MARIA DO SOCORRO PELAES BRAGA JUSTIÇA RESTAURATIVA: benefícios para sociedade e para a justiça formal Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. Orientador: Prof. Eng. Márcio José Borges Rio de Janeiro 2014 C2014 ESG Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitido a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencioná-los, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG _________________________________ Maria do Socorro Pelaes Braga Biblioteca General Cordeiro de Farias Braga, Maria do Socorro P. Justiça Restaurativa: Benefícios para sociedade e justiça formal / Promotora de Justiça Maria do Socorro Pelaes Braga. - Rio de Janeiro : ESG, 2014. 57 f.: il Orientador: Engenheiro Márcio José Borges. Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE),2014. 1. Justiça Restaurativa. 2. Conscientização 3. Responsabilidade. I. Título. A todos do Ministério Público do Estado do Amapá, em especial às Promotoras de Justiça Ivana Cei, que oportunizou-me esse aprendizado e Sílvia Canela que durante o contribuiu período com de formação ensinamentos e incentivos. A minha gratidão, em especial aos meus filhos Felipe e Castiel e ao meu pai Pedro Braga, resposta pela aos compreensão, momentos de como minhas ausências e omissões, em dedicação àsatividades da ESG. AGRADECIMENTOS Aos meus professores de todas as épocas por terem sido responsáveis por parte considerável da minha formação e do meu aprendizado, em especial ao meu orientador Professor Márcio, pelo apoio em todos os momentos e aos demais integrantes do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra pelos ensinamentos e orientações que me fizeram refletir, cada vez mais, sobre a importância de se estudar o Brasil com a responsabilidade implícita de ter que melhorar. Aos estagiários da melhor Turma do CAEPE de todos os tempos, “65 anos pensando o Brasil”, pelo convívio harmonioso de todas as horas, com a certeza de que jamais os irei esquecer. “Não há nada mais difícil de manejar, mais perigoso de conduzir, ou de mais incerto sucesso, do que encabeçar o estabelecimento de uma nova ordem das coisas, pois o inovador tem contra si todos os que se beneficiavam das antigas condições, e apoio apenas tíbio dos que poderão se beneficiar com essa nova ordem”. “Nicolau Maquiavel (1459-1527)”. RESUMO A presente monografia é decorrente de pesquisa elaborada no campo da ciência criminal, abordando como tema central a Justiça Restaurativa, enfatizando os métodos e práticas restaurativas e as diversas formas de contribuição para asociedade organizada e para os órgãos de atendimento à vitima e ao infrator. A metodologia adotada consistiu em pesquisa bibliográfica e documental, com abordagens tanto no campo do conhecimento teórico como empírico, contando, nesse ultimo caso, com a experiência de profissionais que atuam na área da justiça penal, em diversos estados do Brasil.Tem por objeto subsidiar público semelhante, indicando métodos alternativos de abordagens de conflitos e pacificação social.A pesquisa permitiu verificar que o modelo de justiça restaurativa possui princípios correlatos com aqueles inerentes a justiça criminal, mas possui metodologia diferenciada na resolução das lides, fomentando a participação da vítima na resolução dos conflitos, a reparação do dano e a responsabilização do ofensor de maneira não aviltante.Inferiu-se ainda que, hodiernamente, tais práticas estão institucionalizadas pelo Estatuto da Criança e Adolescente, introduzidas pela Lei 12.594/2012, que cuida da execução das medidas sócio-educativas e recomenda que estas só devam ser aplicadas quando não houver possibilidade de aplicabilidade dos métodos restaurativos.A partir da análise teórica do modelo de justiça restaurativa e de sua utilidade dentro do processo de pacificação, apontou-se caminhos para sua implementação dentro dos diversos segmentos da justiça institucionalizada. Para tanto, analisamos o perfil de cada órgão e a forma de atuação das equipes restaurativas dentro de cada um deles. Palavras-chave: Justiça Restaurativa.Responsabilidade.Reparação do dano. ABSTRACT This paper work is the result of research carried out in the field of criminals science, addressing the central theme restorative Justice, emphasizing methods and restorative practices and the various forms of contributions to organized society and the organs of care to the victim and the offender.The methodology consisted of bibliographic and documentary research with both approaches in the field of theoretical knowledge as empirical, relying, in this latter case, the experience of professionals working in the area of criminal justice, in various states of Brazil.Its purpose subsidize public similar, indicating alternative methods of approaches to social conflict and peacemaking.Research has shown that the model of restorative justice principles has correlated with those inherent in criminal justice, both as different methodology in solving litigations, encouraging victim participation in conflict resolution, compensation for damage and the accountability of the offender so not demeaning.Yeti was inferred that, in our times, such practices are institutionalized by the Statute of Children and Adolescents, introduced by Law12.594/2012, which takes care of the implementation of socio-educational measures, and recommends that these should only be applied when there is no possibility of applicability of restorative methods.From the theoretical analysis of there restorative justice model and its usefulness in the peace process, pointed up ways for its implementation within the various segments of institutionalized justice. to do so, we analyze each organ was profile and their conduct of restoratives aims within each of them. Keywords: Restorative Justice.ResponsabilityReparation LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AP Amapá. CF Constituição Federal. JR Justiça Restaurativa. ONU Organização das Nações Unidas. SP São Paulo. SINASE Sistema Nacional de Atendimento das Medidas Sócio Educativas UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 12 2 FUNDAMENTAÇÃO .................................................................................... 15 2.1 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA.............................. 15 2.2 DOS DIREITOS HUMANOS ......................................................................... 16 2.3 PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL APLICÁVEIS À JUSTICA RESTAURATIVA .......................................................................................... 17 2.3.1 Princípio da humanidade(ou da limitação das penas) ............................ 17 2.3.2 Principio da legalidade(ou da reserva legal) ............................................ 17 2.3.3 Principio da taxatividade ou da determinação ......................................... 18 2.3.4 Princípio daculpabilidade .......................................................................... 18 2.3.5 Princípio da adequação social .................................................................. 19 2.3.6 Princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos ............................... 19 2.3.7 Princípio da intervenção mínima(ou da subsidiariedade) ...................... 20 2.3.8 Princípio da intranscedência da pena ...................................................... 20 2.3.9 Princípio da proporcionalidade da pena .................................................. 21 2.3.10 Princípio da insignificância (ou da bagatela) .......................................... 21 2.3.11 Princípio da lesividade ............................................................................... 22 3 JUSTIÇA RESTAURATIVA ......................................................................... 23 3.1 ABORDAGEM HISTÓRICA .......................................................................... 23 3.2 O QUE É JUSTIÇA RESTAURATIVA .......................................................... 24 3.3 JUSTIÇA RESTAURATIVA:PRINCÍPIOS E CONTORNOS PRÁTICOS ...... 27 3.3.1 Preparação .................................................................................................. 27 3.3.2 Contato com as partes ............................................................................... 28 3.3.3 Local adequado e acolhimento dos participantes ................................... 28 3.3.4 Identificação da raiz dos problemas ......................................................... 29 3.3.5 Comunicação Restaurativa ........................................................................ 29 3.3.6 Sigilo do debate .......................................................................................... 32 3.3.7 Possibilidade de execução dos acordos .................................................. 32 3.4 MÉTODOS RESTAURATIVOS .................................................................... 33 3.4.1 Mediação vitima ofensor ............................................................................ 33 3.4.2 Reuniões restaurativas .............................................................................. 34 3.4.3 Círculos restaurativos ................................................................................ 34 3.5 INSTRUMENTOS E FERRAMENTAS RESTAURATIVAS ........................... 34 3.5.1 Escuta ativa ................................................................................................. 35 3.5.2 Empoderamento ......................................................................................... 35 3.5.3 Responsabilização ..................................................................................... 36 3.6 POR QUE ADOTAR AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS? ........................... 37 4 COMPATIBILIDADE ENTRE JUSTIÇA FORMAL E RESTAURATIVA ...... 39 4.1 DIFERENÇA ENTRE JUSTIÇA RESTAURATIVA E JUSTIÇA FORMAL .... 40 4.2 IMPORTÂNCIA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PARA A JUSTIÇA FORMAL ....................................................................................................... 42 4.3 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E JUIZADOS ESPECIAIS ........................... 43 4.4 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E INSTITUIÇÕES DE ENSINO ................... 44 4.5 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E ORGÃOS DA SEGURANÇA PÚBLICA ...........................................................................................45 4.6 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E JUSTIÇA MENORIL ................................ 46 4.7 JUSTIÇA RESTAURATIVAE CONTRIBUIÇÃO PARA A PAZSOCIAL ...... 47 5 CONCLUSÃO. ........................................................................................... 