu peguei... vi aquele negócio debaixo da pia.... Aí eu fui lá pra ver o que era... Vi que era o líquido de limpar o fogão...então decidi tomar...desistir logo da minha vida... Peguei um copo... tomei só um pouquinho assim... não muito. Mas na hora que eu fui tomar a minha mãe viu. Aí eu fiquei numa agonia... Ela falou: "você ia tomar... não é"? Eu respondi que não...Eu queria morrer pra desistir de tudo... Eu sabia que aquele limpador de fogão era veneno...Desde uma vez que minha mãe foi limpar o fogão e ela me disse...aí eu fui debaixo da pia...e aconteceu... Mas só foi isso que aconteceu... Quando eu penso na minha mãe... eu não quero fazer isso... não....Acho que o que me segura... o que segura a minha vontade de fazer isso é a minha mãe. Não vale a pena fazer isso... não.... Esses pensamentos passam pela minha cabeça...quando eu penso em resolver todos os problemas...Aí eu digo: "Eu vou fazer isso... vou resolver tudo..." mas eu acho que não....Queria resolver os problemas... Não quero brigar com meu irmão...Eu tinha que segurar a barra antigamente. Me dava raiva... Aí eu não aguentava... voltava.. só que agora...É tudo muito chato! Só vejo problemas...na vida..! São uns problemas bestas... tem coisa demais pra resolver... um monte de coisa... Negócio de ir pra escola...Mas é só por 169 isso...Essas coisas...de vez em quando me perturbam...Mas agora até que está melhorando... Tem horas que eu ainda penso em morrer... Até um dia desses eu ainda pensava... Agora até que melhorou...Antes de tentar a primeira vez eu nunca havia pensado nisso... Foi tudo porque me dava revolta... quando eu estava morrendo de dor e ninguém entendia... Eu estava operada... E estava sentindo um pouco de dor....Mas ninguém acreditava em mim... meu pai... meu irmão... não acreditavam em mim...Por isso...eu achava que eles não gostavam de mim...Foi quando eu resolvi fazer isso... Aí eu pensei... como ninguém está se incomodando comigo...me revoltei...e fiz isso Quando eu me lembro dá vontade de chorar...choro...e também sinto raiva...Essa raiva eu sinto de tudo... Meu pai não se entendia com meu irmão...brigava com ele.... e ele sai gritando... E isso... eu não agüento mais...Mas no dia que eu fiz isso eu não tinha brigado com eles...Só veio na minha cabeça: "Eu vou fazer isso... aí melhora a vida de todo mundo..." Hoje ...eu penso mais ou menos assim: "Ah... eu fiz errado... não devia ter feito isso. Porque...eu... destruindo a minha vida... quem ia morrer sou eu...não eles. Pra eles ia ficar tudo bem...e eu... não". Aí eu pensei e disse... não. Não vou fazer isso...Não vale a pena.... Não vou tirar a minha vida... não. Só quem tira é Deus...e eu não vou fazer isso... Só queria terminar dizendo que não vale a pena fazer isso...Problemas...Mas não é assim que se resolve... não...Eu me achava culpada por todos os problemas... Mas eu não sou culpada por nada... não. Sei lá...! Eu me preocupo... mas... fazer isso...não.... 170 Narrativa 6- Alex, 17 anos. Meu nome é Alex... tenho dezessete anos... farei dezoito em outubro. Vou falar pra você sobre o que passei quando quis me matar. Isso aconteceu de repente...Foi alguma coisa que deu na minha cabeça de repente....Eu andava bebendo muito...Brigava... arranjava encrenca.... Minha mãe morreu queimada com álcool...por causa do meu padrasto. Mas muita gente dizia que foi culpa minha... Dizia que era culpa minha porque eu fazia muita raiva a minha mãe. Aí...Aquilo foi ficando na minha cabeça....foi ficando..... Eu vivia dizendo aos meus amigos que ia fazer isso. Ninguém acreditava...... E um dia....eu bebi... bebi...bebi...aí fui pra casa...e pensava em fazer isso nesse dia. E de repente....deu na cabeça.... Comprei dois litros de álcool.... ensopei a roupa...vesti....e toquei fogo.... Aí o vizinho apareceu e me salvou. Tirou a roupa... conseguiu ainda tirar metade da roupa rasgada.... E foi por isso que eu ainda estou vivo... Consegui sair dessa.... Só vivia brigando em festa... fazendo arruaça..... Mas não foi sempre assim... não....No tempo em que minha mãe era viva... não era assim não.... Faz dois anos que a minha mãe morreu....Eu tinha então 16 anos mais ou menos...Ela morreu no dia das mães....Ela se queimou....E aí o pessoal só vivia botando a culpa em mim.... Pessoal que eu falo era o povo da rua....Inclusive a minha tia...quando estava com raiva de mim... dizia que quem matou minha mãe fui eu. Aí eu ficava com desgosto....Só sentia desgosto....Só ficava com desgosto.... Aí ficava pensando... será que fui eu mesmo? Ficava em dúvida se eu tinha mesmo culpa....Será que fui eu 171 mesmo? Será que ela morreu mesmo por causa de mim? Eu não sei....Eu não sei o que pensar sobre isso....não sei...eu não sei.... Eu me arrependi do que eu fiz. Agora tenho que levantar a cabeça e seguir a vida pra frente.... Não pensar em fazer de novo.... A minha vida no tempo em que eu morava com a minha mãe era uma vida normal. Ela tinha um bar....Eu não bebia.... bebia pouco.... Ela não gostava porque eu bebia.... Vivia bem normal como a vida que qualquer um vive. Morávamos só nós dois....mas tenho uma irmã....Mas por parte de pai tenho outros irmãos....Meu pai morreu num acidente de carro... há mais ou menos cinco anos.....nessa época ele e minha mãe já viviam separados...há muito tempo....tinha outra mulher.... Quanto à minha história desde pequeno...vou falar um pouco....Quando eu nasci...a minha mãe não podia ficar comigo....porque ela tinha uma casa de drinks.... Aí eu só ia vê-la.....Por isso ela não tinha condição de me criar....não é..? Então.. quando a minha avó morreu... ela disse "– Não...! Vou acabar com isso". Aí acabou.... Botou só um barzinho pra ela mesmo.... Quanto ao meu pai...não me lembro dele não....Só encontrei com ele quando ele trabalhava na Coca. Mas eu não me lembro muito do jeito dele... não. Me lembro assim... pouco....que ele era alto....Quando eu o vi...eu era pequeno.... Dessa época... eu me lembro do dia que vieram me dar a notícia: "– seu pai morreu". Eu não vi... não cheguei a ver.... Eu vi quando ele estava vivo.... Mas quando vieram dar a notícia... ele já tinha se enterrado há uns cinco dias. Foi quando eu soube da sua morte.....Mas minha mãe já sabia.... Só que nesse tempo eu morava com a minha avó. Aí com um tempinho... minha avó morreu... aí eu tive que ir morar 172 com a minha mãe....e a partir de então fiquei morando com ela..... A minha avó morreu logo depois do meu pai....mais ou menos uns três ou quatro meses depois....Ela morreu de câncer.... Ela já vinha sentindo dores... só que ela não dizia nada pra gente....Morávamos eu e minha irmã com ela.... O meu relacionamento com a minha mãe era bom. Ela só não gostava porque eu bebia....quando eu saía pra jogar bola...e vivia bebendo...Aí ela reclamava...Ela queria que eu fosse pro colégio... eu dizia que ia...mas não ia. Saía para as festas...Por conta disso tudo..... Aí muita gente....quando ela morreu veio dizer que foi culpa minha....porque eu dava raiva a ela. Aí eu fiquei pensando.... Eu só vivia tentando fazer isso...me matar....mas quando chegava na hora...eu não tinha coragem.... Eu vivia pensando em me matar e já tinha tentado outras vezes....umas duas vezes.... Chegava a ensopar a roupa com álcool...mas na hora de riscar o fósforo eu não tinha coragem.... Duas vezes... por duas vezes eu não tive coragem....Nessas horas eu pensava em morrer.... Queria ir para o lugar onde ela estava....Pensava em me encontrar com ela...Queria saber por quê ela fez aquilo.....Se foi por minha causa...se não foi.....Queria tirar essa dúvida...E..descansar onde ela está....Só que eu vi que não é futuro... não é.....? Agora o que eu quero é esquecer....tirar isso da cabeça.... Vou morar com a minha irmã...minha irmã gosta muito de mim.... Depois que minha mãe morreu eu fiquei morando com minha tia. Aí depois vim pra casa de uma outra tia aqui ... foi onde aconteceu.... Eu sempre morei aqui na capital..... Nunca morei no interior... não....No tempo que morei na casa da minha tia....a minha vida foi normal. Mas aí eu comecei 173 a beber... beber...de novo.... Então disse que não me queria mais lá....Foi quando eu fui pra casa de outra tia...em outro bairro....Foi onde eu toquei fogo em mim.... E aí vim pra cá...para o hospital..... Mas agora eu vou morar com a minha irmã. A minha irmã mora só... separou-se do marido....depois que a minha avó morreu... ela casou....eu fui morar com ela e o marido.... E depois que a minha mãe mudou de casa... eu fui morar com ela..até acontecer isso. No dia em que tentei me matar eu não estava sozinho em casa.....A minha tia estava lavando roupa...Ela sentiu o cheiro de álcool....Correu....Na hora que ela ia chegando eu já ia riscando o fogo....Ela saiu gritando....E aí o vizinho pulou... jogou um tapete....um lençol....em cima de mim....aí o fogo abafou mais.... Ele puxou a minha bermuda jeans... senão tinha queimado tudo. Eu não tinha ficado vivo... não....Porque eu ensopei a roupa... vesti.....Eu estava com uma bermuda jeans e uma camisa... Eu ensopei a camisa e a bermuda todinha...vesti e joguei álcool aqui em cima de mim... queimei...queimou tudinho...Nessa hora.....Eu só pensava que ia morrer.... Na hora eu pensei na minha irmã e na minha sobrinha.... Na hora... depois... eu fiquei pensando... na minha irmã – "o que é que ela ia pensar, não é?" Porque eu me queimei também... E pensava se ela também ia ficar com culpa...como eu fiquei com a minha mãe.... sei lá....Como eu disse... sempre pensei em me matar....Mas sempre pensava na minha irmã e na minha sobrinha.... Eu gosto muito delas duas.... Aí eu pensava... Só...só nisso...mas não chegava a fazer.....Só que dessa vez não consegui evitar....A minha sorte foi o vizinho. Se não fosse ele eu estaria morto..... Eu sempre dei muito trabalho pra minha mãe....Eu dizia que ia pro colégio..mas não ia...sentava com os amigos e ia beber no meio das festas....Aí só 174 chegava de manhã. Aí isso também... ela ia ficando com raiva...não é.?...Acho que juntou os problemas dela....com os meus....Pois ela tinha muitos problemas....Problemas de pagar as coisas.... casa...pois a gente mora em casa de Caixa.... Acho que preocupava muito ela. Se preocupava muito comigo... Ela não queria que faltasse nada pra mim. Aí ela foi se preocupando... se preocupando... aí foi juntando as coisas... fez do que fez.... Agora eu me sinto arrependido do que eu fiz.... Do que eu vivia fazendo.... Penso em sair daqui.... Tem um colégio aí que minha irmã arrumou...pra eu estudar...... Também pretendo fazer um curso para ter uma profissão. Quero estudar o dia inteiro...fazer esse curso e só ir pra casa à noite. Pois é....eu estou pensando em fazer isso... sair e esquecer o passado.... Esquecer as amizades... Pois todo o tempo que eu estou aqui ninguém veio me ver... passei muito mal... Mal... mesmo.... Até o médico chegou a dizer que... ... porque eu cheguei muito queimado... veio dizer que ... eu ia precisar de cirurgia...pra enxerto. Em muitos lugares do meu corpo....felizmente nem precisou....Vai precisar só nas costas ... Já com a minha avó era bom.... Eu gostava muito dela.... Sofri muito com a morte dela....Gostava muito da minha avó.... muito mesmo....... gostava muito dela...... senti muito a morte dela...foram duas perdas, não é..? Soube da morte do meu pai...E logo depois.....da minha avó.... 175 CAPÍTULO VI COMENTÁRIOS E INTERPRETAÇÃO Os relatos dos adolescentes são a narrativa densa da experiência em relação à tentativa de suicídio, aos motivos alegados, às dores, às histórias de vida e a tudo que se relaciona às vivências importantes. São pessoas pertencentes às classes sociais e econômicas baixas, com renda inferior à média, com exceção de Marta, uma adolescente cujos pais são funcionários públicos, de classe média baixa, o que, de certa forma, não chega a representar uma diferença muito significativa. O mesmo se aplica quando se observam as narrativas, em função do nível sócio-econômico. Todos os jovens encontram-se entre os quinze e vinte anos, com entrevistas realizadas entre agosto de 1999 e julho de 2000. Podemos iniciar esta etapa do trabalho reconhecendo o fato do ser humano sempre buscar uma explicação para o seu viver e para o morrer também. Talvez por essa razão este aspecto tenha sido observado nas narrativas dos adolescentes sobre as suas experiências de querer morrer. Percebe-se, em todas elas, uma fala que aponta os motivos de cada um, as situações e pessoas envolvidas na experiência. A 176 experiência narrada é sempre relacionada a momentos de vida e fatos que conduziram o jovem àquele ato de desespero. Há sempre um motivo ou motivos que são apontados como geradores da crise que sinaliza para a morte como uma saída. As experiências de vida dos jovens revelam que a maioria deles encontra-se mergulhada em famílias desestruturadas, com histórias de agressões físicas e abusos sexuais, como se pode ver nos depoimentos de Valda e Leila: Ficou muito difícil porque o novo padrasto começou a mandar nela... Ele batia muito em mim de cabo de aço... de cinto... de corda... enfim... com qualquer coisa que ele tivesse à mão...Além de tudo... meu padrasto já pegou nos meus seios... deu-me balas para que eu não contasse nada a minha mãe. Porém eu disse a ela... que então brigou com ele mas não adiantou de nada... passou um mês brigando e depois voltou tudo. Ele batia em mim e ela não ligava. Quando ele me espancava... ela não falava nada... Isso trouxe uma revolta para os filhos... tanto pra mim quanto para o meu irmão. (Valda) Eu acho que desde pequenininha eu me sentia rejeitada... pois eu morava com minha mãe... e ela sempre batia em mim...batia na minha cabeça.... Eu era sempre a que mais apanhava.... Eu tenho uma irmã mais nova que eu. Mas ela nunca bateu na minha irmã....Bater pra deixar marca... era só em mim... Eu não sei porque... mas ela só batia em mim pra deixar marca.... A última surra que eu levei do meu padrasto quando eu morava lá... eu quase que morria mesmo.... Se não fossem os filhos da minha madrinha eu tinha morrido... eu acho. Eu tinha uns dez anos... foi uma surra que eu levei dele... Ele me esmurrou aqui... na minha nuca... e eu saí de lá desmaiada. Não vi nada.... Só depois é que voltei à consciência. (Leila) Essas evidências já vêm sendo ressaltadas nos estudos de Katila e Lonquist (1991), Botega et al (1995), Cassorla (1984) e Mioto (1994) entre outros, que identificaram, em seus estudos com jovens que tentaram suicídio, problemas de desagregação familiar, perturbações emocionais, famílias pobres e mal integradas, ou 177 seja, um contexto de dificuldades de ordem pessoal, social e familiar, semelhante à realidade vivida pelos adolescentes deste estudo. As narrativas dessas jovens revelam experiências de vida comumente marcadas pela rejeição, abandono e incompreensão. Algumas delas, como Valda e Leila, têm história de adoção, o que lhes favorece momentos de confusão e conflitos em relação à sua identidade e à sua aceitação pelos pais