49 REFERÊNCIAS .......................................................................................... 52 ANEXO A ................................................................................................... 54 ANEXO B ................................................................................................... 65 ANEXO C ................................................................................................... 72 12 1 INTRODUÇÃO O crime pode ser entendido como uma violação nas relações entre o infrator, vítima e comunidade, cabendo à Justiça identificar as necessidades e obrigações advindas dessa violação e do trauma causado, e viabilizar os meios necessários para reparação. Incumbe-lhe ainda oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem à resolução do conflito, posto que, sujeitos centrais do processo. É cediço que o Sistema de Justiça por nós experimentados não vem atingindo o fim objetivado, exigindo aprimoramentos capazes de impedir a volta à vinditaprivada, fenômeno visivelmente evidenciado nos dias atuais. Desta forma, a Justiça Restaurativa surge como uma esperança para uma cultura de paz. Sua aplicabilidade e suas formas de articulação com o sistema de justiça criminal, tanto do ponto de vista teórico como empírico, vem contribuindo grandiosamente para as abordagens de conflitos, trazendo para a comunidade e para a justiça institucionalizada não apenas a resolução dos litígios, mas tambéma mitigação de novos atritos. É um instituto que se destaca no cenário atual de Justiça, por ser uma forma de enfoque de conflitos diversa do modelo tradicional. Inspirada, principalmente, no abolicionismo e no movimento vitimológico iniciado nos anos 80, a justiça restaurativa tem obtido reconhecimento não apenas em razão do fracasso das penas privativas de liberdade como meio de ressocialização do infrator, mas, principalmente, por dar maior atenção às vitimas. A paz social, tão perseguida pela Justiça, pode ser atingida através de um processo restaurativo,ao final do qual, o infrator passa a ter consciência do ilícito por ele praticado, responsabiliza-se pelo mal causado e, em consequência, obriga-se a reparar o dano, sempre que isso for possível. A vítima, que é vista apenas como informante dentro do processo penal, passa a ser parte integrante do procedimento, contribuindo de forma relevante para a conscientização e responsabilidade do infrator e, em grande parte, tem a satisfação da reparação do dano por ela experimentado. A Justiça é atingida segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as 13 necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a “cura”, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado. O método fundamenta-se em um procedimento de consenso entre as partes envolvidas em situação conflituosa, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para aquele conflito, cuidando dos traumas e perdas causados pelo ilícito. O processo restaurativo abrange pré-mediação, conciliação, audiências, reuniões restaurativas, círculos restaurativos e conferências. Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, tendo lugar, preferencialmente, em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene do Poder Judiciário. Participam do processo dois ou mais mediadores ou facilitadores, que promovem os encontros visando alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e, quando possível, lograr o empoderamento da vitima e a reintegração social do infrator. O paradigma restaurativo vai além dos procedimentos realizados nos Juizados Especiais, posto que, tem por objetivo precípuo resgatar a convivência pacífica no ambiente afetado pelo crime, em especial naquelas situações em que o ofensor e a vítima têm convivência próxima. O método restaurativo, ainda que de maneira acanhada, já é parte integrante do nosso sistema de justiça institucionalizado, posto que a Lei 12.594/12, que trata do Sistema Nacional de Aplicação das Medidas Sócio Educativas dispõe em seu art. 35, III, que a execução da medida sócio educativa deverá ter por principio a prioridade às práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas. Inclusive, é importante enfatizarmos que, tramita no Congresso Nacional o Projeto de lei 7006/2006, que propõe alterações no Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais. 14 Muito embora seja um método relativamente novo, já existe um crescente consenso internacional a respeito de seus princípios, inclusive oficial, em documentos da Organização das Nações Unidas- ONU e da União Europeia, validando e recomendando a Justiça Restaurativa para todos os países. 15 2 FUNDAMENTAÇÃO Todo instituto tem um alicerce sob o qual se funda e justifica sua razão de ser. As práticas restaurativas, por versarem sobre normas de comportamento social tem seu fundamento maior nos princípios e direitos da pessoa humana, sob os quais faremos breves comentários para melhor inteligência do tema. 2.1 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA É da dignidade da pessoa humana que nascem os princípios orientadores e limitadores do Direito Penal. A dignidade do homem está amparada pelos três segmentos dos direitos intrínsecos ao ser. Podemos assim citá-los e definí-los como sendo: a) Os direitos do homem, que são aqueles atribuídos a cada ser humano e inerente a todos os povos; b) Os Direitos Humanos, reconhecidos como os direitos do homem, positivados em documentos internacionais, e; c) Os direitos fundamentais, que são aqueles eleitos e positivados pela Constituição de um determinado Estado. O direito penal, por ser a ciência que cuida das relações entre o infrator e o Estado, não poderia ter outro norte, e assim, pauta seus princípios e fundamentos naqueles advindos dos direitos da pessoa humana. Não temos a pretensão de exaurir o rol desses princípios dado sua amplitude, contudo citaremos aqueles que reputamos como de maior relevância para nossa pesquisa. Temos como orientação, que afrontar um princípio é mais grave que violar uma norma positivada, eis que estas surgem daqueles. Por ser assim, um Estado que não atenta para os princípios fundamentais da pessoa humana, que ultraja seus cidadãos perde sua razão de ser, equiparando-se aos mesmos infratores que a subjugou. 16 2.2 DOS DIREITOS HUMANOS Os direitos humanos, conforme afirmamos alhures, são direitos básicos e inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Todos os seres da espécie humana são detentores desses direitos, indistintamente. Tais prerrogativas incluem o direito à vida, ao livre-arbítrio, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, dentre tantos outros. Desde o estabelecimento da ONU, em 1945, um de seus objetivos fundamentais tem sido promover e encorajar o respeito aos direitos humanos para todos, conforme estipulado no preâmbulo da Carta das Nações Unidas: “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,[...] a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações…” A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco na história dos direitos humanos. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU em Paris, em 10 de dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral, como uma meta comum a ser alcançada. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Por ser assim, esse diploma dos direitos humanos, estabelece as obrigações dos governos a agirem de determinadas maneiras ou de se absterem de certos atos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de grupos ou indivíduos. 17 2.3 PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL APLICÁVEIS À JUSTIÇARESTAURATIVA. Dentre os princípios do direito penal adstritos à justiça comum podemos considerar que em grande parte estes são aplicáveis aos métodos e práticas restaurativas, todavia, cuidaremos na presente pesquisa, daqueles comumente invocados. 2.3.1 Princípio da humanidade (ou da limitação das penas) Em um Estado de Direito democrático é vedada a criação, aplicação ou a execução de pena, bem como de qualquer outra medida que atentar contra a dignidade humana. Apresenta-se como uma diretriz garantidora de ordem material e restritiva da lei penal, verdadeira salvaguarda da dignidade pessoal, relacionando-se de forma estreita com os princípios da culpabilidade e da igualdade. É um princípio geral de racionalidade, que no estado brasileiro deriva da Constituição Federal, exigindo certa vinculação equitativa entre o delito e suas consequências jurídicas. Está previsto no art. 5°, XLVII, que proíbe as penas de morte, salvo em caso de guerra declarada; de caráter perpétuo; de trabalhos forçados; de banimento e cruéis. 2.3.2 Princípio da legalidade (ou da reserva legal) O Direito Penal moderno se assenta em determinados princípios fundamentais, próprios do Estado de Direito democrático, entre os quais sobreleva o da legalidade dos delitos e das penas, da reserva legal ou da intervenção legalizada, que tem base constitucional expressa. A sua dicção legal tem sentido amplo: não há crime (infração penal), nem pena ou medida de segurança (sanção penal) sem prévia lei (stricto sensu). Assim, o princípio da legalidade tem quatro funções fundamentais: a) Proibir a retroatividade da lei penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia); 18 b) Proibir a criação de crimes e penas pelo costume (nullum crimen nulla poena sine lege scripta); c) Proibir o emprego da analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas (nullum crimen nulla poena sine lege stricta); d) Proibir incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poenasine lege certa). 2.3.3 Princípio da taxatividade ou da determinação Diz respeito à técnica de elaboração da lei penal, que deve ser suficientemente clara e precisa na formulação do conteúdo do tipo legal e no estabelecimento da sanção para que exista real segurança jurídica. Tal assertiva constitui postulado indeclinável do Estado de direito material democrático e social. O princípio da reserva legal implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo, na elaboração das leis, que redija tipos penais com a máxima precisão de seus elementos, bem como ao Judiciário que as interprete restritivamente, de modo a preservar a efetividade do princípio. 2.3.4 Princípio da culpabilidade O princípio da culpabilidade possui três sentidos fundamentais: a) Culpabilidade como elemento integrante da teoria analítica do crime - a culpabilidade é a terceira característica ou elemento integrante do conceito analítico de crime, sendo estudada, segundo a teoria finalista da ação, após a análise do fato típico e da ilicitude, ou seja, após concluir que o agente praticou um injusto penal; b) Culpabilidade como princípio medidor da pena -consoante a teoria tripartida, uma vez concluído que o fato praticado pelo agente é típico, ilícito e culpável, podemos afirmar a existência da infração penal. Deverá o julgador, após condenar o agente, encontrar a pena correspondente à infração praticada, tendo sua atenção voltada para a culpabilidade do agente como critério regulador; 19 c) Culpabilidade como princípio impedidor da responsabilidade penal objetiva, ou seja, da responsabilidade penal sem culpa - o princípio da culpabilidade impõe a subjetividade da responsabilidade penal. Isso significa que a imputação subjetiva de um resultado sempre depende de dolo, ou quando previsto, de culpa, evitando a responsabilização por caso fortuito ou força maior. 2.3.5 Princípio da adequação social Apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal não será tida como típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo da ordem social da vida historicamente condicionada. Consoante tal princípio, uma conduta só será considerada lesiva se estiver em conformidade com a norma positivada e a conduta for socialmente reprovável. O princípio da adequação social possui dupla função. Uma delas é a de restringir o âmbito de abrangência do tipo penal, limitando a sua interpretação, e dele excluindo as condutas consideradas socialmente adequadas e aceitas pela sociedade, como acima referido. A segunda função é dirigida ao legislador em duas vertentes. A primeira delas o orienta quando da seleção das condutas que deseja proibir ou impor, com a finalidade de proteger os bens considerados mais importantes. A segunda vertente destina-se a fazer com que o legislador repense os tipos penais e retire do ordenamento jurídico a proteção sobre aqueles bens cujas condutas já se adaptaram perfeitamente à evolução da sociedade. 2.3.6 Princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos O pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal reside na proteção de bens jurídicos essenciais ao individuo e à comunidade, dentro do quadro axiológico constitucional ou decorrente da concepção constitucional eclética). de Estado de Direito Democrático (teoria 20 2.3.7 Princípio da intervenção mínima (ou da subsidiariedade) Estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica das pessoas e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa. Desse modo, a lei penal só deverá intervir quando for absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade, como últimaratio. O princípio da intervenção mínima é o responsável não só pelos bens de maior relevo que merecem a especial proteção do Direito Penal, mas se presta também a fazer com que ocorra a chamada descriminalização. É com base neste princípio que os bens são selecionados para permanecer sob a tutela do Direito Penal. Também é com fundamento nele que o legislador, atento às mutações da sociedade, fará retirar do ordenamento jurídico-penal certos tipos incriminadores, que com a evolução social, deixaram de ter a relevância apresentada no passado. A função maior de proteção dos bens jurídicos atribuída à lei penal não é absoluta e faz com que só sejam repreendidas penalmente aquelas condutas consideradas socialmente intoleráveis. Isto quer dizer que apenas as ações ou omissões mais graves, endereçadas contra bens valiosos, podem ser objeto de criminalização. 2.3.8 Princípio da intranscedência da pena Impede-se a punição por fato alheio, vale dizer, só o autor da infração penal pode ser apenado (CF, art. 5°, XLV). Havendo falecimento do condenado, a pena que lhe fora infligida, mesmo que seja de natureza pecuniária, não poderá ser estendida a ninguém, tendo em vista seu caráter personalíssimo, quer dizer, somente o autor do delito é que pode submeter-se às sanções penais a ele aplicadas. Todavia, se estivermos diante de uma responsabilidade não penal, como a obrigação de reparar o dano, nada impede que, no caso de morte do condenado e tendo havido bens para transmitir aos seus sucessores, estes respondam até as forças da herança. A pena de multa, apesar de ser 21 considerada dívida de valor, não deixou de ter caráter penal e, por isso, continua obedecendo a este princípio. 2.3.9 Princípio da proporcionalidade da pena Consoante este princípio, deve existir sempre uma medida de justo equilíbrio entre a gravidade do fato praticado e a sanção imposta. A pena deve ser proporcional à intensidade da lesão ao bem jurídico agredido pelo delito, e a medida de segurança adequada à periculosidade criminal do agente. O princípio da proporcionalidade rechaça, portanto, o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu significado global. Tem assim duplo destinatário: o poder legislativo (que tem de estabelecer penas proporcionais, em abstrato, à gravidade do delito) e os juízes (a pena que o juizimpõe ao autor do delito tem de ser proporcional à sua concreta gravidade). 2.3.10 Princípio da insignificância (ou da bagatela) Relacionado o axioma “mínima non cura praeter”1, enquanto manifestação contrária ao uso excessivo da sanção penal, postula que devem ser tidas como atípicas as ações ou omissões que afetam muito infimamente a um bem jurídico-penal. A irrelevante lesão do bem jurídico protegido não justifica a imposição de uma pena, devendo-se excluir a tipicidade em caso de danos de pouca importância. A insignificância da afetação do bem jurídico exclui a tipicidade, mas só pode ser estabelecida através da consideração conglobada da norma. Toda ordem normativa persegue uma finalidade, tem um sentido, que é a garantia jurídica para possibilitar uma coexistência que evite a guerra civil. 1 Mínima non cura praeter- expressão em latim que significa dizer que a irrelevante lesão a um bem jurídico não justifica a imposição de uma pena. 22 2.3.11 Princípio da lesividade Os princípios da intervenção mínima e da lesividade são como duas faces da mesma moeda. Se de um lado a intervenção mínima somente permite a interferência do direito penal quando estivermos diante de ataques a bens jurídicos importantes, o princípio da lesividade nos esclarecerá, limitando ainda mais o poder do legislador, sobre quais condutas deverão ser incriminadas pela lei penal. O mencionado princípio proíbe a incriminação de: a) uma atitude interna (pensamentos ou sentimentos pessoais); b) uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor (condutas não lesivas a bens de terceiros); c) simples estados ou condições existenciais (aquilo que se é, não o que se fez); d) condutas desviadas (reprovadas moralmente pela sociedade) que não afetem qualquer bem jurídico. 23 3 JUSTIÇA RESTAURATIVA A Justiça Restaurativa surge assim como um instrumento que tem por objeto a abordagem dos conflitos através de encontros entre vitima e ofensor e busca a consciência e responsabilidade pelo ilícito, com a participação direta da vitima, que tem o direito lesado reparado e atua no processo como agente transformador. 3.1 ABORDAGEM HISTÓRICA A Justiça Restaurativa remonta dos mais primórdios tempos, quando os homens reuniam-se em cavernas para discutir e dirimir seus conflitos. Naquela época não existia o modelo de Estado constituído de direito que hoje conhecemos, e o direito de punir pertencia àquele que sofria lesão a um bem. A ideia de vingança pelo mal causado evoluiu e tomou tamanha relevância no seio social que o Estado chamou para si a responsabilidade de retribuição e prevenção do injusto. Assim a vindita privada passou a ser substituída pela justiça estatal. Contudo, muito embora tenham sido criadas normas que regulam condutas proibitivas, e cominadas as respectivas sanções, é cediço que tais regras não são capazes de impedir a proliferação e aumento da criminalidade, dado que, nem sempre o infrator tem a consciência do injusto e/ou experimenta a responsabilização pelo mal causado. Assim, diante desse paradigma, e considerando nossa realidade social, o Estado Brasileiro, através de seus legisladores tem criado mecanismos visando diminuir a criminalidade e por corolário a população carcerária. Como exemplo podemos citar a Lei 9.099/95, que conta com quase vinte anos e aplica-se aos ilícitos de menor potencial ofensivo, possibilitando aos contendores resolverem o conflito através de um mediador e adotarem, em alguns casos, a solução que melhor lhes aproveita. Muito embora seja louvável a aplicação de normas que visam a abordagens de conflitos com a participação da vitima, é de conhecimento comezinho que não tem atingido o desiderato, por faltar a consciência do ilícito, o que enseja em muitos casos a reincidência. 24 Dados científicos nos informam que as práticas restaurativas como mecanismo de controle social e modelo de ressocialização já está institucionalizado na Nova Zelândia desde a década de oitenta, e hoje, está sendo amplamente difundida em países como, Argentina, Colômbia, África do Sul, Austrália, Canadá e Estados Unidos e, com passos lentos, no Brasil. Muito embora já venha sendo discutida em nosso país desde a década de 70, obteve firmeza e amplitude na década seguinte e, ainda que de forma embrionária, hoje vem sendo aplicada de norte a sul do país. Podemos assim destacar o Estado de São Paulo, especialmente na Comarca de Santana, que utiliza essa prática nos Juizados Criminais e Vara da Infância e Juventude; na Comarca de São José dos Campos, através do Projeto Justiça Terapêutica, realizado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo; no Estado do Amapá, onde são aplicadas práticas restaurativas na Vara de Proteção à Mulher e Promotoria de Justiça com assento na 2ª. Vara de Família, na Comarca de Santana/ AP onde são cuidados os casos de violência doméstica, este sob a coordenação do Ministério Público do Estado do Amapá, que ainda promove círculos restaurativos nas escolas e com membros de comunidade em cenários conflituosos. Também está em ampla ascensão e aplicabilidade nos estados da região sul do país, que, de igual modo, tem despontado para um novo modelo de justiça.Todos com resultados notadamente satisfatórios. 3.2 O QUE É JUSTIÇA RESTAURATIVA A Justiça Restaurativa, como dito alhures, pode ser entendida como um método utilizado para abordagens de conflitos, em que vítima, infrator e membros da comunidade, afetados direta ou indiretamente pelo ilícito, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a reparação do injusto causado e, principalmente, na prevenção da ocorrência de outros males. Como é um paradigma novo, o conceito de Justiça Restaurativa ainda não está bem definido, todavia temos como parâmetro que é um instituto que representa um novo paradigma que busca intervir de forma efetiva no conflito que é exteriorizadopelo crime, e restaurar as relações que foram abaladas a 25 partir desse evento, possibilitando a participação das partes envolvidas e dasociedade, buscando sempre a conscientização do ilícito, a responsabilidade pelo mal causado e a reparação do dano, sempre que possível. Atrevemo-nos a conceituá-la, em linhas gerais, como sendo uma forma de gerenciamento de conflitos, através do qual um facilitador auxilia todas as partes direta e indiretamente envolvidas numa contenda,a realizarem um processo dialógico, visando transformar uma relação de resistência e oposição em relação de cooperação, valendo-se de técnicas de comunicação não violenta. Os envolvidos decidem coletivamente como lidarcom circunstâncias decorrentes do ato danoso e suas implicações para o futuro, levandoà responsabilização, à reparação de danos e à reintegração, com o fortalecimento dos laços comunitários e à prevenção de futuros conflitos.