e pela família. A conturbada história de Valda, que acaba entrando na prostituição, e com um filho que ela coloca no mundo em plena adolescência e com uma identidade confusa e elaborada em meio a tais adversidades, são fatos relatados por ela como fatores causadores de grandes sofrimentos e responsáveis pela sua conturbada trajetória de vida. A formação do ego foi deturpada logo no início da vida, com a rejeição dos pais, com a ausência do olhar de acolhida dos pais, um olhar que diz “tenho orgulho do filho que gerei, veja como ele(a) é lindo(a)”. Essa rejeição do olhar acolhedor dos pais impede a formação de um self estruturado e capaz de se desenvolver plenamente. Os motivos causadores da tentativa de suicídio sempre são identificados pelos jovens. Há uma razão aparente e consciente que explica o ato que cada um cometeu contra si mesmo, o que mostra uma certa compreensibilidade dos motivos de cada um, revelando uma das estruturas existenciárias do ser, a compreensibilidade, proposta por Heidegger. Leila é muito clara nas suas palavras: ...eu acho que a tentativa de suicídio é mais o “rejeitamento”....Eu acho que pra pessoa tentar se suicidar sempre tem que ter um motivo. A pessoa não vai tentar querer tirar a vida sem ter um motivo... tem aquele motivo... do problema.... 178 Senti vontade de morrer por causa de um homem sem futuro.... Um rapaz sem futuro... que não presta.... Eu pensei em morrer por causa dele.... Marta: Esses pensamentos passam pela minha cabeça...quando eu penso em resolver todos os problemas...Aí eu digo: "Eu vou fazer isso... vou resolver tudo..." mas eu acho que não....Queria resolver os problemas... Não quero brigar com meu irmão...Eu tinha que segurar a barra antigamente. Me dava raiva... Aí eu não aguentava... Alex: Minha mãe morreu queimada com álcool...por causa do meu padrasto. Mas muita gente dizia que foi culpa minha... Dizia que era culpa minha porque eu fazia muita raiva a minha mãe. Aí...Aquilo foi ficando na minha cabeça....foi ficando..... Eu vivia dizendo aos meus amigos que ia fazer isso. Ninguém acreditava...... E um dia....eu bebi... bebi...aí fui pra casa...e pensava em fazer isso nesse dia. E de repente....deu na cabeça.... Comprei dois litros de álcool.... ensopei a roupa...vesti....e toquei fogo.... Nessas falas, os motivos alegados sempre se localizam na figura de um outro, representado pela família, namorado, marido e situações desfavoráveis de vida; enfim, pelos outros do mundo. Aqui vê-se a presença da cotidianidade na qual esses jovens estão absorvidos, na ruína e decadência que a absorção de um outro que não é o seu ser, provoca. Na verdade, uma crise, como diz Procópio (1999), que surge na convivência com um desses outros concretos serve para deixar à mostra e revelar uma angústia que já está aí, porque é originária do SER, como nos faz ver Heidegger (1927). E que, ao ser descoberta, diante da dor que provoca, surge a necessidade de nomeá-la, 179 de fazê-la compreensível, a fim de aliviar o desespero de não se saber. E o que pode acontecer a seguir, é o que geralmente ocorre num momento desses. Não raro se aponta um motivo, um acontecimento ou um outro concretizado na figura de alguém, que é o elemento causador do fato. Na verdade, é a angústia que não é encarada, e da qual o jovem não se apropria, como sendo parte da sua existência. É a revelação do ser e também do não ser. Porque é nessa dimensão de velamento e desvelamento que se dá a pre-sença, ou seja, a existência. É nesse momento, também, que a angústia pode ser facilitadora de uma mudança nos rumos da existência. Como disse Heidegger (1927), nesse momento duas alternativas se colocam diante do ser: continuar na ruína, ou seja, absorvido pela cotidianidade ou se apropriar do si mesmo, ao buscar uma existência mais autêntica. Como se pode ver, nos depoimentos mostrados aqui, a alternativa tem sido uma outra: a tentativa de morte. Contudo, ao não enfrentar essa realidade, parte-se para localizar no mundo concreto, no outro, e não em si mesmo, uma explicação para a dor. O sofrimento decorrente da angústia necessita ser nomeado e compreendido. É difícil para o homem olhar de frente a sua finitude, porque ao fazê-lo, além de enfrentar a certeza da morte, ele ainda tem que assumir a vida. A possibilidade da morte revela a vida que se vive. E enfrentar a realidade da vida que se tem é tão frustrante, que em muitos jovens, prevalece a intolerância à dor, o que os leva, freqüentemente, a escolher a morte para escapar a esse sofrimento. O sofrimento de empunhar o seu si mesmo, de apropriar-se da sua existência assumindo todas as implicações que daí decorrem.A morte, sendo uma possibilidade, está presente no ser-aí e é também uma possibilidade do homem. 180 A natureza dessa dor é muito bem reconhecida pelas palavras de Rosa (1998)20 ao afirmar que: Esse tipo de dor está associado com a perda de um estado mental e de um equilíbrio psicológico em particular. Em geral a dor está unida a uma maior percepção do self e da realidade de outras pessoas (...) Portanto, está ligada a uma sensação de ter uma existência separada do outro. (p. 82). Entretanto, a capacidade para ser autêntico é inerente ao "self ", por ser parte do dasein, isto é, pelo fato de estar lançado no mundo e assim, representar sempre uma possibilidade de ser. E essa possibilidade, o vir-a-ser, acontece na experiência permanente de se ver no mundo, como afirma Burton (1978). Este autor refere-se, com muita pertinência, ao processo de vida que ocorre com alguém que tenta o suicídio. Diz ele que a maior forma de ansiedade, por definição, fica sendo a inautenticidade e uma vida não preenchida. A ansiedade é sempre o grande sinal entre o eu e suas próprias expectativas (p. 173). A ansiedade ocupa o vácuo deixado pelo não-ser. A experiência, quando não vivenciada e atualizada no cotidiano, leva o homem a, cada vez mais, alienar-se do seu eu, do si-mesmo, gerando um estado de ansiedade e às vezes de depressão; esses modos de ser nada mais representam do que um não-ser. E quando a ansiedade chega ao seu mais alto grau, aos seus limites mais extremos, desenvolve-se o terror e o desespero, tão presentes nas experiências de quase-morrer, como aquelas relatadas neste trabalho. 20 Rosa, J.T. (1998, p. 82). Ese tipo de dolor está asociado com la pérdida de un estado mental y de un equilibrio psicológico en particular. En general el dolor está unido a una mayor percepción del self y de la realidad de otras personas (...) Por lo tanto, está ligada a una sensación de tener uma existencia separada del outro. 181 É preciso compreender que, para esses jovens, a tarefa de ser autêntico, de se apropriar de si mesmo torna-se mais difícil ainda ou mesmo impossibilitada de ocorrer pelas diversas circunstâncias que envolvem a sua existência. Além de serem jovens em plena adolescência, momento este marcado pelos conflitos próprios desta fase e por aqueles anteriores que agora são revividos, ainda têm que lidar, e como se vê, de forma dolorosa, com as vicissitudes da sua vida real, seja no âmbito familiar, seja no contexto social mais amplo. São geralmente famílias desestruturadas, que não favorecem vínculos afetivos positivos com os seus filhos, isso quando os assume; quando não, os jogam no mundo para que eles enfrentem as suas mudanças e adversidades por conta própria. Ou seja, os pais, como se percebe nesses depoimentos, não possuem recursos para lidar com a problemática dos seus adolescentes. Esta é uma realidade social que presenciamos em nossa sociedade globalizada,como já comentamos em capítulo anterior. Contudo, não se pretende, com tal argumento identificar, exclusivamente nas condições sociais e econômicas os aspectos causadores ou motivadores que favorecem a tentativa de suicídio desses jovens. Pois isso seria negar todas as evidências de que este ato acontece em todas as sociedades, principalmente nas mais desenvolvidas e que não têm esse tipo de problema social. Contudo, é impossível deixar de reconhecer que a miséria, a pobreza e a injustiça social comprometem a qualidade de vida e, conseqüentemente, a saúde mental de uma população. A este respeito, Buarque21 apud Rosa ( 1996), mostra que, 21 Buarque, C. A cortina de ouro, R.J., Paz e Terra, 1995. 182 ...tanto a psicopatologia dos pais como a das crianças ambas podem ser dependentes de um terceiro fator, a qualidade de vida a que estão submetidas estas famílias: desvantagens sociais, exclusão social e econômica; conflitos conjugais, oriundos de dificuldades emocionais associadas à vivência da paternidade e maternidade responsáveis; e outras adversidades associadas à vida familiar. (p. 558). São relações familiares não favorecedoras de um self ou experiência de ser positiva, que possibilite o desenvolvimento da auto-estima. São relações, lembrando Rogers (1975), pouco aceitadoras, pouco respeitosas e, desse modo, pouco facilitadoras para o desenvolvimento dos potenciais de crescimento, inerentes ao ser humano. Nesse sentido, as palavras de Rosa (1996, p. 563), dizem, com muita pertinência, da importância dos vínculos primitivos vividos pelo adolescente: A criança e o adolescente vivem imersos na cultura emocional de seu grupo social e da família, a qual administra e organiza as defesas, diante das angústias e conflitos entre medos e desejos, através da sua própria cultura afetiva. As palavras de Valda são exemplo do que é viver numa família onde a humilhação e o desrespeito são constantes: A relação com a minha mãe sempre foi mal. Sempre foi bruta, sempre foi ruim. Porque ela sempre me humilhava e me maltratava. Ela sempre passou em rosto que eu era negra, que eu não era filha dela. Toda vez que eu fazia alguma coisa errada, ela me batia. Isso desde que eu era pequena. E Márcia: Eu me sinto rejeitada pelo pessoal... pela minha família.... Eu não sei.... Ser filha assim...do meu pai de criação... e saber que só ele me dá apoio... também me dói... porque minha mãe me 183 abandonou....Antes de me abandonar ela já não ligava pra mim.... Aí foi juntando tudo... Como propõe Rogers (1975), as pessoas- critério representam o outro que irá constituir o auto-conceito que o indivíduo formará acerca de si, constituinte da sua subjetividade. Se os vínculos com essas pessoas estiverem baseados no respeito à experiência genuína da criança, no respeito ao seu ser verdadeiro, enfim, se houver um clima psicológico positivo na dinâmica familiar, então, provavelmente, o indivíduo desenvolver-se-á de forma positiva e atualizadora das suas potencialidades. Entretanto, nas narrativas desses adolescentes, é perceptível, em algumas dessas experiências de vida, a falta de figuras positivas e de autoridade que possam servir de referências para esse novo ser adulto que no mundo se constitui, principalmente a ausência da figura paterna que efetivamente exerça a sua função. O que se evidencia, claramente, na história de Alex, que nunca contou com a figura de um pai e cuja mãe o deixa entregue à avó, para seguir a sua vida de "proprietária de casa de drinks". E também na de Valda, que é adotada, e que não é aceita pelo pai em função da sua cor da pele e que reclama o fato de não ter podido viver uma infância e adolescência normais: Eu nunca tive uma adolescência... nunca soube o que foi ter um brinquedo... uma boneca... nunca tive condições de me divertir. Eu caí na prostituição porque foi minha mãe de criação que me botou nisso. E na história de Leila, cuja mãe a rejeita, não permite que o padrasto a adote e cuja família, as tias, segundo ela, não a aceitam e que, além de tudo, ainda passou pela prostituição: Nunca me dei bem com a minha mãe.... Eu nunca disse nada com ela. Mas agora... ela sempre achava alguma coisa pra discutir comigo... sempre... sempre. E depois vieram os padrastos...Aí ela tinha ciúme de mim com os meus padrastos.... 184 Muitas vezes eu chego lá na casa da minha tia... e eu sinto que não sou bem vinda. E eu sei que é isso porque quando a gente não é bem vinda... a gente sente....Aí chego na casa da outra... do mesmo jeito.... Aí começa a revolta e o desespero ... Eu sei que fiquei indo pra praia... trabalhando... fazendo aquelas coisas... só fiz programa uma vez. Fiquei lá três semanas.... Ia todo dia e voltava... e foi aí que o juizado me pegou. Tais experiências de vida configuram-se como uma forma de violência à dignidade humana, principalmente por impedirem que essas adolescentes exerçam o seu direito de cumprir naturalmente uma fase de desenvolvimento, a adolescência, como deveria ser vivida. Ao invés disso, elas são obrigadas, pelas circunstâncias psicossociais, a cair na prostituição, violentando o corpo e a alma, pela falta de condições que lhes permitam ter uma vida mais digna. A iniciação sexual dessas jovens acontece muito precocemente, como mostram as experiências de Leila, Valda e Márcia. Leila diz: A minha iniciação sexual foi ruim demais...Eu tinha onze ou doze anos. Foi aí que eu comecei a ser internada, São geralmente experiências negativas e insatisfatórias, nas quais se constata, com freqüência, a presença de agressões físicas, violência e desrespeito à figura feminina. Observam-se atitudes preconceituosas e machistas não só por parte dos parceiros dessas meninas, mas também das suas famílias, revelando assim, os valores culturais, sociais e morais pertencentes à comunidade em que vivem. Além disso, existem mães, como a de Valda, que induzem à prostituição, desestimulando a filha para outras alternativas de trabalho mais dignas. Dessa forma, essas jovens são lançadas à própria sorte, perdem as suas referências familiares, seus continentes afetivos, quando os têm, e caem no abandono. 185 As palavras de Leila são um exemplo da condição de abandono e desproteção em que essas meninas muitas vezes se encontram. A morte, então, surge como uma maneira de se defender do outro, revelando um desespero e uma busca de proteção. Nessas condições, a morte parece ser uma saída: Depois....por conta de um namorado...infernizaram a minha vida.... começaram a me agredir...a dizer coisas comigo...minhas tias me chamando de rapariga... me chamando de um monte de coisa... aí eu não tinha como... não sabia como me defender. A única maneira que eu achei de me defender foi ou me matar... ou então dizer que não me lembrava de nada. Aí eu tentei me suicidar.... Não são raras a utilização de drogas, tanto as lícitas, nos casos de Elizabete, Márcia e Alex, que faziam uso de bebidas alcoólicas, quanto as ilícitas, no caso também de Elizabete que, além de tudo, envolveu-se com traficantes. As experiências de algumas adolescentes também falam de depressão, internamentos em hospitais psiquiátricos, como mostram os depoimentos de Elizabete e Leila. Sinceramente... eu não estou entendendo o que se passa comigo. Estou num estágio de vida em que me vejo parada... eu estacionei Eu nem ando... nem volto... nem para um lado e nem para o outro.... Eu parei.... E tenho tido crises depressivas.... Às vezes eu páro em casa e fico pensando