É um procedimento estritamente voluntário e sua aplicabilidade é facilmente exequível, tendo tido grande destaque nos espaços comunitários. Com o advento da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais e do Estatuto da Criança e do Adolescente, as práticas restaurativas têm sido adotadas formalmente no Brasil, como forma de resolução e mitigação dos ilícitos,muito embora não ocorram com as especificidades, princípios, valores, procedimentos e resultadosdefinidos e almejados pela ONU, conforme indicado ao norte. A Justiça, do ponto de vista restaurativo, visa dar resposta sistemática às infrações e às suas consequências, buscando a cura das feridas sofridas pela ofensa e o resgate da dignidade ou reputação. Tenta minorar a dor, a mágoa, o dano, a ofensa e o agravo causados pelo malfeito, contando para isso com a participação de todos os envolvidos (vítima, infrator, comunidade). Práticas de justiça com objetivos restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas e aspirações em relação convencional com sistema de Justiça. O objetivo principal é restaurar, reconstruir as relações, de sorte que todos os envolvidos e afetados por um crime ou infração devem ter, se quiserem, a oportunidade de participar do processo restaurativo. O modelo restaurativo visa ainda resgatar a convivência pacífica no ambiente afetado pelo crime, em especial naquelas situações em que o ofensor 26 e a vítima têm uma relação próxima e estão obrigados à convivência, v.g.delitos envolvendo violência doméstica, relações de vizinhança e/ou no ambiente escolar. No primeiro momento atua como um freio ao estado de beligerância e a seguir passa a restaurar as relações. Segundo Howard Zehr, em sua obra denominada Trocando as Lentes: Um Novo Foco Sobre o Crime e a Justiça Restaurativa, uma das mais consagradas referências bibliográficas sobre o tema,o crime é uma violação nas relações entre o infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação e do trauma causado e que deve ser restaurado. Incumbe, assim, à Justiça oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça, avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado. O objetivo é olhar para o futuro e para restauração dos relacionamentos, ao invés de simplesmente concentrar-se no passado e na culpa.Enquanto a justiça convencional diz você fez isso e tem que ser castigado a justiça restaurativa pergunta o que você pode fazer agora para restaurar o mal que causou. Assim,e desde que seja adequadamente monitorada essa intervenção das partes, o modelo traduzpossibilidade real de inclusão da vítima no processo penal sem abalo do sistemade proteção aos direitos humanos construídos historicamente. 27 3.3 JUSTIÇA RESTAURATIVA: PRINCÍPIOS E CONTORNOS PRÁTICOS Uma seuscontornos vezcolocada práticos. no Por plano certo teórico, não devemos poderemos tentardelinear avançaralém do estabelecimento das linhas mestras do modelo, por duas razões: a) osistema caracteriza-se por uma considerável diversidade de instrumentos, contemplando a realização de círculos, painéis e conferências restaurativas, entre outros métodos; b) oprocedimento é marcado pela flexibilidade, devendo ajustar-se à realidade das partes, e não forçá-las a adaptarem-se aos ditames rígidos,formais e complexos, caracterizadores do sistema tradicional de justiça. Inicialmente, cabe dizer mais uma vez que a prática é marcada pela voluntariedade, notocante a participação da vítima e ofensor. Estes devem ser encorajados a participar de forma plena no processo restaurativo, mas deve haver consenso destes emrelação aos fatos essenciais relativos à infração e assunção da responsabilidade porparte do infrator. Embora não haja um momento rigidamente estabelecido dentrodo organograma procedimental para sua realização, (podendo a prática restaurativa anteceder a acusação, ocorrer antes ou após a sentença ou no curso da própriaexecução da pena), é aconselhável haver no mínimo indícios que sustentem o recebimento de umaacusação formal para que possa ela ser iniciada. 3.3.1 Preparação A preparação do caso compreende as ações que são adotadas antes darealização da prática restaurativa, e têm uma importância tão fundamental quantoos atos (conferências, painéis, círculos), tidos como o momento crucial do procedimento restaurativo. Para que tenhamos condições de lograr bons resultados na aproximação da vítima e ofensor, deve ser dispensada cuidadosa seleção epreparação do caso para a realização da prática, o que inclui análisepormenorizada dos autos e outros atos investigativos voltados ao conhecimento das suas circunstâncias, o que deve ser efetuado por 28 profissional dotado deconhecimento multidisciplinar e capacitação específica, a fim de se confirmar apossibilidade de aplicação da prática àquele caso concreto. 3.3.2 Contato com as partes Segue-se a tal análise arealização de contatos com as partes envolvidas, visando a confirmação daadequação do caso à prática, bem como o esclarecimento destas em relação aofuncionamento da prática restaurativa, a identificação de pessoas próximas àspartes, ou representantes da comunidade afetada, bem como sua preparação paratomarem parte na prática restaurativa adotada. É importante esclarecer que a prática restaurativa em si, “deve” reunir essencialmente vítima eofensor e os técnicos responsáveis pela condução dos trabalhos (normalmentedenominados facilitadores), e “pode” incluir familiares ou pessoas próximas aestes, além de representantes da comunidade, e os advogados dos interessados, se assim desejarem as partes. 3.3.3 Local adequado e acolhimento dos participantes Deve ocorrer preferencialmente em local neutro para as partes, e desenrola-se, basicamente, em duas etapas: uma na qual são ouvidas as partes acercados fatos ocorridos, suas causas e consequências, e outra na qual as partes devemapresentar, discutir e acordar um plano de restauração. Ressalte-se que é fundamental assegurar aos participantes boa informação sobre as etapas do procedimento e consequências de suas decisões, bem como garantir sua segurança físicae emocional. Nesta ocasião o papel dos facilitadores é muito importante, os quaisdevem ser tão discretos quanto possível, no sentido de não dominarem as açõesdo evento, mas conduzirem as partes no caminho de lograr, por seus própriosmeios, o encontro da solução mais adequada ao caso. 29 3.3.4 Identificação da raiz dos problemas O método contém um mecanismo de observação do passado, mas é fundamental quenão tenha como foco culpar ou envergonhar o comportamento de um infratorpré-definido. Ao invés disso, encorajam-se os querelantes e outros participantesa se engajarem em uma busca coletiva das “raízes dos problemas” subjacentesque contribuíram para o conflito. Antes que se alcance uma solução, considera-seimportante revelar as séries de eventos que criaram o conflito. 3.3.5 Comunicação Restaurativa A maioria dos processos da justiça restaurativa envolve uma reunião ouencontro entre a vítima, o infrator e outros membros de suas comunidades imediatas e mais amplas. Para que tal reunião tenha caráter verdadeiramenterestaurativo, os processos empregados devem evidenciar os valores-chave dajustiça restaurativa. Muitos dos processos baseados em valores listados abaixosão, de fato, relevantes em todos os níveis de relacionamento no campo da justiçarestaurativa – entre facilitadores individuais; dentro e entre os Grupos Provedores; entre Grupos Provedores e outros agentes comunitários e agência patrocinadoras; e entre Grupos Provedores e o Estado. Um encontro pode ser considerado “restaurativo” se: a) For guiado por facilitadores competentes e imparciais:Paraassegurar que o processo seja seguro e efetivo, ele deve ser guiado porfacilitadores neutros, imparciais e confiáveis. Os participantes devementender e concordar com o processo que os facilitadores propõem, eos facilitadores devem se esforçar para corresponder às expectativascriadas por eles no processo de pré-encontro restaurativo. A preparação o pré-encontro deve ser feita com todos os que irão participar doencontro restaurativo. b) seraberto O encontro for inclusivo e colaborativo:O processo deve a todas as partes pessoalmente envolvidas no ocorrido. Taisparticipantes devem ser livres para expressar seus sentimentos eopiniões e trabalhar juntos para resolver os problemas. Osprofissionais da justiça como 30 os policiais os e advogados podemestar presentes, mas eles estão lá para prover informações, não paradeterminar resultados. c) Existir participação voluntária:Ninguém deve ser coagido aparticipar ou a continuar no processo, ou a ser compelido a se comunicarcontra a sua vontade. Os processos restaurativos e os acordos devemser voluntários. Alcançar resultados de comum acordo é desejável,mas não obrigatório. Um processo bem gerenciado, por si só, temvalor para as partes, mesmo na ausência de acordo. d) For fomentado em um ambiente de confidencialidade:Os participantesdevem ser encorajados a manter a confidencialidade do que é dito noencontro restaurativo e a não revelar esses fatos a pessoas que nãotenham envolvimento pessoal no incidente. Enquanto o compromissocom a confidencialidade não pode ser absoluto, pois podem haveralgumas vezes fortes considerações legais, éticas ou culturais que os sobrepujem, em todas as outras situações, o que é compartilhado noencontro restaurativo deve ser confidencial àqueles que a atendem. e) apropriadoà Reconhecer identidade convenções cultural e culturais:O às expectativas processo dos deve ser participantes. Ninguémdeve ser requisitado a participar de um foro que viola suas convicçõesculturais ou espirituais. f) consciência Enfocar decomo necessidades: as pessoas O foram processo deve afetadas pelo fomentar incidente a ou transgressão. Umadiscussão deve ajudar a esclarecer o dano emocional e material,consequências sofridas e as necessidades que surgiram como resultado. g) Demonstrar respeito autêntico por todas as partes:Todos osparticipantes deveriam receber um respeito fundamental, mesmoquando seu comportamento prévio seja condenável. O processo devedefender a dignidade intrínseca de todos os presentes. h) Legitimar a experiência da vítima:Os sentimentos, danos físicos,perdas e as ponderações da vítima devem ser aceitos sem censura oucrítica. O mal feito à vítima deve ser reconhecido e a vítima absolvidade qualquer culpa injustificada pelo acontecido. 