em quantas vezes eu quis me matar. Por que será...? (Elizabete) E depois disseram que eu estava doida e então me internaram na Casa de Saúde de Natal. Depois de muito tempo... quando aconteceram esses problemas com o meu namorado... eu fui pra lá. Antes disso eu saí de casa.... Cheguei quase a tomar um litro de cachaça.... Não tomei porque não deixaram... Isso foi há quatro anos atrás ou mais ou menos cinco anos atrás.... Eu tinha em torno de doze anos.... Depois disso... me internaram no hospital psiquiátrico. (Leila) 186 São histórias de vida que contribuem para a formação de um self inautêntico, ambivalente e confuso, em que a alienação de si é uma constante, gerando um estarno-mundo distanciado do seu ser verdadeiro e onde não há lugar para o respeito e amor-próprios. Essa alienação de si, da experiência, resultado da apropriação de um outro que não é o seu ser verdadeiro, gera esses comportamentos de distanciamento de si, de uma sensação de não se saber quem é, de uma identidade confusa e ambivalente. Esta sensação de alienação de si está presente na maioria das narrativas desses jovens. Fica muito clara essa questão nas palavras de Elizabete, que diz, textualmente: ... por isso me sinto muito mal... por saber que eles não sabem... por eles pensarem que eu sou a boazinha. Na verdade... estou escondendo a verdade... como se estivesse escondendo uma parte de mim... a de que não sou tão boazinha. Aí me pergunto: "-por que será?" Eu não estou... realmente... com meus pés no chão....Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo que eu acho que sou.... já que eu não era assim... entende? Essa alienação do self se confunde com a própria identidade. O "quem sou eu" do adolescente assume configurações mais graves, nessas condições, como revela Elizabete: Às vezes... pegava minha cabeça... apertava e ficava tentando entender o que era aquilo que eu sentia... qual o motivo que me fazia sentir daquele jeito.... Como se houvesse uma certa capacidade intrínseca de compreensão dela mesma para saber que ela não era aquilo; ainda que não soubesse o que seria. É a experiência que desvela e ao mesmo tempo encobre o ser, já que a descoberta da existência ocorre dentro de si mesmo (self) e esta é a condição para o conhecimento e a experiência, como acredita Morato (1987, p.34), pois Elizabete, apesar de tudo, 187 revela uma consciência de não estar sendo ela mesma. É como se estivesse numa encruzilhada, onde um caminho lhe aponta a vida autêntica, o verdadeiro self; e o outro, sinaliza com a aceitação do outro, o sentir-se amada, pagando o preço da inautenticidade. A necessidade de ser aceito, amado, surge em todas as falas desses jovens, seja de forma explícita, consciente, ou não. Na verdade, é a falta de amor e a busca do outro que perpassa todos os depoimentos desses jovens. O viver de forma inautêntica, não verdadeira, tem em suas bases a busca de aceitação pelo outro. Rogers (1975) nos oferece em sua teoria do desenvolvimento, consistentes argumentos que nos ajudam a entender essa dinâmica que envolve, sempre, uma culpa por nunca estar sendo como deveria ser, ou seja, pela impossibilidade de corresponder totalmente à expectativa do outro. Tal forma de funcionamento leva a sentimentos de irrealização e autodesvalorização, gerando um sentimento de baixa auto-estima. Podemos identificar claramente a culpa, a busca de aceitação e a necessidade de amor em alguns trechos das narrtivas: Leila: Muitas vezes eu chego lá na casa da minha tia... e eu sinto que não sou bem vinda. E eu sei que é isso porque quando a gente não é bem vinda... a gente sente....Aí chego na casa da outra... do mesmo jeito.... Aí começa a revolta e o desespero.... O pessoal não gosta de mim.... E eu...sou uma pessoa muito sentida.... Qualquer palavrinha que você disser... me agrava. Eu me sinto revoltada, sabe? Acho que nesse momento eu só pensava em me matar.... Morrer.... Eu não pensava em outra coisa... não.... Eu cortava meus pulsos e botava uma corda no pescoço... eu queria morrer.... Morrer era uma coisa em que eu pensava sempre... sempre...sempre me senti rejeitada pela família.... porque eu sei que minhas tias nunca gostaram de mim... as irmãs do meu pai. 188 Porque as irmãs da minha mãe eu não conheço....Minha mãe muito pior....Nunca gostaram de mim. Elizabete : Toda essa situação me dá muito medo.... Tenho certeza de que a minha família não me aceitaria mais... porque as pessoas que eu amo assim de paixão mesmo... são meu pai e minha mãe e minhas irmãs... demais! Aí fica aquela coisa... se eu contar... e um dia eu vou ter que contar.... Já tentei várias vezes... mas não adianta... então eu vou ficar calada aqui... embora eu ache que não é o ideal.. não... Vamos ver no que é que vai dar.... É muito difícil...! Daí vem a vontade da pessoa se matar... tomar comprimido.... É uma coisa super difícil.... É ruim... é ruim demais.... E o que me incomoda mais nisso tudo é minha família não saber e eu tenho medo de contar e elas não quererem mais conversar comigo..... Eu me emociono quando falo nisso porque eu acho que um dos pontos que mais me magoam ainda é esse....Eu estar guardando essa verdade e eles não saberem.... Márcia: Quando meu pai chega... peço a benção a ele.... Mas ele não quer conversar comigo... ele não conversa...Gostaria de ouví-lo dizer que gostava de mim.... Que me pedisse pra voltar pra casa... como era antes.... Acho que meu pai não me compreende e nem a ninguém... lá em casa. Não me sinto tratada do jeito que gostaria.... Por isso eu sinto ódio dentro de mim... Nessa hora eu só penso em me suicidar... em me matar. Marta: Foi tudo porque me dava revolta... quando eu estava morrendo de dor e ninguém entendia... Eu estava operada... E estava sentindo um pouco de dor....Mas ninguém acreditava em mim... meu pai... meu irmão... não acreditavam em mim...Por isso...eu achava que eles não gostavam de mim...Foi quando eu resolvi fazer isso... Aí eu pensei... como ninguém está se incomodando comigo...me revoltei...e fiz isso. 189 Alex: Minha mãe morreu queimada com álcool...por causa do meu padrasto. Mas muita gente dizia que foi culpa minha... Dizia que era culpa minha porque eu fazia muita raiva a minha mãe. Aí...Aquilo foi ficando na minha cabeça....foi ficando..... Inclusive a minha tia...quando estava com raiva de mim... dizia que quem matou minha mãe fui eu. Aí eu ficava com desgosto....Só sentia desgosto....Só ficava com desgosto.... Aí ficava pensando... será que fui eu mesmo? Ficava em dúvida se eu tinha mesmo culpa....Será que fui eu mesmo? Será que ela morreu mesmo por causa de mim? A experiência desses jovens, deduzida através das suas narrativas, revelam as falas, revelam as pessoas que eles são nesse momento, vivenciando sentimentos de não serem aceitos e reconhecidos como pessoa. Nas palavras de Elizabete, Leila e Márcia, principalmente, percebe-se a necessidade que elas têm de serem aceitas e amadas tal como se percebem; e o sofrimento por não estarem inteiras na sua relação com os pais, com o outro. Podemos dizer que esta seria uma crise instaurada pela necessidade de ser-com, que é, ao mesmo tempo, impossibilitada, pela consciência de não se perceber como um si mesmo, um self, pois, como afirmam as palavras de Morato (1987), se o self não existe isoladamente, mas está no mundo com os outros, então o conhecimento e a compreensão do mundo e das pessoas são decorrências do conhecimento e da compreensão de si mesmo (p.34). Assim, viver nessas condições será sempre um vivenciar de angústias e sofrimentos constantes pela consciência de não existir nem para si e nem para o outro, de não ser-com os outros do seu mundo, situações que facilmente conduzem à sensação de fracasso, desesperança e solidão, os quais podem constituir-se em um caminho que os leve ao fim do sofrimento, de forma destrutiva, como temos visto nas experiências desses jovens. 190 Ao mesmo tempo, as falas desses jovens dizem de uma impulsividade que se revela principalmente nos momentos em que eles se sentem rejeitados. A presença de impulsos de se matar são evidentes, assim como constata-se uma repetição dos pensamentos e intenções suicidas em diversos momentos das suas histórias de vida. É visível a impulsividade no comportamento de algumas dessas meninas e no rapaz também, como se houvessem sentimentos acumulados e contidos de não ser amado; certamente podemos pensar numa história já sedimentada de rejeição e desamor que, num determinado momento vem à tona, com uma carga de revolta por não existir para o outro. Aqui revela-se a necessidade que todos temos de estar-com. E a revolta de não poder ser reconhecido existencialmente e amado pelo outro pode provocar reações diversas, entre elas a revolta, depressão, agressividade e até a tentativa de morte, que é também uma maneira de dizer: eu existo! Olhem pra mim! Ou seja, o sentimento de não existir para o outro, leva à angústia; e então, sumir, morrer, tornase um pedido de socorro ou mesmo um alívio para o sofrimento de não existir. A solidão é muito presente nas vidas desses jovens. Muitas dessas adolescentes dizem da sua falta de amigas, de não ter com quem trocar as suas experiências de inquietudes e tristezas. A relações interpessoais são caracterizadas, em sua maioria, pelos conflitos e disputas de homens, territórios e poder. Há uma carência de vínculos afetivos que possam servir de continente às angústias por que passam esses jovens, sejam no contexto familiar ou no social. Pode ser em razão dessa falta que alguns deles recorrem às drogas, à vida sexual promíscua e mesmo aos conflitos com os seus pares na rua e escolas. Os comportamentos hostis, assim como as respostas agressivas muitas vezes em direção aos familiares, na verdade podem estar representando uma defesa ou negação da angústia de não ser amado. 191 As experiências narradas nos fazem ver que viver na impropriedade nos afasta do prazer de viver, da auto-realização e de uma existência autêntica. A vocação originária de ser-com do homem leva-o a desejar ser aceito, a conviver de forma verdadeira. Elizabete nos diz, na verdade, que não consegue contactar com a experiência do seu ser. Confunde a experiência autêntica de ser com uma imagem que idealiza de si mesma, uma vez que é esta a esperada pelos outros e a quem ela satisfaz, para, assim, sentir-se amada. Em outras palavras, podemos dizer que Elizabete, como outras jovens aqui apresentadas, deixou-se absorver pela cotidianidade; tornou-se impessoal; passou a viver na impropriedade, na inautenticidade e isso significou perder uma experiência em que o seu verdadeiro ser se revelou, porém não pode ser apreendido ou apropriado nos momentos da sua existência, levando-a a uma condição de alienação que cada vez mais, a faz perder-se em si mesma e no outro, pois como já dissera Morato (1987), a descoberta da existência ocorre dentro de si mesmo (self) e esta é a condição para o conhecimento e a experiência (p.34). Essa condição, portanto, vai gerar uma alienação de si; um não-sei-quem-sou, que, além de permear de forma contundente e previsível o processo de adolescer, se vê agravado pela confusão gerada pelas circunstâncias desfavoráveis com que cada um deles se depara em sua vida. Em respeito a essa questão, é válido apresentar o pensamento de Burton (1978), quando afirma que o "eu" se reporta ao si-mesmo para fins de orientação temporal e espacial. Se a esses "dados" falta ordenação, introduz-se um efeito bizarro na experiência (p. 159). Assim, como já o fazia Heidegger (1927), reconhece-se o significado da temporalidade e espacialidade na existência, podendo 192 constituir-se no núcleo da neurose, como afirma Burton (ibidem): ser capaz de viver em nosso tempo e em nosso espaço é o melhor sinal isolado da aceitação do próprio ser e da própria cultura (p.159). Isto me parece verdadeiro no que se refere às tentativas de suicídio. Há um desespero entre as experiências narradas que se confrontam com um dever-ser que não cabe no presente, pois é o passado que aprisiona o presente e compromete o futuro. Elizabete diz: Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo que eu acho que sou.... já que eu não era assim... entende? Só que depois parei... estacionei... acabou.... No próprio trabalho... às vezes... eu digo que estou muito desgostosa... mas não sei qual o motivo. E Alex: Queria ir para o lugar onde ela estava....Pensava em me encontrar com ela...Queria saber por quê ela fez aquilo.....Se foi por minha causa...se não foi.....Queria tirar essa dúvida...E..descansar onde ela está... E ainda Valda: Começamos a discutir de novo.... Então eu fui perdendo a paciência porque ele me chamou de rapariga.... Isso porque uma vez ele me olhou e disse que se me tirasse daquela casa de drinks jamais iria chamar-me de rapariga.... Por isso eu fiquei furiosa... porque ele não devia ter dito aquilo por causa de uma besteira... 193 O self se perde num tempo que não foi e que já não é. O self ou a experiência não encontra lugar no tempo que é vivido. Então o desespero e o tempo de um nãoser se instala. No entanto, pensando a tentativa de morte, acredito que esta pode ser compreendida como uma diferente maneira de lidar com a angústia, eliminando-a. É a incapacidade de enxergar uma existência na qual o outro se institua de um jeito novo, distinto daquele que o absorveu. Ou seja, a descrença de que a vida possa ser vivida de uma outra maneira. É também uma recusa em continuar sendo como antes. A tentativa de suicídio poderia ser pensada como uma forma desesperada de se apropriar da vida, do seu ser, ainda que seja eliminando-o, o que não deixa de ser uma forma de assumir o seu destino, como um ser-para-a-morte. Isso pode ser percebido nas experiências das jovens deste estudo, que colocam a tentativa de morte como um desejo de sair do sofrimento, sem que se pense na possibilidade de retomar a vida de diferente forma; e, em se pensando desta maneira, o desejo de morte se sobrepõe pela descrença em alcançar um rumo diferente para a sua existência. Quando ocorre de se pensar nessa alternativa, a resposta continua sendo o outro, o que significa um não apropriar-se da sua existência, como se percebe nas palavras de Márcia: Eu sou muito nova... eu tenho quinze anos agora... eu ainda vou aproveitar muito.... Que um dia vai chegar uma pessoa que me faça feliz... Eu estou esperando isso.... E também não estou fazendo nada para ser feliz... Mesmo após a tentativa de morte, ou seja, a crise, Márcia ainda não conseguiu perceber uma outra alternativa para a sua existência. Continua sem apropriar-se do seu ser, e à espera de que alguém faça isso por ela. Na verdade, 194 consigo compreender que esta é uma tarefa muito árdua para essa menina de quinze anos, que desde os treze foi expulsa de casa pelo pai, que a rejeita até hoje. Ela teve que entrar na adolescência como uma adulta capaz de se auto-gerir, em todos os sentidos, mas sem condições reais para sê-lo, em razão da natural imaturidade da idade e das condições