31 i) Esclarecer e confirmar as obrigações do infrator:As obrigaçõesdo infrator para com a vítima e para com toda a comunidade devemser identificadas e afirmadas. O processo deve convidar, mas nãocompelir o infrator a aceitar estas obrigações e deve facilitar aidentificação de opções para sua libertação; j) Visar resultados transformativos:O processo deve objetivarresultados que atendem necessidades presentes e preparam para ofuturo, não simplesmente em penalidades que punem os delitospassados. Os resultados devem procurar promover a cura da vítima ea reintegração do infrator, de forma que a condição anterior dos doispossa ser transformada em algo mais saudável; k) Observar as limitações de processos restaurativos:A JustiçaRestaurativa não é um substituto para o sistema de justiça criminal; éum complemento. Não se pode esperar que atenda todas asnecessidades pessoais ou coletivas dos envolvidos. Os participantesdevem ser informados sobre como os processos restaurativos seencaixam no sistema mais amplo de justiça, quais expectativas sãoapropriadas para o processo de justiça restaurativa, e como osresultados restaurativos podem ou não ser levados em consideraçãopelo tribunal. Em suma, os facilitadores deverão assegurar oequilíbrio de poder e a interação entre as partes, conduzindo o evento de forma a impedir manifestações desrespeitosas como, por exemplo, por meio de constantes interrupções quando um participante estiver fazendo uso da fala. O facilitador não poderá jamais induzir as partes a participarem do processo (eis que iminentemente voluntário), impor opiniõesou soluções ou permitir a qualquer outra parte fazê-lo. As informações confidenciadas não serão transmitidas a pessoas que não estiverem presentes no encontro, de forma a não infligir mais vergonha oudano à pessoa que, de boa-fé, revelá-las. O processo não será restaurativo se a experiência sofrida pela vítima for ignorada, minimizada ou banalizada, se for ainda coagida a suportarresponsabilidades indevidas pelo que ocorreu ou pressionada a perdoar. Ainda, se o infratornão for responsabilizado peloocorrido e pela reparação das consequências de suas ações delituosas ou forçadoa assumir a responsabilidade involuntariamente. 32 Um processo restaurativo jamais deve ser utilizado pelos participantes para atingirvantagens pessoais desleais, chegar a resultados manifestamente injustos ouinapropriados, ferir o infrator ou ignorar as considerações de segurança pública ou tentar subverteros interesses da sociedade de tratar a infração penal de uma maneira aberta, leale justa. Por fim, o encontro não poderá ser focado somente em compensação monetária, sem consideraro valor da reparação simbólica,v.g os pedidos de desculpas, o que em muitos casos possui maior aceitabilidade e relevância no que tange a reparação do mal, principalmente quando envolve situações de conflitos de origem emocional. 3.3.6 Sigilo do debate Há de ser resguardado o sigilo de todas as discussões travadas duranteo processo restaurativo, e seu teor não pode ser revelado ou levado em consideração nos atos subsequentes do processo, o que inclui inclusive a própria admissão daresponsabilidade deduzida com o fim de deflagrar a prática restaurativa. Tal circunstância gerará a confiabilidade e segurança do processo. A impossibilidade de obtenção de um acordo restaurativo, igualmente, não pode serutilizada como fundamento para o agravamento da sanção imposta ao ofensor. 3.3.7 Possibilidade de execução dos acordos O eventual acordo obtido na prática restaurativa deve ser redigido emtermos precisos e claros, sendo que as casuais obrigações nele estampadasdevem ser razoáveis, proporcionais e líquidas, devendo prever as formas garantiado cumprimento e a fiscalização das condições nele estatuídas. É certo ainda que o plano restaurativo pode estar sujeito à análise judicial antes de suahomologação e por certo deverá influir na definição da reprimenda aplicada àquele caso concreto. 33 3.4 MÉTODOS RESTAURATIVOS O modelo restaurativo baseia-se em valores, procedimentos e resultados definidos, mas pressupõe a concordância de ambas as partes, no caso o autor do fato e a vítima e podendo ser retratada por qualquer das partes em caso de arrependimento. Os acordos devem ser razoáveis e as obrigações propostas tem que atender ao princípio da proporcionalidade. A aceitação do programa não deve, em nenhuma hipótese, ser usada como indício ou prova no processo penal, seja o original seja em outro tipo de procedimento. Ao receber as partes em conflito o facilitador deve criar um clima de confiança e serenidade, propiciando um ambiente tranquilo, onde as pessoas envolvidas possam tratar o fato com urbanidade e respeito, evitando que a reunião vire um bate boca com acusações recíprocas. Todos têm direito de manifestarem-se e apresentarem suas considerações, mas será sempre feito no momento oportuno, conforme orientado pelo facilitador, que por sua vez, já deverá ter estabelecido as condições e regras de comportamento no inicio da reunião. É comum, especialmente no circulo restaurativo, usar-se um objeto de fala, que vai passando de mão em mão e só poderá se manifestar aquele que detiver o “objeto”. É vedada toda e qualquer intervenção no momento em que um dos integrantes do grupo está fazendo uso da palavra. Os métodos mais utilizados podem ser nominados de: 3.4.1 Mediação vitima /ofensor E o procedimento realizado entre a vítima e o autor do fato, podendo existir com a participação de terceira pessoa se uma das partes assim o desejar e sentir-se mais empoderada com a presença daquela. Conta com a intervenção de facilitadores, que conduzem o encontro e estabelecem as regras de comportamento de modo a evitar que as partes retornem ao estado de beligerância. 34 3.4.2 Reuniões restaurativas É o encontro realizado entre infrator, vítima, família e terceiros interessados, visando a solução do litigio e prevenção das ocorrências de outros no futuro. No dizer de Td Wachtel,Terry O’Connell e Bem Wachel na célebre obra intitulada Reuniões de Justiça Restaurativa: “são encontros organizados entre infratores, vítimas, familiares e amigos de ambas as partes”. Nessas reuniões, as partes envolvidas lidam com as consequências da infração e decidem a melhor forma de reparar os danos causados. O guia engloba o processo de seleção de casos, o convite aos participantes, as preparações e a realização da reunião em si. “É útil a todos que desejam aprender a facilitar reuniões restaurativas em escolas, no sistema judiciário penal e em outros ambientes.” 3.4.3 Círculos restaurativos O Círculo é um espaço de poder compartilhado, onde as pessoas chegam de livre e espontânea vontade, onde ninguém é culpabilizado, e os participantes assumem responsabilidade pelo acontecido e chegam a um acordo que restaure a relação rompida. Em regra é utilizado para tratar fatos conflituosos envolvendo mais de dois contendores, ou aquela parcela de pessoas que ousamos chamar de microcomunidades. 3.5 INSTRUMENTOS E FERRAMENTAS RESTAURATIVAS A Justiça Restaurativa tem metodologia diferenciada do modelo de justiça tradicional. Esta última obedece a um ritual preestabelecido, com atuação padronizada e mecânica e as decisões das lides são de competência exclusiva do Estado. A primeira vale-se de métodos que envolvem as partes, sociedade e interessados, permitindo a participação igualitária desses atores, que, de comum acordo, chegarão à uma decisão que será posteriormente apresentada ao Estado para homologação, se assim for o caso. 35 Nas práticas restaurativas os facilitadores usam formas de comunicação emétodos peculiares, dentre os quais abordaremos aqueles mais utilizados. Vejamos: 3.5.1 Escuta Ativa A ferramenta mais importante para resolver conflitos é saber escutar com atenção e intenção. Escutar demanda decisão consciente e a vontade de nos livrarmos da distração. Aprender a escutar desenvolve paciência e humildade para entender a mensagem do ponto de vista da pessoa que fala. Exige esforço para entender a totalidade da mensagem emitida, captando também os sentimentos e as emoções. Consiste em prestar atenção na outra pessoa, escutar a mensagem e dar atenção aos sentimentos e às emoções, não interromper, obtendo o esclarecimento da mensagem com a utilização de perguntas reflexivas. Precisamos perguntar e não sugerir, dar conselhos, palpites, etc. Ex: O que você está me contando é...? Não entendi muito bem, você poderia me contar novamente...? Não fazer julgamentos ou reprovações; Ser empático sempre. Passos básicos para a escuta ativa: a) prestar atenção na outra pessoa, permitindo que ela perceba o nosso interesse por sua história; b) deve parecer que estamos escutando; c) esclarecemos a mensagem, recorrendo a perguntas que indiquemàs partes que a entendemos. 3.5.2 Empoderamento Hodiernamente, o acesso à justiça para os segmentos mais marginalizados dasociedade tem sido uma celeuma, quepor razões deequidade necessita ser transposta, dado que essa limitação, em regra, tem sua raiz na desigualdade social. Os programas de justiça restaurativa podem trabalhar para empoderar os desprivilegiados e específicos tipos de vítimas de cinco formas principais: 36 a) pela participação ativa no processo da justiça; b) pelo maior acesso à informação eaos recursos da justiça; c) pela reparação e reabilitação ao invés da punição; d) porconsensos em lugar de coerção; e f) pelo uso de conhecimento e sabedoria debase. Conforme enfatizado ao norte, fundamentalmente, os programas de justiça restaurativa diferem dejustiça tradicional na medidaem que oferecem às partes a participação no processo dejustiça. Essainteraçãoimplica em poder. É constatação que o envolvimento ativo em programa de micro justiça, em que os atores atuem como gestores e usuários, ou mesmo como testemunhas participativas,acaba desprivilegiadas e, por dar esse poder poder, aos por cidadãos corolário, e comunidades traduzir-se-á em responsabilidade. A justiça restaurativa labora para dar poder a ambas as partes de umconflito ou um crime. Como os processos de justiça restaurativa são fundamentalmente comprometidos em dar a ambos os lados da história importância igual,para chegar a um acordo, ao invés de atribuir culpa, eles dão poder a essaspartes, para que assim tenham envolvimento ativo no processo de justiça. 