sócio-econômicas e psicossocias em que se encontra. Quando ela precisava de referências, de acolhida para a sua dor, tendo vivenciado uma experiência de tamanha violência com um namorado, necessitando de suportes afetivos para desenvolver a sua identidade adulta, eis que esse processo é abortado e, violentamente, ela é lançada ao mundo para enfrentá-lo, da forma que pudesse. Na verdade, essa responsabilidade que ela coloca no outro pela mudança da sua vida, penso que se origina da necessidade de um suporte, de um pai simbólico que possa cumprir a tarefa não alcançada pelo seu pai real. Pode representar uma tentativa de reparação daquilo que a vida lhe negou. O seu coração se ressente e sofre por esse abandono, como expressam as suas palavras: Quando vou em casa... me sento lá na área... fico conversando com minha mãe.... Quando meu pai chega... peço a bênção a ele.... Mas ele não quer conversar comigo... ele não conversa... Se eu pedir dinheiro pra ir numa festa... Ele me manda pedir aos meus machos! É por isso que eu criei raiva dele.... Um tipo de ódio assim... que eu não sei o que é ódio.... Dá uma raiva... assim... Que eu acho que se ele chegasse pra mim e conversasse bem direitinho... eu seria a filha melhor do mundo pra ele.... Gostaria de ouví-lo dizer que gostava de mim.... Que me pedisse pra voltar pra casa... como era antes.... Podemos pensar a tentativa de suicídio, ainda, como consequência, entre tantos motivos, do desespero de não poder enfrentar a finitude da existência; ou seja, o ser-para-a-morte. Assim, esse ato pode significar a onipotência de se tomar nas mãos o destino do ser-para-a-morte. 195 Pode ser compreendida, também, em se tratando, principalmente, do adolescente, de um ato de rebeldia, em não aceitar a abertura do ser-aí, que também inclui a finitude, a morte, que não se sabe quando virá e, assim, tenta-se antecipá-la. Desse modo, alivia-se a angústia de saber-se um ser que, em sendo um ser-para-amorte, deve acolher, em seu projeto, essa possibilidade. Viver um projeto que inclua o ser-para-a-morte não significa antecipá-la, eliminá-la ou viver no sofrimento, "morrendo" a cada momento. É, antes de tudo, encará-la como uma das possibilidades do ser-aí, como sendo parte da abertura ao mundo. É viver a angústia como abertura às possibilidades do ser, entre elas, a morte. Tentar sair da vida pode ser entendido como uma recusa a enfrentar a responsabilidade por ela. Seria antecipar o final do ser, que é a morte. Como diz Boss (1981, p. 40), ...o futuro do ser humano, ele só o alcança completamente no momento da morte. A culpa, tal como a angústia, por ser inerente ao homem, jamais dela este se verá livre. De nada adiantam as explicações concretas, no nível biológico, psicológico ou psicodinâmico, sobra a culpa, já que esta se constitui pela falta, que sempre acompanhará o homem. Em relação à missão do ser-aí, retorno a Rogers, quando propõe a capacidade inata do ser humano para crescer; e a presença de uma tendência que promoveria tal desenvolvimento e crescimento. Concepção que dota o homem de tal possibilidade, tornando-o um ente que pode-vir-a-ser sempre na sua existência. É um poder- ser que se encontra subjacente a essa formulação teórica. Aqui se identificam, entre outros lugares, uma filosofia essencialmente existencialista, que acredita no poder-ser-do indivíduo. 196 Vista sob o ângulo também da culpa, do ficar-a-dever, no dizer de Boss, a tentativa de suicídio se configuraria no "ficar-devendo" (grifo meu), no abrir mão do poder-ser; no desvencilhar-se da existência escolhida e responsável e mergulhar no vácuo do não-ser. Seria uma entrega a esse sentimento indissociável do ser humano, que é a culpa. 197 CAPÍTULO VII CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÕES Chegado o momento final deste trabalho, muitas questões ainda persistem. E haverão de permanecer assim, uma vez que este estudo jamais pretendeu alcançar conclusões definitivas ou mesmo fornecer respostas conclusivas aos questionamentos inspiradores do estudo. Contudo, tais argumentos não nos impedem de tentar pontuar e deixar marcados alguns aspectos e idéias que se revelam nesta etapa do trabalho, e outras que se consolidam, como conhecimentos que se impõem em função da sua presença nessa construção de elaborações do pensar e do fazer psicológico. É bem conhecido e tido como consensual, entre os suicidologistas, o pensamento de que as condutas autodestrutivas, como o suicídio, são multideterminadas, o que torna este tema de acesso difícil e complexo, não sendo 198 possível, dessa maneira, apontar-se as verdadeiras causas ou motivos que levam alguém a cometê-lo. Quanto às tentativas de suicídio, estas podem parecer de mais fácil abordagem, uma vez que o acesso a quem a cometeu poderia facilitar o conhecimento ou descobrimento do que levou tal pessoa a querer não viver. Ledo engano, pois, dependendo do ângulo pelo qual se considere esta questão, a "verdade" deste ato continua velada e desconhecida, inclusive para a própria pessoa que a cometeu. E este é o nosso caso, é a nossa conclusão. A psiquiatria, bem como algumas teorias psicológicas, muitas vezes nos oferecem respostas para os motivos que levam alguém a tentar se matar. Porém muitas ficam ao nível das hipóteses, o que considero a conduta mais lúcida, por tratar-se de uma experiência humana. É por isso, de extrema complexidade, já que o homem pelo fato de diferenciar-se dos outros seres do mundo por constituir-se numa subjetividade que pensa, sente e tem na linguagem a expressão da sua existência, jamais poderá ser enquadrado, rotulado ou conhecido de forma estática e definitiva na sua experiência, sem que se perca a principal característica que nos distingue no mundo, que é a existência. E esta é fluida, processual, semelhante e distinta de todos os outros, o que impossibilita explicá-lo através de verdades estáticas e aplicáveis a todos os outros seres. Nesse momento recorro às palavras de Morato (1987), que refletem o nosso pensamento: O homem é livre para ser, mas também se torna responsável por seu ser. Não existe possibilidade de um controle pleno da existência, do que se é, e, nesse sentido, a existência não é estática; encontra-se em constante mutação para novas possibilidades, para a auto-realização, em direção à totalidade do ser, buscando sua identidade (que significa "ser igual a si mesmo" ou autêntico). (p.34) 199 Pensar dessa forma nos levou a tratar o self, constructo desenvolvido por Carl Rogers, como suporte teórico sobre o qual este trabalho se orientou. Duvidávamos se o self, essa noção que diz sobre o que cada pessoa é ou se imagina ser em cada momento da sua existência, daria conta de uma compreensão mais profunda das tentativas de suicídio de jovens adolescentes. Constatamos, uma vez mais, que o ser humano é muito mais do que uma imagem pela qual ele se concebe e a qual se restringe à sua dimensão subjetiva e individual, tal como é proposto na teoria desenvolvida por Rogers. Podemos dizer que o self não diz tudo, mas também não podemos negar que nos ajuda a esclarecer esse entendimento. O self é parte de um todo deste ser que se chama humano, o qual habita e apreende um mundo que já está aí quando ele é lançado na vida. O self é a parte do ser-aí que reflete a experiência de existir; por isso ele é importante, na medida em que, sem a experiência de ser, a experiência de ser-com pode não existir. No entanto, foi preciso voltarmos à filosofia, à ontologia de Heidegger, para apreender esta visão do self e o ser-no-mundo. Retornamos à essa visão que se denomina existencial, e assim pudemos aproximarmo-nos da complexidade da nossa existência, através das experiências dos jovens deste estudo. Foi um retorno não só ao pensar filosófico, mas, sobretudo, à minha própria existência. Foi um resgate de um saber ainda não esquecido e a atualização de um modo de ser que chama pela experiência, pela vida, que é a existência. Foi preciso mergulhar na minha experiência de angústia, de ser-para-a-morte, para sentir a experiência na qual eu tinha me implicado existencialmente, a tentativa de morte de um adolescente e assim, poder compreender com humanidade a sua vivência . 