3.5.3 Responsabilização Quando uma pessoa, deliberadamente causa um dano à outra, o infrator tem obrigação moral de aceitar aresponsabilidade pelo ato e por atenuar as consequências. Os infratoresdemonstram aceitação desta obrigação, expressando remorsopor suasações, através da reparaçãodos prejuízos e talvez até buscando o perdãodaqueles a quem trataram com desrespeito. Esta resposta doinfrator pode preparar o caminho para que ocorra a reconciliação. É bem verdade que não é um ato simples, mas a escuta ativa utilizada em todo o procedimento facilitará muito o entendimento e aceitação do injusto. Acreditamos que por detrás de cada pessoa que fere existe uma pessoa ferida, e a história de cada um passa a ter significado distinto a depender do ponto de onde começa a ser contado. 37 A aceitação, disponibilidade e atenção da vitima para com o infrator é o primeiro passo para reflexão. Em regra, quando uma pessoa sente-se acolhida ela guarda as “armas” e passa a atuar no mesmo plano do acolhedor. Tal circunstância gera a sensação de paridade e empatia, e o ofensor passa a reconhecer na vitima um semelhante, dispensando àquela o tratamento que gostaria de receber em igual situação. 3.6 POR QUE ADOTAR AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS? Para quem está acostumado a receber a prestação jurisdicional através dos métodos convencionais e defronta-se com a possibilidade de aplicação dos métodos restaurativos, costuma fazer os seguintes questionamentos: Quais as especificidades dessaspráticas que se mostram comparativamente mais vantajosas frente aos métodostradicionais e já consolidados?, Por quê?Quando? Que valores eresultados se pretendem alcançar e para quem? Este estudo aponta várias vantagens, inferindo com maior ênfase que as práticas restaurativas,(que incluemempoderamento, reparo dos danos e resultados integrativos), fazemdiferença significativa nos casos submetidos ao processo, e tem influenciado positivamente na vida dos participantes, seus núcleos familiares e comunidades, tanto em termos de redução da reincidência, quanto em mudanças de comportamento. Três premissas revelam os princípios fundamentais nos quais sebaseia a Justiça Restaurativa e sustentam sua importância e validade: a) empoderamento do ofensor por meiodo desenvolvimento de sua capacidade de assumir responsabilidade sobre seusatos e de fazer suas escolhas; b) reparo de danos, ou seja, contrariamente à Justiçaestritamente retributiva, que se atém exclusivamente ao ofensor, a JustiçaRestaurativa enfoca também a vítima, seu grupo familiar e suas necessidades aserem reequilibradas; e c) por fim, resultados integrativos, restaurando a harmonia entre os indivíduos, reestabelecendo o equilíbrio e identificando e provendo, por meio de soluções duradouras, necessidades não atendidas. 38 Hoje, acompanhamos com preocupação a grande inflexãoprovocada na vida da população de nosso país, gerada pelo agravamento das condições dasdesigualdades sociais, acentuadamente percebidas naausência de oportunidades de trabalho formal, no desemprego e na violência. Tais condições refletem diretamente no comportamento da sociedade e no acesso a justiça. Assim, aintrodução de novos métodos de aplicabilidade da justiça, e a implementação de mudanças e melhorias que visem beneficiar os grupos mais vulneráveis podemguiar a formulação e execução de um programa de reformas com vista a democratizar a Justiça noBrasil. O Poder Judiciário é uma esfera independente, e apesar do desejo de cooperação de muitos, não é composta por um grupo homogêneo e issodificulta a agilidade e qualidade da prestação jurisdicional. Contudo, a partir do momento em que experiências introduzidas pelas práticas restaurativas começam a gerar resultados positivos, as comunidades e seus cidadãos passam apresentar um forte sentido de justiça e coesão social. Passam a pautar seucomportamento pelos princípios da justiça a que são objeto, construindo um consenso relativo e dele fazendo parte, situação fática que inevitalmente provocará a diminuição da demanda judicial. Estando em discussão um dever estatal tão importante como o de proteger e nutrir o bem de todos, e surgindo alternativas para otimizar essa obrigação, a pressão social assume um papelcrucial.Hoje as práticas restaurativas já são realidade no ordenamento jurídico brasileiro através da justiça menoril e está sendo objeto de projeto de reforma do Código Penal Brasileiro, em tramitação no Congresso Nacional Ainda que aplicada de maneira acanhada, à medida que a sociedade reconhecer os resultados positivos, a necessidade de institucionalização dos métodos restaurativos se tornará cogente, obrigando o legislador a criar leis que permitam sua aplicabilidade sempre que possível, como bem assinala a Lei 12 594/12. Também se infere que as práticas restaurativas apresentam maior potencial de resolução de litígios e a consecução dessa resolução parece conferir maior satisfação às partes envolvidas, indicando maior sustentabilidade dosresultados ao longo do tempo. 39 4 COMPATIBILIDADE ENTRE JUSTIÇA FORMAL E RESTAURATIVA Com relação às diferenças do modelo de justiça restaurativa e de justiça criminal, podemos inferir de plano que, na atual conjuntura judiciária,enquanto o primeiro pretende solucionar os conflitos, ampliando o número de litígios resolvidos, melhorando a coexistência social, o segundo atém-se apenas em resolver esses conflitos de forma básica e mecânica,concentrando as decisões em atos unilaterais. Contudo, o fato da Justiça Restaurativa não visar à punição do ofensor e sim sua responsabilização através da reparação, não quer dizer que não deva ser de alguma forma limitada. Isto porque, mesmo sendo a reparação outro tipo de censura ou forma de responsabilização, não se pode negar que ela também comporta certo grau de onerosidade para o ofensor. Em que pese ainda vigorar, em nosso direito processual penal,o princípio da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal pública, concluímos com certeza que o modelo restaurativo é perfeitamente compatível com o ordenamentojurídico brasileiro. Considerando que tais princípiosestãonotadamente flexibilizados,diante da possibilidade da suspensão condicional do processo e da transação penal, previstas na Lei 9.099/95, nas situações que admitam a aplicação de tais benefícios poderá ser feito o encaminhamento ao Núcleo de JustiçaRestaurativa, pois a par das condições legais obrigatórias para a suspensão doprocesso, o § 2º.da lei acima citada permite a especificação de outras condições judiciais. Tais condições podem perfeitamente serem definidas no encontro restaurativo e posteriormente submetidas à apreciação do juízo processante como condicionante para concessão do benefício. Tambémnas infrações cometidas por adolescentes, há considerável possibilidade de emprego. Nos casos em que pode ser aplicado o instituto da remissão, antes de postular a açãosócio educativa, o órgão do Ministério Público, poderá optar pela aplicação de práticas restaurativas ou postular a aplicação desse método como forma de suspensão do processo menoril. Mas, é preciso esclarecer que,o procedimento restaurativo nãoé, pelo menos por enquanto, expressamente previsto na lei como um devidoprocesso legal no 40 sentido formal, exceto na execução das medidassócio educativas, dado que previstona Lei 12.594/12. Quando aplicada na forma de alternativa restaurativa as partes devem ser informadas, de forma clara, que se trata de umaferramenta alternativa posta à disposição delas, e sua aceitação, que pode ser revogada a qualquer momento, A participação deverá ser estritamente espontânea e voluntária. Devem ser rigorosamente observados todos os direitos e garantias fundamentais de ambas as partes, atentando sempre para os princípios da dignidade humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da adequação e do interesse público. É muito importante não criar expectativas e tensão entre acusado e vítima. Os mediadores ou facilitadores devem ser, preferencialmente, psicólogos ou assistentes sociais, mas nada impede – e talvez possa ser melhor – quesejam pessoas ligadas à comunidade, com perfil adequado, bem treinadas paraa missão. Mediadores ou facilitadores que pertençam à mesma comunidadeda vítima e do infrator, que tenham a mesma linguagem, certamente encontrarãomaior acesso aos protagonistas, o que propiciará a construção de um acordorestaurativo. Como delineado ao norte, é de primordial importância que a audiência restaurativa transcorra numambiente informal, tranquilo e seguro e os mediadores ou facilitadores estejamrigorosamente atentos, observando se não há qualquer indício de tensão ou ameaça que recomende a imediata suspensão do procedimento restaurativo, como emcasos de agressividade ou qualquer outra intercorrência psicológica, para se evitar arevitimização do ofendido ou mesmo a vitimização do infrator. 4.1 DIFERENÇA ENTRE JUSTIÇA RESTAURATIVA E JUSTIÇA FORMAL Muito embora os objetivos da justiça restaurativa e da justiça formal sejam semelhantes, qual seja, a pacificação social, existem diferenças acentuadas entre os dois institutos, que aqui devem ser tratadas, para melhor entendimento de nossa proposta. 41 Pelo que assinalamos, a Justiça formal (retributiva) tem um conceito estritamente jurídico do crime, ou seja, é entendido como violação da Lei Penal e a Justiça Criminal tem o monopólio para sua prevenção e repreensão. Já a Justiça Restaurativa (participativa), tem um conceito muito mais amplo do crime. Baseia em um modelo não punitivo,inexistindo estabelecimento de culpa e punição, mas sim a análise do fato danoso, suas consequências e suas possíveis soluções. A Justiça formal preocupa-se com a tutela dos bens jurídicos protegidos pelo estado e com a correlata aplicação da sanção, como forma de inibir a ocorrência de outros males e punir o ofensor. O processo penal é voltado exclusivamente à questão da culpa do acusado e consequente punição. Ao ser apurada o fato, focaliza-se o passado, chegando ao extremo de se reconstruir o fato delituoso em apuração como forma de demonstração deestrita responsabilidade, inferindo-se assim que o foco não está no dano causado à vítima e à comunidade, mas sim na violação à lei e na determinação da culpa. A justiça restaurativa entende que um fato delituoso causa uma variedade de danos e afeta não somente a vitima e o Estado, mas também o próprio autor e a comunidade, devendo cada um deles atuar no processo restaurativo como agente transformador, independente da responsabilidade reconhecida por cada um desses atores. No que concerne aos procedimentos adotados pelas duas diferentes formas de aplicação de justiça, observamos que a Justiça Retributiva tem ritual solene e público, mas sem a participação de pessoas alheias ao fato, contudo, no que concerne às partes essa participação é cogente, e o não comparecimento resulta em penalidades. Tem por regra a indisponibilidade da ação penal, o contraditório como meio de defesa, linguagem e procedimentos formais, autoridades e profissionais do direito, como atores principais do processo decisório, representados por autoridades (policial, promotor, juiz e profissionais do Direito). A vítima tem pouquíssima ou nenhuma atuação ocupando lugar sem destaque dentro do processo. É vista como mera informante e nem mesmo sua oitiva tem valor probante, em razão do comprometimento do ânimo. 42 A justiça restaurativa tem procedimentos diferenciadosnão somente no que tange às praticas e métodos, mas principalmente com relação aos atores do processo. O rito é informal e comunitário, com pessoas interessadas envolvidas. É voluntário e colaborativo, exige a confidencialidade. Os atores principais no processo decisório são as vítimas, os infratores, as pessoas da comunidade, que discutem o fato de forma igualitária e a apresentam a resolução do problema. Com relação ao infrator, na Justiça Retributiva são consideradas suasfaltas e sua má-formação (reincidência e antecedentes penais) e raramente tem participação,enquanto na Justiça Restaurativa é visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e consequências do delito, interage com a vítima e com a comunidade, envolve-se no processo, contribuindo de forma incisiva para a decisão. 4.2 IMPORTÂNCIA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PARA A JUSTIÇA FORMAL Inicialmente, o benefício mais evidente e imediato que identificamos da justiça restaurativa para o sistema de justiça formal é o efeito mitigador. Ao evitar que certas contendas cheguem aos bancos judiciais ou até mesmo quando háredirecionamento daquelas já postuladas, o Judiciário é liberado das grandes filas de casos por julgar, que, em sua maioria, poderiam ter sido solucionados sem a intervenção do Poder Judiciário e/ou até mesmo do Estado. Havendo a diminuição da demanda, certamente o Judiciário reunirá maiores condições de resolver as lides mais complexas, podendo assim prestar a justiça de forma mais eficaz. Com a aplicabilidade conjunta, as práticas restaurativas em muito contribuirão para melhorar a imagem do sistema de justiça formal, que vem sendo tão desgastada ao longo dos anos, resgatando assim a confiança na instituição. Não restam dúvidas que esse método pode ser utilizado de maneira informal e essas parcerias poderão, como dito alhures, desafogar a demanda judicial, possibilitando a prestação jurisdicional de qualidade. 43 4.3 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E JUIZADOS ESPECIAIS Os métodos restaurativos vêm sendo aplicadas com maior frequência em atos que antecedem a audiência preliminar em sede de Juizados Especiais Criminais. Temos notícias de sua aplicabilidade rotineira em diversos Juizados Especiais Criminais, em vários estados do país, a exemplo do CEMAPECentro de Mediação e Arbitragem do Estado do Pernambuco, Juizado Especial de Santana, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, dentre outros. Os Termos Circunstanciados de Ocorrência são encaminhados para uma equipe de mediadores que em abordagens restaurativas fazem revezamento e utilizam técnicas da mediação restaurativa. Inicialmente explicam às partes (e por vezes aos advogados) que se trata de procedimento voluntário, complementar e preventivo da criminalidade e que o assunto ali tratado será sigiloso. Quando às partes envolvidas aceitam participar do processo restaurativo são direcionadas para uma equipe de facilitadores, que iniciam a abordagem informando que aquele processo não busca a culpabilização ou enquadramento legal, e sim o reconhecimento e responsabilidade recíproca e as alternativas reparadoras dos relacionamentos interpessoais. Esse ato é comumente chamado de reunião restaurativa e todos são convidados a participar. As partes podem chegar à solução em uma única reunião ou optarem por resolverem o litigio em outro encontro. É comum que requeiram a participação de terceiros alheios ao fato em apreciação, mas direta ou indiretamente envolvidas com as partes e que manifestem interesse em colaborar. Quando as partes chegam a uma solução através da prática restaurativa a decisão é tomada a termo e submetida à homologação pelo juízo natural da causa. Ocorrendo de não ser obtida solução, é dado inicio àaudiência preliminar e o fato é submetido ao procedimento da Lei 9.099/95, que rege os Juizados Especiais. 44 4.4 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E INSTITUIÇÕES DE ENSINO As práticas restaurativas, quando utilizadas em educandários, também têm contribuídode forma significativa para garantia da ordem e disciplina no ambiente escolar. A abordagem de uma cultura de paz e de introdução dos valores da convivência nas escolas é fundamental para uma formação mais cidadã das nossas crianças e adolescentes. Por tratar-se de ser em desenvolvimento, a capacidade de assimilação desses valores é muito maior. Quando se fala em cultura de paz, referimo-nos à aprendizagem cooperativa, à educação multicultural, à aprendizagem de valores, à redução de preconceitos, que inevitavelmente resultará na existência de uma sociedade avessa à violência, e que tratará de seus conflitos através do diálogo. Neste contexto, o ambiente educacional, sem sombra de duvidas é o mais adequado para a implementação da cultura restaurativa na vida do cidadão. No que tange ao relacionamento escola/aluno/comunidade, inferimos que as práticas restaurativas são ferramentas muito importantespara a paz dentro da escola, e tem colaborado de forma significativa na prevenção e na resolução de conflitos escolares. Através da metodologia restaurativa poderão ser transmitidos os preceitos fundamentais relacionados, as responsabilidades sociais e ao aprendizado de habilidades que estimulem o diálogo, a cooperação e a solução pacífica. Segue-se a política disciplinar adotada pela escola, mas, o mais importante, é possibilitar ao aluno refletir sobre o que fez, por que fez e quem foi afetado. Assim, ele tomará contato com as consequências dos seus atos e poderá ter um comportamento diferente daquele apresentado até então. Quando a escola adota as práticas restaurativas para ajudar a dirimir seus conflitos, para que haja a participação de alunos e pessoas da comunidade, sempre que se envolverem em conflitos, e desejarem chegar a um acordo, basta que procurem a direção do educandário e solicitem a realização de um círculo restaurativo. A direção pode ainda oferecer a um aluno, que seria advertido ou suspenso, a possibilidade de, como alternativa, participar de um círculo com a pessoa ou pessoas afetadas por seu comportamento. 45 Transformar escolas de ensino médio que vivenciam situações de violência em espaços de diálogo e resolução pacífica de conflitos, por meio da colaboração da sociedade que a compõe através do trabalho interdisciplinar e da parceria com a comunidade, rumo a uma sociedade consciente de seus atos e responsável pelas consequências, que podem ser interpretadas, nos dias atuais, como um sonho, mas que podem ser plenamente realizados se acreditarmos e tivermos vontade e determinação para implantá-los na cultura escolar. 4.5 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E ÓRGÃOS DA SEGURANÇA PÚBLICA São vários os atores que atuam em situações de conflito até que o Estado entregue a tutela jurisdicional ao fato, que na maioria tem como porta de entrada do sistema os órgãos da segurança pública, em especial as Delegacias de Policia Civil e Instituições Militares. É normal que ao darem entrada nesses organismos os contendoresencontrem-se ainda com os ânimos acirrados e com capacidade de reflexão reduzida, porém, se contarmos com uma equipe de atendimento que aplique de imediato as práticas restaurativas, muitos conflitos poderão ser dirimidos no próprio ambiente policial. Na maioria dos casos vitima, e ofensor chega conjuntamente perante a autoridade policial, observando-se uma relação de proximidade entre eles e às vezes até de afeto, a exemplo dos fatos delituosos ocorridos no ambiente familiar. Assim, havendo a possibilidade de serem atendidos por pessoas alheias ao fato, mas interessadas na resolução do litigio e dispostas a colaborarem para pacificação, certamente o resultado social será muito mais salutar. É bem mais fácil para o agente do Estado, que recepciona a demanda, tomar as informações por termo e encaminhá-las às autoridades competentes para consequente aplicabilidade da lei. Certamente tomará menos tempo e labor, mas tal prática resulta, por muitas vezes, no agravamento da situação ensejadora da “pelega”. É cediço que quem procura uma delegacia de policia 46 não quer que seu problema seja apenas formalizado, o cidadão quer uma resolução, um posicionamento do Estado. Ela necessita que o Estado, através do Sistema de Justiça lhe preste a tutela devida, dirima o conflito e garanta seu direito. Desta feita, havendo a possibilidade do Estado atuar tão logo ocorra areclamação o conflito será extirpado na fonte, as partes terão a resposta que procuram, outros delitos poderão ser evitados e a sociedade terá confiança na instituição à qual submeteu sua necessidade.Em suma, todos lucram. 4.6 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E JUSTIÇA MENORIL. Há muito as práticas restaurativas vinham sendo aplicadas informalmente, em concomitância com as medidas sócio educativas, com grande receptividade pelos adolescentes, pais e educadores e reconhecido sucesso no atingimento do fim, qual seja, a modificação de comportamento do ser em desenvolvimento que é o adolescente. A relevância da prática no processo ressocializador foi reconhecida por nossos legisladores. Recentemente foi aprovada e publicada uma lei com aplicação das práticas restaurativas aos atos infracionais. Trata-se da Lei nº 12.594/12, que institui o Sistema Nacional de Atendimento SocioeducativoSINASE, e regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas aos adolescentes que pratiquem ato infracional, expressamente, refere-se ao instituto no art. 35, inciso III e assim dispõe: “Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas; A aprovação deste diploma legal sinaliza a conveniência e oportunidade de se desenvolver o instituto. O objetivo dessa proposta é evitar a imposição de medidas socioeducativas de plano, que na maioria, pela forma como são executadas, não atinge o fim colimado. Ao contrário, o adolescente por não reunir caráter de entendimento do fato ilícito de forma plena, e não experimentando os devidos esclarecimentos, em muitos casos, volta a reincidir no ilícito. 47 A prática restaurativa possibilita ao adolescente refletir sobre as consequências de suas ações e sentir-se responsável pelo dano e consequente reparação. Atinge-se não somente uma cultura de conscientização e empatia recíproca, mas também a de paz, o que certamente impedirá o surgimento de novos delitos. 