200 Foi com Heidegger, também, que pude reconhecer e responder às inquietudes do meu viver e do meu fazer psicológico: que, antes de tudo, o ser humano é no mundo, com todas as características que esse mundo apresenta, tal como Heidegger o define; que não é possível conceber um homem fragmentado na sua experiência, que é existência. Pensando assim, podemos assumir não só a responsabilidade pelas nossas escolhas e pelas nossas possibilidades, mas também reconhecer que estamos todos ligados e envolvidos uns com os outros e o mundo, também constituintes das posssibilidades de todos os seres. Ainda hoje discute-se o papel do mundo interno, versus externo, na determinação da conduta. Parece uma discussão obsoleta e arcaica, porém as teorias psicológicas nos mostram, em sua maioria, que tais questões continuam atuais. De outro modo, já teríamos deixado de discutir o papel do social, da cultura, na subjetividade do homem, uma vez que parece claro sermos parte de um todo, que é o mundo e todos os seres que o habitam. Somos lançados no mundo, com tudo o que já está aí e então passamos a construir o nosso mundo que pensamos particular e único. Isso também é verdade. Sim, é possível, embora estejamos todos submetidos à influências do mundo globalizante e massificante, ainda somos capazes de sermos únicos. O encantamento da filosofia existencial reside na esperança e na crença de nos crermos singulares, únicos, mesmo vivendo em meio a sociedades massificadas e de subjetividades cindidas, como já havia dito Luis Cláudio Figueiredo (1998). E é dessa forma que o homem deve ser abordado: através da sua experiência singular e única, porém constituída na relação com o mundo. 201 Assim acontece com as tentativas de suicídio dos jovens. Não é posssível apontar, de forma conclusiva e definitiva, o motivo ou as razões que levam o jovem a desistir de viver, porque não existe uma causa única. Há de se considerar as dimensões psicológicas, afetivas e os vínculos que cada um desenvolve nos seus primeiros anos de vida, influenciando a própria constituição do sujeito, o qual passa a sofrer de uma insegurança ontológica, desde a formação das primeiras reações narcísicas. Igualmente devem ser considerados os quadros psiquiátricos, as condições materiais, econômicas, financeiras e sociais que influenciam a conduta humana. E, principalmente, há que se considerar as características biológicas, fisiológicas e psicológicas, tão atuantes nas mudanças da fase da adolescência, as quais podem se constituir em aspectos agravantes desse processo de não querer viver. Todos esses aspectos formam uma configuração que, num determinado momento, poderão fazer este adolescente preferir sair do sofrimento, tentar o suicídio, morrer, na tentativa de aliviar a sua angústia. A visão de dasein, do ser-aí e da cotidianidade, entre outras, que nos oferece Heidegger, nos dão a satisfação de encontrar neste filósofo do início do século e de outra cultura, um pensamento extremamente contemporâneo e que nos serviu como um horizonte que nos habilita ao alcance de uma compreensão mais ampla das questões deste mundo. Portanto, o que fica mais evidente e que ressalta aos nossos olhos neste estudo, é a dimensão existencial que se revela em cada experiência narrada. Independente das condições que circunscrevem as tentativas de suicídio, tais como as condições materiais, psicológicas, psiquiátricas ou outras, o que vem em primeiro plano e que se impõem aos nossos olhos diante de todas essas categorizações do ser 202 humano, é a existência. É a capacidade de experienciar a vida de uma forma particular, repleta dos seus próprios significados, fazendo com que pessoas com condições de vida semelhantes não percorram o caminho previamente determinado e esperado. Isso mostra que antes de qualquer categorização, rótulo ou algo semelhante que tente aprisionar o homem, está o ser, que surge na clareira do ser-aí, na abertura do homem ao mundo. É através de um movimento de velamento e desvelamento, que a existência se constrói, num eterno e infindável processo de vira-ser, impossível de ser apreendido estaticamente ou mesmo cristalizado no seu desocultamento, condição intrínseca da existência. E é também essa condição que nos legitima como responsáveis pelo nosso destino e, ao mesmo tempo, nos lança na incerteza desse mesmo destino, quando nos coloca como seres de possibilidades e assim, existindo num processo permanente de escolhas, em busca da completude que nunca virá. Pode-se concluir que, na tentativa de suicídio, há vivências importantes com as quais o self não se acha capaz de lidar e às quais sucumbe, concluindo que a nãovida se apresenta como um refúgio psíquico, no qual se pode livrar de sentimentos indesejáveis e do próprio sofrimento humano. Os outros vão sofrer pelo jovem que tenta o suicídio; o jovem, aparentemente então, passa a considerar que pode se livrar dos pesados sofrimentos depositados em outrem. As vivências são complexas, multicausadas, têm formas plásticas e se apresentam multifacetadas. São compostas principalmente por sentimentos de indignação, de angústia do existir (insegurança ontológica), de ruptura e des- envolvimento. 203 No sentimento de indignação, há sofrimento por sentir violentado o direito de ser livre, de se ver impedido de uma existência autêntica, de cerceamento da liberdade de existir de maneira autônoma; de não poder sentir o que se sente; de não poder falar o que se pode ser falado; enfim, de não poder ser o que se é e ser olhado pelos pais com sentimento de “orgulho” mútuo (narcisamento). O sentimento de angústia na maioria das vezes está presente no cotidiano da juventude; tem tanta energia que consegue mobilizar a vivência do estar-no-mundo como sujeito. A reformulação de valores, a busca de identificações, a separação dos pais (cesura) para poder se afirmar enquanto ser adulto, autônomo e, assim, conquistar um espaço próprio, des-envolver-se; é nesse momento que ao buscar "sair" da casca, no sentido simbólico, promove uma ruptura no mundo psíquico, semelhante à cesura por ocasião do nascimento; essa ruptura pode conduzir à morte (ruptura com a vida), ou ao desenvolvimento, e é um rompimento e uma separação do outro, de pais e/ ou de pessoas que ocupavam espaços mentais que agora estão vazios; é preciso um self bastante equilibrado para suportar a ruptura psíquica e a formação de buracos no self, em lugar dos espaços "perdidos" pela separação dos objetos amados e introjetados no self. 204 CAPÍTULO VIII REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABERASTURY, A et al. Adolescência. Porto Alegre, Artes Médicas, 1980. ABERASTURY, A.; KNOBEL, M. Adolescência Normal. 10. Ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 1981. ALMEIDA, F. M. 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