4.7 JUSTIÇA RESTAURATIVA E CONTRIBUIÇÃO PARA A PAZ SOCIAL. Como já enfatizado no curso dessa pesquisa, a Justiça Restaurativa é um processo onde as partes, ao sofrer algum tipo de delito, resolvem, coletivamente, como abordar as consequências do delito e as suas implicações para o futuro. Gente comum que se compromete com outros para controlar de maneira coletiva suas vidas, com uma estratégia que inclui níveis de participação de baixo para cima. Os programas de Justiça Restaurativa habilitam a vítima, o ofensor e os membros afetados da comunidade para que estejam diretamente envolvidos junto ao Estado – a fim de dar uma resposta ao delito. a) É uma maneira diferente de pensar sobre o delito e a resposta a suas consequências; b) Busca a reintegrar à comunidade tanto a vítima como o ofensor; c) Reduz, a partir da prevenção, as possibilidades de danos d) Necessita do esforço cooperativo da comunidade e do Estado; e) Entende o delito como gerador de uma ferida nas pessoas e futuros; um rompimento em suas relações. Isto cria a obrigação de pôr as coisas em ordem. A Justiça Restaurativa convoca a vítima, o delinquente e a comunidade na busca para soluções que promovam a reparação, a reconciliação e a segurança para a sociedade. A falta de acesso ao sistema de justiça formal causa injustiças reais e percebidas, que fomentam a falta de confiança nas instituições e incentivam a tendência em direção aos meios alternativos de obter justiça. 48 Se não existem mecanismos claramente identificados para tratar de demandas de justiça, os indivíduos tenderão a usar os meios alternativos mais acessíveis. Para os segmentos menos afortunados de sociedade, isto significa frequentemente a retribuição direta por cidadãos privados ou grupos de cidadãos que agem como agentes de justiça por canais informais, ou apoio popular para tais iniciativas. Os sistemas de micro-justiça( justiça paralela), a exemplo da milícias, na forma de programas restaurativos apresentam uma alternativa às práticas de justiça alternativa ilegais. Quando os cidadãos de fato têm acesso a sistemas de micro-justiça para tratar de queixas e mediar conflitos, há uma opção concreta à retribuição privada. Os cidadãos podem se tornar participantes ativos na resolução de conflitos e de crimes, que frequentemente tem origem na pobreza e precariedade locais, que afetam suas vidas cotidianas em vez de vítimas passivas de injustiças sobre as quais elas têm pouco ou nenhum poder para mudar. Dado que a redução da desigualdade é um dos principais desafios da democratização que o Brasil enfrenta hoje, é importante avaliarmos os aparentes benefícios e potenciais introduzidos pelos sistemas de micro-justiça, dado de atuam junto aos segmentos mais marginalizados da sociedade em termos de acesso à justiça, dotação de poder, e transferência de conhecimento e produção. Assim, uma politica de conscientização realizada através de círculos e conferências restaurativas poderá ser a alavanca para os ajustes sociais e promoção da defesa de direitos através do diálogo e participação da sociedade envolvida, traduzindo-se assim no pleno exercício da cidadania. 49 5 CONCLUSÃO Não restam dúvidas quanto à relevância da problemática da violência nas sociedades contemporâneas. A busca por meios capazes de reduzir a conflitualidade social ou, pelo menos, a violência da resposta estatal (punitiva), tem sido cada vez mais elevada, principalmente nas últimas duas décadas, em virtude de uma série de fatores, dentre os quais podemos citar o aumento da violência, a crise de legitimidade do sistema de justiça criminal e a mudança do papel do Estado. É neste contexto que se insere a proposta da justiça restaurativa. No campo teórico, para melhor inteligência do tema procuramos apontar a base sob a qual se pauta o instituto, para tanto, abordamos, inicialmente, os princípios fundamentais da pessoa humana, os direitos humanos e os princípios norteadores do direito penal correlatos com a justiça restaurativa. Subsumimos a aplicação dos princípios do direito penal à Justiça Restaurativa, concluindo-se que tais princípios são norteadores quando se trata daimplementação e institucionalização dos métodos restaurativos, pois salientam fatores imprescindíveis para o bom uso e funcionamento das práticas restaurativas. Buscamos fazer uma abordagem histórica, assinalando o seu surgimento e ascensão dentro do mundo globalizado, demonstrando que as técnicas e práticas restaurativas já vêm sendo utilizadas no Brasil desde a década de 80 e hoje está institucionalizada dentro do ordenamento jurídico brasileiro através da lei 12.594/12, que trata da execução das medidas sócioeducativas. Incontinenti, procuramos esclarecer o que é a justiça restaurativa, conceituando-a como sendo “uma forma de gerenciamento de conflitos, através do qual um facilitador auxilia todas as partes direta e indiretamente envolvidas numa contenda,a realizarem um processo dialógico, visando transformar uma relação de resistência e oposição em relação de cooperação, valendo-se de técnicas de comunicação não violenta” O modelo de justiça restaurativa, como se pôde observar, não possui estrutura rígida nem detém um conceito fechado. Enfatiza, dentre outras 50 coisas, o dano sofrido pela vítima e as necessidades dele decorrentes, a responsabilização do ofensor no que tange a reparação do dano, o empoderamento das partes envolvidas e, sempre que possível, a reparação das relações afetadas pelo delito, comportando assim valores, princípios, meios e finalidades diversas das do modelo de justiça criminal. Superada a fase teórica, cumpriu analisar os contornospráticosrestaurativos e os momentos de sua aplicação, do que pôde se concluir, primeiramente em relação ao momento de sua utilização, que se deve privilegiar encaminhamentos anteriores ao oferecimento da ação penal, evitando-se, desta forma, o processo penal, ou então logo nas primeiras fases deste, a fim de ver extinta a punibilidade do ofensor. Apontamos as fases do processo restaurativo que inicia com a preparação, seguida do contato com as partes, da escolha do local acolhimento, a identificação da raiz do problema, a comunicação restaurativa, a necessidade de sigilo dos debates e, por fim, a possibilidade de execução dos acordos. A seguir ponderamos sobre os três métodos restaurativos mais usuais, quais sejam: mediação vitima/ofensor, reuniões restaurativas e círculos restaurativos. Também apontamos algumas das ferramentas e instrumentos restaurativos utilizados para otimizar o procedimento na obtenção de um resultado positivo, com destaque para a escuta ativa, o empoderamento e a responsabilidade. Maior ênfase foi dada ao capítulo central da pesquisa, que trata da compatibilidade da Justiça restaurativa com a Justiça Formal e a contribuição que a primeira pode trazer para a sociedade e para os diversos órgãos do Sistema de Justiça, sendo enfatizada a necessidade de regulamentação as formas de recepção dos acordos restaurativos pela justiça criminal, objetivando, principalmente, a efetiva redução do uso da pena de prisão. Finalmente, quanto às práticas, foi possível constatar a real flexibilidade da justiça restaurativa, capaz de introduzir mecanismos que auxiliam na construção do processo de justiça, e permitir a constante transformação das práticas conforme as necessidades dos casos concretos. 51 Assim, abordamos as praticas restaurativas nos Juizados Especiais, nas escolas, nos órgãos da segurança pública e na justiça menoril, neste último caso, já aplicada em decorrência de lei, como citamos ao norte. Nesse sentido, verificou-se que o projeto da justiça restaurativa vinculase ao processo de reformulação judicial brasileiro, que busca ajustá-lo ao contexto democrático. A justiça restaurativa passa a ser uma alternativa para validar o sistema de justiça criminal, mediante a qualificação da administração da justiça e a introdução da possibilidade de resolver o conflito de forma não violenta e com a participação das partes envolvidas e até mesmo da comunidade. A justiça restaurativa deve atuar, portanto, de forma a diminuiro número de casos encaminhados ao sistema punitivo, reduzir a aplicação de sanções punitivas e, acima de tudo, de forma a incrementar o acesso à justiça com qualidade. Em relação à discussão sobre a violação das garantias (igualdade ou coerência dos castigos, proporcionalidade e imparcialidade) e a participação da vítima na resolução do conflito (acarretando a privatização do mesmo), percebe-se que algumas críticas são de extrema importância, pois ressaltam a necessidade dos limites dos acordos restaurativos, como é o caso da crítica ao princípio da proporcionalidade. As questões analisadas neste trabalho pretenderam englobar perspectivas práticas e teóricas relacionadas às diferentes formas de articulação da justiça restaurativa com o sistema de justiça criminal e à sua implementação, principalmente no contexto brasileiro. Concluímos que a justiça restaurativa não deve substituir o processo penal e a pena, mas atuar de forma complementar, possibilitando outra resposta que não a estritamente punitiva; todavia, deve possuir certa autonomia em relação ao sistema criminal, em razão de sua lógica distinta. 52 REFERÊNCIAS BECCARIA, CESARE Dos delitos e das penas.Martin Claret, 10ª. Reimpressão, São Paulo. ed. 2009. GRINOVER, Ada Pellegriniet al.(Coord.).Mediação no Judiciário.Rio de Janeiro: Forense, ed. 2012. MOTA, Manoel Barros da.Crítica da razão punitiva: o nascimento da prisão no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011 VASCONCELOS, Carlos Eduardo.Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. WATCHTEL, Ted; WATCHEL, Joshua; SMULL, Elizabeth.O poder da família: engajando-se e colaborando com as famílias. EUA: IIRP, ed. 2013. WATCHTEL, Ted; WATCHEL, Joshua; COSTELLO, Bob. Círculos restaurativos nas escolas: construindo um sentido de comunidade e melhorando o aprendizado. EUA: IIRP. ed. 2011. WATCHTEL, Bem; O`CONNEL, Terry; WATCHEL, Ted. Reuniões de justiça restaurativa. EUA: IIRP, ed. 2010 WATCHTEL, Ted; COSTELLO, Bob; WATCHEL, Ted. Manual de práticas restaurativas. EUA. IIRP, ed.2012 ZEHR, Howard– Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça restaurativa. São Paulo: Palas Athena, ed.2008. BRASIL. Lei 12.589/12- que regula o Sistema Nacional de Aplicação das Medidas Sócio Educativas. BRASIL. - Lei dos Juizados Especiais- Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências BRASIL.Código Penal Brasileiro. 49. ed.São Paulo: Saraiva,2013. BRASIL. Código de Processo Penal Brasileiro. 49. ed.São Paulo: Saraiva,2013. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de Outubro de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional de 05-08-2014,acompanhada de novas notas remissivas e de textos integrais das Emendas Constitucionais da revisão. 65 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2014. 53 ONU.Carta das Nações Unidas: Disponível em <http://www. www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm. Acesso em 6 jun..2014.